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Estudos: Covid afeta testículos reduzindo a qualidade dos espermatozoides

Apesar de ser um teste inicial, espermograma de pacientes tem indicado que capacidade de espermatozoides se moverem caiu para entre 8% e 12%

Elton Alisson, Agência Fapesp

Ao acompanhar, desde o ano passado, pacientes homens que tiveram covid-19, o andrologista Jorge Hallak, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, começou a observar que os resultados de exames de fertilidade e hormonais deles permanecem alterados por muitos meses após se recuperarem da doença.

Apesar de ser um teste inicial e não ter condições de diagnosticar fertilidade ou infertilidade, o espermograma de vários pacientes tem indicado, por exemplo, que a motilidade espermática – a capacidade de os espermatozoides se moverem e fertilizarem o óvulo, cujo índice normal é acima de 50% – caiu para entre 8% e 12% e permaneceu nesse patamar quase um ano após terem sido infectados pelo SARS-CoV-2. Já os testes hormonais apontam que os níveis de testosterona de muitos deles também despencaram após a doença. Enquanto o nível normal desse hormônio é de 300 a 500 nanogramas por decilitro de sangue (ng/dL), em pacientes que tiveram covid-19 esse índice chegou a variar abaixo de 200 e, muitas vezes, ficou entre 70 e 80 ng/dL

“Temos visto, cada vez mais, alterações prolongadas na qualidade do sêmen e dos hormônios de pacientes que tiveram covid-19, mesmo naqueles que apresentaram quadro leve ou assintomático”, diz Hallak à Agência Fapesp.

Alguns estudos feitos pelo pesquisador em colaboração com colegas do Departamento de Patologia da FM-USP, publicados nos últimos meses, têm ajudado a elucidar essas observações feitas na prática clínica. Os pesquisadores constataram que o SARS-CoV-2 também infecta os testículos, prejudicando a capacidade das gônadas masculinas de produzir espermatozoides e hormônios.

“É muito preocupante como o novo coronavírus afeta os testículos, mesmo nos casos assintomáticos ou pouco sintomáticos da doença. Entre todos os agentes prejudiciais aos testículos que estudei até hoje, o SARS-CoV-2 parece ser muito atuante”, afirma Hallak. “Cada patologia tem particularidades que a prática e a experiência nos demonstram. O SARS-CoV-2 tem a característica de afetar a espermatogênese de formas que estamos descobrindo agora, como motilidade progressiva persistentemente muito baixa, sem alteração da concentração espermática significativa”, diz.

Em um estudo com 26 pacientes que tiveram covid-19, os pesquisadores verificaram por meio de exames de ultrassom que mais da metade deles apresenta inflamação grave no epidídimo – estrutura responsável pelo armazenamento dos espermatozoides e onde eles adquirem a capacidade de locomoção.

Os pacientes têm idade média de 33 anos e são atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e no Instituto Androscience. Os resultados do estudo, apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), foram publicados na revista Andrology.

“Ao contrário de uma infecção bacteriana clássica ou por outros vírus, como o da caxumba, que causa inchaço e dor nos testículos em um terço dos acometidos, a epididimite causada pelo novo coronavírus é indolor e não é possível de ser diagnosticada por apalpamento (exame físico) ou a olho nu”, explica Hallak.

Por isso, segundo ele, seria interessante ensinar o autoexame dos testículos como política de saúde pública no pós-pandemia. “É ideal que os adolescentes, adultos jovens e homens em idade ou com desejo reprodutivo, após serem infectados pelo SARS-CoV-2, procurem um urologista ou andrologista e façam uma consulta com mensuração do volume testicular, dosagem de testosterona e de outros hormônios, além de análises do sêmen com testes de função espermática, seguidos de um exame de ultrassom com Doppler colorido, para verificar se apresentam algum tipo de acometimento testicular que pode afetar a fertilidade e a produção hormonal”, sugere Hallak.

“Esses indivíduos devem ser acompanhados por um a dois anos após a infecção, pelo menos, pois ainda não sabemos como a doença evolui”, aponta.


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Invasão de células testiculares

Outro estudo recém-publicado pelo mesmo grupo de pesquisadores e também apoiado pela Fapesp indicou que o SARS-CoV-2 invade todos os tipos de células testiculares, causando lesões que podem prejudicar a função hormonal e a fertilidade masculina. Por meio de um projeto coordenado pelos professores da Faculdade de Medicina da USP Paulo Saldiva e Marisa Dolhnikoff, foram empregadas técnicas de autópsia minimamente invasivas para extrair amostras de tecidos testiculares de 11 homens, com idade entre 32 e 88 anos, que morreram no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP em decorrência de covid-19 grave.

Os resultados das análises indicaram uma série de lesões testiculares que podem ser atribuídas a alterações inflamatórias que diminuem a produção de espermatozoides (espermatogênese) e hormonal. “O que nos chamou a atenção de imediato nesses pacientes que morreram em decorrência da covid-19 foi a diminuição drástica da espermatogênese. Mesmo os mais jovens, em idade fértil, praticamente não tinham espermatozoides”, conta Amaro Nunes Duarte Neto, infectologista e patologista da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto Adolfo Lutz e coordenador do estudo.

Segundo o pesquisador, algumas das prováveis causas da diminuição da espermatogênese nesses pacientes foram lesões causadas pelo vírus nos vasos do parênquima testicular, com a presença de trombos, que levaram à hipóxia – ausência de oxigenação nos tecidos –, além de fibroses que obstruem os túbulos seminíferos, onde os espermatozoides são produzidos.

Uma das razões prováveis para a diminuição hormonal é a perda de células de Leydig, que se encontram entre os túbulos seminíferos e produzem testosterona. “As funções dos testículos de produzir espermatozoides e hormônios sexuais masculinos são independentes, mas há uma interconexão entre elas. Se a produção de hormônios pelas células de Leydig estiver prejudicada, a fertilidade também será diminuída”, afirma Duarte Neto.

Alguns dos sintomas da deficiência de testosterona (hipogonadismo) são perda muscular, cansaço, irritabilidade, perda de memória e ganho de peso, que podem ser confundidos como efeitos de longo prazo da covid-19. “Uma parte importante desse quadro clínico seguramente está relacionada a uma baixa função testicular. Mas isso ainda não tem sido abordado porque os pacientes não têm dor e não se costuma dosar os hormônios e nem fazer análise dos espermatozoides após eles se recuperarem da covid-19”, alerta Hallak.

Os pesquisadores pretendem realizar um estudo de acompanhamento de pacientes homens que tiveram a doença com o objetivo de avaliar em quanto tempo as lesões testiculares causadas pelo SARS-CoV-2 podem ser revertidas naturalmente ou por meio da administração de medicamentos. “Ainda não sabemos se essas lesões testiculares poderão ser revertidas e quanto tempo levará para isso acontecer”, afirma Hallak.

As principais preocupações do pesquisador são em relação a homens em idade reprodutiva, adolescentes e pré-púberes, sobre os quais ainda não há dados sobre lesões testiculares causadas pela covid-19. Não se sabe quais serão os impactos na puberdade em relação à capacidade fértil, se a produção de hormônios será afetada de forma transitória, prolongada ou definitiva e qual o grau de lesão residual irreversível.

Como não há dados de pré-infecção pelo SARS-CoV-2 de cada indivíduo, os estudos prospectivos deverão incluir um grupo controle para efeitos de comparação, sugere Hallak. “Esses indivíduos podem ter problemas de infertilidade e alterações hormonais no futuro e não saberem que isso pode ter sido causado pela infecção pela covid-19, porque apresentaram sintomas leves ou foram assintomáticos”, pondera.

