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O que mostra a eleição de Bruno Covas em São Paulo? Paulo Fábio Dantas Neto explica

Em artigo na revista da FAP de dezembro, professor da UFBA analisa relação do resultado das urnas com governador João Doria

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O doutor em ciência política e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Paulo Fábio Dantas Neto diz que há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das eleições de 2020 na capital paulista. Em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro, ele cita que a primeira mostra que a reeleição do prefeito Bruno Covas foi uma vitória do governador João Doria e a segunda aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional.

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Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Na primeira hipótese, segundo ele, poderia se estimular uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Na segunda, acrescenta, o objetivo seria superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.

Na avaliação de Dantas Neto, o peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. “Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram”, afirma. “Em Fortaleza, a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu”, acrescenta.

Dessa bifurcação surge uma outra questão, de acordo com o autor do artigo, que foi vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994). “Saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda”, acrescenta.

Isso, segundo ele, pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. “Do nome, ainda estão longe”, afirma o professor da UFBA. “Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com ‘essência’ de centro-direita”, diz.

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Merval Pereira: Sem noção

O ditado latino “Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir” é a melhor explicação para o que acontece entre nós nos dias recentes. A começar pela festa de Neymar para 500 (150?) convidados no réveillon em Mangaratiba. Um estudo publicado no Journal of the American Association for the Advancement of Science no início deste mês, analisado no LinkedIn pelo economista e especialista em risco Paulo Dalla Nora Macedo, mostra que uma reunião internacional de 175 executivos da farmacêutica Biogen nos dias 26 e 27 de fevereiro em Boston foi responsável por nada menos que uma média de 245 mil casos de coronavírus confirmados nos Estados Unidos.

Este é um dos maiores estudos de como o coronavírus se espalha no decorrer do tempo, baseado no rastreamento dos casos e suas cepas genéticas únicas. O potencial de disseminação da doença aumenta no momento em que os índices de infecção e mortalidade estão em alta no Brasil. Teria condições de fazer essa festa na França? O insucesso subiu à cabeça de Neymar.

O conceito grego da húbris está ligado a essa falta de comedimento de figuras públicas brasileiras. A confiança excessiva leva, por exemplo, o presidente Bolsonaro a ter a língua solta, afirmando que não “dá bola" para pressões, mesmo que sejam pela vida dos brasileiros que, ao contrário de cerca de habitantes de 40 países, não têm a mínima ideia de quando poderão ser vacinados.

Como se estivesse numa negociação comercial, diz que o Brasil é “um mercado enorme” e, por isso, os laboratórios é que deveriam se antecipar ao pedido de registro na Anvisa. Mercado de vidas ? Quem deveria se antecipar não era o governo, como fizeram inúmeros deles ao redor do mundo, reservando as doses de vacinas necessárias à imunização de seus cidadãos?

Ao que tudo indica, os deuses já enlouqueceram Bolsonaro, que pode estar a caminho da destruição por pensamentos, palavras e obras. Para sorte dele, seu mais ostensivo adversário na eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo João Dória perdeu o senso depois de ter lidado muito bem com a vacina Coronavac, que está sendo produzida no Instituto Butantan com material da fábrica chinesa Sinovac.

Colocando-se como contraponto a um tresloucado Bolsonaro, que acha que ser macho é enfrentar a morte como se pudéssemos vencê-la sem a ajuda da vacina, o governador de São Paulo, apesar de abusar às vezes da politicagem, parecia ser a imposição do bom-senso no debate da vacina.

Até que, tendo vencido a eleição para a prefeitura de São Paulo com o candidato do PSDB Bruno Covas, resolveu que poderia tirar férias em Miami, ao mesmo tempo em que decretou a bandeira vermelha no estado que dirige. Mesmo que tenha voltado 24 horas depois, devido a seu vice ter sido infectado pela COVID-19, e tenha pedido desculpas públicas, ficou a imagem que o acompanhará até a eleição presidencial: a arrogância, a autoconfiança em excesso, de quem se considera acima dos demais.

A dificuldade que Dória claramente tem em entrar no nordeste, que poderia ter começado a ser superada com as doses de vacina que vários prefeitos e governadores da região querem, será aumentada com o apelido que Bolsonaro lhe pespegou: “calcinha apertada” ou “calça encravada”. São daqueles apelidos que políticos populistas como Bolsonaro sabem que pegam no povo, especialmente no lumpesinato, que o levou ao máximo de sua popularidade com o auxílio emergencial.

São Paulo, que é a principal base dos tucanos há anos, pode levar um candidato a presidente a ter uma diferença de quase 7 milhões de votos a favor, como aconteceu com o mineiro Aécio Neves em 2014. Mas pode também derrotá-lo se o domínio partidário de três décadas não se refletir em votos.

A campanha vencedora de Bruno Covas teve que esconder Dória porque ele não é bem visto na capital. Agora, talvez o próprio Covas, e Doria por tabela, sofram com outras medidas impopulares adotadas logo após a vitória, com a convicção de quem pode tudo: o aumento de seu salário em 47%, e o fim da passagem gratuita para idosos até 60 anos.

Outras seis capitais aumentaram o salário dos novos prefeitos, o que não justifica a falta de noção de Bruno Covas. No Rio, o prefeito Eduardo Paes receberia um aumento de 72% proposto pelo vereador Cesar Maia. A reação foi tão grande que a proposta foi retirada. Além do mais, a legislação municipal restringe o salário do prefeito a 81,2% do teto constitucional. Os deuses estão tendo muito trabalho no Brasil ultimamente. E os tribunais superiores ainda pedem prioridade para a vacinação.


Demétrio Magnoli: Duas lendas sobre 2022

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo deste ano

Nasceram, no berço do segundo turno das eleições municipais, duas lendas paralelas. A primeira assegura que o triunfo de Bruno Covas (PSDB) consolida a posição de João Doria como principal desafiante de Jair Bolsonaro na disputa pelo Planalto. A segunda, que o resultado de Guilherme Boulos (PSOL) o converte no eixo de reorganização das esquerdas para as eleições presidenciais. Nenhuma delas resiste ao crivo da análise realista.

A lenda número um parte das falsas premissas de que Covas obteve uma vitória avassaladora e, ainda, de que Doria cumpriu papel relevante na batalha da prefeitura paulistana. De fato, o prefeito alcançou apenas 32% dos votos no turno inicial, um desempenho relativamente modesto, e teve que carregar o fardo do patrocínio de um governador com alta rejeição na capital paulista. Já no turno final, o triunfo por margem folgada deveu-se à geometria da disputa: desde 2015, quando escancarou-se o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, a esquerda perdeu as condições de vencer eleições na cidade ou no estado de São Paulo.

Doria desponta como rival nacional do presidente graças, exclusivamente, à atual carência de alternativas fora do campo da esquerda. Essa carência, por sua vez, deriva tanto da implosão ideológica do PSDB, concluída com a própria ascensão de Doria, quanto do retumbante fracasso de Sergio Moro na sua tentativa de conquistar para o Partido da Lava Jato a maior parte do eleitorado bolsonarista.

As fraquezas do governador paulista são evidentes. Bolsonaro venceu uma eleição configurada como plebiscito sobre Lula. Doria chegou à prefeitura e ao governo estadual surfando alegremente a mesma onda do antipetismo. O ano de 2022 será, ao que tudo indica, também um pleito plebiscitário —mas sobre Bolsonaro. Não é fácil ver como Doria encarnaria um contraponto crível ao seu parceiro do passado recente. Um bolsonarismo de butique, suave e racional, parece um frágil contraponto ao bolsonarismo legítimo, forjado nas brasas do extremismo e do populismo.

A lenda número dois expressa, ao menos por enquanto, apenas o desejo de Boulos. De fato, sustenta-se numa avaliação exagerada do desempenho eleitoral do candidato do PSOL.

Boulos fez uma campanha inteligente, destinada a arredondar os ângulos agudos de sua persona política. Mas, no fim das contas, foi conduzido pela correnteza de vazante que acompanha o declínio petista. O Boulos dos 20% do primeiro turno herdou o vasto eleitorado de esquerda tradicionalmente atraído pelo PT. Já o dos 40% do segundo turno acrescentou o eleitorado que rejeita Covas, Doria ou ambos. Desse ponto de vista, sua votação surpreende tanto quanto o nascer cotidiano do sol.

