democracia
Fábio Konder Comparato: Por falar em democracia
Soberania popular é hoje confundida com populismo
Desde a Antiguidade clássica até a segunda metade do século 19, a democracia sempre foi tida como regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém, já não haveria bons costumes, amor à ordem, virtude, enfim.
Por sua vez, James Madison, um dos "founding fathers" dos Estados Unidos, sublinhou que a democracia, por ele entendida como a "sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente", incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social.
Entre nós, menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou um brado de alerta:
"Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus deputados em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Império é absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem elas prescrever leis aos que as devem fazer, cominando-lhes a perda ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar".
Durante todo o século 20, contudo, o juízo de valor que se fazia sobre a democracia era exatamente o inverso. Com raras exceções, nenhum partido ou movimento político ousava dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçavam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do "governo do povo, pelo povo e em prol do povo".
Tal unanimidade a propósito de democracia era evidentemente suspeita. Ao fazer do elogio desse regime um simples chavão político, ela revelava formidável confusão semântica. O povo, que pela própria etimologia (demos, povo + kratos, poder) seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, sempre pareceu ter sérias dificuldades em entender o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda.
Pesquisa realizada pelo instituto Latinobarômetro revelou que o apoio dos latino-americanos à democracia chegou em 2018 ao nível mais baixo já registrado: 48%, uma queda de cinco pontos percentuais em relação à 2017. No Brasil, esse apoio é ainda menor: 34%.
Pois bem, atualmente a aprovação da democracia se enfraquece no mundo todo; isso tem suscitado apreciável número de estudos sobre o fenômeno, até mesmo nos Estados Unidos, apresentado como parâmetro desse regime político após a Segunda Guerra Mundial.
A soberania popular é hoje, cada vez mais, como se acaba de ver em nosso país, confundida com populismo; ou seja, a revolta do "povão" contra as elites e a busca de um homem forte no governo; se possível, um militar da ativa ou da reserva, cercado de seus colegas de farda.
Pergunta-se: é possível vencer essa tendência declinante? De minha parte, respondo afirmativamente, desde que se compreenda qual a condição essencial de um regime de autêntica soberania popular, e não de uma oligarquia fantasiada em democracia, como sempre aconteceu em nosso país.
Esse pré-requisito essencial implica a ausência de uma profunda desigualdade social, a qual sempre existiu entre nós. Hoje, conforme relatórios da prestigiosa ONG internacional Oxfam, sabe-se que as seis pessoas mais ricas do Brasil têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre do país. De sua parte, a WID (World Wealthand Income Database) colocou nosso país como líder mundial em desigualdade, atrás até mesmo dos países do Oriente Médio.
Tudo isso, como ninguém ignora, tem consequências políticas arrasadoras. A Constituição em vigor, como várias que a precederam, declara solenemente que "todo o poder emana do povo". Mas este jamais teve a mínima condição de exercê-lo.
*Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra
Hamilton Garcia: A democracia na furna da onça
O risco à democracia num país é comumente atribuído ao comportamento dos agentes políticos e seu grau de comprometimento com suas práticas e instituições, e à resistência delas às crises. Por este prisma, os riscos podem ser bem menores do que realmente são, sobretudo quando não se tem em conta a natureza das crises que ela enfrenta.
Em nosso caso, as crises vividas desde 1988 (impeachments, megaesquemas de corrupção, etc.), foram todas contornadas, mas seu legado foi, até aqui, irrelevante em termos de modificações institucionais/culturais efetivas, capazes de evitar a repetição dos problemas.
De outro lado, tanto o extremismo petista, quanto o bolsonarista, foram tolhidos, até aqui, pelo resultado das urnas: no primeiro caso, por uma derrota que isolou a esquerda nas regiões periféricas do país, enquanto, no segundo, a vitória obrigou à formação de uma coalizão de governo com forças não extremistas.
Não obstante estes sinais positivos, o problema das interpretações funcionalistas, seja de viés voluntarista ou institucionalista, é que elas não costumam dar conta dos problemas estruturais de nossa dinâmica política, em especial aqueles que historicamente vinculam a modernização a uma ação política por cima, por meio de um Estado de compromisso que articula e seleciona interesses presentes na sociedade, quer do capital ou do trabalho, em benefício de elites neopatrimonialmente orientadas – cuja degradação evolutiva desembocou na "furna da onça”, paradigma cabralino (1995-2018) do uso da corrupção como instrumento de emulação da harmonia de poderes.
À partir desta perspectiva histórico-estrutural, podemos entender melhor como nossa República foi a expressão de um pacto de poder onde o "estamento burocrático” (Faoro) – quer sob a hegemonia agrarista (República Velha, 1889-1930), quer industrialista (República Nova em diante, 1930-1989) e financista (Nova República, 1990-2018[i]) – comprimia e arbitrava a disputa política em prol de seus interesses vitais, como elite político-burocrática, e de suas conexões com as classes fundamentais (dominantes e dominadas), de modo tal que nem as semirrupturas do Estado Novo e da Contrarrevolução de 1964 foram capazes de superá-la, em meio à conformação de novos blocos históricos, depois de esgotados os instrumentos de subordinação explicitamente autoritária da sociedade civil ao Estado.
Desnecessário dizer que tal presidencialismo de cooptação, de inspiração liberal, foi, desde sempre, responsável tanto pela manutenção do déficit crônico de democracia e estabilidade ao longo da República (vide, A democratização do Estado), como de racionalidade burocrática – à exceção dos períodos de semirrupturas mencionados –, visto seu compromisso figadal com os privilégios corporativos encerrados em sua própria constituição de classe e o modo como tendia, e tende, a traduzir o interesse como privilégio – o posto do imperativo funcional de qualquer sociedade moderna.