Pesquisador estima que a covid-19 poderá causar um aumento na infertilidade masculina. Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

Aumento da infertilidade masculina

O pesquisador estima que a covid-19 poderá causar um aumento na infertilidade masculina. Atualmente, entre 15% e 18% dos casais enfrentam dificuldades para conceber – por problemas masculinos em 52% dos casos.

Esse cenário pode desencadear uma busca maior por técnicas de reprodução assistida que, de acordo com ele, é realizada por vezes de forma apressada no Brasil para causas masculinas, sem avaliação inicial adequada e padronizada e, muitas vezes, sem que seja estabelecido o diagnóstico causador inicial e sem tempo hábil para se propor condutas com base em melhor custo-benefício e a aplicação de tratamentos específicos que podem curar a causa ou restabelecer a capacidade fértil natural.

“Será preciso tomar muito cuidado com a reprodução assistida pós-pandemia de covid-19, pois não se sabe as consequências disso nos meses subsequentes à infecção”, ressalta Hallak.

Uma vez que o SARS-CoV-2 tem sido detectado em todos os tipos de células dos testículos, que participam de todas as etapas da espermatogênese, não se sabe se o vírus também pode estar presente em espermatozoides de pacientes que tiveram covid-19 meses depois de terem se recuperado da doença.

Esses espermatozoides podem ter sido afetados pelo vírus e, idealmente, deveria preventivamente se esperar, no mínimo, um ciclo de espermatogênese – ao redor de 90 dias – para que seja feita nova avaliação investigativa andrológica, indica Hallak. “Temos visto lesões de DNA causadas pelo novo coronavírus altíssimas, ao redor de 80%, enquanto o normal é de até 25% e, o aceitável, até 30%”, compara.

Outra preocupação do pesquisador é com a reposição de testosterona nesses pacientes que tiveram covid-19 e queda hormonal, que, segundo ele, é uma medida desnecessária. “A reposição de testosterona em um paciente já afetado vai inibir ainda mais a função testicular. Os testículos têm mecanismos de reparação para voltar a produzir hormônios e existem tratamentos medicamentosos que aumentam a produção natural dos hormônios esteroidais, restabelecendo progressivamente a função testicular intrínseca do indivíduo. Isso também vai depender se houve lesão às células de Leydig e em qual grau, que é algo que não sabemos ainda”, pondera.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sars-cov-2-afeta-testiculos-reduzindo-hormonios-e-a-qualidade-dos-espermatozoides-apontam-estudos,70003830650


CPI da Covid ouve sócio da Precisa, intermediária da Covaxin

A oitiva é marcada por grande expectativa e tida como uma das mais importantes para o colegiado nesta reta final de trabalhos

Victor Fuzeira e Marcelo Montanini / Metrópoles

Senadores que integram a CPI da Covid-19 ouvem, nesta quinta-feira (19/8), o depoimento do empresário Francisco Maximiano, sócio da Precisa Medicamentos. A oitiva é marcada por grande expectativa e tida como uma das mais importantes para o colegiado nesta reta final de trabalhos.

A Precisa, representada por Maximiano, foi a responsável no Brasil pelas negociações entre o laboratório indiano Bharat Biotech e o Ministério da Saúde em relação à vacina Covaxin. Ele é tido pelos integrantes da comissão como “personagem central” das denúncias envolvendo a compra do imunizante.

Acompanhe:



A expectativa também se deve ao fato de que o depoimento de Maximiano à comissão foi adiado diversas vezes. O empresário também acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) tentando evitar depor à CPI. Não conseguiu, mas obteve um habeas corpus com direito de ficar em silêncio durante o depoimento.

Os senadores esperam que o empresário possa esclarecer uma série de pontos — como a relação dele com o líder do governo Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), as negociações com o Ministério da Saúde e as suspeitas de adulteração em documentos —, mas, sobretudo, confrontar a versão dele com os documentos já obtidos pela comissão..

Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-da-covid-ouve-socio-da-precisa-intermediaria-da-covaxin-siga


CPI expõe interesse de militares em faturar com a pandemia

Senadores apontam que carta de intenções do governo poderia abrir oportunidade de negócios para militares que atuaram na gestão Pazuello

Julia Affonso e Vinícius Valfré / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O lobby de militares em favor de empresas duvidosas, utilizando-se do acesso facilitado ao Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello, está diretamente ligado ao interesse de pessoas na ativa ou na reserva verde-oliva em faturar na pandemia por meio do governo federal. Para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, o surgimento de egressos das Forças Armadas em negociações com firmas intermediárias era baseado no desejo de obter uma Letter of Intent (LOI) — carta de intenções — da Saúde.

A LOI, por si só, não garantiria ao grupo concluir a venda de supostas vacinas ao Ministério, mas tê-la poderia ser decisiva para outros negócios. A credibilidade dada por um documento oficial em que a Saúde manifesta a intenção de compra seria importante para impressionar, por exemplo, prefeituras de cidades menores. Ex-gestores do ministério dizem que o papel tem potencial para credenciar fornecedores junto a indústrias.

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Conforme apurou o Estadão, senadores afirmam que, com a documentação em mãos, o grupo teria respaldo para ir ao mercado financeiro em busca de crédito, comercializar com empresas privadas e, aí sim, conseguir acesso a fabricantes de insumos. Os depoimentos e os documentos recebidos pela CPI apontam a participação direta de pelo menos quatro militares em ações para abrir portas no ministério a supostas vendedoras de vacinas: os coronéis da reserva Glaucio Octaviano Guerra, da Força Aérea Brasileira, Marcelo Blanco da Costa Helcio Bruno de Almeida, ambos do Exército, e o cabo Luiz Paulo Dominghetti, da Polícia Militar de Minas Gerais.


EDUARDO PAZUELLO EM IMAGENS


Coletiva de Imprensa do Ministério da Saúde. Foto: Alan Santos/PR
Lançamento de campanha de vacinação no Palácio do Planalto. Foto: PR
Ministro Eduardo Pazuello durante coletiva de imprensa. Foto: PR
Ministro Eduardo Pazuello durante coletiva de imprensa. Foto: PR
Pazuello durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Presidente Bolsonaro e o ministro Pazuello durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Ministro Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello participa de motociata com o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Agência Brasil
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Coletiva de Imprensa do Ministério da Saúde. Foto: Alan Santos/PR
Lançamento de campanha de vacinação no Palácio do Planalto. Foto: PR
Ministro Eduardo Pazuello durante coletiva de imprensa. Foto: PR
Ministro Eduardo Pazuello durante coletiva de imprensa. Foto: PR
Pazuello durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Presidente Bolsonaro e o ministro Pazuello durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Pazuello durante depoimento à CPI da Covid no Senado. Foto: Agência Senado
Ministro Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: PR
Pazuello participa de motociata com o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Agência Brasil
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Senadores que mapeiam o trabalho dos intermediadores avaliam que todos tinham condições de saber que as ofertas de empresas como a Davati Medical Supply e a World Brands não tinham nenhum lastro. No entanto, as tratativas prosseguiram porque um acerto inicial com o governo brasileiro elevaria o patamar das empresas desconhecidas em seus respectivos mercados e abriria novas possibilidades.

