democracia

Demétrio Magnoli: Derrubada de estátuas é a imposição do esquecimento

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente

A Oxford Union, representação dos estudantes da Universidade de Oxford, votou a favor da campanha “Rhodes deve cair”, iniciada numa universidade sul-africana com o objetivo de remover a estátua de Cecil Rhodes da fachada de um dos edifícios da universidade britânica.

No fim, a estátua fica, graças à pressão exercida por grandes doadores de Oxford. O dinheiro dobrou os intelectuais, impedindo-os de agir como vândalos, coisa que gostariam de fazer.

Rhodes é o maior ícone do imperialismo britânico na África. A sua figura personifica a ideia racista da “missão civilizatória do homem branco” que impulsionou o empreendimento colonial do outono do século 19. As sementes do apartheid na África do Sul e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) foram plantadas no solo que ele arou.

Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde.

Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado —ou melhor, sobre incontáveis camadas de passados. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social.

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado.

Sua derrubada não é um chamado à reflexão sobre os erros, os crimes, a tragédia e a dor, mas a imposição do esquecimento.

A transferência das estátuas malditas para museus ou parques temáticos, retirando-as de seus contextos, tem efeito similar. Num caso, como no outro, trata-se de higienizar os lugares de circulação cotidiana, reservando o exercício da memória a uma elite de especialistas da memória.

Rhodes, o pecador, não está só. De Pedro, o Grande, a Thomas Jefferson, de Marx a Churchill, de Machado de Assis a Monteiro Lobato, ninguém passa no teste contemporâneo dos valores.

A lógica férrea do vandalismo do bem conduz a um programa de terra arrasada. O rastilho de fogueiras purificadoras nada poupará, a não ser as novas estátuas esculpidas pelos próprios vândalos do bem, que virão a ser derrubadas por seus futuros seguidores. O presente perpétuo —eis a perigosa ambição dessa seita de iconoclastas.

Lenin caiu, às centenas, por toda a antiga Alemanha Oriental, nos meses loucos que se seguiram à queda do Muro de Berlim. Aquilo foi uma revolução popular. As estátuas derrubadas eram a representação pública de um poder real, opressivo e totalitário.

“Borba Gato, matador de índios e proprietário de escravos, deve cair.” Os alemães que limpavam as ruas do Lenin onipresente estavam mudando o presente. Os vândalos do bem investem contra sombras do passado. Mascarados de radicais, eles ajudam a desviar os olhares das iniquidades do presente.

Quem tem o direito moral de suprimir os lugares da memória? Se concedermos esse direito aos vândalos do bem, como negá-lo a governos eleitos democraticamente? E, se é assim, como criticar a remoção da estátua de Imre Nagy, líder da revolução democrática húngara de 1956, pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, um nacionalista de direita aliado de Vladimir Putin? Ou como impedir que Jair Bolsonaro ou algum assecla eleito derrube a escultura “Vlado Vitorioso”, homenagem a Vladimir Herzog implantada numa rua do centro de São Paulo?

A Universidade de Oxford tem quase mil anos. Há pouco mais de um século ela cantou as glórias do imperialismo britânico. O registro esculpido na sua fachada será preservado e cercado por texto de contextualização histórica. Os vândalos do bem perderam essa —mas não desistirão de acender fogueiras.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.

Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.

O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.

Leia mais:

‘Witzel poderá ser primeiro governador do Rio a sofrer impeachment’, analisa Paulo Baía

‘Não há solução econômica sem solução sanitária’, diz economista Benito Salomão

‘Decisão de organização internacional tem, em geral, caráter recomendatório’

‘Bolsonaro transformou saúde em território de guerra’, diz Alberto Aggio

Bolsonaro é responsável pelo avanço da pandemia no país, diz Política Democrática

Polêmica da intervenção das Forças Armadas é destaque da Política Democrática Online

Veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online


Renato Janine Ribeiro: Sem acreditar na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo

É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

*Renato Janine Ribeiro, professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de 'A Pátria Educadora em Colapso' (ed. Três Estrelas).


Marco Aurélio Nogueira: O futuro que nos escapa

Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional

Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.

O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.

Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.

A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.

Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.

De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.

O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.

O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.

A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.

Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.

Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.


Luiz Werneck Vianna: Não há mal que sempre dure

Não dá para esconder que a democracia brasileira esteja sob alto risco, e não apenas por que se encontra ameaçada por um governo que faz do seu desmonte o seu objetivo estratégico, mas também por que uma parte de sua sociedade abandonou sua afeição por ela. Afinal, os governantes que aí estão foram eleitos em pleitos eleitorais livres, secundados pelos parlamentares mais toscos, despreparados e vorazes conhecidos em nossa longa história parlamentar, presentes em todas as casas de representação política. Também eles não caíram do céu, foram eleitos, e muitos deles com estrondosa votação. O retrato lúgubre que estampam não é filho do acaso e da má vontade do destino, mas das nossas ações e inações. Diante de nossos olhos a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma, da sua história e melhores tradições.

Como isso pode acontecer aqui, justo no lugar que soube derrotar pela ação política bem concertada um regime autoritário que a afligiu por duas décadas, essa a questão que temos de sondar até as suas raízes a fim de encontrar remédio para os males que nos atormentam. Que se ronde a blasfêmia, inevitável no caso, por que foi de um partido nascido da vida sindical, lugar sagrado da esquerda, que teve início a difusão do vírus maldito que apartou a democracia política da democracia social, cerne da concepção da Carta de 88, destituindo a política do seu papel criador e pondo no seu lugar a esfera bruta dos interesses, deixando fora de foco o cidadão em nome dos apetites do consumidor – os automóveis, as viagens de avião, as comemorações da Força Sindical no 1º de maio com brindes e rifas aos participantes no lugar da evocação das lutas civis que tradicionalmente celebravam.