O PT chegou ao turno final de todas as eleições paulistanas desde 1988. O solitário ponto fora da curva foi 2016. Boulos foi adotado por um eleitorado petista decepcionado com a candidatura do obscuro apparatchik Jilmar Tatto como o legítimo nome do partido. Isso faz sentido, mas não tem as implicações sonhadas por ele.

A versão de Boulos da ideia de renovação da esquerda é o retorno a um lulismo primordial, anterior ao pecado —isto é, ao mensalão e à Odebrecht. Seu projeto nunca foi de ruptura: ele almeja receber das mãos de Lula as chaves do castelo da esquerda. Mas, para isso, seria preciso brilhar fora do PT, num palco limpo, puro e casto. No início, apostou na criação de um partido-movimento, como foi o Podemos espanhol. Depois, conformou-se com o atalho oferecido pelo PSOL.

A solução não remove os obstáculos centrais. Numa ponta, Boulos depende de um improvável gesto de renúncia de Lula para tomar posse da máquina eleitoral petista. Na outra, sua promessa de unidade das esquerdas esbarra na sua opção pela reiteração infinita do discurso político e econômico lulista.

As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo de 2020.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


O Estado de S. Paulo: 'São Paulo tem neste momento dois importantes líderes nacionais: Doria e Covas', diz Bruno Araújo

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, de 48 anos, disse em entrevista ao Estadão que as urnas pediram moderação em 2020, o que deve levar, em sua opinião, os líderes políticos a se afastarem de posições consideradas extremas. "O eleitor confirmou que quer distância dos extremos. É contra esses extremos na área comportamental e que faz agressões às instituições que o PSDB tem que falar de forma mais firme", afirmou.

Segundo o dirigente, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), é o único nome da sigla colocado para concorrer à Presidência da República em 2022. Mas "respeitando o ambiente da pulverização de alternativas no nosso campo", o centro. Segundo Araújo, porém, a eleição na capital paulista faz Bruno Covas emergir como uma liderança nacional. "A chegada de Bruno Covas com a benção desses mais de 3 milhões de votos entrega um novo líder ao Brasil. São Paulo tem neste momento dois importantes líderes nacionais." 

Sobre a eleição para a presidência da Câmara, no início do ano que vem, Araújo diz que o resultado não terá, necessariamente, um efeito sobre a eleição de 2022, mas a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) deve aglutinar, de acordo com o dirigente tucano, "PSDB, Democratas e partidos do campo da esquerda".

Em 2018, o discurso da negação da política ajudou a eleger Jair Bolsonaro e outros nomes. A população voltou a acreditar na política em 2020?

Tudo isso faz parte dos ventos que sopram em direções diferentes a cada processo eleitoral. É possível que 2020 tenha iniciado um novo momento, no qual o eleitor voltou a optar por nomes que se dedicaram à vida pública para voltar a ocupar o espaço do exercício do poder municipal. O exemplo do segundo turno na maior cidade da América Latina é caricato disso. As escolha por dois jovens que fazem política, cada um seu campo, desde sempre. E há um nítido novo momento do processo eleitoral em 2020. O eleitor fez opções muito claras por posições moderadas.

O PSDB vai intensificar a oposição a Bolsonaro no Congresso?

Esse é um recado das urnas. O eleitor confirmou que quer distância dos extremos. É contra esses extremos na área comportamental e que faz agressões às instituições que o PSDB tem que falar de forma mais firme.  

A eleição da presidência da Câmara dos Deputados pode ser o primeiro passo na formação de um bloco de oposição ao presidente Jair Bolsonaro em 2022? Já existe algum nome na mesa para a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ)?

O coordenador do processo de sucessão na Câmara é o Rodrigo Maia. Não há muita correlação entre as alianças que se dão para a eleição do presidente da Câmara com a eleição presidencial, mas não estou dizendo que isso não tenha relevância. Nós podemos ver votando juntos o PSDB, Democratas e partidos do campo da esquerda. 

O governador João Doria (PSDB), o ex-ministro Sergio Moro, o apresentador Luciano Huck e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), têm mantido conversas sobre uma possível união do centro para 2022. Como o PSDB se insere nessa construção? Doria desponta como o nome que pode encabeçar esse movimento?

O PSDB se insere como um dos mais importantes protagonistas e como o partido que polarizou a política nacional desde 1994, com exceção do tropeço de 2018. Nas duas últimas eleições municipais, o PSDB foi o partido mais votado do Brasil. O PSDB oferece nomes de qualidade nessa discussão, entre eles quem se configura como o mais intenso e presente é o governador de São Paulo, mas respeitando o ambiente da pulverização de alternativas no nosso campo. O PSDB não participa com seu ativo político e eleitoral levando prato feito. O DEM teve um belíssimo desempenho  e o MDB confirmou sua vocação de pulverização por todo território nacional.

A eleição de Bruno Covas é uma vitória do projeto presidencial do governador João Doria?

Por vias indiretas, o governador João Doria tem o prefeito da maior cidade da América Latina como seu aliado. Isso é um ganho. Mas não vamos misturar. O vitorioso dessa eleição foi o Bruno Covas. Ele é o grande artífice da vitória do último domingo. Covas sai da condição de um prefeito substituto constitucional para a de alguém abençoado pelo voto. Essa vitória entrega a ele autoridade e liderança, não só como prefeito mas também como um dos mais importantes protagonistas da política nacional e do PSDB.

O PSDB tem agora então em São Paulo dois líderes de fato? Até a eleição municipal, Doria era o líder incontestável do partido no estado.

Sim. A chegada de Bruno Covas com a benção desses mais de 3 milhões de votos entrega um novo líder ao Brasil. São Paulo tem neste momento dois importantes líderes nacionais.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, é também um nome do PSDB para disputar o Palácio do Planalto?  

Todos os nossos governadores, senadores e quadros nacionais são sempre alternativas postas. Mas, de forma objetiva, o único nome que nós temos posto até aqui e que tem exercitado isso de forma firme e competente é o governador João Doria.

O caminho do Doria para 2022 será com o DEM em São Paulo e no Brasil?

Essa é uma relação de muitos anos que se dá por afinidade política e sem imposição. Enquanto isso estiver mantido a aposta é que sigamos sendo parceiros em eleições nacionais, estaduais e municipais. Essa relação é muito franca e sem subordinação. 

O prefeito Bruno Covas disse que o PT jogou o PSDB à direita e que chegou a hora do partido reencontrar as suas teses. O sr. concorda com ele?

Concordo plenamente. O PSDB que eu imagino é o do Bruno Covas: moderado, sensato e que respeita o adversário. Foi assim que o PSDB foi fundado. Essas são as nossas bases. A eleição de Bruno aponta um caminho para o nosso projeto de 2022.


Francisco Góes: É o ‘emprego, emprego, emprego’, diz Covas

Incerteza é sobre a capacidade dos municípios de sustentar suas receitas

No discurso da vitória, no domingo à noite, o prefeito reeleito de São Paulo, Bruno Covas, deu ênfase à prioridade que dará, no segundo mandato, ao combate ao desemprego: “Nós temos que fazer da nossa gestão mantra na busca de emprego, emprego, emprego e busca de oportunidades”, afirmou. O foco, avisou, tem que estar sobretudo nos jovens da periferia, que são os que mais sofrem com a crise. Ontem, no dia seguinte à eleição, o tucano reconheceu as limitações que todo prefeito tem no manejo de políticas macroeconômicas, mas prometeu mais ações de inclusão e investimentos na economia criativa para estimular startups, cultura, esporte lazer e turismo.

A taxa de desemprego precisa mesmo ser uma das preocupações dos prefeitos que assumem os cargos a partir de 1º de janeiro, afinal as pessoas moram nas cidades, e costumam atribuir aos gestores municipais parte dos problemas que vivem no dia a dia. No terceiro trimestre, a taxa de desemprego medida pelo IBGE ficou em 14,6%, a mais alta da série histórica desde 2012. Até setembro, o país tinha 14,1 milhões de desempregados. Só no Estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, a taxa de desemprego ficou em 15,1% no terceiro trimestre.