Por isso, ela foi e segue sendo fator de instabilidade política, não só por tirar proveito das distorções institucionais que dificultam a representação política (vide, Accountability e Reforma Política), mas porque administra seu domínio do Estado e, através dele, sobre a sociedade, por meio do uso abusivo de recursos públicos (orçamentários e institucionais) – seja pela corrupção, pelo desvio de função ou perversão das políticas públicas – que produzem falsos consensos ao custo do desperdício do crescimento econômico, obstaculizando o verdadeiro desenvolvimento.
Não foi por outro motivo que o modelo neopatrimonial de dominação entrou em crise seguidamente quando diante de crises recessivo-inflacionárias, levando à radicalizações políticas, como em 1930 e 1964, quando a capacidade estatal de amortecimento dos conflitos sociais, via cooptação, diminuiu drasticamente.
É precisamente isto que vivenciamos agora, com o colapso da direção social-patrimonial sobre o bloco histórico (vide, Os perigos que se avizinham e o antídoto e O Brasil que emerge das urnas), quando a brutal recessão do período petista (Dilma) se encontra com o esgotamento ético e fiscal do modelo de inclusão social-financista, com níveis inéditos de consciência política advindos da escolarização associada aos novos meios de mobilização/informação – que a direita soube utilizar de maneira eficiente à partir de 2015 (movimento pró-impeachment).
A resistência da ordem patrimonialista à mudança apontada pelas urnas, que se ensaia pela aliança do lulopetismo com o emedebismo-centrismo, já começou bem antes da posse do novo governo, na forma de medidas legislativas (“pautas-bomba"), como os aumentos salariais das corporações estatais – com apoio maciço dos tucanos – ao arrepio da situação financeira do Estado, e a volta da ameaça de indulto natalino aos corruptos, acrescida da proposta legislativa de abrandamento das penalidades judiciais.
Tais medidas mostram o potencial explosivo da relação entre um Presidente eleito por uma pauta de ruptura com tal modelo e a capacidade deste de reagir, inclusive se travestindo de oposição legítima, ameaçando bloquear o exercício do governo eleito caso este impeça a apropriação espúria do Estado federal por seus interesses particularistas.
O imbroglio, que pode ser evitado pelo isolamento, no novo Congresso, destes segmentos presentes na situação e na oposição, tende a se defrontar com uma situação inédita, extremamente desvantajosa para a tradição derrotada: a de ter que enfrentar um Presidente que dispõe não apenas de apoio parlamentar, mas, sobretudo, de uma sociedade civil renovada à direita, com potencial para expressar a vontade geral recém-saída das urnas, além de uma ligação inédita e orgânica com as forças militares – fortemente representadas no novo governo.
A possibilidade de embates radicais, verticais e horizontais, não podendo ser descartada, deve culminar em algum pacto de governabilidade que incluiria a reforma política em troca de espaços de poder. Todavia, não se pode desprezar a ocorrência de um impasse que force a reforma política por meio de referendo ou plebiscito – cuja convocação é privativa do Congresso e depende de maioria simples, presente mais da metade dos parlamentares – e, no interregno, abra caminho à governabilidade por meio de outras medidas excepcionais com o apoio das bancadas parlamentares, contra as lideranças da Câmara e do Senado, a partir da pressão social.
A desarticulação de um eventual bloqueio espúrio da bancada neopatrimonial, no Congresso, contra o Executivo, é decisivo não só para a solução democrática do governo recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta
Nenhuma constituição, em abstrato, pode garantir o bom resultado de um sistema democrático. Como alertava Max Weber[ii], ainda antes do fim da I Guerra (1914-1918), somente a articulação efetiva entre Estado e sociedade, por meio de partidos socialmente sustentáveis que disputem sua direção de modo a produzir consenso verdadeiro, por meio de interesses bem constituídos – derivação autêntica de organizações livres – e seus respectivos programas, com as mais diversas inspirações ideológicas – mas jamais reduzidos a anteparo de práticas fraudulentas e exclusivistas –, pode garantir a sustentação de governos legítimos, capazes de absorver os inevitáveis choques provenientes das contradições existentes nas sociedades modernas.o recém-eleito, mas para o enfrentamento dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico-social e o próprio aperfeiçoamento do sistema representativo, sem a qual a reiterada vontade de respeito à Constituição corre o risco de virar letra-morta.
Nosso caminho até lá poderá ser tortuoso, como atesta a eleição do Capitão, mas é preciso que seja efetivo em seu objetivo primordial, independentemente das conotações ideológicas em disputa – cujos corolários indesejáveis poderão ser purgados por um sistema efetivamente representativo.
Notas
[i] Que se inaugura politicamente com a volta dos civis ao poder (Tancredo-Sarney) em 1985, mas cuja expressão acabada é o Bloco Histórico liberal-financista inaugurado por Collor (1990-1992), e depois estabilizado por FHC (1995-2002) e alargado por LILS (2003-2016).
[ii] Vide, Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída (uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária), in. Os Pensadores, ed. Nova Abril/SP, 1985, passim.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).
Samuel Pessôa: A maré da direita
A política está funcionando; se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas
No início, era o antipetismo. Essa coisa meio amorfa. Tomou a rua. Fiquei surpreso com o tamanho da onda.
No domingo passado (21), o capitão falou. À la Trump, disse um monte de impropérios. Condenou a diferença e prometeu destruir os opositores. Não falou nada muito diferente do que muito radical petista fala em convenção do partido.
Mas há conteúdo positivo, propositivo, no voto para o tenente que se aposentou como capitão.
Há uma genuína agenda conservadora em gestação. Reforço do direito de propriedade com a criminalização das invasões —seja de imóveis urbanos ou propriedade rural—, empregadas como mecanismo de pressão contra nossas desigualdades históricas.
Redução do gasto público com as organizações não governamentais e, penso eu, corte em benefícios da Lei Rouanet. Provavelmente cobrança de mensalidade para universidades públicas de quem pode pagar.