Principalmente o descaso com a organização da vida popular e a descrença no papel que uma cidadania ativa pode desempenhar nas democracias, uma vez que por cima de todos um poder tutelar agia em nome de todos, vindo a reforçar as tendências à fragmentação social que décadas de modernização autoritária tinham produzido. A questão social sob a administração do Estado vem à tona com pouca sustentação nos atores que deveriam ser os seus portadores naturais, orientada como estava para os fins políticos da reprodução do poder tutelar que se empenhava, como recurso de legitimação, na satisfação dos desejos de consumo das multidões.

Naquele contexto o que importava era a preservação das posições conquistadas no interior do Estado, pois era a partir dele que realizava o seu enlace com os movimentos sociais e setores da sociedade civil, aí incluídas atividades empresariais de todo gênero, movimento que mereceu ser designado como o Estado Novo do PT. Seus efeitos foram letais na medida em que expos as estruturas do Estado às ações de grupos de interesse que se valeram dessas relações promíscuas para a expansão dos seus negócios e atividades econômicas, terreno fértil à corrupção. Com este flanco aberto, escancarou-se a possibilidade para o capitalismo brasileiro de se livrar dos inúmeros obstáculos, sociais e institucionais, que obstavam sua plena realização. A chamada operação Lava Jato foi o cavalo de Troia que permitiu a entrada em cena das hostes que há tempos ansiavam por essa oportunidade.

Com o terreno da política desertificado, lastro deixado pela Lava-Jato, afetado em sua credibilidade o sistema da representação política, destruídas as escoras e referências que orientavam o sistema de crenças da sociedade, já enfraquecidas por anos de práticas refratárias a uma cidadania ativa por parte do PT, a cena pública tornou-se presa fácil do mundo dos interesses e de todos os apetites. Uma ralé de novo tipo, com extração nos setores das camadas médias, em busca da fama e da riqueza fácil, inebriadas pelo mito pós-moderno da personalidade, vislumbra na sociedade indefesa a sua hora e a sua vez e consegue postos importantes no sistema da representação política. Com a infiltração desses vândalos a obra da ainda inacabada civilização brasileira passa a sofrer graves ameaças.

Contudo, dessa história de ruinas permaneceram de pé as instituições edificadas no já longínquo 1988, ano em que celebrou sua Carta democrática, e por isso mesmo os bárbaros que a sitiam têm como lema a sua destruição. Seus defensores, com firmeza e sabedoria, têm sabido até aqui preservar esse último reduto da democracia brasileira, mas seu esforço solitário não é garantia de que poderão sem recursos externos sobreviver ao cerco a que estão expostas. A dificuldade para a efetivação desse movimento está na pandemia que nos assola, e que nos mantém confinados em defesa da vida. Há outros recursos, porém, que embaraçam as ações dos que tramam contra nossa democracia, um deles, nada irrelevante, provem do mundo ao redor.

As forças que nos rondam em nome da destruição da nossa obra coletiva também sabem calcular, e têm tudo a temer, na economia e na política, no cenário atual das coisas no mundo, caso prevaleçam impulsos em suas ações no sentido de apostar na barbárie que anima tantas lideranças suas. O Brasil não é uma ilha, e faz parte desde sua origem do sistema capitalista mundial, filho do Ocidente, sua formação nacional se forjou sob a influência das correntes de ideias que nos vinham da França, no Império, segundo a modelagem operada pelo Visconde do Uruguai, e, na República, dos EUA que inspirou em larga medida a sua primeira Constituição em 1891, obra em grande parte derivada da influência de Ruy Barbosa na sua redação.

Orbitamos desde aí, de Rio Branco a Nabuco e Osvaldo Aranha em torno desse último eixo, que agora se move em reação contrária a política de Donald Trump que desafia as concepções dos seus pais fundadores em nome do seu projeto de poder em antagonismo com o universalismo e ideais civilizatórios preponderantes ao longo da sua história republicana. Tal movimento, nos dias que correm, tendo como estopim a questão racial, ganhou as ruas, em que pese a pandemia que a todos atinge, em multitudinárias manifestações de jovens apoiadas pela opinião pública e de grandes personalidades do mundo da cultura e dos esportes, não lhe faltando sequer palavras de simpatia entre algumas de suas elites militares. Anuncia-se a possibilidade de mudança nas coisas do mundo.

A política dos governantes que aí estão se encontra desalinhada das tendências benfazejas que ora se afirmam em todos os cantos do planeta. Sob a pressão da pandemia em curso, a linguagem da cooperação se universaliza, com forte intensidade na dimensão da ciência onde se fazem presentes vigorosas denúncias do estado de coisas reinante no mundo, que adoece pelas desigualdades sociais, pela degradação da natureza e da vida em geral. Coube a nós viver essa quadra inclemente sob a condução de ideologias de hospício, hostilizados pelo bestiário de dirigentes que afrontam o mundo e o que há de melhor em nosso país. Isso que aí está não pode durar, não vai durar.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.


Maria Cristina Fernandes: Democracia remota blinda Congresso

Sob deliberação remota há quatro meses, parlamentares terceirizaram ao STF o enfrentamento com o Executivo e agora se preparam para enfrentar pressão redobrada pelo impeachment

A aprovação do projeto que transfere terras da União para os Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios federais, arrancou vivas tanto do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante da turma que morde o bolsonarismo, quanto do seu principal artífice, o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), capitão da banda que assopra.

O dueto de antagonistas conterrâneos foi interrompido pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN). Votara a favor da iniciativa, mas denunciava a manobra que havia levado todos a retirar projetos prioritários de pauta em função do acordo para apenas colocar em votação remota o que estivesse relacionado à doença: “Ou a gente muda a regra ou cumpre a regra. Isso não tem absolutamente nada a ver com a covid”.

Não era a única queixa do senador. Prates reclamou ainda que os colegas que pediam para falar “pela ordem” deviam ser colocados para o fim da fila de quem se inscreveu para falar os três minutos regulamentados pela norma da votação remota.

O procedimento, comum nos apartes parlamentares, virou uma guerra no plenário virtual. O presidente do Senado, cuja contemporização com o bolsonarismo rendeu, além da transferência de terras, benesses como um hospital de campanha federal no Amapá, prometeu resolver o rolo dos apartes, mas não disse palavra sobre os jabutis da pauta.