Como disse Covas ontem, os prefeitos não têm ferramentas para mudar taxa de câmbio, controlar a inflação ou emitir moeda. Assim, dependem, em boa medida, da retomada da economia para garantir mais investimentos e geração de emprego e renda. O problema é que na situação atual, com a pandemia dando sinais de piora, o cenário é de incertezas. É voo quase cego considerando o efeito que eventual novo fechamento do comércio, por exemplo, poderia ter sobre as receitas municipais. E também porque as indicações são de que não haverá novo apoio do governo federal a Estados e municípios. No Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, a ajuda a Estados e municípios chegou a R$ 60,1 bilhões, além do diferimento de dívidas com a União de R$ 65 bilhões. Tudo leva a crer que a ajuda não vai se repetir em 2021.

“O clima é de total incerteza, o que vai acontecer ninguém sabe, é loteria”, diz François Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais. Se houver lockdown e restrições nas cidades, os municípios terão queda na arrecadação própria, sobretudo no recolhimento de ISS, que, em 2019, representou 48% da receita tributária das capitais. Haverá ainda redução nos recursos recebidos via transferências feitas por Estados, no caso do ICMS, e pela União, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM), formado por receitas do IPI e do Imposto de Renda. Do total arrecadado, 22,5% ficam com os municípios. Na distribuição, aplica-se coeficiente que diz quanto cada um recebe.

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que de janeiro a novembro houve queda de 7,34% na arrecadação do FPM sobre igual período de 2019. Nota técnica da entidade reconhece que a proximidade do fim do ano deixa os gestores municipais preocupados com o fechamento das contas: “Nesse ano atípico com pandemia da covid-19, essa preocupação é mais pertinente.”

A CNM conduz pesquisa sobre as condições financeiras das prefeituras para pagar o 13º salário, e a tendência da enquete é que o resultado não seja ruim, diz Eduardo Stranz, consultor da CNM. A instituição também vai fazer trabalho para saber quanto os prefeitos vão deixar de caixa em 31 de dezembro. Stranz estima que a queda na arrecadação do FPM, no acumulado do ano, deva ser de 5%. A recuperação deve ser puxada pelas vendas de Natal.

Ele diz que o fim do auxílio federal a Estados e municípios impõe, a partir de janeiro, desafio de emprego e renda aos prefeitos. “O município terá que ser um dos indutores da retomada. Esse será o desafio, junto com um quadro de queda da arrecadação, de pandemia e de fim de auxílio federal”, diz o consultor da CNM.

Stranz afirma que o poder municipal é ator importante na economia uma vez que costuma ser também o maior comprador. Na crise, o gestor municipal pode direcionar compras para a própria comunidade encomendando uniformes escolares, por exemplo, a fornecedores locais. Pode ainda fazer uma boa organização do território, com licitações para uso de locais por micro e pequenos empreendedores. O dono da carrocinha de cachorro-quente se cadastra na prefeitura, ganha alvará e pode se instalar na frente do estádio ou do fórum. O prefeito tem a opção de criar um fundo de aval, mesmo que pequeno, para que esse empreendedor compre os equipamentos para o negócio. São soluções simples que o poder público pode tomar para fomentar negócios no município. O economista Mauro Osório, especialista em temas regionais, acrescenta que uma forma de melhorar a gestão municipal é integrar o trabalho das secretarias. “É integrar as políticas sociais, de saúde e educação, ter um olhar interdisciplinar”, diz.

Parte das soluções para os municípios depende, porém, de medidas macroeconômicas que podem ser implementadas a partir das reformas tributária e administrativa. Jonathas Goulart, economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), entende que é preciso inserir os municípios e o ISS na reforma tributária e também aproveitar a oportunidade para rediscutir a distribuição do FPM “Hoje há má distribuição dos recursos do fundo”, diz. Ele prevê que em 2021 os pequenos municípios, cujos orçamentos dependem mais das transferências da União e de Estados, podem sofrer impacto menor com a crise. Mas os municípios maiores, que dependem mais da arrecadação de ISS, tendem a ficar em situação mais complicada.

Matheus Rosa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a preocupação para 2021 é a dependência dos municípios do ISS. É imposto ligado à prestação de serviços, segmento cuja recuperação é mais lenta do que a indústria e o varejo. Os serviços também são mais suscetíveis a restrições provocadas pela pandemia. “A grande incerteza é saber se municípios vão sustentar a arrecadação em 2021 e se isso será em nova onda de covid. “Um novo apoio federal [a Estados e municípios] não parece provável dada a preocupação do governo com teto de gastos”, diz Rosa. Ele fez estudo que avaliou a arrecadação de 26 capitais na pandemia. As seis com maior PIB (Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Manaus) apresentaram até agosto relativa estabilidade da receita tributária. Nenhuma teve perda de receita acima de 1% e algumas tiveram alta. É o que todos os prefeitos esperam para 2021, como Covas e seu mantra por geração de emprego e renda.


Dorrit Harazim: O amanhã de cada um

Henry Miller, diante do precipício de se tornar octogenário, considerou meio caminho andado quem consegue escapar do amargor

A entrevista não é recente. Conduzida pela jornalista Natacha Cortêz e publicada na revista “Marie Claire” de setembro passado, começa com uma pergunta sobre os reiterados comentários em torno da idade da entrevistada — não seria hora de se aposentar, de ceder espaço? Pergunta pertinente por se tratar de Luiza Erundina, que, aos 85 anos, disputa o cargo de vice-prefeita da pantagruélica São Paulo. A resposta veio igualmente pertinente, ao estilo da paraibana: “Que se danem! Estou vivendo meu tempo, minha saúde e inteligência, minha experiência. Estou fazendo mal para alguém? Não estou… Não preciso de cuidadora, não sou dependente…”. Lamenta apenas as limitações impostas pela Covid-19 a sua faixa etária.

Quando o 41º presidente dos Estados Unidos, George H.W. Bush, fez um salto de skydive de uma altura de 1.920 metros em comemoração a seus 90 anos, o mundo ficou encantado. Não fora a primeira vez: já celebrara o 75º e o 80º aniversários saltando de paraquedas, sempre aplaudido pela estamina e destemor. Fosse esse o hobby da vida de Luiza Erundina, ela seria considerada uma vovó amalucada, mais adequada para desenhos animados.

Pois a boa notícia de 2020, se é que há alguma, está no fato de uma mulher do sertão nordestino não se contentar, aos 85 anos, em já ter sido burgomestre de São Paulo nem de estar em seu sexto mandato de deputada federal. Não quer aposentar sua inteligência — dita por ela, a frase tem um frescor único, além de contagiar outras mulheres pela persistência útil que independe de idade. Para mulheres marcadas pela vida, que nunca puderam ser jovens e amadureceram aos solavancos neste Brasil duro, o aceno de Luiza Erundina é empolgante — bem mais duradouro que o resultado de uma eleição. “Meu projeto de vida não termina no meu tempo”, garantiu na mesma entrevista.

A premiada escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin, que morreu em 2018 quase nonagenária, tinha 81 anos quando se aventurou pela primeira vez no universo digital. Criou um blog e nele foi feliz para sempre. O projeto de vida que a manteve criativa também continua a dar asas. Argumentava que livros nunca serão apenas commodities, apesar da centrífuga do capitalismo parecer inescapável — o direito divino dos reis também pareceu ser eterno. Ao final da vida, Le Guin deu-se por satisfeita ao constatar que resistência e mudança continuarão brotando de palavras: “O nome de nossa esplêndida recompensa por escrevermos não é o lucro. É outra coisa — chama-se liberdade”.

A cada um de saber o quanto vale viver, e para quê. Henry Miller, diante do precipício de se tornar octogenário, considerou meio caminho andado quem consegue escapar do cinismo e do amargor, quem aprende a esquecer, talvez perdoar. Romancista maldito pelos clássicos que escreveu, ele sustentava que só assim se alcança a felicidade maior — a de poder amar infinitas vezes na vida. Bertrand Russell nos deixou sua visão mais humanista no ensaio “Como ficar velho”, escrito pouco depois de completar 81 anos. O filósofo e historiador britânico acreditava na dissolução do ego em benefício de algo maior. “Amplie gradualmente seus interesses, torne-os mais impessoais, até que as paredes do seu ego recuem, e sua vida possa se fundir na vida universal.” Contou que gostaria de morrer trabalhando, certo de que “outros vão continuar o que não posso mais fazer e contente com o pensamento de que o possível foi feito”.