Recrudescimento das penas para crimes, flexibilização da maioridade penal, maior liberalidade no porte de armas e elevação das garantias de proteção à atuação das polícias no engajamento com criminosos.
Total reforço à Lava Jato. Possivelmente serão retomadas as Dez Medidas Contra a Corrupção do Ministério Público.
Aparentemente, esse será o governo de direita por aqui. Dado que, para os petistas, FHC era neoliberal e centro-direita, faltarão graus no transferidor do espectro político para posicionar Bolsonaro.
Os intelectuais, artistas e tantos outros terão que aprender que há legitimidade nessas pautas da direita. Elas serão tratadas no Congresso Nacional, e o STF, como instância contramajoritária, vai se pronunciar e terá poder de veto sempre que novas legislações ferirem disposições constitucionais.
A fala do tenente aposentado como capitão, porém, nada disse sobre como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 300 bilhões.
Se Bolsonaro tiver sabedoria, tocará a agenda econômica o mais rapidamente que puder.
Tapar o buraco fiscal é tarefa do Congresso. No entanto, a tão alardeada renovação foi qualitativamente muito ruim. Diversos parlamentares que conheciam a natureza do problema e as entranhas do sistema político não foram reeleitos.
Não poderemos contar com a experiência desses e teremos de lidar com uma leva de novos atores que deverão se adaptar ao seu novo ambiente e destrinchar seus mecanismos de funcionamento, em um momento em que não há tempo.
Sim, o presidente que for eleito terá que propor, coordenar e liderar as ações, mas o desenho final do ajuste fiscal será construído invariavelmente pelo Congresso.
O risco é Bolsonaro inverter as pautas. Em um afã de agradar a seu eleitor, tocar a pauta da segurança e dos direitos de propriedade antes da pauta econômica. A segurança não vivenciará uma melhora repentina, o crescimento não virá a tempo, o país não sairá do imobilismo e, inevitável, a popularidade cairá. Simultaneamente, terá que administrar inúmeros conflitos com o Supremo nessas pautas.
Há histeria no ar com a possibilidade de um golpe clássico ou com a deterioração da democracia com Bolsonaro.
Não sei se a histeria é sincera ou segue de certa dificuldade da esquerda em conviver com pautas democraticamente escolhidas que sejam frontalmente contrárias aos seus pontos de vista.
A política está funcionando. Quando e se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas. Hoje é o momento da política.
*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Política Democrática: Eleição escancarou intolerância na sociedade, dizem especialistas
Em artigos publicados na revista Política Democrática online, sociólogo e economista avaliam campanhas eleitorais e democracia
O período eleitoral escancarou a intolerância na sociedade, revelando o clima de tensão e ódio entre adversários que vai exigir, do presidente eleito neste domingo (28), um grande esforço para desarmar os espíritos. No entanto, o contexto brasileiro serve para mostrar que a democracia entra em crise porque não tem resposta às novas demandas da sociedade, provindas de uma profunda mudança social.
A avaliação é de analistas políticos autores de artigos publicados na edição de lançamento da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Com acesso totalmente gratuito, a publicação foi lançada no dia 23 de outubro.
Em seu artigo, que recebeu o título “Ameaças à democracia”, o sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento explica que uma das dificuldades na construção de respostas por parte dos governos democráticos reside no que ele chama de “morte das ideologias”. Segundo o autor, a ideologia sobrevivente é o liberalismo.
No entanto, conforme acrescenta Elimar, o próprio liberalismo “torna-se cada vez mais incapaz de dar respostas aos novos problemas que emergem das mudanças estruturais da sociedade, particularmente oriundas da disseminação das novas tecnologias e da crise ambiental”.
Além de não ter considerado a importância de temas ambientais, o período eleitoral não explorou outros campos necessários para o desenvolvimento da sociedade, de acordo com o economista Sérgio Buarque. Ele é autor do artigo “Atropelado pelas emergências”, que também está publicado na revista.
De acordo com Sérgio, a campanha também escondeu os temas econômicos e fiscais incômodos que devem ser enfrentados pelo próximo presidente. Com isso, segundo ele, desmobilizou a sociedade para a necessidade de medidas que são inevitáveis ao reequilíbrio das finanças públicas. “Propostas enganosas e simplistas foram vendidas como mágicas para todos os males do Brasil”.
Leia mais:
Maria Herminia Tavares de Almeida: Na encruzilhada
Não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo pode promover
Cientistas políticos chamam de "encruzilhadas críticas" as situações nas quais, em contexto de incerteza, a decisão de protagonistas relevantes define um caminho sem volta, em prejuízo de outros possíveis: uma vez tomado, o caminho limita, por um bom tempo, os passos possíveis dali em diante. Estamos em um desses momentos, e os protagonistas que farão essa escolha crucial são os milhões de eleitores brasileiros.
Por isso, é apropriado especular sobre o rumo que o país poderá tomar, caso se confirme o resultado que as pesquisas de opinião indicam. Ao fazê-lo, porém, toda cautela é pouca: analistas da sociedade e do comportamento humano são treinados para explicar o passado e não dispõem de instrumentos afiados para falar do futuro com segurança.
Colegas cuja integridade pessoal e competência profissional merecem respeito sustentam que a democracia não corre risco, mesmo que vença o candidato de extrema direita. Argumentam que não basta olhar para o discurso e o compromisso dos candidatos com os princípios democráticos; é preciso também levar em conta os antídotos institucionais contra possíveis tendências autoritárias.
Nessa ordem de ideias, supor que a eleição de políticos indiferentes ou avessos aos valores democráticos colocaria em xeque o regime de liberdades equivaleria a ignorar os freios que as instituições são capazes de impor à conduta dos políticos.