Quatro meses depois, os procedimentos adotados pelas mesas da Câmara e do Senado para manter os trabalhos em funcionamento durante a pandemia se transformaram num poço de controvérsias. Se todos concordam que as sessões remotas foram a saída possível para manter as deliberações do Congresso, sobram divergências em relação ao poder redobrado dos presidentes, do colégio de líderes e até dos burocratas das mesas diretoras.

Os presidentes das Casas e os colégios de líderes definem a pauta, abrem a sessão e depois de manifestações parlamentares de três minutos, os projetos são votados. Se houver acordo com os líderes, o projeto entra em regime de urgência, o que não permite qualquer obstrução. Nos chats, foi aos funcionários que os parlamentares passaram a dirigir pedidos desesperados de que querem se fazer ouvir.

Apesar de ter como objetivo o bloqueio dos mais de 40 pedidos de impeachment que lá se acumulam, as negociações do governo com os parlamentares do Centrão também tiveram como pano de fundo o poder redobrado dos líderes partidários na nova dinâmica.

Paralelamente, a oposição, além de perder poder de manobra, também não tem como se articular para reagir ao governo.

Os grupinhos que tradicionalmente se formam para articular, dentro e fora do plenário, as votações e encaminhamentos, estão inviabilizados. Se os parlamentares decidirem fazer uma chamada coletiva para discutir um projeto, paralelamente à sessão, correm o risco de perder a votação.

A discussão dos projetos também perdeu qualidade técnica porque nem sempre é fácil para o parlamentar manter conversas paralelas com os consultores legislativos durante a sessão. No plenário físico é mais fácil saber a quem se deve ou não prestar atenção. No virtual, o parlamentar que se descuidar pode acabar perdendo o encaminhamento de um projeto.

“As discussões muitas vezes se dão depois da votação”, queixa-se a senadora e presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS).

Foi o que aconteceu na votação do projeto de ajuda aos Estados, quando o senador José Serra (PSDB-SP) acabou só tendo oportunidade de falar três horas depois que a votação já havia se encerrado. “Não dá para achar que, ao colocar sua posição em rede social o parlamentar esgota a discussão. A defesa de posições, a contestação e o debate se dá em plenário”, diz a presidente da CCJ.

É difícil encontrar, no Congresso Nacional, quem negue a mitigação da democracia remota. Foi essa a razão de o mecanismo ter enfrentado resistências no mundo inteiro. No Reino Unido foi aprovado em abril, mas se limitou a regulamentar sessões para discussão de temas relativos à pandemia, não votações. Sem reuniões deliberativas desde então, o Parlamento britânico tenta retomar as sessões 100% presenciais, mas enfrenta a resistência dos integrantes mais velhos em comparecer.

Nos Estados Unidos, onde a Câmara também adotou sessões remotas, as deliberações foram permitidas contra o voto de 189 deputados (e 217 a favor). As regras, no entanto, exigem que o voto seja dado em plenário por um representante do parlamentar devidamente autorizado a fazê-lo. A resistência dos republicanos ao sistema se deve à percepção de que se trata de um instrumento de força nas mãos da presidente da Casa, a deputada democrata Nancy Pelosi, que estaria a suprimir o debate e os espaços de contestação.

Desde o início do funcionamento do Sistema de Deliberação Remota no Brasil, os entraves à negociação confirmam, em grande parte, os temores mundo afora em relação ao sistema. Na votação do projeto de lei de ajuda aos Estados e municípios, um parlamentar quis tirar o destaque a uma emenda, já contemplado por um colega, e foi impedido pelo presidente da Casa. “Ligue para ele, deputado”, disse Rodrigo Maia, sugerindo que o colega colocasse a sessão no “mute” para negociar com o colega por telefone.

Maia não abriu mão da presença na Câmara. Enquanto comanda os trabalhos, o presidente da Casa, conhecido por não largar o celular, também troca mensagens com os deputados, registradas nas notas taquigráficas, mandando-os tirar o microfone da função mudo ou se valer do ícone com um aceno para pedir uma questão de ordem.

No Senado, o chat das sessões virtuais é conduzido pela secretária-geral-adjunta da mesa diretora, identificada nas notas taquigráficas apenas como SGM Adjunta, que passa quase todo o tempo domando os incautos. “Senadora Soraya [Thronicke], para se inscrever basta ‘levantar a mão no sistema’”, recomendou a funcionária numa sessão do dia 16 de abril. Oito minutos depois, a senadora bolsonarista do Mato Grosso do Sul, que continua no PSL, ainda não havia descoberto onde ficava a mãozinha virtual.

Câmara e Senado também adotaram meios distintos para regulamentar o trabalho remoto. O presidente da Câmara aprovou, em plenário, uma resolução com as normas. O do Senado se limitou a baixar um ato da mesa diretora. No Congresso, valeu o modelo do Senado e passou a ser regulado por um ato da mesa. Ambas as Casas desenvolveram um aplicativo que o parlamentar pode baixar ou acessar o Zoom para ter acesso. Depois que foram identificadas falhas de segurança, as duas Casas passaram a adotar uma senha enviada apenas meia hora antes de seu início. Maia conduz as sessões da própria mesa da Câmara, enquanto Alcolumbre o faz de uma sala no Prodasen, a Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado. Para validar o voto, o parlamentar deve se colocar frente à câmera do computador.

O Sistema de Deliberação Remota tem se restringido ao plenário. “É nas comissões onde, de fato, se dá o processo legislativo. Como são poucas as sessões, as matérias chegam cruas ao plenário”, diz o consultor legislativo do Senado, Luiz Alberto dos Santos. “Foi a saída possível para o Congresso, mas acaba atrofiando seu papel. É nas comissões, por exemplo, onde são realizadas as audiências públicas, onde se dá a interlocução com a sociedade”, confirma o deputado Silvio Costa Filho (PE), primeiro vice-líder do Republicanos.