Sabia o que queria e, sobretudo, o que não queria. No ano de 1962, já detentor de um Nobel de Literatura, ele recebeu várias cartas de um remetente inesperado: Sir Oswald Mosley, fundador da União Britânica de Fascistas nas vésperas da Segunda Guerra. As insistentes missivas propunham ao mundialmente respeitado intelectual um debate público em torno dos méritos do fascismo. Bertrand Russell deixou a pilha se acumular até pouco antes de completar 90 anos e só então respondeu. Em três memoráveis parágrafos, ensinou como lidar com fascistas usando luvas de pelica. A seguir dois trechos em tradução livre:

“É sempre difícil decidir como responder a pessoas cujo etos é tão estranho e, na verdade, tão repelente ao nosso. Não se trata de discordar de seus pontos de vista gerais, mas do fato de que cada grama de minha energia tem sido voltada a uma oposição ativa contra a intolerância cruel, a violência compulsiva e a perseguição sádica que caracteriza a filosofia e a prática fascistas.

Me sinto obrigado a dizer que os universos emocionais que habitamos são tão diversos, e tão profundamente opostos, que nada de frutífero ou sincero poderia emergir deste encontro entre nós.”

O fascismo parecia adormecido quando a carta foi postada, 68 anos atrás. Hoje, o movimento anda mais assanhado. Convém dar uma relida em Bertrand Russell vez por outra.


Carlos Melo: Balanço positivo, até aqui

Resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo

A apreensão sobre as eleições de 2020 era legítima. Desde 2014, o clima foi de degradação política, níveis crescentes de conflito, ataques pessoais, e muitas, muitas fake news. A expectativa quanto à extrema-direita, disposta a desqualificar e a maldizer a democracia liberal, também estava presente – a começar pela postura desde sempre beligerante do presidente da República.

Contudo, as eleições terminam com balanço positivo, pelo menos até aqui – infelizmente, a prudência ainda exige o reparo de precaução. Os conflitos ocorreram sob limites impostos pela civilização. À exceção do caso do Rio de Janeiro, onde Marcelo Crivella, no desespero da última hora, resolveu reviver 2018, as divergências foram discutidas em níveis aceitáveis; rusgas políticas e até familiares – caso do Recife – emergiram; denúncias foram feitas baseadas em pelo menos algum indício. De tudo um pouco, mas nada que o tempo e a aceitação dos resultados não superem.

A extrema-direita teve crescimento apenas relativo nas Câmaras, contudo não logrou sucesso nos Executivos. Os candidatos intensamente apoiados pelo presidente Bolsonaro em seu horário eleitoral fake foram solenemente ignorados pelos eleitores. Políticos experientes foram resgatados e a ideia de que a solução dos problemas deve se dar pela via da negociação foi fortalecida.

Também o fim das coligações proporcionais foi importante. O número de Câmaras Municipais com até cinco partidos quase triplicou, já a quantidade de parlamentos municipais com mais de cinco legendas foi reduzida a menos da metade. No geral, os prefeitos terão melhores condições de negociação com as forças políticas, a representação ficará mais nítida; em tese, a sociedade observará sistema mais coeso. Agora, cabe não permitir que, no Congresso Nacional, interesses contrariados anulem avanços nesse campo.

Na maior cidade do País, São Paulo, a eleição transcorreu calmamente, em que pese um ou outro excesso das torcidas. Como informou a jornalista Vera Magalhães, Bruno Covas sabe que Guilherme Boulos não é radical e extremista; Guilherme Boulos reconhece que Covas não é fascista ou bolsonarista.

Na véspera, pesquisa Ibope/Estadão/TV Globo aponta estagnação: o prefeito consolidado nos 48% do total de votos, e o psolista com significativos 36%; indecisos, brancos e nulos ainda podem mudar o quadro. Mesmo assim, o resultado estaria definido, não fosse política e não fosse São Paulo. No primeiro turno, Boulos embolava em segundo lugar; na boca de urna, disparou.

As urnas são soberanas e São Paulo é expressão da diversidade e autonomia da política. Qualquer que seja o resultado, ele será democraticamente válido e reconhecido. Deveria ser óbvio, mas isso tudo é muito positivo.

*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper


Vinicius Torres Freire: Boulos e como jovens e velhos decidem as eleições de São Paulo

Eleitor de mais de 60 é cada vez mais relevante e vota à direita; jovens são inconstantes

Em São Paulo, a disputa principal foi sempre entre esquerda e direita desde que a cidade voltou a eleger seu prefeito, em 1988. O voto dos mais velhos é sempre marcadamente mais direitista. Mas em poucas vezes a maioria dos mais jovens votou na esquerda; em poucas vezes o voto dos idosos teve um peso tão decisivo quanto deve ter no segundo turno deste ano, entre Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL).

É entre os eleitores de 60 anos ou mais que Covas abre sua maior vantagem sobre Boulos, consideradas as categorias maiores e mais tradicionais em que as pesquisas dividem o eleitorado (sexo, idade, renda, instrução) e com dados comparáveis com os levantamentos mais antigos.

Na pesquisa Datafolha mais recente, de 24 e 25 de novembro, Boulos vence Covas entre os eleitores de 16 até 44 anos; entre o eleitorado de 16 até 59 anos, empatam. Entre aqueles de 60 anos ou mais, o tucano vence de longe, por 61% a 28% (ou 68% a 32%, nos votos válidos).

Além da diferença percentual grande, a diferença absoluta é importante. A população paulistana envelhece. No Censo de 1991, os paulistanos com 60 anos ou mais eram 11,6% do total da população com mais de 16 anos (agora apta a votar). Em 2010, eram 15,3%. Em 2019, eram 21,7%.

Há, claro, outras maneiras de entender as vantagens que Covas tinha sobre Boulos no início da semana. O tucano vence entre os que fizeram até o ensino fundamental (57% a 31% nos votos totais) e entre os mais pobres. Na conta total dos votos, porém, essas diferenças são inferiores àquela que Covas obtém entre os “idosos”.

A esquerda ganhou a eleição paulistana com folga ou endureceu o jogo quando ao menos dividiu com a direita os votos de mais pobres e menos escolarizados, é fácil de entender. Boulos disputa palmo a palmo o povo de renda mais baixa. Mas fica longe entre quem passou poucos anos na escola. Os mais jovens de qualquer classe não vão resolver o problema eleitoral do psolista, pois.

De 1988 até 2000, petistas enfrentaram os malufistas. De 2004 a 2016, foi o tempo de petistas vs. tucanos e agregados. Agora, é PSDB contra PSOL.

Houve tempo em que os malufistas venceram em todas as categorias relevantes, entre os mais jovens e os mais pobres inclusive, como quando Celso Pitta (PPB) bateu Luiza Erundina (PT), em 1996, ou na pesquisa de uma hipotética disputa final entre João Doria (PSDB) e Fernando Haddad (PT), em 2016, quando Doria levou no primeiro turno.

Os mais jovens estavam divididos quase igualmente entre o vitorioso Paulo Maluf (PDS) e Eduardo Suplicy (PT) em 1992, entre o vencedor, José Serra (PSDB), e Marta Suplicy (PT), em 2004, e entre o eleito Gilberto Kassab (DEM) e Marta, em 2008.

Os jovens votaram na esquerda mesmo apenas quando Marta ganhou em 2000 e Haddad em 2012. Na verdade, nessas eleições os petistas ganharam em quase todas as categorias, exceto entre os “idosos” (e, em Haddad vs. Serra, exceto entre os mais ricos).

Na eleição em que Erundina bateu Maluf, em 1988, as pesquisas de véspera davam quase empate entre os mais jovens. Mas não se sabe bem o que se passou. Erundina, agora vice de Boulos, virou a eleição nos últimos dias e não havia segundo turno.

Em suma, o peso crescente do “idosos” e sua preferência regular e marcada de votar à direita fazem desse eleitorado força decisiva especial. Note-se ainda que não conseguir falar com muitos dos eleitores que passaram menos anos na escola e sempre confundi-los com os mais pobres é outro problema para a esquerda.