A tese aqui é forte: as regras que limitam a vontade dos governantes acabarão por forçá-los à moderação. O raciocínio que vale para os deputados seguidores de Bolsonaro —que estão longe de ser hegemônicos no Legislativo— é mais discutível para um Bolsonaro presidente.
O chefe de governo que for eleito no domingo (28) enfrentará enormes desafios, dois deles prementes para libertar o país da crise econômica e política: alguma reforma fiscal que tire a economia do sufoco e permita crescimento; e a pacificação política, a fim de reduzir a polarização que dilacera a sociedade, ao estimular a incivilidade e a violência.
As mudanças necessárias, no primeiro caso, demandam um presidente com capacidade e disposição de coordenar sua base parlamentar --condição indispensável para o bom funcionamento do presidencialismo de coalizão.
As urnas geraram um Congresso fragmentado como nunca, com pouquíssimas lideranças experientes. O partido do candidato favorito é excepcionalmente diminuto, e as pequenas agremiações de direita e de centro não haverão de engrossar a base governista por mera atração gravitacional. Fazê-los atuar a favor de uma agenda de reformas, qualquer que seja, exigirá do presidente muita capacidade de negociação, muita flexibilidade para ouvir, convencer, acomodar interesses e ceder. Isso pressupõe que o presidente tenha tino político e inclinação para o diálogo, qualidades que Fernando Henrique e Lula possuíam de sobra, faltavam a Collor e Dilma e não caracterizam o candidato da extrema direita.
Ele tampouco parece ter vocação ou vontade de pacificação política. Seu histórico de destempero, insultos e intimidação nem de longe o qualifica para a tarefa.
Suas declarações durante a campanha eleitoral --veja-se a mensagem em vídeo aos apoiadores que se manifestavam em São Paulo, no último domingo, na qual ameaça banir os opositores e mandar Fernando Haddad para a prisão-- vêm incentivando a virulência de seus apoiadores mais ferozes nas redes sociais, quando não na vida real. Ao declarar que não tem responsabilidade nem controle sobre o que fazem em seu nome, o candidato lhes dá carta-branca.
O Brasil tem o perverso privilégio de integrar a liga das sociedades mais violentas do mundo. Nas periferias urbanas, nos fundões do país profundo, nas fronteiras onde o agronegócio investe contra as populações indígenas, nos pontos de passagem do comércio controlado pelo crime organizado —enfim, quase por toda parte—, a violência corre solta, mesmo quando a lei a proíbe e seus agentes querem coibi-la. Imagine-se quando os que a praticam se sentirem autorizados por um presidente que durante a campanha eleitoral a enalteceu ao tempo em que encoraja implicitamente a brutalidade dos seus seguidores.
O Brasil da Constituição de 1988 construiu fortes instituições de controle dos governantes e de defesa da liberdade dos cidadãos. A maioria no país é também moderada e não apoia a agenda de extrema direita. Mas não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo desdenhoso de seus valores e regras pode promover.
Basta olhar para a Venezuela, a Polônia, a Hungria, as Filipinas. Aqui, os presidentes têm a sua disposição muitos recursos de poder. Gostaria de estar errada, mas prefiro não pagar para ver. Na disputa que chegará ao fim no domingo quem quer que tema a degradação da democracia entre nós só tem uma escolha.
*Maria Herminia Tavares de Almeida, Professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)
FAP lança revista Política Democrática digital
Totalmente on-line e com design responsivo, publicação tem acesso gratuito e traz análises, entrevista e reportagens especiais
Em celebração aos 30 anos da democracia e a quatro dias do segundo turno das eleições no Brasil, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lança, nesta quarta-feira (24), a revista Política Democrática em formato totalmente on-line e com design responsivo. A publicação contempla análises de renomados articulistas, entrevista exclusiva e reportagens especiais, as quais poderão ser acessadas, de graça, pelos internautas.
Nesta edição de lançamento do formato digital, Política Democrática destaca o drama de imigrantes oriundos da Venezuela que peregrinam no maior êxodo da história da América Latina e conta, em vídeos, fotografias e textos, histórias de quem atravessou a fronteira com o Brasil, em busca de sobrevivência. Repórteres da FAP viajaram a Caracas para mostrar, ainda, os reflexos do colapso político e socioeconômico que assola o país presidido por Nicolás Maduro.
Além disso, a revista também reservou, assim como para outras análises, um espaço para entrevista com a economista Monica de Bolle, única mulher latino-americana a integrar a equipe do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em Washington, D.C. Na avaliação dela, a agenda fiscal deverá ser prioridade do novo presidente.
Objetividade
Com o propósito de entregar conteúdo de altíssima qualidade para o público em seu novo formato, a revista reuniu um time de profissionais capazes de fazer análises do contexto brasileiro, de forma mais objetiva possível, especialmente das eleições de 2018. “O critério de seleção foi a alta capacidade profissional e interpretativa dos jornalistas e acadêmicos que assinaram as matérias, convicção que, estamos certos, justificará plenamente o título de Política Democrática”, diz o diretor da revista, André Amado.
Em relação às análises, André avalia que a publicação mostra opiniões baseadas em reflexões acadêmicas ou em experiências pessoais, que, por isso, segundo ele, “ganham legitimidade além do marco habitual e distorcido dos maniqueísmos ideológicos”. “Seu lançamento, entre os dois turnos das eleições, incorpora apreciação dos resultados da primeira volta e afina as perspectivas para a reta de chegada das candidaturas, apesar do clima visceral com que se vêm desenrolando as campanhas de um e de outro”, afirma o diretor, referindo-se aos candidatos do PT, Fernando Haddad, e do PSL, Jair Bolsonaro, à Presidência da República.