Há um acordo tácito para que as deliberações remotas não sejam alvo de judicialização. Nem todos os pressupostos desse acordo, no entanto, são cumpridos. A ausência de sessões deliberativas nas comissões ampliou as brechas para a inclusão de temas não relacionados à proposição original das medidas provisórias, os chamados “contrabandos”. O Supremo havia imposto um limite para isso determinando que as MPs só seriam levadas ao plenário depois de apreciação pela comissão mista. Com a pandemia, a restrição caiu por terra.

No Senado, durante a votação sobre as novas atribuições do Banco Central na operação de títulos no mercado, a mesa diretora acabou chancelando o acolhimento de uma emenda de mérito sob a roupagem de “emenda de redação”. O quiproquó acabou no Supremo.

Outro acordo rompido foi o de que, durante o trabalho remoto, nenhuma emenda constitucional seria votada. Abriu-se exceção para a votação do “Orçamento de Guerra”, que deu plenos poderes para o Executivo nos gastos relativos à pandemia.

Nem o ato da mesa do Senado nem o projeto aprovado pela Câmara estabeleceram prazo para o funcionamento remoto, mas tanto Maia quanto Alcolumbre já se comprometeram com o retorno do trabalho presencial em julho.

A extensão do trabalho remoto tem preservado os presidentes das duas Casas tanto das pressões pelo andamento das representações contra os filhos do presidente, o deputado Eduardo (sem partido-SP) e o senador Flávio (sem partido-RJ), no Conselho de Ética, quanto do acolhimento de um dos mais de 40 pedidos de impeachment já protocolados.

É mais confortável para os comandantes do Congresso terceirizar o embate com o Executivo para o Judiciário, até porque o presidente da República tem sido agressivo na atração de parlamentares para sua base de apoio. A pressão para que o Congresso entre na briga, no entanto, só cresce. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) se valeu do Twitter para deixar pública sua pressão: “É imperioso retomar as sessões presenciais. Com distanciamento, votação em gabinetes, poucos assessores, mas com a tribuna aberta. Precisamos engrossar o respaldo ao Judiciário”. Preservado da covid-19 pelas sessões remotas, o Congresso está com os dias contados para ser contaminado pela disputa em torno da abreviação do bolsonarismo.


El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo

Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?

E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.

Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.

Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.

Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.

Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.

Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.

Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.

O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.

O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.

Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.

Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.

Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.


RPD || Editorial: Escalada autoritária

Mais uma vez, o Presidente da República consegue surpreender os cidadãos brasileiros. Comparece a uma manifestação convocada nas sombras de seu governo, endossa com sua presença as consignas autoritárias das faixas e cartazes ali levantados, promete a mudança radical no rumo de um novo e puro país, tudo para desmentir, no dia seguinte, qualquer intenção golpista. Se o roteiro é sempre o mesmo, pois se trata, afinal, de fazer retroceder as fronteiras do inaceitável, a ousadia dos atores é crescente.

Curiosa cruzada essa que investe simultaneamente contra a democracia e a ciência. Parece ter como premissa a incapacidade de os brasileiros estabelecerem relações de causa e consequência, tanto para prever o futuro, quanto para avaliar o passado. É certo que há concidadãos, letrados inclusive, que relutam em perceber que nossa situação hoje é em tudo similar à de outros países, semanas antes de mergulharem no abismo.

No entanto, são poucos. E, como mostram as notícias do mundo, quando a questão é perda de vidas, não há como ignorar para sempre a escalada dos números. Ou seja, em algum momento, as responsabilidades políticas pelo caos que está por vir serão estabelecidas e cobradas.
Cumpre reconhecer, contudo, que a crise sanitária provocada pela pandemia é um ingrediente exterior, que se soma, entre nós, a um processo político anteriormente iniciado e com ele se combina.

Está em curso, desde a apuração dos votos no segundo turno das eleições de 2018, uma escalada golpista no país. As manifestações visíveis dessa escalada são o comportamento do Presidente da República; os fluxos poderosos de falsa informação disseminada nas redes sociais contra seus presumidos desafetos ou em favor de suas bandeiras; e a insistência de um pequeno número de seguidores em sair às ruas, manifestando-se contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, em favor de uma intervenção militar.

É urgente enfrentar e derrotar essa escalada. Essa tarefa exige a ação firme das instituições e o diálogo e a cooperação entre todas as forças democráticas, na União, nos Estados e nos Municípios. Câmara dos Deputados, Senado Federal e Supremo Tribunal Federal devem acordar uma reação articulada aos desatinos do Presidente. Regras relativas à identificação e responsabilização de produtores e divulgadores de falsidades nas redes devem se aprovadas e aplicadas. Lidar com as ruas, por sua vez, é tarefa dos governadores, dos legislativos estaduais, do Judiciário e do Ministério Público nos Estados.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


Foto: Beto Barata\PR

Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Felipe Santa Cruz, José Carlos Dias e Paulo Jeronimo de Souza: Em defesa da democracia

É urgente neutralizar as ameaças às instituições

Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, “construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Isto está escrito com todas as letras na nossa Constituição Federal de 1988 e é aspiração do povo brasileiro. É preciso reafirmar, no momento atual do país, com todas as nossas forças, que a democracia é o único regime político capaz de implementar a sociedade prevista na Carta Cidadã.

A democracia, considerados seus próprios limites, é um dom a ser desdobrado em valores e dinâmicas que garantam a participação, a liberdade e o incondicional respeito aos princípios de defesa da vida e da dignidade de toda pessoa humana. Por isso, é incontestável e merece defesa a democracia no Brasil, fruto sofrido e amadurecido da redemocratização inspirada na ação de destacados atores políticos, aos quais reverenciamos; entre eles, um povo que soube reconquistar a liberdade e os direitos confiscados.

Foi esse povo que também legitimou, por lutas sociais, os direitos cidadãos registrados na Carta Magna de 1988, comprometendo a todos na sua obediência irrestrita e práticas transformadoras, pelo dever cidadão da edificação de nossa sociedade sobre os alicerces da igualdade e da solidariedade, garantindo o tratamento de todos como iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

O Brasil, por seus Três Poderes, segmentos e cidadãos todos, no horizonte e nos parâmetros sacramentados pela Constituição Federal, sobre os alicerces do Estado democrático de Direito, não pode permitir o enfraquecimento de suas instituições democráticas de poder-serviço, garantindo equilíbrio entre os Poderes da República, considerados, especialmente, o papel institucional do Poder Executivo, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, sem os quais a democracia mergulhará na escuridão e se pagará um preço ainda mais alto. Os Poderes exercem funções diferentes, mas nenhum é maior que outro. Sem eles, não há democracia.