Eliane Brum: Precisamos falar sobre o PSDB

Como o partido abandonou a social-democracia, migrou para a direita e deixou amplas digitais na destruição do processo democrático

Um dos principais riscos da polarização é justamente embaralhar o que é continuidade e o que é ruptura. Neste momento, em que o PSDB, hoje um partido de direita, tenta se vender como o “centro” que um dia foi, é fundamental recuperar a perspectiva do processo histórico. A falta de responsabilização do PSDB como um dos principais agentes de destruição da democracia é um dos enigmas da atual paisagem política brasileira. Ao embarcar no discurso do antipetismo, o PSDB colaborou fortemente para colocar na conta exclusiva do PT todo o desencanto com a política e os políticos, ao mesmo tempo em que se aproximou de tudo o que Jair Bolsonaro representa e defende. O partido deixou amplamente suas digitais na corrosão da democracia cujas consequências são Jair Bolsonaro. O PSDB não é apenas mais um que tem seu DNA na mais recente escalada autoritária do Brasil. O PSDB está em sua gênese.

Ao longo de suas primeiras fases, o Partido da Social Democracia Brasileira construiu uma fama de ficar em cima do muro, manter-se nem lá nem cá, nem à esquerda, nem à direita. Durante muitos anos foi o mais próximo de um partido de centro, ainda que mais para a esquerda do que para a direita, já que alguns de seus fundadores e principais expoentes, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, tinham sido exilados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Com o tempo, ser “tucano”, como eram chamados os pessedebistas, por conta do pássaro que simboliza o partido, passou a significar não tomar posição clara. A expressão valia para a política, mas ampliou-se e passou a valer, como gíria, também para qualquer pessoa que ficava no sim, só que não.

Os tucanos, majoritariamente homens brancos, eram vistos como gente culta, com diploma universitário e pós-graduação, de gestos educados e boas maneiras, mais afinados com os salões europeus e sua arrogância blasé do que com o exibicionismo explícito e movido por fortunas familiares dos Estados Unidos. Também se vendiam como modernos, urbanos e de mente arejada, o que os mantinha longe do coronelismo truculento da política brasileira, marcas de clãs como Sarney, Magalhães e Barbalho, que preferiam liderar partidos assumidamente de direita ou fincar seus bigodes no amplo guarda-chuva do PMDB, hoje MDB.

O quanto de verdade continha essa imagem de senso comum é algo a se discutir, mas o mais importante é perceber que hoje essa imagem não tem nenhuma correspondência na realidade. Dela ainda resiste, como a rainha da Inglaterra num rodeio de Barretos, a figura de Fernando Henrique Cardoso, às vezes chamado a dar um lustro na imagem externa do partido, mas que já pouca influência tem na vida cotidiana do PSDB.

O próprio Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente do Brasil (1995 a 2002), ainda lida com a persistente suspeita de que, em 1997, o partido comprou os votos para aprovar no Congresso a emenda constitucional que permitiria —como permitiu— a sua reeleição. Os indícios de que houve compra de votos eram —e seguem sendo— fortíssimos, mas diferentes esferas do judiciário e do legislativo impediram o prosseguimento das investigações e engavetaram as denúncias. Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República, passou para a história como “engavetador-geral da República”. A mancha sobre a figura de FHC permanece até hoje e o assunto, como aqueles fantasmas com pendências a resolver no mundo dos vivos, volta de tempos em tempos, como agora. Os fatos são como os corpos sepultados em covas clandestinas: teimam em emergir por mais camadas de terra e silêncio que se empilhe sobre eles.

Fernando Henrique Cardoso fez uma transmissão bonita da faixa presidencial a Lula, em 2003. Ele estava visivelmente emocionado ao passar o bastão para o primeiro presidente de classe operária eleito na história do Brasil, como um seguimento natural e desejável ao seu próprio Governo. Lula foi um tanto ingrato neste sentido, incapaz de reconhecer o que havia de positivo no Governo do antecessor. E isso mesmo tendo continuado a política econômica de FHC tal e qual, o que causou estupor na ala mais à esquerda do partido.

No Governo durante mais de 13 anos, o PT se tornou mais parecido com um partido de centro. Em alguns campos, porém, como na política de imposição de grandes hidrelétricas na Amazônia e na aproximação crescente com o agronegócio, que chegou instalar a ruralista Kátia Abreu no Ministério da Agricultura no segundo mandato de Dilma Rousseff e um ex-diretor de manicômio ligado a torturas de pacientes na coordenação da saúde mental, foi francamente conservador. Parte da esquerda do PT deixaria o partido nos anos que se seguiram à primeira posse de Lula para fundar o PSOL, em 2004 —ou para fundar seu próprio partido, como fez Marina Silva ao deixar o Governo e depois o PT, durante o segundo mandato de Lula, por não compactuar com a política ambiental e para a Amazônia, cada vez mais influenciada pelo desenvolvimentismo predatório de Dilma Rousseff.

Não estou aqui a resgatar os fatos para fazer textão, mas porque é importante revisitar o processo e onde cada personagem nele se situa para compreender o que hoje está em jogo. Neste momento, o PSDB de Bruno Covas, assustado com a possibilidade de perder a Prefeitura de São Paulo, essencial para os planos de João Doria para disputar a eleição presidencial de 2022, tenta carimbar Guilherme Boulos, do PSOL como “radical”, o mesmo truque que era usado contra Lula quando o então sindicalista despontou na política partidária nos anos 1980. Naquele momento, o Brasil iniciava a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), período em que 8.000 indígenas e centenas de opositores foram mortos por agentes de Estado que nunca foram responsabilizados e período também em que os atuais generais no entorno de Bolsonaro fizeram sua formação.

Resgato aqui um trecho do meu último livro —Brasil construtor de ruínas, um olhar sobre o paísde Lula a Bolsonaro (Arquipélago), para que não me acusem de plagiar a mim mesma. O nome do capítulo é sugestivo: “O tucano arrasta as penas na sarjeta”. Busco mostrar o papel que José Serra pode ter desempenhado nos acontecimentos que começaram a desenhar o abismo do Brasil. Um dos fundadores do PSDB, Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, foi também prefeito e governador de São Paulo e ainda ministro de Relações Exteriores de Michel Temer. Hoje é mais um senador da República às voltas com denúncias de corrupção movidas pela Operação Lava Jato.

1) O PSDB, José Serra e o aborto como moeda eleitoral: o momento em que o vale-tudo faz sua entrada triunfal nas campanhas políticas

Há uma data marcando o momento em que um limite que jamais poderia ter sido ultrapassado foi rompido na política brasileira. O ato foi precursor das quebras que viriam depois. Aconteceu na campanha de 2010. Na ocasião, os caminhos de Eduardo Cunha se cruzaram com os de Dilma Rousseff e de seu adversário José Serra. O PSDB começava o declínio que o levaria a alcançar os dias atuais com o rosto de João Doria.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura civil-militar, a maioria dos candidatos costumava evitar abordar o tema do aborto. Nem enfrentar a questão, para evitar perder eleitores, nem usá-la como moeda eleitoral para ganhar apoio entre os mais conservadores. Se não havia coragem para enfrentar o tema a partir de um debate responsável, também existia pudor para não baixar o nível, fazendo proselitismo com uma das causas de morte de mulheres jovens no Brasil, a maioria delas negras e pobres. Fernando Collor de Mello ensaiou romper essa fronteira, ao usar a filha de Lula com Miriam Cordeiro para atacar seu principal adversário, em 1989. Mas uma espécie de acordo tácito foi mantido nas eleições que se seguiram.

Em 2010, ao constatar o potencial eleitoral dos evangélicos, em especial dos neopentecostais, que seguem crescendo e podem superar o número de fiéis católicos nas próximas décadas, políticos e marqueteiros perceberam que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores com escrúpulos de se tornarem crentes de última hora. Ninguém fez isso com maior afinco do que José Serra, na campanha eleitoral em que disputou a presidência com Dilma Rousseff.

No final do primeiro turno, a Internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos, e também parte dos bispos e dos padres católicos exortou os fiéis a desistirem de votar nela. Circularam suspeitas de que o ataque teria partido da campanha de Serra, mas a autoria não chegou a ser provada. O que se pode afirmar é que Serra se empenhou em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante.

Dilma Rousseff, por sua vez, correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nesta carta, Dilma comprometeu-se, caso vencesse a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava suas trajetórias. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos extremistas do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

A campanha de 2010 marcou o momento mais baixo desde a redemocratização do país. Isso significa que foi o momento mais baixo em 21 anos de eleições presidenciais. E inaugurou o primeiro de uma série de momentos cada vez mais baixos que se seguiriam a ele, culminando com o discurso de ataque aos negros e aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais e transexuais de Jair Bolsonaro em 2018.