» Para acessar a revista, clique na imagem acima ou no link abaixo:
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/10/24/revista-politica-democratica-online/
Relevância e agilidade
O período eleitoral, de acordo com o editor da revista, Paulo Jacinto Almeida, faz com que a revista sirva como palco de debates sobre os projetos propostos para o país. “É de extrema relevância neste momento em que estamos escolhendo o próximo presidente da República”, destaca ele. “É a continuidade de um projeto existente desde o início do século, que vem debatendo política, democracia, esquerda e cultura na conjuntura brasileira e se torna fundamental ao auxiliar o internauta com informações e análises sobre este momento decisivo em nossa história”, acrescenta.
O editor ressalta que a publicação digital poderá ser acessada em qualquer plataforma, como celular, tablet ou desktop, e a qualquer momento. Segundo ele, a nova revista poderá otimizar um fator cada vez mais importante na sociedade do conhecimento: o tempo. “Ele (internauta) ganha agilidade e praticidade para se manter informado e acessar análises de temas cruciais para o nosso país”, diz Paulo.
A seguir, confira a relação de conteúdos da revista e seus respectivos autores:
*Lições do primeiro turno (Caetano Araújo)
*O que esperar de Jair Bolsonaro (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*O que esperar de Fernando Haddad (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*A verdade do oráculo digital (Sergio Denicoli)
*Quadrinhos (JCaesar)
*Reportagem de capa: Um país à beira do abismo (Cleomar Almeida e Germano Martiniano)
*Um olhar crítico sobre a democracia (João Batista de Andrade)
*Por quem os sinos dobram (Alberto Aggio)
*Ameaças à democracia (Elimar Pinheiro do Nascimento)
*Entrevista com Monica de Bolle: Agenda fiscal terá de ser prioridade do próximo presidente (André Amado, Caetano Araújo, Creomar de Souza e Priscila Mendes)
*Fernando Gasparian e a morte do nacional-desenvolvimentismo (Jorge Caldeira)
*Yuval Noah Harari investiga as inquietações do presente em “21 lições para o século 21” (Dara Kaufman)
*Atropelado pelas Emergências (Sérgio C. Buarque)
Daniel Aarão Reis: O que fizemos da democracia?
Principais forças reformistas, PT e PSDB não foram capazes de se articular em torno de programas de mudanças
O que fizemos para chegar a este ponto? Ter de escolher entre o péssimo e o menos mal?
Tudo começou lá atrás, quando as grandes maiorias resolveram silenciar sobre um tempo que findava. Já acontecera depois do Estado Novo, quando um manto foi jogado sobre os crimes do varguismo. Os resultados não foram edificantes — elegeu-se como presidente o general Dutra, ex-simpatizante do nazismo. Em seguida, o próprio ex-ditador retornou ao governo “nos braços do povo”. Nos anos 1980, prevaleceram orientações análogas: olhar para a frente, ignorar o espelho retrovisor. Na alegria da abertura, falar dos crimes da ditadura civil-militar era quase uma atitude de mau gosto. As consequências apareceram na Constituição de 1988.
Mesmo registrando avanços e inovações consideráveis nas áreas dos direitos civis, políticos e sociais, eram visíveis os legados densos —do período anterior. Permaneceu inalterado o modelo de sociedade construído — ou reforçado — pela ditadura: a hegemonia do capital financeiro; a predação do meio ambiente; as desigualdades sociais; a civilização do carro individual nas megalópoles hostis à vida; as empreiteiras e suas obras faraônicas; o agronegócio concentrador de terras e de rendas; a centralização do poder num Estado gigantesco; a mídia monopolizada; a preeminência das Forças Armadas, “garantidoras da lei e da ordem”, replicando tendências históricas, onde os funcionários públicos uniformizados transformam-se em tutores da nação, com suas corporações fechadas, fora do controle da sociedade.
O pior ainda viria.
As principais forças políticas reformistas, o PT e o PSDB, não foram capazes de se articular em torno de programas de mudanças. Preferiram o atalho das alianças com grupos conservadores, desfigurando-se e se corrompendo no sentido próprio da palavra, o que se evidenciou no abandono do que tinham de melhor —suas intenções originais e promessas de renovação. A que se associaram as bandalheiras em nome da Realpolitik e a mixórdia das cumplicidades com o mundo dos negócios.
É certo que nem tudo foram espinhos. Houve o controle do dragão da inflação, que parecia imbatível. E os anos eufóricos dos mandatos de Lula, a autoestima nacional lá no alto, os mais confiantes falando num país que poderia ser modelo civilizacional para o mundo. Como nos tempos sorridentes e democráticos de JK. (É triste saber que também houve euforia, vigiada embora pela repressão, nos anos prósperos da ditadura de Vargas e nos do milagre econômico sob o sinistro e popular general Médici).
A decantação do otimismo veio mais rápido do que se esperava.
Os êxitos não resistiram ao impacto da crise econômica, mostrando as mazelas cobertas pelos véus do otimismo: o caráter aristocrático e corrompido do sistema político. As desigualdades sociais. A massa dos desempregados. A concentração de renda e de poder. A insegurança das pessoas comuns. A falência dos projetos reformistas. A expectativa ainda depositada no PT e no PSDB tornou-se mais resultado da nostalgia do que houve de melhor em seus anos de governo do que de propostas de mudanças. No vácuo criado pela inapetência autocrítica destes partidos, no caldeirão de contradições em que se tornou o país, ganharam força apelos salvacionistas e autoritários, nostálgicos de regimes ditatoriais. É verdade que se formou em torno deles uma nebulosa conservadora, mais amarga e desesperançada do que “fascista”. No entanto, são assustadoras suas promessas e práticas intolerantes.
Resta-nos a opção do menor mal. Contudo, o voto só ganhará sentido caso a escolha seja apoiada no compromisso com o aperfeiçoamento das instituições. Este objetivo será alcançado não apenas através de eleições, mas da auto-organização das gentes e de sua participação permanente. As passeatas das mulheres indicaram um caminho. Sem negar as eleições, complementando-as, conferiram vitalidade e força a uma democracia que se quer renovada e não destruída.