É necessário e urgente, por uma lúcida compreensão e práticas democráticas, neutralizar e vencer as ameaças a essas instituições, pela obrigação moral de todos de defendê-las e fortalecê-las. Não se pode, absolutamente, fomentar o risco de levar os brasileiros ao caos do enfraquecimento e até à destruição da nossa democracia.

É no Estado democrático de Direito que se vai avançar na urgente busca do indispensável equilíbrio para a sociedade brasileira, detentora de todos os recursos para a superação dos vergonhosos cenários de misérias, com tanta pobreza, corrupção, privilégios, milhões de desempregados, com situações de crises humanitárias, exigindo velocidade e lucidez em respostas novas na economia, na educação e na saúde; avançar por meio de posturas adequadas no tratamento do meio ambiente, já tão pressionado pelos interesses econômicos; e avançar no cuidado prioritário dos pobres e pela exemplaridade responsável no exercício da política.

Por isso, preocupados com os riscos do clima de afrontas e de fomento à intolerância, juntamos forças em nossas entidades para levar esta mensagem ao povo brasileiro.

Marcados pelo sentido da solidariedade, sintam-se todos convocados a gestos e compromissos com a vida, superando bravamente as crises humanitárias, efetivando ações que façam o conjunto da sociedade brasileira trilhar os caminhos da Justiça, com lógicas e dinâmicas novas, na verdade e pela paz!

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte e presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)

Felipe Santa Cruz
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

José Carlos Dias
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns - Comissão Arns

Paulo Jeronimo de Souza
Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)


Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso: Regras contra o populismo

Somente o estado de direito observado nas democracias tranquiliza empreendedores a fazer investimentos de longo prazo

A longa defasagem temporal entre a adoção de uma política econômica e a plena observação de seus efeitos constitui um dos principais impedimentos à solução de problemas econômicos estruturais, em países democráticos. Há vários sinais de que o Brasil começa a aprender como resolvê-los, mas também outros em direção contrária que são motivos de preocupação.

O enfrentamento de problemas que afligem a sociedade por décadas, não raro séculos, impõe custos políticos no curto prazo, mas seus benefícios só se tornam visíveis após decorrido um longo período desde sua implantação. Por isso, muitas reformas estruturais são sistematicamente adiadas ou, quando implantadas, acabam abandonadas. A mesma defasagem permite que políticas populistas que trazem benefícios de curto prazo, mas criam novos problemas para o futuro, levem muitos anos até que suas consequências nefastas sejam percebidas pelo eleitorado. A defasagem entre causa e efeito cria um viés que favorece o imediatismo irresponsável.

Em muitas democracias, o eleitorado leigo em assuntos econômicos, diante do grande interregno entre a implantação de uma política estrutural e a percepção de seus resultados, não enxerga a relação de causa e efeito. A incompreensão de problemas complexos é oportunistamente explorada por partidos políticos de diferentes matizes. Quando estão no poder lutam pelas reformas, mas as combatem quando se tornam oposição. O partido que promove um ajuste estrutural não apenas perde as próximas eleições, como ainda deixa a casa arrumada para que seu adversário político, que lutou contra as mesmas reformas, possa fazer um ótimo governo, alcançando a reeleição. Promover reformas estruturais é percebido como um suicídio político. A argentina constitui um caso proverbial desse fenômeno.

No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, foi a reforma que consolidou a estabilização monetária iniciada pelo Plano Real. A LRF gerou uma década e meia de superávits primários, mas derrubou o prestígio político de FHC junto ao eleitorado que lhe havia dado duas vitórias em primeiro turno, abrindo caminho para o triunfo do PT em 2002. Este colheu os frutos das reformas que combatera duramente quando estava na oposição. A LRF foi, posteriormente, enfraquecida por Dilma Rousseff, resultando na mais prolongada recessão da história brasileira. No curto prazo aumentou sua popularidade, mas o país pagou os custos desse populismo por muitos anos.

No passado, incentivos perversos de curto prazo, como os ilustrados acima, foram oportunistamente usados até como justificativa para a supressão da democracia. A premissa era que um governo competente e bem-intencionado, desde que pudesse desconsiderar restrições político-eleitorais, conseguiria implantar as necessárias reformas sempre adiadas pelas disputas eleitorais, rompendo o ciclo vicioso do subdesenvolvimento.

A falha dessa visão está na sua premissa, pois nada garante que, na ausência das liberdades individuais asseguradas pela democracia, o poder venha a ser realmente exercido pelos tecnicamente mais competentes, muito menos que suas prioridades coincidam com as verdadeiras necessidades da população. Adicionalmente, somente o estado de direito observado nas democracias tranquiliza empreendedores a fazer investimentos de longo prazo, sem temor de mudanças abruptas e arbitrárias das regras do jogo. A Rússia de Putin é um exemplo típico de país que atrai poucos investimentos externos, devido à incerteza gerada pela ausência de um confiável estado de direito.

É perfeitamente possível conciliar eficiência econômica com democracia. Basta que se modifiquem as regras do jogo que mantêm muitos países democráticos prisioneiros do populismo de curto prazo. No Brasil, a já mencionada LRF gerou uma década em meia de estabilidade macroeconômica. A Emenda do Teto do Gastos restabeleceu a confiança dos mercados na solvência da dívida pública, propiciando a queda inédita da taxa real de juros. O modelo de agências reguladoras, cuja missão é fiscalizar o cumprimento de regras estáveis de longo prazo desconsiderando pressões eleitoreiras de curto prazo, viabilizou importantes investimentos privados. Na direção contrária, indicações políticas para essas mesmas agências e a recente intervenção do presidente Bolsonaro na discussão sobre taxação de energia solar, passando por cima da Aneel, aumentam a insegurança do ambiente de negócios, podendo mesmo inviabilizar investimentos de longo prazo.