O que se passou em 2010 escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas para trabalhar o respeito às diferenças e prevenir a violência contra homossexuais.

O kit Escola Sem Homofobia foi batizado pejorativamente de “kit gay” por pastores e políticos homofóbicos —ou apenas oportunistas— e lembrado em todas as campanhas eleitorais que se seguiram, inclusive a que deu a vitória ao declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro, em 2018. Também vale a pena lembrar da retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

A campanha de 2010 mostrou que rebaixar o tema do aborto à moeda eleitoral atingia dois propósitos: 1) fazer com que o adversário, liberal nos costumes, o que caracteriza a esquerda, de modo geral, e a direita genuinamente adepta do liberalismo, perdesse uma grande quantidade de votos entre as pessoas religiosas, em especial evangélicos neopentecostais e católicos carismáticos; 2) pressionar candidatos que, caso eleitos, poderiam levar adiante o debate do aborto como o problema de saúde pública que efetivamente é, assim como outras pautas relativas à sexualidade e à diversidade, de forma a se comprometerem a deixar tudo como está ou mesmo a retroceder.

A campanha de 2010 provou, principalmente, que o aborto e outros dos chamados “temas morais” são um eficaz instrumento de barganha política, quando não de chantagem. Desde então, parlamentares se agarraram a essa pauta, deram declarações públicas e lançaram projetos de lei marcados por um retrocesso que não parecia mais possível. Muitos desses oportunistas fizeram nome e ganharam importância na guerra moral assinalada pela imoralidade das práticas e pela desonestidade dos argumentos dos religiosos de ocasião.

O rebaixamento do nível da campanha de 2010 rompeu uma barreira ética no debate público do Brasil —e esse rombo nunca mais parou de ser escancarado. É necessário jamais esquecer que essa fronteira não foi derrubada nem pela parcela mais fisiológica do PMDB, hoje MDB, nem pelos líderes evangélicos mais inescrupulosos. Ela foi ultrapassada por José Serra, um representante do PSDB histórico, de raiz.

Este não é um detalhe. E sim um fato crucial para compreender o papel que o PSDB desempenhou para os rumos do Brasil. O modo de operação do MDB é muito mais pesquisado, esmiuçado e conhecido, tanto por intelectuais que se dedicaram a ele, caso da tese do “pemedebismo”, do filósofo Marcos Nobre, quanto pelo público que acompanha a política de Brasília. No campo da Justiça, a Operação Lava Jato mostrou muito mais claramente como o MDB e o PT atuavam do que o PSDB.

O PSDB desempenhou um papel determinante para a ampla e múltipla crise vivida hoje pelo Brasil —e esse papel precisa ser iluminado. Não foi por acaso, nem sem a responsabilidade dos tucanos mais emplumados, que o rosto do PSDB deixou de ser o de FHC para se tornar o de Doria, com uma transição pela face de Geraldo Alckmin.

É também em 2010 que Eduardo Cunha enxerga uma brecha para ampliar seu poder de influência. Com o aval de Lula, esse personagem nebuloso vai peregrinar por templos evangélicos para afirmar que Dilma Rousseff é contra o aborto. É este novo “aliado” que lidera o contra-ataque e pede votos para Dilma nos redutos do evangelismo neopentecostal. Por pragmatismo eleitoral, ao se ver atacada, Dilma capitulou diante de seus princípios. Naquele momento, nem ela nem ninguém poderia saber, mas se iniciava ali, mesmo antes de Dilma se eleger para o primeiro mandato, sua triste marcha rumo ao impeachment.

Nos anos seguintes, Eduardo Cunha se tornaria o rei do “centrão” —grupo de parlamentares ligados menos à direita ou a qualquer ideologia e bem mais a seus interesses pessoais e privados, que tem como característica o apoio a qualquer Governo, em troca de cargos e favores. Em resumo: se elegem para se colocarem à venda. Eduardo Cunha uniria também as bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados para barrar, na prática, o aborto legal. A partir de 2015, já como presidente da Câmara, tornou-se o principal ator do impeachment de Dilma Rousseff, depois de concluir que o PT não impediria a investigação de seus atos de corrupção. O impeachment foi movido por muitas razões e também paixões, entre elas a vingança do vilão.

2) O PSDB, Aécio Neves e o pré-bolsonarismo ou pré-trumpismo: a estratégia nojenta de duvidar do processo eleitoral

A cena produzida em 2010 marca a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. O momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.

Tucanos-pena-longa se omitiram ao testemunhar José Serra arrastar as asas —as suas e as do partido —nos esgotos, em 2010. E se omitiram mais uma vez quando outro membro do PSDB histórico, Aécio Neves, desferiu o ataque mais grave à democracia desde o fim da ditadura civil-militar. Aqueles brasileiros que hoje torcem a boca de indignação, ao acompanhar o estrago que Donald Trump tem feito na até então aparentemente sólida democracia dos Estados Unidos, deve olhar com mais atenção para o seu próprio quintal.

Aécio Neves, neto do ícone Tancredo Neves, teve a irresponsabilidade criminosa de duvidar do resultado eleitoral, sem uma única prova, abrindo espaço para toda a corrosão da democracia que veio depois. Quando Aécio Neves perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff, ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis e eficientes sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia. E negá-la, como hoje faz Donald Trump, para assombro do mundo, e fez Aécio Neves, em 2014, é um ataque inaceitável ao voto de todos os eleitores.

Aécio iniciava ali uma nova crise, e isso já num cenário grave para o país, marcado por dificuldades econômicas crescentes e pela perda acelerada do apoio à presidenta reeleita. Naquele ato, abriu um precedente mais do que perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio afirmando que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para a história não só pelos seus crimes de corrupção, mas por esse gesto contra o país. Aécio Neves e José Serra devem ser lembrados como políticos que praticaram gestos determinantes para a destruição da democracia brasileira.

Quatro anos depois, em 2018, mais uma eleição. Durante a campanha, de dentro do hospital, onde se recuperava de um atentado a faca, Jair Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que poderia não aceitar o resultado do pleito, em caso de derrota. Seu vice, o general Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. Bolsonaro e os generais anunciavam ali que não aceitariam a derrota. A democracia, pelo visto, só valia se o resultado fosse positivo. O que planejavam não foi usado, já que Bolsonaro venceu a eleição de 2018 pelo voto. E, como venceu, suas suspeitas sobre as urnas eletrônicas desapareceram de imediato.

Nas recentes eleições municipais de 15 de novembro, perfis bolsonaristas nas redes sociais atuaram fortemente para lançar suspeita sobre o processo de apuração eleitoral, já sinalizando o que planejam para 2022. Bolsonaro, porém, não inventou esse truque absolutamente repugnante. No Brasil, o responsável atende pelo nome de Aécio Neves —e, ainda assim, o playboy de Minas conseguiu se eleger deputado federal em 2018, apesar de toda a ficha corrida, da qual faz parte a literalidade de uma mala cheia de dinheiro da corrupção.

3) O PSDB acelera rumo ao botox: tardia autocrítica de Tasso Jereissati, nenhum efeito concreto sobre o partido engolido por João Doria

O PSDB desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff e participou do Governo de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso, como logo descobririam.

Em setembro de 2018, um dos tucanos de plumagem grossa, Tasso Jereissati, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Venceslau, no jornal O Estado de S. Paulo: “O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte [à eleição]. Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no Governo Temer. Foi a gota-d’água, junto com os problemas do Aécio. Fomos engolidos pela tentação do poder”.

Autocrítica importante, ainda que tardia. E além de tardia, sem efeito, porque o PSDB apenas acentuou sua guinada às piores práticas com João Doria. Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Serra quanto Aécio e o PSDB são hoje muito menores do que no passado, em todos os sentidos.

Pior do que não ter ressonância, porém, é perder o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa. Que coisa é essa, o presente já está mostrando. O PSDB atual tem o rosto, o estilo e a estética de Doria, um milionário exibicionista, esteticamente muito mais parecido com Trump do que com Bolsonaro, mas sem nenhum ponto de contato com Joe Biden, o moderado recém-eleito para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo. É fácil imaginar como a face, o estilo e a estética devem horrorizar os tucanos ainda “finos” que sobrevivem como decoração nas prateleiras empoeiradas da história do partido. Mas se calaram demais diante de tantas atrocidades ao longo dos anos e hoje só lhes resta engolir sem cuspir.