O Estado de S. Paulo: 'Democracia brasileira está em risco permanente', afirma Roberto Romano
Para Roberto Romano, ataque a Bolsonaro mostra que instituições e sociedade civil não estão funcionando normalmente
Por Paulo Beraldo, de O Estado de S. Paulo
O ataque a faca contra o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) em Juiz de Fora (MG) durante ato de campanha, é um reflexo do atual quadro da democracia brasileira, em que as instituições e a sociedade civil não têm funcionado normalmente. Esta é a avaliação do filósofo Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “(O incidente) É um resultado da democracia brasileira, que vive em risco permanente. Ela não está consolidada”, afirmou.
Em entrevista ao Estado um dia após o incidente, o pesquisador alerta para a necessidade de os candidatos, os partidos e as autoridades públicas, sobretudo do Judiciário, “assumirem as responsabilidades de suas funções”. “Se não tivermos uma reação saudável e rápida, evidentemente teremos mais fatos graves até as eleições”, disse. “Estamos longe de perceber a gravidade da crise política e social brasileira.”
Abaixo, leia os principais trechos da entrevista.
O que significa esse episódio?
Isso é um resultado da democracia brasileira, que vive em risco permanentemente. Ela não está consolidada. As instituições de Estado e da sociedade civil não estão agindo normalmente. Com isso, temos a perda radical da autoridade pública. E democracia sem autoridade pública não funciona. Quando não há autoridade, a violência física e a violência verbal se imiscuem em todos os assuntos da sociedade e do poder público. E então temos resultados como esse (o ataque). Se não tivermos uma ação rápida para resolver esses problemas, evidentemente vamos caminhar para um fim trágico. Quando o próprio Jair Bolsonaro, no Acre, usou uma frase no sentido de “metralhar seus adversários”, a Procuradoria-Geral da República não tomou providências. Esse é um ponto. Ela (Raquel Dodge) achou que era um assunto menor e isso mostra o quanto estamos longe de perceber a gravidade da crise social e política brasileira.
Nos últimos meses, tivemos outros ataques a políticos. São episódios isolados?
Não é isolado, esse é o ponto. Temos um regime civil que, na Constituição, promete ser democrático e, ao mesmo tempo, um Estado de direito. Para essa promessa ser cumprida, é necessário que os três poderes cooperem. No caso brasileiro, há um Executivo desacreditado, já que o presidente tem a avaliação do eleitor mais baixa possível. Tem um Parlamento em que o eleitor também não acredita, com desprestígio absoluto, e a Justiça começa a mostrar sinais de partidarismo, de política e de divisão, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Tem vários tribunais abrigados sob a sigla do STF. É isso que eu chamo de a perda da soberania.
Como é esse conceito de perda da soberania?
O conceito de soberania permite o uso da autoridade pública, exige a coordenação e a harmonia dos três poderes com o compromisso diante do cidadão. Quando os poderes se autonomizam em relação à sociedade e à economia, e começam a definir um padrão que não é o legal, mas o político, temos quase o princípio da anarquia. No Brasil, a falta de ordem começa nos mais altos escalões do Estado. E é evidente que, com isso, não tem como garantir na base da sociedade o bom convívio.
Que ações seriam necessárias para alterar esse cenário?
O primeiro passo é que os partidos políticos assumam a sua função de partidos e não de máquinas eleitoreiras que apenas visam a demagogia e a conquista de cargos. O segundo ponto é que as autoridades públicas no Executivo, Legislativo e, principalmente, no Judiciário tenham consciência da gravidade e não ajam como se nada estivesse acontecendo. As instituições brasileiras não estão funcionando normalmente. Dizer que estão é negar a realidade, negar os fatos como assassinatos de políticos e tentativas de assassinato.
Com esse novo componente, o que se pode esperar para as eleições 2018?
O imprevisível sempre. Essa tem sido, infelizmente, a história do Brasil desde o governo de Getúlio Vargas. No momento em que se pensa que a situação do País vai caminhar para a normalização, para o respeito da autoridade e da ordem pública, tem um fato terrível como esse acontecendo. É preciso ter mais prudência, que não significa ter medo, mas sim agir no momento certo e não deixar que os fatos se precipitem. O que estamos assistindo são autoridades públicas que assistem à violência que grassa na sociedade como um todo e agem como se nada estivesse mudando. Os fatos deverão ser enfrentados até outubro.
Marco Aurélio Nogueira: O tamanho da indefinição
O Brasil não acabará depois das eleições, seja quem for o vencedor do pleito presidencial
O mundo gira e a caravana roda. Com o avançar do calendário eleitoral, a definição dos candidatos, de suas coligações e seus compromissos, com as primeiras pesquisas e os debates iniciais, subiu a temperatura e ingressamos em um tempo de tomadas de posição.
Não há porque temer esse tempo ou fugir dele em nome do candidato ideal ou de uma candidatura única que jamais existiu, que dificilmente poderia existir e que nem sequer deveria ser tida como exigência democrática. Democracia é pluralidade, divergência, choque de opiniões, manifestação de preferências. Numa época de partidos e verdades em crise, pregar a ordem unida é caminhar às cegas, sem poder de convencimento.
Guerras entre candidatos são suicidas, mas não há como contorná-las: lutam pela própria afirmação, não pela afirmação de um campo ou polo. É da lógica da disputa eleitoral. O sangue que escorre dos guerreiros pode mesmo adubar candidaturas autoritárias. Não há como evitar isso, ao menos no primeiro turno. Correr riscos é um dos preços da democracia.