Os egressos das Forças Armadas que surgiram em reuniões com o ministério para tratar de vacinas passam longe da ideia de “oficiais de pijama”. Em comum entre esses militares-empresários, a ida para a reserva na faixa dos 40 anos de idade com aposentadorias superiores a R$ 20 mil mensais e uma formação de alto nível que os capacita para trabalhar normalmente no mercado privado oferecendo serviços de consultoria de segurança e inteligência.

O tenente-coronel Helcio Bruno de Almeida, 63 anos, entrou para a reserva em março de 2000, condição que lhe rende R$ 23 mil por mês. Ele é presidente do Instituto Força Brasil, uma entidade que se propõe a estudar “soluções para os problemas sociais, econômicos e políticos do País”. O instituto, porém, é acusado de disseminar fake news inclusive contra vacinas da covid-19 que o militar tentou vender. Ele também se identifica como consultor de defesa.

O militar reformado atuou para que o reverendo Amilton de Paula, controlador da Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Religioso), conseguisse reunião no Ministério da Saúde. O religioso foi um dos que tentaram emplacar um acordo para a Davati, empresa dos Estados Unidos que não tinha doses em estoque e oferecia imunizantes da AstraZeneca. Ouvido pela CPI, o coronel ficou em silêncio quando perguntado se seu instituto receberia algum valor caso as vacinas fossem vendidas à pasta.

“Como conciliar a imagem do coronel Helcio, negacionista do Instituto Força Brasil, com a imagem do homem experiente de negócios, que depois negou a pandemia, a gravidade, depois nega que negou e, à custa da dor alheia, vai tentar levar vantagem em cima, tentando comercializar vacinas para a iniciativa privada, vacina essa que se recusa a tomar? A única conclusão a que nós podemos chegar é que estava nos dois lados do balcão”, afirmou a senadora Simone Tebet (MDB-MS).

Aos 49 anos, o coronel Marcelo Blanco está aposentado do Exército desde janeiro de 2018, com rendimento mensal bruto de R$ 23 mil mensais. O militar foi assessor do Departamento de Logística (DLOG) do ministério, responsável pelos contratos de vacinas, entre maio do ano passado e janeiro deste ano. Ele também estava nomeado como diretor substituto do setor.

Fora da pasta, abriu uma empresa de consultoria dias antes de ter levado o PM Luiz Paulo Dominghetti, vendedor da Davati, a um jantar com o então diretor do departamento, Roberto Dias. Em 30 dias, trocou mais de 100 ligações com o policial que relata ter ouvido de Dias nesse encontro um pedido de propina de US$ 1. No depoimento à CPI, ele confirmou que mantinha conversas com interlocutores da Davati, mas que todas eram visando negócios no mercado privado, sem relação com o ministério.

Blanco orientava Dominghetti sobre como acessar o DLOG. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Como mostrou o Estadão, Blanco orientava Dominghetti sobre como acessar o DLOG. O militar sustenta que foram orientações despretensiosas. “Eu simplesmente o orientei a enviar para os e-mails institucionais. Não intermediei, não fui com ele lá, não articulei”, disse. Para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), entretanto, tratava-se de “lobby na perspectiva de ter uma parceria comercial”.

Procurado, Marcelo Blanco disse que a tese “é totalmente desconectado da realidade dos fatos”.

A norte-americana Davati surgiu em Brasília a partir de articulação de outro coronel. Glaucio Octaviano Guerra, de 51 anos, está na reserva da Aeronáutica desde 2016, com pagamento de R$ 25 mil. Na ativa, pilotou aeronaves especiais para autoridades do primeiro e segundo escalões do governo federal e atuou no contrato da compra do avião presidencial. Atualmente, vive nos Estados Unidos, onde foi chefe da Divisão Logística da Comissão Aeronáutica Brasileira em Washington.

Hoje, se apresenta como consultor para empresas americanas que desejam ampliar a área de atuação para a América do Sul, Central, Ásia e Oriente Médio. É amigo de Herman Cárdenas, o dono da Davati, e foi quem colocou o americano em contato com Cristiano Carvalho, que viria a se tornar representante comercial da empresa no Brasil. À CPI, o vendedor disse que Guerra era “um apoio nos EUA” e que já havia intermediado uma negociação de luvas.

Guerra nega ter qualquer relação profissional com Cárdenas, embora seja admirador da ética e dos resultados do amigo. Também afirma não ser verdadeira a informação de Cristiano, de que teria intermediado a venda de uma aeronave para o empresário. Diz ter conhecido o compatriota em grupo de WhatsApp composto por representantes de empresas que lidam com “produtos referentes à covid”.

Contudo, Guerra reconhece que o fato de ter conectado Cárdenas a Cristiano Carvalho poderia ter motivado o americano a lhe “dar alguma coisa”. O coronel nega ter feito a ponte entre ambos por interesse em negócios futuros. “Minha relação com ele é só de amizade mesmo. Não tenho contrato com ele”, frisou. “Talvez ele (Cárdenas) ia me dar alguma coisa, mas não pedi.”

A atuação do grupo, que não tinha vacinas disponíveis para vender, é vista por senadores da CPI como semelhante a de estelionatários. Membros da comissão compartilham a suspeita de que, ao negociar produtos que não existiam e obter a LOI, militares e outros intermediários poderiam levar prefeituras a erro, obter algum tipo de vantagem ilícita e causar prejuízo a clientes.

A menção ao crime de estelionato tem sido recorrente nas sessões da CPI. No dia 4 de agosto, o senador Humberto Costa (PT-PE) classificou a "operação Davati/Ministério da Saúde" como "uma das coisas mais tragicômicas” na vida pública brasileira.

"De um lado, um grupo de estelionatários comandados por um estelionatário mor lá dos Estados Unidos, não é?. Tentaram vender terreno no céu, porque não tinham vacina. Encontram do outro lado do balcão uma meia dúzia de maus funcionários, de pessoas que nem são funcionárias do Ministério da Saúde, mas que viram também um espaço para se locupletarem", afirmou Costa.

Em outra sessão, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) afirmou que o coronel Helcio Bruno abriu as portas do Ministério da Saúde “para estelionatários”. “É uma tristeza, é mais um vexame.”

Procurada, a defesa de Helcio Bruno afirmou que o militar, “imbuído de boa-fé, limitou-se a aceitar compartilhar uma reunião que já estava pré-agendada com uma empresa que anunciava uma relevante possibilidade de vacinação ao país”. Ressaltou ainda que no único encontro, com mais de dez pessoas, “todos os assuntos foram devidamente registrados em ata oficial, comprovando a absoluta transparência, lisura e regularidade com que toda a matéria foi tratada”.

Tensão com militares

A menção rotineira a militares na CPI deixa tensionada a relação dos senadores com a cúpula das Forças Armadas. Além dos indícios de interesses escusos por parte de alguns oficiais aposentados, existem as fortes críticas e suspeitas de incompetência na gestão da pandemia pelo Ministério da Saúde, em especial na gestão Pazuello.

Ao chegar ao fim, a comissão deve indiciar, por exemplo, o ex-ministro Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército, e o ex-secretário-executivo da pasta, coronel Elcio Franco.

Uma ala da CPI quer avançar as apurações sobre a responsabilidade do atual ministro da Defesa, general Walter Braga Netto. Quando chefiou a Casa Civil, até o fim de março, ele coordenou o comitê de crise para enfrentamento à pandemia. Há uma série de críticas a omissões, lançadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

No entanto, a CPI tem adiado votar o requerimento de convocação do ministro por receio de que a relação fique ainda mais tensa. Até agora, julho viu o pior momento da crise entre a comissão e Braga Netto. Em uma das sessões, o senador Omar Aziz disse que os homens bons do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deveriam estar envergonhados porque há anos o Brasil não via o “lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatruas dentro do governo”.