Não se pode esquecer de Geraldo Alckmin, o padrinho traído de Doria no partido, que ao governar São Paulo mostrou que era tudo menos picolé de chuchu. É difícil trabalhar com a hipótese de “e se”, mas também faz sentido imaginar o que teriam sido os protestos de 2013, que mudaram o Brasil, não fosse Alckmin ter despachado sua Polícia Militar para bater em manifestantes e jornalistas, expulsá-los das ruas com gás lacrimogênio e spray de pimenta, num nível de violência que revoltou até mesmo a classe média, sempre tão conservadora.

Alckmin e uma das mais assassinas polícias do mundo —que também morre muito, é preciso dizer— foram protagonistas às avessas dos protestos. Mesmo assim, Alckmin não aprendeu. Em 2015 colocou a mesma truculenta PM para bater em crianças e adolescentes que protestavam contra uma reforma imposta à comunidade escolar sem suficiente consulta e debate, alunos de escolas públicas apanhando como se o país vivesse numa ditadura e como se manifestações não estivessem contempladas na Constituição. João Doria, o afilhado de Alckmin, se elegeu prefeito em 2016 fazendo discurso contra a política e os políticos e autoproclamando-se “gestor”, em mais um ataque à democracia.

Em 2018, Doria deixou sem pena a Prefeitura de São Paulo, depois de uma coleção de maldades como demolir um prédio do que chamam “Cracolândia”, ferindo pelo menos três moradores. João Doria elegeu-se governador literalmente colado a Jair Bolsonaro, no slogan “BolsoDoria”. Agora, de olho na disputa pela eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo descolou-se do atual presidente e desde então busca se apresentar, e também o partido, como o último reduto da moderação. Algo como “Doria, o pacificador”.

O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.
O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.DIVULGAÇÃO/GOVERNO DE SP

4) Bruno Covas e o vice-problemão: a prefeitura foi deixada para os vices nos últimos dois mandatos do PSDB

Para distanciar-se de Bolsonaro e da extrema direita, o PSDB precisa mostrar que ainda guarda na alma uma lembrança carinhosa do tempo em que era centro político. Neste sentido, apostar na eleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo foi uma jogada esperta. Covas tem o sobrenome certo, na medida em que é neto de Mário Covas, ex-governador de São Paulo e fundador do PSDB, portanto herdeiro de uma espécie de aristocracia do partido, hoje tomado por novos ricos com a cara cheia de botox. Se há várias críticas a se fazer a Bruno Covas no comando de São Paulo, é preciso reconhecer que ele está ainda longe de poder ser equiparado ao trio Doria-Aécio-Serra.

Espertamente, Bruno Covas tentou se afastar de Doria e de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas a realidade acaba sempre se impondo. Além de outros partidos e figuras de direita, Covas tem hoje o apoio formal de Celso Russomanno (Republicanos), candidato derrotado no primeiro turno, declaradamente apoiado por Bolsonaro. O maior complicador, porém, atende pelo nome de Ricardo Nunes (MDB), seu candidato a vice. Ricardo Nunes foi imposto a Bruno Covas por João Doria, em sua articulação para que o MDB apoie o seu nome para a eleição presidencial de 2022. Nunes é um sapo de um tamanho difícil de passar na garganta para alguém que se anuncia como “centro” e como “moderado” e como “responsável”. Covas o defende e até afirma que Ricardo Nunes foi escolhido por ele mesmo, mas o sapo só aumenta de tamanho.

Em 2011, o vice da chapa de Covas foi acusado pela mulher de violência doméstica e um mês mais tarde ele mesmo acusou-a de lesão corporal. Hoje eles vivem juntos. Vereador influente na zona sul de São Paulo, Ricardo Nunes é alvo de um inquérito policial que investiga corrupção nas relações de políticos com entidades gestoras de creches conveniadas, caso conhecido como a “máfia das creches”. Na Câmara de vereadores de São Paulo atua contra os direitos das mulheres e dos homossexuais e transgêneros e apoia o ultraconservador projeto Escola Sem Partido, que busca criminalizar professores, dinamitar a educação sexual e reescrever a história do país.

Seria possível alegar que um vice influi pouco nos rumos do Governo, mas, no Brasil, apenas dois presidentes não foram substituídos pelo vice desde a redemocratização do país. Em São Paulo, dois vices viraram prefeitos porque o titular, do PSDB, resolveu concorrer a um cargo de mais poder. O próprio Bruno Covas era vice de João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao cargo de governador, o que até hoje é pouco perdoado por seus eleitores. Antes dele, em 2006, foi a vez de José Serra deixar a prefeitura para concorrer ao Governo do Estado, e então assumiu um quase desconhecido Gilberto Kassab. Hoje, Kassab é um dos principais líderes dessa praga política que atende pelo nome de “centrão”, mas que é muito mais à direita do que próxima a qualquer ideia de centro ideológico.

Vale a pena observar que tanto Serra quanto Doria assinaram compromissos de que jamais fariam o que efetivamente fizeram. Serra assinou um documento afirmando que cumpriria o mandato até o fim. Mais tarde, ao ser cobrado por trair a própria assinatura, disse que era só um “papelzinho”. E Doria, durante a campanha, também assinou um documento a pedido do portal Catraca Livre: “Eu, João Doria, comprometo-me a cumprir integralmente meu mandato nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 caso seja eleito prefeito de São Paulo em 2016”. Bem, o que aconteceu todos sabem.

Diante do histórico do PSDB na prefeitura de São Paulo, faz bastante sentido o eleitor paulistano se preocupar que o prefeito acabe se tornando Ricardo Nunes. Com a biografia embrulhada e sob investigação, Nunes foi orientado —ou talvez proibido— de participar de debates com a vice da chapa opositora, Luiza Erundina. Uma das mais experientes políticas brasileiras, ex-prefeita de São Paulo, atual deputada federal, Erundina tem uma biografia de absoluta coerência, uma história pessoal fascinante e, para aumentar os pesadelos do PSDB, é uma debatedora afiada. A campanha para o segundo turno já começou com uma intensa campanha nas redes, com o título de “Exigimos o debate dos vices”, mas Ricardo Nunes e o PSDB deram uma de Jair Bolsonaro e fugiram da raia pelos fundos, o que também diz bastante a um eleitor minimamente atento.

Desde que Guilherme Boulos e Luiza Erundina chegaram ao segundo turno, o PSDB joga sujo, apostando no discurso sacana da suposta “radicalidade” de Guilherme Boulos. Considerar “radical” a luta por moradia, no sentido pejorativo, e buscar criminalizar movimentos sociais são gestos muito mais ligados à extrema direita truculenta de Bolsonaro do que a qualquer aceno de “moderação”. O antipetismo quase patológico apresenta o PT como o principal responsável pela crise múltipla vivida pelo Brasil nos últimos anos. Sem tirar a responsabilidade do PT, que é grande, o que hoje vive o Brasil está longe de ter um único responsável e muito menos exime a direita que se rearranja durante toda a história republicana para seguir no poder e não perder privilégios de raça e de classe. As ruínas construídas pelo Brasil ao longo dos séculos são um bem-sucedido trabalho de longo prazo das elites conservadoras.

5) Uma eleição municipal que é nacional: o que está em jogo no voto de São Paulo diz respeito ao futuro de todo o Brasil

O antipetismo dos últimos anos permitiu que o PSDB fosse menos cobrado pelos seus ataques à democracia. Por isso é urgente refletir sobre o papel do PSDB no momento em que está em curso mais um rearranjo da direita que apoiou Bolsonaro e hoje se descola quase vergonhosamente dele para disputar 2022 se vendendo como “pacificadora” e “moderada”. Doria é o expoente deste movimento. Era BolsoDoria há menos de dois anos, hoje é anti-Bolsonaro desde bebezinho. João Doria, como Geraldo Alckmin aprendeu duramente ao ser traído pelo afilhado, é como Jair Bolsonaro: só tem um partido, que é ele mesmo.