No momento, tramitam no Congresso reformas destinadas a criar novas regras do jogo que, ao reduzir a liberdade de ação do governo de turno, viabilizam a perseguição de importantes objetivos de longo prazo. A independência operacional do Banco Central assegurada em lei, ao garantir aos mercados que a instituição não sofrerá interferência do governo, como observado na gestão Dilma Roussef, aumentará a potência da política monetária, com redução do prêmio de risco pago sob forma de juros e atenuação do ciclo econômico-eleitoral.

Outro bom exemplo é a PEC 186, alcunhada de emergencial, que não apenas propõe limites prudenciais para os gastos permanentes de estados e municípios, como fornece os instrumentos jurídico-administrativos para se observá-los. Em caso de descumprimento dos limites, governadores e prefeitos poderão reduzir em 25% a jornada de trabalho de servidores, com queda proporcional de remuneração, bem como a demitir servidores estáveis. Paradoxalmente, essas medidas extremas serão raramente aplicadas, pois os próprios sindicatos de servidores serão os primeiros a moderar pressões salariais, por temer o atingimento dos referidos limites.

Em direção contrária está o processo de privatizações. Apesar do discurso, até agora pouco foi feito, o que indica fraca vontade política. Mais ainda, a eleição de vacas sagradas a serem preservadas - Petrobrás, CEF e BB - deixa uma enorme dúvida sobre o futuro.

Apesar das melhorias de governança nessas empresas e de gestões bem mais eficientes, o que garante que uma mudança de governo no futuro, ou a mera troca de equipe econômica, não as leve de novo à corrupção, ao uso político e ao desperdício de recursos, com toda a insegurança que isso traz ao ambiente econômico?

A democracia oferece soluções criativas para os problemas que ela mesmo cria. O Brasil parece estar aprendendo as lições de seus próprios sucessos e fracassos, mas ainda há muito a ser feito para garantir um futuro com pouco espaço para populismos de direita ou esquerda.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV


Valor: Risco à democracia marca bolsonarismo

Presidente atacou instituições e aproximou país de uma ‘democradura’, apontam especialistas

Por Cristian Klein e Malu Delgado — Do Rio e de São Paulo

Para ele, cientista político e diretor-geral da Fundação FHC, o primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pelo constante “teste de estresse”, com ataques às instituições. Para ela, antropóloga e historiadora, o bolsonarismo no poder está levando o Brasil para o grupo de países que podem ser chamados de “democraduras”: têm governos “com forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário”.

O diagnóstico de Sergio Fausto e Lilia Schwarz sobre os 12 primeiros meses de Jair Bolsonaro no Planalto revela uma preocupação com o que pode vir pelos próximos 36 meses de mandato.

Fausto vê instituições que responderam bem às ameaças, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, à medida que Bolsonaro se mexe, forma um partido com viés religioso e pode fazer indicações ao STF, alerta: “Aguentará por mais tempo?”. Bolsonaro faz de seu governo um campo de batalha ideológico que pode atrapalhar a economia, afirma Fausto. Mesmo que não prejudique, o risco continua: o crescimento pode favorecer o “projeto autoritário” do presidente - a primeira liderança nacional de direita que o país já teve, aponta.

Lilia afirma que já imaginava um governo radical, mas que Bolsonaro desceria do palanque para construir consensos. Não foi o que ocorreu. “Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero”.

A índole bolsonarista contra minorias, direitos constitucionais e instituições se dá por um “sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros”. “São ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades”, afirma.

 


 

“Crescimento pode favorecer projeto autoritário”, diz Sérgio Fausto

Cientista político alerta que eventual retomada do crescimento embute o risco de favorecer um projeto autoritário

Por Cristian Klein,  Valor Econômico

Mesmo dando certo, com a recuperação econômica, o governo Bolsonaro pode dar errado, pelo que mostrou no primeiro ano, quando a gestão em áreas como política externa, educação e meio ambiente foi “absolutamente ruinosa”. O alerta é do cientista político e diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, 57 anos, para quem a eventual retomada do crescimento embute um risco: o de favorecer um projeto autoritário do bolsonarismo. Fausto afirma que as instituições reagiram bem aos ataques feitos pelo presidente e seus aliados contra, entre outros, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. Mas teme pela capacidade de resistência institucional, sobretudo se a economia fortalecer o presidente. “Esse teste de estresse você aguenta por quatro anos. Aguentará por mais tempo?”, questiona.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Sergio Fausto: A descoberta retumbante é que quem manda no governo é o Bolsonaro, ao contrário de algumas fantasias que se fizeram no inicio do mandato, de que, a rigor, haveria um dispositivo militar e outros setores mais pragmáticos que dariam o tom da banda governamental. Não. Quem dá o tom é o presidente e o seu núcleo ideológico. Aparentemente, os militares recuaram para uma posição de trincheira para proteger a corporação dos ímpetos politizantes do bolsonarismo. Sergio Moro também frustra expectativas de quem imaginava que ele pudesse ser uma espécie de contrapeso legalista que se espera de um ministro da Justiça que vem do Poder Judiciário. Não é isso. Ele reconhece o mando político de Bolsonaro e dança conforme a música cujo tom é dado pelo presidente.

Valor: Há exceção?
Fausto: É o ‘posto Ipiranga’. O ministro Paulo Guedes [Economia] conseguiu uma esfera de autonomia maior e isso se estende a alguns outros setores ligados à área econômica, como Infraestrutura e Minas e Energia. São espécies de reservas de racionalidade dentro do governo. Paulo Guedes encontrou no Congresso uma liderança disposta a fazer avançar uma agenda reformista, personificada no [presidente da Câmara] Rodrigo Maia. A dobradinha Rodrigo Maia e Rogério Marinho - o secretário de Previdência, que é o principal negociador, não é o ministro da Economia - produziu resultados. Isso fez com que a recuperação cíclica da economia fosse favorecida neste último trimestre do ano por uma percepção de que existe uma agenda sobretudo na área fiscal que vai ganhando musculatura. Tem o caso da Previdência, já aprovada, e iniciativas de reformas semelhantes também nos Estados. Tem política de governo nessa área.