Apesar de o comentário ter sido pontual, Braga Netto reagiu de forma considerada intimidatória. Assinada pelo ministro e pelos três comandantes, uma nota divulgada no mesmo dia das declarações de Aziz salientava que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

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A esperança que habita nos cantos do Brasil desolado pela pandemia

Além de um estado de luto constante, a pandemia trouxe fome para milhões de brasileiros. A desigualdade é desoladora, e parece não haver saída. Mas basta olhar para os cantos para ver a possibilidade de outros Brasis

Ynaê Lopes dos Santos / DW Brasil

Temos motivos de sobra para estarmos cansados, desgostosos, exaustos e profundamente tristes.

Ainda atravessamos uma pandemia que transformou a vida de todos/as, nos obrigando a enfrentar a morte e o medo dela o dia todo, todos os dias. Num estado de luto constante, mesmo quando não conhecemos nenhum dos mais de mil mortos do dia. E se não bastasse termos que andar de mãos dadas com a morte, para muitos de nós a vida de antes não existe mais. 

São as horas em frente às telas, na tentativa de reinventar as conexões. São sorrisos que agora vislumbramos pelo canto ou pelo brilho dos olhos, quando muito. São os abraços engasgados, como nós na garganta, que transformaram os cotovelos em objetos de afeto e afeição. Entrar num transporte público com inúmeros receios. Perder o emprego, o chão. É olhar para uma aglomeração e achar estranho, saber ser errado, mesmo com tanta saudade. É não saber direito onde estamos, nem para onde iremos. E mesmo assim, continuar caminhando.

É também a volta da fome. Muitos de nós estamos vivendo uma enorme fome de diversão e arte – aspectos que sempre fizeram parte das "coisas boas da vida". Mas essa é uma fome que tem CEP certo, e que, infelizmente, não é a pior de todas.

O Brasil vive o agravamento da fome por sobrevivência. Nos últimos dias têm aparecido no noticiário pessoas formando fila para pegar ossos de boi, tendo em vista os preços exorbitantes da carne. O nosso arroz com feijão (combinação que garante a base alimentar de milhões de brasileiros) está tão caro, que agora temos uma versão "mais pobrinha", composta por fragmentos de arroz e bandinhas de feijão. Grãos fracionados que, embora liberados para o consumo humano, demonstram bem a situação que estamos vivendo: a falta de inteireza. E também falta leite, pão, dinheiro para o gás de cozinha.

Dentre os 210 milhões de brasileiros, aproximadamente 19 milhões estão passando fome. Um dos países que mais produz carne e grãos em todo o mundo permite que quase 10% de sua população esteja faminta. Uma constatação que, de tão perversa, chega a ser irônica.

De fato, estamos dentro de um quadro desolador, no qual a desigualdade é nosso denominador comum, e nem sei bem o quanto isso nos indigna. Parece não haver saída. No entanto, a sobrevivência de uma grande parcela da população brasileira é a constatação da perversidade do sistema em que vivemos, mas também a possibilidade de pensarmos a vida e construirmos um mundo a partir de outras possibilidades.

Se olharmos com atenção para os cantos, como bem nos lembra o belo samba de Dona Ivone Lara, teremos uma nova perspectiva. Que não anula a violência que nos cerca, nem a fome que nos assola, mas que nos dá um sopro de esperança, nos lembrando que também somos feitos de (em)canto.

Esta semana começou com o dia 25 de julho, o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O dia de mulheres que, historicamente, estiveram fadadas a sobreviver… Mulheres que só puderam ver a esperança nos cantos, e não no centro de suas vidas. A escolha por trás da comemoração deste 25 de julho tem uma história toda especial. A história de Tereza de Benguela, uma mulher escravizada (não sabemos ao certo se nascida no Brasil ou em alguma sociedade africana), que em meados do século 18 se tornou a liderança máxima do Quilombo de Quariterê, no que hoje é o estado do Mato Grosso.  

Ao longo de quase 20 anos, a rainha Tereza de Benguela chefiou uma comunidade que se colocava abertamente contrária à sociedade escravista e colonial da época. O quilombo era formado por homens, mulheres, negros e indígenas que produziam alimentos para subsistência, além de criarem animais de pequeno porte e plantarem algodão. Em Quariterê não havia escravidão, e ninguém passava fome. E se isso não bastasse, o quilombo era governando por meio de um sistema parlamentar, que reconhecia em Tereza de Benguela a autoridade máxima.

O que se viu naquele "canto do Brasil" foi uma outra forma de viver. Sob o comando de uma mulher negra houve esperança, e também outra experiência de vida marcada pela liberdade e pela inteireza. Foi possível experimentar o que Beatriz Nascimento chamou de paz quilombola.

E mesmo que o fim da rainha de Quariterê tenha sido trágico, sua história é um lembrete de que outros mundos são possíveis. E Tereza de Benguela não foi exceção. Nos cantos do Brasil, temos as histórias de inúmeras mulheres (e de muitos homens) cujo norte não era o medo de se tornarem menos ricos. Histórias de sobrevivência, mas também de reinvenção, de resistência. Outros Brasis que foram imaginados e sonhados.

Essas outras possibilidades de Brasil atravessaram toda nossa história e chegaram aos dias de hoje. Estão na memória de Marielle Franco, no "Baile de Favela" de Rebeca Andrade (prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020), nas pesquisas científicas de Jaqueline Goes de Jesus, nos bordados de Rosana Paulino, na voz rouca e certeira de Elza Soares, e nas lutas diárias de tantas outras mulheres rememoradas neste 25 de julho.

Ainda há esperança. Que nossos cantos possam inundar o Brasil inteiro.

Ynaê Lopes dos Santos é mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.


Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/a-esperan%C3%A7a-que-habita-nos-cantos-do-brasil/a-58686142


Bolsonaro é o presidente que mais paga emendas ao Congresso e o que menos aprova projetos

Com articulação política precária, presidente é o que mais cede controle do Orçamento ao Congresso em busca de apoio desde 2003; mesmo assim, avançou pouco na aprovação de projetos

André Shalders / O Estado de S.Paulo

Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro vai consolidar uma mudança radical na articulação política do governo. O general da reserva Luiz Eduardo Ramos cedeu a Casa Civil para um líder do Centrão, o presidente do Progressistas e senador pelo Piauí Ciro Nogueira. Levantamento do Estadão mostra que não faltam motivos para a troca: desde 2003, Bolsonaro é o presidente que mais pagou emendas para congressistas — R$ 41,1 bilhões até agora — ao mesmo tempo em que seu governo foi o que menos aprovou projetos no Congresso.

O presidente admitiu que Ramos tinha "dificuldades" de relacionamento com o Congresso — algo que o general negou, ao deixar o posto. "O general Ramos é uma pessoa nota 9. Não é 10 porque falta para ele um pouco de conhecimento para melhor conversar com o parlamentar", disse Bolsonaro. Nos últimos meses, o presidente da República vinha recebendo comentários negativos sobre a capacidade de articulação do general da reserva.