A sabedoria está em minimizar os efeitos, evitar que os choques ultrapassem o razoável, traduzindo-se em agressão e ruptura. Mentiras escabrosas e campanhas negativas de desconstrução são tóxicas, envenenam a democracia. Não se trata somente de cordialidade, mas de bater sem deixar marcas e sem poupar o adversário principal, facilitando-lhe a vida.
Sempre será preciso fazer a análise concreta da situação concreta. A frase é marxista, mas não é preciso ser marxista para aceitá-la: trata-se de um suposto do realismo político e do esforço que se deve fazer para enxergar o todo, com suas determinações, suas possibilidades reais e as relações de força que nele têm lugar. Alcançar uma compreensão abrangente e a mais racional possível é boa norma de conduta na política.
O amplo e heterogêneo campo da democracia no Brasil vive hoje um dilema: é ou não possível trabalhar para que se tenha uma mudança consistente no país, uma mudança que mexa nas estruturas, nos sistemas em geral, nas instituições, nos hábitos políticos? Mudar tornou-se um imperativo, virá mais cedo ou mais tarde, já está vindo sem que percebamos bem, cegos que estamos por disputas e polarizações paralisantes. Não devemos ser maximalistas nem exagerar no argumento. O Brasil não é um doente terminal, não vai acabar nem descarrilhar depois das eleições, seja quem for o o próximo Presidente. Não há porque ficar parado perante o pior inimigo da democracia, nem temer os populistas de plantão. Não haverá salvadores da pátria e todos terão de cooperar entre si, fazer alianças, negociar, assimilar a velha política, pedir sacrifícios à sociedade. Errarão e acertarão, uns mais, outros menos. Perigos e ameaças virão mais de uns do que de outros. Mas a roda continuará a girar.
A exigência cabal de cooperação tem um efeito colateral positivo: faz com que todos tenham de abaixar o topete, moderar suas fantasias, aprender a respeitar os limites, arregimentar as forças que podem garantir que algo seja feito. Impõe a que se privilegiem a articulação e a mediação.
Os candidatos são o que são. Nenhum deles exibe propriamente força. Não dispõem nem de poderio político extraordinário, nem de particular força de persuasão. Cada um tem seu gueto, seu estilo, suas convicções, seu séquito. Todos precisam sair de si, ir além dos muros que os protegem, chegar onde o povo está. Uns acreditam que conseguirão isso com a televisão, outros com as redes. Mas ninguém sabe quão potentes serão esses meios.
Tudo somado, é o que explica o tamanho da indefinição.
Bolívar Lamounier: Profecias e premonições não são inofensivas
Não é isenta de riscos a discussão sobre os impactos que a democracia tem sofrido
Que o mundo inteiro está imerso em dificuldades é óbvio. E é também óbvio que, por toda parte, as democracias são impactadas de forma negativa por tal situação. Mas daí a dizer que os regimes democráticos estão com um pé na cova vai uma larga distância.
As principais publicações do Primeiro Mundo têm discutido tais impactos com bastante frequência. A discussão é importante, mas não é isenta de riscos. A maioria delas toma os cuidados necessários, mas algumas às vezes resvalam para aquilo que os americanos chamam de self-fulfilling prophecies (profecias que se autorrealizam). Ou, se preferem, para o risco de jogar fora o bebê com a água do banho. Pior ainda é quando, imaginando possíveis sucedâneos para democracias supostamente defuntas, os analistas contrapõem modelos baseados em “ativismos populares” supostamente calorosos e espontâneos à suposta frieza ou ao “mero formalismo” institucional da tradição democrática ocidental.
Dias atrás a newsletter da International IDEA, uma ONG séria, sediada em Estocolmo, adotou uma linha que em geral me causa certa urticária. Título: The vote is no longer enough (o voto já não é suficiente). Mas quem disse que o voto é ou algum dia foi “suficiente”? Neste artigo, com todo respeito à intenção sem dúvida louvável da referida organização, vou tentar pôr alguns pingos nos is.
É correto, corretíssimo, dizer que eleições são uma condição sine qua non da democracia. São uma condição absolutamente necessária. Mas não me consta que algum teórico sério desse regime tenha jamais afirmado que é uma condição também suficiente. E precisamos ir mais longe. Quando dizemos que eleições são uma condição suficiente, é essencial esclarecer em que sentido fazemos tal afirmação. Sim, o pilar fundamental da democracia são eleições periódicas, limpas e livres, nas quais a maioria da população adulta tenha o direito de participar. Eleições “limpas” significam que os pleitos não podem ser vulneráveis à fraude numa escala capaz de distorcer os resultados. Eleições “livres”, que nenhuma ameaça pese sobre os eleitores no momento em que comparecem às urnas, ou seja, que eles estejam livres da coação e da coerção em qualquer de suas formas. Essa condição coloca o regime venezuelano do sr. Maduro e o nicaraguense do sr. Ortega a anos-luz da democracia.
Dito de outro modo, o processo eleitoral da democracia pressupõe um extenso desenvolvimento da legislação e que esta seja aplicada por instituições neutras, fortes e idôneas. Este enunciado parece-me suficientemente claro, mas com certeza não é completo. Onde não exista uma imprensa livre e pluralista, é óbvio que ele soa incompleto. Em certos países, governos implantam programas sociais em tese salutares, que em tese nada têm de ilegal, mas podem fazê-lo de forma maliciosa, com vistas à auferir dividendos eleitorais num grau que se podia compreender cem anos atrás, mas não nos dias que correm. Outra condição sine qua non, associada ao processo eleitoral, é que os contendores reconheçam sua mútua legitimidade e reconheçam as eleições como a única via legítima de acesso ao poder.