Valor: E nas outras áreas?
Fausto: Não tem política pública. Em áreas como política externa, educação e meio ambiente, a gestão do governo tem sido absolutamente ruinosa. Há duas perguntas que se colocam: a economia ganhará impulso sustentável ou a gestão ruinosa em outras áreas acabará por interferir no processo de retomada? E mais importante do que isso, do ponto de vista de valores caros a uma sociedade aberta e democrática, é se, com o respaldo da retomada da economia, não acabará por se impor, no médio prazo, um projeto de poder que tem características claramente autoritárias e regressivas.

Valor: Como poderia acontecer?
Fausto: O governo e o seu núcleo ideológico submetem, de maneira sistemática, as instituições a testes de estresse. E elas têm respondido de maneira muito positiva. O Congresso é um destaque extraordinário, seja pelo que fez de construtivo, seja pelo que impediu que fosse feito. Serviu como freio, obstáculo, à implementação de medidas claramente danosas aos direitos humanos e à democracia no Brasil: excludente de ilicitude, sufocamento do financiamento dos jornais e por aí vai. E o STF, sobretudo na figura do decano Celso de Mello, respondeu à altura toda vez que foi provocado acintosamente. Agora, esse teste de estresse você aguenta por quatro anos.

Aguentará por mais tempo? Porque o governo começa a mexer suas peças, nomeia ministros [ao STF], pode vir a se organizar como partido político, pode passar a ter bancada mais orgânica no Congresso. É um processo que inspira temor. As instituições têm resistido, mas aos olhos da população, segundo pesquisas, continuam com prestígio muito baixo.

Valor: Mas Bolsonaro não se mostrou muito desagregador?
Fausto: Sim, Bolsonaro não é um líder com grande capacidade estratégica. Tem muita capacidade de comunicação, é destemido, dobra a aposta, e esta ousadia é percebida como um atributo positivo pela sua base. É capaz portanto de manter a sua base permanentemente mobilizada. Isso é uma novidade na história brasileira. É um presidente de extrema-direita que tem enraizamento popular. Isso permite que ele tenha 30% do eleitorado. A despeito de tudo e de todos, ele manteve essa base solidamente e isso o credencia como candidato forte à reeleição. No caso do Bolsonaro, é tudo mais imprevisível, pelas características e pela trajetória, de onde ele vem.

Valor: Como assim?
Fausto: O Bolsonaro tem uma questão sociológica. Vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades.

Valor: Está se referindo à relação dele com milicianos?
Fausto: Isso, não estou fazendo nenhuma acusação, mas me baseando em fatos conhecidos. Meu ponto de vista não é criminal, é sociológico, é o meio do qual ele vem. Ele carrega esse meio consigo. Nunca houve um presidente com as origens do Bolsonaro, e há investigações de uma pessoa muito próxima não só em relação ao filho mais velho, mas a toda família Bolsonaro. É um segredo de polichinelo que é um ponto de vulnerabilidade do presidente.

Valor: Refere-se ao ex-capitão da PM Antônio Nóbrega, foragido da Justiça e acusado de liderar um grupo de assassinos de aluguel?
Fausto: Tem vários elos, vários laços. Não estou tirando nenhuma conclusão precipitada. São fatos sequer negados por Bolsonaro.

Valor: Qual é a novidade que Bolsonaro traz?
Fausto: Nunca houve no Brasil uma liderança nacional de direita como ele. Você tem fenômenos locais de políticos de direita, com enraizamento popular. Maluf é um caso em São Paulo. Lacerda foi no Rio de Janeiro. Nunca chegaram a ser lideranças nacionais. O Bolsonaro não só está mais à direita do que estavam Lacerda e mesmo Maluf - e portanto é correto caracterizá-lo como um político de extrema-direita - mas também se diferencia por ser uma liderança nacional. Hoje em dia há apenas duas lideranças nacionais: Lula e Bolsonaro. De onde vem esse enraizamento popular do Bolsonaro? Com a conexão que ele estabeleceu com o mundo evangélico, com a chamada “família militar”, e ao penetrar numa classe média conservadora do interior do país, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ligada política e sociologicamente ao agronegócio. Esses setores, em geral, emprestavam apoio na eleição presidencial ao PSDB pela contraposição com o PT, embora não o fizessem de coração. O PSDB durante um tempo funcionou como uma espécie de dique, de represa, que recolhia o impulso à direita.

Valor: Qual é o ponto fraco de Bolsonaro?
Fausto: Essa insensibilidade para o tema da desigualdade, mesmo para o tema da pobreza, é um dos principais calcanhares de Aquiles dele. Se o Brasil não atacar, por meio de políticas públicas, da solidariedade social, a desigualdade e a pobreza, ele se transformará num país cada vez mais suscetível à violência, às explosões e à instabilidade. As enormes desigualdades no Brasil não são mais desigualdades, são fossos que dividem a sociedade em vários arquipélagos e estão em estado de guerra latente, uns com os outros.

 

 


 

Risco à democracia marca bolsonarismo: “Estamos em uma batalha de narrativas”, diz Lilia

Para antropóloga e historiadores, intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público

Por Malu Delgado / Valor Econômico — De São Paulo

Um governo que produz as próprias verdades sem compromisso com a história e com a ciência. A avaliação da antropóloga e historiadora, Lilia Schwarcz, sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro não é suave. Disposta a deixar o hermetismo da academia e se lançar nas redes sociais, a professora da USP acha que num momento de disputa de narrativas históricas como o atual, os intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público. Governos deste tipo, afirma, atuam “no sequestro social”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Lilia Schwarz: Democracia é um regime, por definição, inconcluso. É preciso conquistar a cada dia nossos direitos. Nos últimos 30 anos, os brasileiros conviveram com uma democracia, senão absoluta, pelo menos plena: as instituições funcionaram de maneira autônoma e você não tinha uma imposição do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, e vice-versa. Os brasileiros viveram um momento forte de consolidação de pautas minoritárias e de uma agenda mais ampla, plural e inclusiva. São pautas que hoje, neste governo, estão sob ameaça.