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Congresso permite emendas sem carimbo a bancadas e amplia 'Pix orçamentário’

Desde o começo do mandato, Bolsonaro aprovou 83 propostas, entre projetos de lei, medidas provisórias e propostas de emenda à Constituição (PECs). É como se o governo Bolsonaro tivesse aprovado um projeto a cada 11,3 dias no Congresso. O antecessor Michel Temer (MDB) aprovou uma proposta a cada 9,6 dias, em média. Até Dilma Rousseff (PT), conhecida pela falta de habilidade no relacionamento com os parlamentares, registrou uma marca ligeiramente melhor em seu segundo mandato, marcado pelo processo de impeachment: um projeto a cada 11,2 dias (foram 44 propostas aprovadas em um ano e meio).

Os números mostram como os congressistas vêm ampliando seu controle sobre o Orçamento da União ao longo dos anos. O processo começou antes de Bolsonaro, mas acelerou muito durante o governo do capitão com a utilização das chamadas emendas de relator-geral, identificadas com o código RP 9. Na prática, estas emendas se tornaram uma forma do governo liberar recursos para congressistas aliados, de acordo com a conveniência política do Palácio do Planalto e sem qualquer transparência sobre quem indicou o quê. O caso foi revelado pelo Estadão e ficou conhecido como orçamento secreto.

A nova modalidade RP 9 resultou em pagamentos de R$ 8,34 bilhões em emendas apresentadas em 2020 e R$ 4,51 bilhões em 2021, puxando para cima o "custo" da relação de Jair Bolsonaro com o Congresso. O RP 9 também fez com que 2020 — ano da pandemia da covid-19 e de forte crise econômica — se tornasse o exercício com o maior valor pago em emendas desde 2003: foram R$ 22,6 bilhões. A maior parte do dinheiro é direcionada para pequenas melhorias e para a compra de equipamentos nas cidades onde os congressistas têm votos.

'Custo Bolsonaro'
Desde o começo do governo, Bolsonaro pagou R$ 41,1 bilhões em emendas parlamentares. É como se cada um dos 83 projetos aprovados pelo governo do capitão da reserva tivesse "custado" R$ 495,2 milhões — embora não seja possível correlacionar diretamente a aprovação de projetos específicos ao pagamento de emendas. O valor é mais que o dobro do segundo colocado, o governo de Michel Temer, que desembolsou, em média, R$ 192 milhões em emendas a cada projeto aprovado.

Apesar de ter trocado o comando da articulação política, nada indica que Bolsonaro pretenda interromper o uso das emendas RP 9 para conquistar a boa vontade do Congresso. Ao contrário: o número 2 de Ciro Nogueira na Casa Civil será o engenheiro Jonathas Assunção Salvador Nery de Castro, antigo secretário-executivo do general Luiz Eduardo Ramos. Apresentado ao general pelo seu genro, Marcelo Sampaio, Nery de Castro coordenou a liberação das emendas RP 9 do lado do governo no ano de 2020.

Para a doutora em ciência política e especialista em política legislativa Beatriz Rey, a comparação do "custo" em emendas de cada projeto aprovado tem limitações, mas serve para dar indícios de como o processo político está se desenrolando. "Dado que a gente sabe que esta é uma medida limitada, eu acho que essa discrepância no 'custo por projeto' é decorrente da incompetência do governo Bolsonaro em gerir a coalizão (no Congresso)", afirmou Beatriz.

"Um valor tão alto mostra que Bolsonaro, desde o começo do governo, teve muita dificuldade em montar uma coalizão estável, e se viu forçado a encontrar outras moedas de troca alternativas", disse ela. "(O fato de) ele ter ressuscitado as emendas de relator é um indicador das incompetências na gestão da coalizão, assim como aconteceu durante Dilma. Pior ainda no caso dele", diz Beatriz, que é hoje pesquisadora da universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos EUA.

"De fato, Bolsonaro é o presidente, do ponto de vista da aprovação legislativa, com a pior relação com o Congresso. No entanto, o fato de ele não ter sofrido impeachment até o momento não se deve só ao (presidente da Câmara) Arthur Lira (PP-AL). É também porque ele está fazendo esforços que Dilma Rousseff não fez. Mas, do ponto de vista da produção legislativa, é o governo mais fraco de que se tem notícia", diz o cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Sérgio Praça.

No começo de junho, o Estadão mostrou que deputados contemplados com verbas do orçamento secreto votaram conforme a vontade do governo em 87,6% das ocasiões em 2020 — o mesmo grupo de congressistas não era tão fiel ao Planalto em 2019, quando a distribuição de recursos ainda não acontecia: naquele ano, eles votaram com o governo apenas 54,1% das vezes.

As informações sobre os projetos do Executivo foram compiladas pela reportagem a partir dos dados abertos publicados pela Câmara dos Deputados. Já as informações sobre as emendas foram extraídos da ferramenta Siga Brasil desenvolvida pelo Senado Federal e de levantamentos anteriores da Confederação Nacional de Municípios (CNM), da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados (Conof) e da ONG Contas Abertas.

Fundador da Contas Abertas, o economista Gil Castello Branco avalia que o custo do apoio parlamentar de Bolsonaro segue crescendo conforme a popularidade do mandatário cai. "Como acontece há anos, as emendas são as moedas de troca. Mas o novo mecanismo (emendas de relator) é ainda pior do que os anteriores, visto que antes, nas emendas parlamentares  tradicionais, os patrocinadores eram conhecidos, de forma transparente", diz ele.

"No  esquema atual, os parlamentares favorecidos são escolhidos à dedo, sem qualquer critério republicano,  e o valor da 'cota' de cada um fica oculto da sociedade. O sistema atual, além de ter um custo muito mais alto, é uma burla à democracia", diz Castello Branco.

A base de dados traz ainda outros números que atestam a fragilidade da articulação política de Bolsonaro até o momento, sob a coordenação de Ramos e, em menor grau, da deputada Flávia Arruda (PL-DF). Bolsonaro é, por exemplo, o campeão em medidas provisórias que não foram aprovadas a tempo pelo Congresso e perderam a eficácia. Sob Bolsonaro, 70 MPs acabaram caducando. Michel Temer, o segundo colocado, deixou apenas 40 medidas provisórias se perderem. Procurado por meio da Secretaria de Comunicação (Secom), o governo não respondeu.

Aumento das emendas começou com Dilma
O pagamento das emendas parlamentares começou a aumentar a partir de 2015, quando o Congresso aprovou uma emenda à Constituição criando o chamado "orçamento impositivo", isto é, a obrigatoriedade do Executivo pagar uma parte das emendas individuais dos congressistas — até então, o governo não tinha obrigação de pagar as emendas. Em 2019, já no governo Bolsonaro, outra emenda à Constituição aumentou ainda mais os desembolsos, ao tornar compulsório o pagamento também das emendas de bancadas estaduais.

Um consultor de Orçamento da Câmara consultado pela reportagem conta que, antes de 2015, o valor efetivamente pago das emendas individuais era, em média, de 0,4% da Receita Corrente Líquida (RCL) — ou seja, 04% de tudo que a União arrecada com impostos, excluídas as transferências obrigatórias para Estados e municípios. De acordo com ele, esses pagamentos eram feitos com bastante defasagem, em média levava de três a quatro anos para uma emenda ser totalmente paga.

Na primeira versão da PEC do Orçamento impositivo de 2015, este montante subiria para 0,6% da RCL. Quando a proposta chegou ao Senado, porém, a então presidente Dilma Rousseff indicou a ex-ministra e ex-senadora Ideli Salvatti para acompanhar as negociações. Ex-senadora, a ex-ministra acabou cedendo para ficar com o  dobro do valor (das emendas individuais impositivas), para os atuais 1,2% da Receita Corrente Líquida.