E o que dizer do transcurso dos mandatos, quando os eleitos, devidamente empossados, começam a pôr em prática suas plataformas eleitorais? Neste aspecto, as questões cruciais são a dos “objetos de decisão” – quero dizer, sobre que matérias a opção eleitoral faz realmente alguma diferença – e a transparência, ou seja, quanto conhecimento o eleitor tem efetivamente a chance de se informar. Em qualquer democracia, na brasileira inclusive, a diferença entre o mundo atual e o de 50 ou cem anos atrás é imensa. Mas nosso atraso nesse aspecto pode ser medido pela dimensão amazônica das falcatruas cometidas na Petrobrás e pelo muito que continuamos a ignorar sobre a carteira de empréstimos do BNDES. O processo eleitoral avançou muito, mas o acesso à informação ficou para trás. A responsabilidade maior por tal atraso cabe ao Legislativo e aos partidos políticos, incrustados no casco do Estado, servindo mais à alta burocracia que à sociedade e virtualmente impotentes diante das corporações (organizações atreladas a interesses extremamente estreitos).
A terceira dimensão relevante é a da accountability – a possibilidade de efetivamente assegurar a probidade no trato da coisa pública, responsabilizando e punindo o servidor público que a infringe. Essa área tem registrado progressos palpáveis, graças principalmente ao combate à corrupção. Ainda que a Operação Lava Jato e a Polícia Federal tenham cometido alguns excessos, já podemos vislumbrar o dia em que o Brasil terá uma e não duas Justiças, como tem sido de nossa tradição. Nos últimos anos, vimos alguns grandes empresários e até um ex-presidente da República na prisão, algo até recentemente impensável e, a meu juízo, irreversível. O risco, evidentemente, é a Justiça se deixar arrastar pelo clima do “pega, mata, esfola”. Ser rico ou ter sido delatado não torna o poderoso automaticamente culpado de algo, mas a recíproca é verdadeira: esperar que criminosos de colarinho branco deixem confissões autenticadas em cartório ou abram mão da infinidade de recursos que a Constituição de 1988 ainda lhes assegurou é algo que não veremos nem na brilhante democracia norueguesa.
A pedra de toque, no caso, é o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância, questão que tem contraposto o Supremo Tribunal Federal às duas primeiras instâncias de uma forma indesejável e institucionalmente perigosa. Para bem servir ao interesse maior da sociedade, é essencial que todo o sistema de justiça se empenhe em informar quantos “3pês” (pobres, pretos e putas) ainda se encontram amontoados nas masmorras nacionais sem terem chegado sequer à segunda instância.
* Bolívar Lamounier é cientista político, sócio diretor da Augurium Consultoria e autor de ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’ (Companhia das Letras, 2016)
Celso Rocha de Barros: O PT no bicentenário de Marx
A democracia moderna não anda bem desde a crise da política dos trabalhadores
O último sábado foi o bicentenário de Karl Marx. É uma oportunidade para discutir a relação do pensamento de Marx com o maior partido de esquerda da história do Brasil, o Partido dos Trabalhadores.
Há um trabalho interessantíssimo de história intelectual ainda a ser escrito mostrando a influência de autores marxistas heterodoxos e pós-marxistas sobre o PT. Eurocomunistas gramscianos, autonomistas adeptos das ideias do grupo francês "Socialisme ou Barbarie" (socialismo ou barbárie), admiradores dos "operaistas" italianos, todos tinham em comum características que marcaram muito a experiência petista: a preferência pelos movimentos de base, em vez das vanguardas teóricas leninistas, e a recusa do economicismo característico do marxismo ortodoxo. A crítica ao leninismo era umretorno a Marx. A crítica do economicismo era uma correção feita ao velho comuna.
O artesanato ideológico envolvido na construção de um partido tão heterogêneo foi difícil, mas produziu um resultado muito positivo: o PT não apoiou o totalitarismo soviético. Quando Gorbachev, em 1991, sofreu um golpe da velha guarda comunista, a Folha publicou, na página 3, dois artigos: o do presidente do PCdoB, João Amazonas, tinha o título "Uma Notícia Alvissareira". Pelo lado do PT, o petista José Genoino defendia o processo de democratização e se opunha ao golpe. O PT ficou do lado certo.
Mas a independência do PT frente ao socialismo real teve ao menos duas consequências ruins.
Em primeiro lugar, desobrigou o PT de fazer a autocrítica que o PCB, por exemplo, não conseguiu evitar. Embora não apoiasse os outros regimes do socialismo real, o PT apoiava o castrismo. Eventualmente, a "exceção" que era o apoio ao regime cubano abriu as portas para o apoio ao regime chavista, a maior culpa da história do Partido dos Trabalhadores. Diferentemente de várias outras, ela é explicável exclusivamente por defeitos do próprio PT.
Em segundo lugar, as ideias marxistas heterodoxas ou pós-marxistas que influenciaram o PT tinham também seus problemas. O marxismo ortodoxo é, como se sabe, bastante economicista (e o próprio Marx gostava bastante de economia). Na reação a isso, os marxistas ocidentais produziram análises que enfatizavam a importância da política e da cultura na vida social. Grandes obras foram escritas sob essa perspectiva, mas a nova esquerda passou a ter um déficit de reflexão econômica do qual o PT até hoje se ressente.
Mas o principal interesse da história petista para a reflexão do bicentenário é outra. O PT, até mais do que os partidos de esquerda do primeiro mundo, tem que resolver, na prática, questões que estão no centro da discussão do bicentenário.
O PT, bem mais que os outros partidos de esquerda brasileiros, continua sendo o partido dos sindicatos. O que fazer com essa herança? Como organizar uma classe trabalhadora que não é mais a da indústria fordista? Que espaço para a política sobrou agora que a produção é global? Como garantir que a automação gere tempo livre e não miséria? Que espaço sobrou para uma política "dos trabalhadores" na democracia moderna?
Essa questão é especialmente importante porque, desde que as formas anteriores de política dos trabalhadores entraram em crise, a democracia moderna não anda lá muito bem. Nem a nossa nem nenhuma.
* Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.