Valor: Ameaças a direitos constitucionais, são a postura mais preocupante deste governo?
Lilia: Nos 28 anos em que nosso presidente foi deputado não primou por defender essas pautas. Hostilizou-as. Eu não tenho problema nenhum com o pensamento conservador. Ao contrário. Acho que a democracia funciona muito melhor quando lida com a diferença. Mas neste caso é regresso democrático. Não é a única pauta em regresso.

Se prestarmos atenção nos ataques à academia e à ciência, veremos que é um governo que claramente produz suas próprias verdades e não tem muito apego a fatos e informações. Há o ataque forte à ciência e ao jornalismo. Mais que uma mentira isolada, conforma um sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros.

Valor: Para onde o Brasil caminha e qual seria o papel da academia? Ela tem sido omissa?
Lilia: No meu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, chamei esses governos, usando fatos citados por outros autores, de “democraduras”. São governos que têm uma forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário. Têm em comum esse tipo de pautas. São presidentes que preferem não fazer o debate público, porque eles se movem nas bolhas das redes sociais. Há momentos em que a intelectualidade brasileira é chamada a opinar publicamente.

Escrevi um livro sobre autoritarismo, que penso que foi uma das primeiras respostas a esse governo, na minha área. Aos que reagiram com espanto à vitória de Jair Bolsonaro, digo no livro que nós sempre fomos autoritários. Ou seja, não é uma resposta atual. Nosso presente está lotado de passado. Na academia nós vivemos um mundo muito protegido da política. Nas redes, foi a primeira vez em que fui chamada de esquerdopata, com maiúsculas e símbolos que eu nem sabia o que eram. Essa exposição é importante, faz você refinar os argumentos e refletir até onde pode ir. Existem certos momentos em que, como se diz nos EUA, “go public”. Ir a público e testar se você pode ajudar no debate. Estou neste momento.

Valor: Sua premissa sobre as “democraduras” suscita que o Brasil está num beco sem saída?
Lilia: Historiador é ruim de previsão. Somos mais a máxima do conselheiro Aires, de Machado de Assis, que dizia que as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Eu imaginava um governo radical, mas também imaginava que nosso presidente pararia de fazer uma política de palanque e construiria consensos. Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero. Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos. Um presidente que recusa dados de “global warming” e demite o diretor do Inpe [Ricardo Galvão], reconhecido com um dos dez maiores cientistas do mundo, que chama de pirralha uma garota que virou o símbolo de uma luta necessária da ecologia é um presidente que não tem vocação para representar um país tão grande como o Brasil. Se existe uma saída, é de longo prazo e é a aposta na educação. Temos um ministro que aposta no escândalo e não se comporta. Que tipo de mensagem esse ministro passa?

Valor: Como o presidente se apropria do discurso Deus, Pátria, Família?
Lilia: Bolsonaro se elegeu em parte com esse discurso. As igrejas evangélicas são muito plurais. Esse é um país laico. Quando o presidente se define a partir de uma religião só, ele rasga a Constituição. Ele tem se valido desse grupo. Bolsonaro não é só um autoritário. Ele é um populista. Muitos desses representantes máximos das “democraduras” têm esse discurso populista. A característica do populismo é retratar a realidade de forma muito simplista, com frases curtas, de grande efeito, e prometer o que você sabe que não pode cumprir. Não raro esses líderes populistas se associam a imagem de pequenos deuses na terra. A imagem de Bolsonaro como mito e de Eduardo Bolsonaro como mitinho é preocupante. O que é o mito? Mito é com quem você não discute, com quem você não dialoga. O mito está numa esfera muito diferenciada dos demais cidadãos. O mito não tem que responder. Não tem que fazer pactos republicanos. O mito é tudo, menos um presidente republicano. Bolsonaro usa e abusa de seus símbolos. O problema não é se apropriar da bandeira, mas é garantir as cores da bandeira só a uma parte dos brasileiros. Esses tipos de governo atua no sequestro social. O tema do nós, os justos, eles ruins. É o uso da simbologia pátria, como se a Pátria fosse propriedade privada do presidente. Ele governa como se estivesse em casa própria, a partir de argumentações de fundo familiar e íntimas.

Valor: Se o autoritarismo nos acompanhou há tantos séculos, onde foi que essa tampa da panela de pressão se abriu? E por quê?
Lilia: Temos que pensar internacionalmente. A eleição de [Donald] Trump teve efeito mundial. Foi uma onda reacionária que nos invadiu. Minha geração errou ao achar que a democracia era o final da linha. Há manuais de governo. Basta ver o encontro conservador que tivemos aqui em São Paulo. O governo Bolsonaro permitiu que as pessoas saíssem de suas cavernas.

Valor: Uma das características desse governo é a sucessão de recuos. O presidente adota um comportamento inidôneo?
Lilia: Ele tem um comportamento político que não se preocupa com a idoneidade. Até então nós julgávamos um político a partir da sua idoneidade e da sua ética. Nós nunca tínhamos visto como qualidade o fato de um político dizer, desdizer e não se arrepender disso. E são ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades. É impressionante a capacidade que eles têm de dizer e se desdizer.

Valor: Nossas instituições são sólidas o suficiente para conter essa onda autoritária?
Lilia: Eu penso que não, tanto que nosso chefe do Executivo tenta, a todo momento, passar por cima delas. Bolsonaro destituiu o fiscal que o multou por pescar em área proibida. Bolsonaro entrou no governo para ser um vingador. Estamos num momento de batalhas de narrativas históricas. Há duas narrativas muito castigadas: a escravidão e a ditadura militar. O Brasil é um país que não pensa em reparações. É como se fosse o fantasma que volta para puxar seu pé. A Constituição de 1988 abriu mão de legislar sobre a questão militar. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil e nunca se pensou em ressarcimento. E esse governo, de forte influência militar, tem essa campanha aloprada de negar as consequências do golpe.