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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-o-presidente-que-mais-paga-emendas-ao-congresso-e-o-que-menos-aprova-projetos,70003797615


Bruno Boghossian: Bolsonaro pede que governo divulgue perigos de vacinas contra a Covid

Uso da máquina em campanha contra imunização aumenta responsabilidade por mortes na pandemia

Jair Bolsonaro trabalha para que o governo faça uma campanha oficial contra a vacinação do coronavírus. Em entrevista à Band, o presidente revelou ter pedido ao ministro da Saúde que comece "a mostrar o que seria a bula desse medicamento". Em vez de garantir um processo seguro, ele quer que as autoridades digam que a imunização é perigosa.

"Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?", declarou.

Além de abastecer a desconfiança da população e alimentar teorias conspiratórias em discursos públicos, o presidente acionou também a máquina do governo em sua cruzada contra a imunização. Se alguém tinha dificuldades para enxergar a responsabilidade direta de Bolsonaro pelo morticínio na pandemia, não é preciso perder mais tempo.

Enquanto se empenha para desestimular a imunização, o presidente tenta empurrar medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina. "Eu não sou contra a vacina, mas sou plenamente favorável a esse tratamento preventivo que a gente tem no Brasil", afirmou, na entrevista desta terça-feira (15).

Bolsonaro também disse que o governo vai determinar que cada brasileiro assine um termo de responsabilidade ao receber o imunizante. Ele só não disse que é preciso fazer o mesmo para receber cloroquina. O texto alerta que o medicamento pode causar disfunção cardíaca e que não há provas de que ele funcione.

Quando a morte de um voluntário forçou a interrupção nos testes da Coronavac em São Paulo, o presidente comemorou: "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha". Se as vacinas desenvolvidas até aqui se mostrarem seguras, cada cidadão que recusar o imunizante também poderá ser incluído em sua conta.

Desde agosto, o percentual de brasileiros que não querem se vacinar subiu de 9% para 22%. São 46 milhões de pessoas que podem sofrer com a doença ou espalhar o vírus.


Bruno Boghossian: Bolsonaro tenta conter prejuízo político na guerra da vacina contra Covid

Apesar de negacionismo, presidente percebe risco e mexe suas peças para enfrentar Doria

Jair Bolsonaro mexeu suas peças no embate com João Doria. Depois que o tucano fez o lançamento precipitado de um plano de vacinação contra a Covid-19, o presidente despachou o ministro da Saúde para um pronunciamento em que reivindicou a competência pelo processo e anunciou a intenção de comprar doses adicionais do imunizante.

Bolsonaro adota até aqui um comportamento que varia entre a incompetência e a indiferença. O governo, no entanto, parece ter percebido o tamanho do prejuízo político que poderá sofrer quando os brasileiros entenderem que ficaram para trás na fila da vacinação.

Após uma reunião com o presidente, Eduardo Pazuello tentou fazer uma mudança de rumos disfarçada de propaganda. O ministro disse nesta terça (8) que "todos aqueles que desejarem" serão vacinados e confirmou a assinatura de um termo para a compra de 70 milhões de doses da Pfizer –algo que era visto com ressalvas na semana passada.

Pazuello afirmou que "qualquer vacina" que tenha registro no país será comprada e distribuída. "Não existe essa discussão", declarou.

Parecia que o governo tinha trocado o ministro da Saúde mais uma vez. Em outubro, Bolsonaro fustigou o rival Doria e mandou cancelar a compra da vacina chinesa fabricada em São Paulo. Pazuello aceitou a ordem e se humilhou: "É simples assim: um manda, e o outro obedece".[ x ]

O presidente ainda deve fazer de tudo para atrapalhar os planos de Doria, enquanto ensaia movimentos alternativos para evitar que o adversário colha benefícios sozinho.

A politização da vacina ganha dimensões cada vez maiores. Para Maurício Moura, da Ideia Big Data, essa é "a única chance de Doria se tornar competitivo" em 2022.

Já Bolsonaro teria chance de recuperar terreno, apesar de seu negacionismo durante a pandemia, porque a população busca "soluções de curto prazo". "É um risco muito grande não agir de maneira contundente em relação à vacina", avalia. "É um momento crucial para a gestão dele."Bruno Boghossian

*Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Eliane Catanhêde: Seringas vazias?

Risco de aparelhamento de Saúde e Anvisa é o Brasil e você, brasileiro, ficarem sem vacina

Depois de duas semanas de férias, a coluna volta com uma dúvida: os generais MourãoFernandoHelenoBraga NettoRamos Pujol vão permitir que o presidente Jair Bolsonaro aparelhe a Anvisa e deixe o Brasil ser pego de calças curtas e seringas vazias? E que você, brasileiro, não seja vacinado?

Mesmo bolsonaristas renitentes, que negam a realidade e se recusam a ver o que está acontecendo, começam a se preocupar. Bolsonaro chegaria a tanto? Como ele ultrapassa todos os limites, o tempo todo, a resposta é preocupante: sim, e ele já se mostrou capaz de priorizar suas guerrinhas políticas em detrimento da vacina.

Uma coisa é dar de ombros para parceiros internacionais, Amazônia, Cultura, Meio Ambiente, Educação e até mesmo, por incrível que pareça, Saúde. Isso tudo pode parecer “abstrato” e “distante”, acionando o “não tenho nada a ver com isso”. Mas quando se trata de vacinas, é algo objetivo, direto, nem bolsonarista resiste.

É como se Bolsonaro tivesse um prazer mórbido de confrontar, chocar, sempre testando limites. Como tudo na vida tem limite, ele precisa desesperadamente manter o apoio do Centrão e tirar do deputado Rodrigo Maia (DEM) o controle da Câmara e, particularmente, das dezenas de pedidos de abertura de impeachment. De tanto esticar a corda, um dia ela arrebenta. E a vacina contra a covid-19 pode ser o “turning point”.

Até por isso as instituições precisam estar devidamente sólidas, confiáveis, e foi um erro imperdoável do Supremo aventurar-se pelo terreno pantanoso da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Que Davi Alcolumbre se prestasse a esse papel, tudo bem, está do tamanho dele. Mas Rodrigo Maia lavar as mãos? E ministros do Supremo taparem os olhos (e o nariz) para jogar no lixo o texto constitucional?

O Supremo tem sido fundamental na defesa da democracia e contra golpistas de Executivo, Legislativo, empresariado, blogosfera. Foi graças à firmeza pessoal e jurídica de um Celso de Mello, um Alexandre de Moraes, que essa gente se recolheu. Ninguém mais vê manifestações contra Congresso e STF, muito menos o presidente atiçando a turba com o Quartel General do Exército ao fundo ou sobrevoando essas aglomerações com o ministro da Defesa, de helicóptero.

Logo, os 11 ministros do Supremo têm que se preservar, de manter a credibilidade da instituição garantidora, por excelência, do Estado Democrático de Direito. Não podem repetir Bolsonaro e priorizar seus próprios achismos e fingir que a Constituição (secundada pelos regimentos internos) não diz o que diz: que é vedada a reeleição para as presidências do Congresso na mesma Legislatura. É grosseiro, não faz jus à inteligência, à responsabilidade e ao compromisso do nosso Supremo com o nosso País.

Sim, Rodrigo Maia cumpre um papel importante, em alguns momentos decisivo, ao botar o pé na porta e estabelecer limites às insanidades e arroubos do presidente, mas não é recorrendo a expedientes também golpistas para lhe dar um novo mandato ilegal que Judiciário e Legislativo terão legitimidade para manter a democracia e o equilíbrio institucional.

O Brasil precisa de Supremo e Congresso fortes, para exigir democracia e defender princípios, avanços, leis e, agora, o acesso da população às vacinas, com planejamento e campanha impecáveis de imunização. Mas, se as instituições aderem a jeitinhos mequetrefes, acabam se embolando com Bolsonaro. Não sobra nada. Ainda mais se as Forças Armadas fecharem bocas, olhos e ouvidos e se tornarem coniventes com ameaças à independência da Anvisa e à segurança dos milhões de brasileiros. Calma, gente! Há que manter a compostura.


O Globo: Ernesto Araújo evoca teoria da conspiração sobre Covid após conferência da ONU

Chanceler se refere a teoria infundada que alega que a pandemia foi baseada em um complô de elites com o objetivo de dominar as massas

André Duchiade, O Globo

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, evocou nesta sexta-feira uma teoria da conspiração popular em sites de extrema direita, ao se referir à sua participação  na véspera em uma conferência da ONU sobre a pandemia de coronavírus. Ao difundir em redes sociais a sua fala na ONU, Ernesto citou “o grande recomeço” (“great reset”), teoria conspiratória infundada que alega que a pandemia originou-se em função de um complô de elites, com o objetivo de impor o seu controle econômico e social às massas.

Infográfico: Números do coronavírus no Brasil e no mundo

“A pandemia não pode ser pretexto p/ controle social totalitário violando inclusive os princípios das Nações Unidas. As liberdades fundamentais não podem ser vítima da Covid. Liberdade não é ideologia. Nada de Great Reset. Minha fala em sessão ONU s/ Covid”, escreveu no Twitter, em mensagens em português e em inglês.

Embora tenha citado a teoria da conspiração na rede social, Araújo não usou a expressão durante a conferência extraordinária da ONU, que contou com a participação de mais de 90 presidentes e primeiros-ministros com o objetivo de alcançar um compromisso global para responder à crise. No encerramento de sua participação, não obstante, o chanceler insinuou haver um complô que se aproveita da emergência sanitária para suprimir liberdades:

— Aqueles que não gostam da liberdade sempre tentam se beneficiar dos momentos de crise para pregar o cerceamento da liberdade. Não caiamos nessa armadilha. O controle social totalitário não é o remédio para nenhuma crise. Não façamos da democracia e da liberdade mais uma vítima da Covid-19 — afirmou, sem detalhar quem seriam os agentes supressores da liberdade, ou quais são suas ações.

A teoria do “grande recomeço” ganhou força no final de maio, quando o príncipe Charles e Klaus Schwab, presidente-executivo do Fórum Econômico Mundial, anunciaram planos para reunir líderes mundiais e discutir as mudanças climáticas e a reconstrução de economias prejudicadas pela pandemia. A reunião foi chamada de “Grande Recomeço”, dando início a uma onda de rumores falsos sobre um grupo de elite que manipularia a economia e a sociedade mundiais, atuando para abolir liberdades individuais e instaurar um regime totalitário. 

Em meados de novembro, um vídeo do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, também usando a expressão "grande recomeço" em uma reunião das Nações Unidas em setembro, ganhou centenas de milhares de visualizações on-line. Pouco depois, comentaristas de extrema direita da internet conhecidos por difundirem desinformação começaram a usar a expressão. Paul Joseph Watson, um ex-colaborador do site de teorias da conspiração Infowars, e Steven Crowder, que falsamente afirmou que o número de mortes por coronavírus está inflado, estavam entre os propagadores da teoria. A expressão chegou aos assuntos mais comentados do Twitter.

Na videoconferência da ONU, Araújo também citou planos para avançar uma “agenda” que subtrairia poder dos Estados nacionais. Araújo não especificou quem busca adotar esta agenda, nem como:

— A Covid-19 não pode servir como pretexto para avançar agendas que extrapolam a estrutura constitucional das Nações Unidas — disse no começo de sua fala, quando atacava o multilateralismo. — O Brasil reafirma a responsabilidade primária dos governos de adotar e implementar respostas à Covid-19 específicas aos contextos nacionais. Não existe uma solução única para todos. Não devemos transferir nenhuma responsabilidade do nível nacional para o internacional.

O presidente Jair Bolsonaro escolheu não participar da conferência. Pelo protocolo, Araújo foi um dos últimos a falar, e o fez quando já anoitecia em Nova York.

Na sua fala, Araújo disse que os institutos Biomanguinhos/Fiocruz e Butantã podem, juntos, produzir entre 600 e 800 milhões de doses de vacina contra Covid-19 até junho de 2021. Não está claro qual foi a conta feita pelo ministro para alcançar estes números. Araújo também mencionou que a Fiocruz tem um acordo com Oxford e com a farmacêutica Astrazeneca para a produção de vacinas, mas omitiu o acordo entre o Butantã e o laboratório chinês SinoVac para a produção da Coronavac.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ignora Covid, mas seu governo está confinado na incompetência

Congresso para por disputa política, governo inexiste na Economia, na Saúde e na Educação

A geringonça do “parlamentarismo branco” deu a impressão de que havia algum governo do país em 2019, embora não houvesse governo propriamente dito. A Câmara dos Deputados, sob comando de Rodrigo Maia (DEM), aprovou parte das tais “reformas”, derrubou alguns papeluchos autoritários de Jair Bolsonaro e fez “notas de repúdio”.

A geringonça pifou. Não há mais nem impressão de governo do país, pois o Executivo não faz muito além de destruir ou ser levado pela burocracia estatal.

Não há governo na Economia. Há um clandestino na Educação que levou uma nas fuças na primeira decisão inepta que tomou (decretar a volta das aulas nas universidades federais).

A ordenança de Bolsonaro que toma conta do almoxarifado da Saúde, o general pisado pelo capitão, foi nesta terça-feira ao Congresso dar mais mostras de como trata o repique da epidemia com leviandade. “Ah, ele diz que vai comprar vacina”. Se não dissesse, o que deveria ser feito? Colocar o governo em um camburão, imediatamente?

Desde o final do ano passado, confrontado com a necessidade de tomar decisões sobre o gasto público e reformas divisivas, como a tributária ou privatizações, Bolsonaro para variar fugiu da responsabilidade. Foi para o ralo até a fantasia de programa econômico pregada por esse Ministério da Economia balofo, paquidérmico, incompetente e cúmplice do bolsonarismo.

Para nenhuma surpresa, Bolsonaro está colocando dinamite na máquina emperrada do Congresso. Entrou na disputa pelo comando de Câmara e Senado. Ainda que vença, não terá maiorias estáveis e deixará raivas sentidas. Até lideranças do centrão preteridas pelo capitão já se irritam em público.

Os conflitos dificultam a tramitação de projetos importantes. Até agora não foi votada nem a “prévia” do Orçamento, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), um atraso raro, nessa dimensão, e típico de momentos políticos disfuncionais. É improvável que o Congresso não vote a LDO até o final do ano. Caso não vote, o governo fecha, não pode gastar.

A geringonça entrou em pane em meados deste ano, quando Bolsonaro se viu ameaçado de impeachment e aumentou o risco de que filhos e empresários amigos fossem para a cadeia. Juntou-se ao centrão e montou uma coalizão bastante para evitar que lhe cortassem a cabeça, mas não para muito mais.

O que havia de governo do país, goste-se ou não do que havia, começou a se esfumaçar. Era um governo da Câmara, governo possível e muito limitado de um corpo legislativo no presidencialismo.

Era também um estratagema de contenção de danos maiores, para o que o Congresso teve apoio do Supremo. Mas era uma gambiarra que tolerou a presença de Bolsonaro, movida a jeitinhos ou malversação das capacidades dos Poderes.

A gambiarra continua. Como se sabe, os líderes políticos do Supremo e alguns do Congresso tentam burlar a Constituição a fim de permitir a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Por trás dos panos, dizem que a reeleição permitiria a “contenção” de Bolsonaro (isto é, a tolerância de seus crimes de responsabilidade menores e o controle dos maiores, sob ameaça de impeachment).

A isto chegamos. Bolsonaro é desgoverno e campanha permanente para desacreditar instituições e a sanidade (vide seu plano de, desde já, desmoralizar a honestidade da eleição e negar até declarações oficialmente gravadas, caso da gripezinha). A geringonça pifou e sabe-se lá o que vai ser o Congresso de 2021: pode ser muito pior. A tentativa alegada de remediar o desastre é uma mutreta constitucional.


Ruy Castro: Mortos pela Covid na conta de Bolsonaro

O livro de Mandetta revela como o governo ignorou medidas que poderiam ter poupado vidas

O dia em que Jair Bolsonaro for levado a responder por seus atos —não se trata de se, mas quando—, o processo relativo ao seu anticombate à Covid-19 terá fartos elementos no livro "Um Paciente Chamado Brasil", do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Nele, entre relatos comprováveis por documentos e testemunhas, fica claro que, em fevereiro, Bolsonaro já sabia o que era preciso fazer para amenizar a disseminação do vírus e não quis fazer —ou fez o contrário.

No livro, com a reprodução até dos diálogos, Mandetta detalha a quem, quando, como e onde foram dados os alertas. Não foi só Bolsonaro quem ignorou a prevenção e sabotou medidas diante dos primeiros contágios e mortes. Por cumplicidade ideológica, ambições políticas ou vaidade pessoal, os paisanos e generais que o cercam deram-lhe o apoio que queria. Eles também terão seus lugares no banco dos réus.

No dia 27 de março, em reunião oficial, Mandetta comunicou ao general Braga Netto, chefe da Casa Civil, que, se a população fosse instruída a adotar medidas de distanciamento social e padrões rígidos de higiene e proteção, o Brasil teria de 60 mil a 80 mil mortos. Se não, eles chegariam a 180 mil. Bolsonaro, informado disso, preferiu acreditar em seu ex-ministro da Saúde, o sabujo Osmar Terra, que "calculou" 3.500 mortes.

Para Bolsonaro, as vítimas se limitariam a idosos, que "morreriam de qualquer jeito". Os outros seriam salvos pela cloroquina. E a quarentena era impensável, porque "poria a economia em risco" e, logo, seu governo. Foi apoiado por Paulo Guedes, ministro da Economia, e que, segundo Mandetta, só enxerga a si próprio. Guedes igualmente esquentará o banquinho no tribunal.

A 16 de abril, quando Mandetta foi demitido, o Brasil tinha 2.000 mortos por Covid. Hoje, passa dos 150 mil. Os 180 mil que Mandetta anteviu estão a caminho. E Bolsonaro diz que não são de sua conta.

O chefe da Casa Civil, Braga Netto, fala ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em evento no Planalto no início de abril - Pedro Ladeira - 2.abr.2020/Folhapress

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Vera Magalhães: Quando a Ciência grita

O que o recuo na propaganda do kit covid e contágio de Trump têm em comum?

A semana que passou teve dois duros golpes para aqueles que, no Brasil, usaram a pandemia de covid-19 para virarem mercadores de ideologia barata e sabotarem a resposta adequada nas áreas sanitária, médica, social e econômica. Não, ainda não se trata de responsabilização judicial, mas acredito que chegaremos lá.

As duas notícias não têm uma ligação direta, mas partem da mesma premissa: quando a Ciência grita, o negacionismo perde. A primeira é local. O Ministério da Saúde, embalado na confiança vinda da efetivação do diligente (para Bolsonaro, não para a Saúde) general Eduardo Pazuello no posto e da alta popularidade do presidente, preparou mais um desserviço à saúde pública, que deveria ter acontecido neste sábado.

Era um tal Dia D de defesa dos cuidados precoces com a covid-19, que nada mais seria que uma propaganda, pelos canais oficiais, do tal kit covid, composto por medicamentos sem eficácia comprovada, com efeitos adversos, que o restante do mundo já baniu e que aqui, sem ação nenhuma da Justiça diante de centenas de ações por crime de responsabilidade das autoridades federais, seguem sendo administrados a partir de um protocolo oficial.

A comunidade científica saiu do terreno das notas de repúdio e se organizou. Graças ao trabalho rápido do Instituto Questão de Ciência, comandado pela microbiologista Natália Pasternak, saiu do papel o Dia C de Ciência, reunindo cientistas e jornalistas na divulgação de dados e evidências sobre a covid-19, da prevenção ao tratamento, passando por vacina.

Nada menos que sete ex-ministros da Saúde, incluindo o bolsonarista Nelson Teich, participaram de um ciclo de mesas virtuais neste sábado cujo objetivo era desmascarar o obscurantismo do Ministério da Saúde.

A resposta foi tão efetiva, imediata e eloquente que a pasta de Pazuello recuou. O IQC acabou prestando um favor não só ao País, mas inclusive ao governo.

Isso porque, e aqui entramos no outro fato a que me referi no início deste texto, Donald Trump foi internado na sexta-feira com covid-19, e o rastreamento avança para mostrar um séquito de aliados, parentes e auxiliares do republicano também contaminados.

A internação de Trump veio num período bem especial: quando ele tinha acabado de criticar seu adversário, Joe Biden, no tenebroso debate de terçafeira, por usar máscara toda hora, e logo depois de ele promover um evento de campanha em que ninguém usava o equipamento de segurança e muitos caíram doentes.

Uma vez hospitalizado, vejam só, o “amigão” de Bolsonaro não está se tratando com cloroquina nem hidroxicloroquina, que desistiu de vender para os americanos e empurrou para os brasileiros.

Conclusão: quando a Ciência grita, seja na forma de eventos como o Dia C, seja na comprovação, na pele, de que desfilar sem máscara por ideologia burra é pedir para baixar o hospital, o negacionismo cai por terra.

Esta lição poderosa precisa e pode ser projetada para além do enfrentamento da pandemia e chegar às discussões sobre a tal frente ampla para combater o retrocesso bolsonarista.

O caminho é tirar o comando da mão de partidos e políticos e passálo a cientistas, acadêmicos e representantes da sociedade civil. Com ações práticas como a do IQC, dados e evidências, e coordenação com iniciativas judiciais contra os que causam prejuízos para o País.

Vale para a reação à hecatombe ambiental da dupla Bolsonaro-Ricardo Salles, para o aparelhamento do Estado e da Polícia Federal e o desvio de recursos públicos para igrejas evangélicas para fortalecer o projeto reeleitoral do presidente. Menos nota de repúdio e vetos a nomes inimigos e mais ação. Este é o caminho.