A surpreendente chegada de Guilherme Boulos e do PSOL ao segundo turno da maior, mais rica e mais influente cidade do país foi um susto para o projeto de poder de João Doria e de seus mais novos sócios. Nos últimos meses, o atual governador de São Paulo, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck tentam costurar uma candidatura com o mote da “moderação” e da “união do país”. Uma candidatura proposta como sendo de centro.

Doria e seus amigos da direita travestida de centro estão muito preocupados com o que dirão as urnas no próximo domingo, 29 de novembro. Eles davam a esquerda por enterrada, com boas razões, já que até esse momento os partidos de esquerda e de centro-esquerda não conseguiam se entender para fazer oposição real a Bolsonaro. A consolidação de um novo líder, fora do guarda-chuva do PT, aponta que a esquerda pode chegar a 2022 com uma frente ampla e chances reais de disputar a sucessão de Bolsonaro —ou de pelo menos atrapalhar bastante os acertos da direita consigo mesma. O apoio de expoentes como Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), mostram que uma frente ampla à esquerda se tornou realidade no segundo turno da eleição de São Paulo e já está no campo das possibilidades também para a sucessão de Bolsonaro.

Mesmo que o PSOL perca, o cenário político mudou no Brasil. Se Guilherme Boulos e Luiza Erundina vencerem, São Paulo é uma força poderosa. No próximo domingo, os eleitores paulistanos vão determinar muito mais do que o futuro da cidade de mais de 12 milhões de habitantes. É o futuro do Brasil e de mais de 210 milhões de pessoas que já está sendo tecido no presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Marco Aurélio Nogueira: A nova política dos jovens

Pautas identitárias e desejo de renovação põem a juventude paulistana em campanha

Vera Magalhaes acertou em cheio em sua coluna de hoje, no Estadão, quando constata que há um “degrau geracional” separando as candidaturas que disputam a Prefeitura de São Paulo.

É um problema geral, embora se manifeste de forma particular em cada parte do País. Está latejando forte na capital paulistana.

Guilherme Boulos, do PSOL, é o candidato dos jovens entre 16 e 34 anos, que formam uma massa numericamente expressiva e têm lhe dado impulso para ameaçar sobrepujar o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), na reta final.

Uma boa campanha no segundo turno explica parte da situação, mas não explica tudo. O decisivo é que Boulos está conseguindo falar com os jovens, que são sempre dispostos a contestar e buscar coisas novas, além de não gostarem de obedecer. Têm sido eles o motor de sua ascensão. Boulos não entrou nas periferias pobres da cidade, mas está bombando entre os jovens de todos os extratos de renda.

É compreensível que a campanha de Covas não empolgue a moçada mais jovem. O atual prefeito não é midiático, não se atirou nas redes, sua propaganda é fria, ele age como um executivo e, para complicar, é suscetível a muitas “lacrações”: sofre o desgaste de quem está no cargo, é ligado a Dória, o terrível, pertence a um partido considerado “velho”, tem um vice visto como problemático pelo reacionarismo. Até sua doença, um câncer em fase de remissão, é vista como fator de rejeição.

Covas vai bem entre os extratos de maior idade, mais “leais” e chegados à moderação. E seus votos estão distribuídos em todos os distritos da cidade. Mas, se os velhinhos decidirem não votar por receio da Covid, por exemplo, o prefeito poderá perder a eleição.

Os jovens querem movimento, dinamismo, novidade. Estão cansados da mesma lengalenga tucana onipresente em São Paulo. E não se preocupam muito em ligar a eleição paulistana ao futuro do País, ou seja, às urnas de 2022. Não se perguntam, por exemplo, se a vitória de um ou outro candidato ajudará em maior ou menor medida a luta contra o bolsonarismo mais adiante. São majoritariamente contrários às baixarias e ao regressismo de Bolsonaro, não ligam muito para esquerda vs. direita, aderiram para valer às pautas ditas “identitárias”, não só as de gênero e etnia, mas também as ambientais, as da sustentabilidade, da cidade com menos automóveis, da coleta seletiva do lixo, do consumo consciente. Tais pautas são o modo como agem no mundo.

É uma linguagem que não tem sido praticada pelos políticos. E que Boulos soube capturar, ao menos em parte.

Há que considerar que os jovens de hoje não são militantes como foram os seus pais. Não querem saber de comandos partidários, ordens unidas, chefes e agendas rígidas. Engajam-se de modo tópico, seletivo, espasmódico. Não sacrificam a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referenciam por líderes ou ideologias. São multifocais, abraçam várias causas simultaneamente. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.

Numa época de crise da política e da democracia, a exigência de militância, de causas a serem defendidas, permanece. Os engajamentos estão mais próximos da “política-vida” do que da “política-poder”. É uma época com mais “coração” do que “cabeça” politica. As sociedades estão fragmentadas e individualizadas. Há um desencanto com as instituições.

Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias, ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado.

Em particular os jovens (mas muitos não tão jovens também) são social e culturalmente hiperativos, movem-se pela necessidade de se autoexpressarem e não são ligados a lutas por poder em sentido estrito. Olham torto para os políticos que só se preocupam em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, que são rotineiros, previsíveis. Gosta-se mais daquilo que não se conhece.

Pouco importa que os mecanismos concebidos para a deliberação (um mutirão, um orçamento participativo, consultas populares) produzam resultados precários O importante é que sirvam para extravasar indignação, carências, desejos, opiniões.

O problema – sempre há um problema – é que o ativismo jovem pode não ser suficiente para que se consiga estabelecer equilíbrios e consensos que articulem um sistema alternativo. A nova “zona de ação política”, por ser pouco organizada e mais individualizada, estar marcada pela movimentação contínua, por pressões antissistêmicas erráticas, produz uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.

Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.

O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que souber se articular com o “velho ativismo” e considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, produzirá ruído e efervescência, mas perderá em termos de efetividade.

A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.


Vera Magalhães: Mas sua filha vota

Degrau geracional no voto em SP mostra urgência de falar com eleitor jovem

Apenas dois anos separam os jovens Bruno Covas (40 anos) e Guilherme Boulos (38). Mas as estratégias definidas pelas duas campanhas à Prefeitura de São Paulo levaram a que se estabelecesse um “degrau geracional” no voto de ambos que pode projetar cenários importantes para a política nacional, além das fronteiras da capital paulista.

Em 16 de novembro, dia seguinte ao primeiro turno, o ex-jogador de futebol e comentarista esportivo Walter Casagrande postou a mesma pergunta a Boulos e Covas: ele, dependente químico em recuperação, queria saber a política de ambos para as drogas. Boulos levou menos de duas horas para responder. Covas levou dez. No último fim de semana, Boulos fez uma live com o youtuber Felipe Neto, que tem 40 milhões de seguidores no YouTube, para jogar AmongUs, um jogo eletrônico que é febre entre jovens, acompanhado das filhas. Até a noite de ontem o vídeo tinha 3,1 milhões de visualizações.

Pesquisa Datafolha divulgada na madrugada desta terça-feira explicita a diferença geracional que se estabeleceu no voto do paulistano. A idade é “O” fator de decisão de voto em Boulos, mais que renda, como poderia supor o militante de esquerda. O prefeito vence em todos os extratos sociais, mesmo entre os eleitores que recebem até 2 salários mínimos.

Quando se analisa a faixa etária do eleitor, a coisa muda drasticamente de figura. Boulos dá uma lavada em Covas na faixa entre 16 e 24 anos, vence com folga no grupo imediatamente mais velho, até 34 anos, e quase chega lá entre os eleitores entre 35 e 44 anos.

E é aí que mora o maior risco para a reeleição de Covas, ao qual seus aliados estão atentos: o eleitorado mais velho é também o mais suscetível a não comparecer para votar, num ano marcado por um recorde de abstenções. O risco de contaminação pelo novo coronavírus no momento em que os casos voltaram a subir de forma preocupante pode impactar ainda mais o segundo turno que o primeiro.

Covas praticamente não tem engajamento nas redes sociais. Preferiu fazer uma campanha “old school”, com grande tempo de TV e muito profissional. Deu certo: ele passou tranquilo pelo primeiro turno e lidera com margem de 10 pontos a poucos dias do pleito. Mas ignorar as redes sociais e a personalidade que o eleitor jovem adquiriu nessa campanha pode ser um erro para políticos que queiram alçar voos futuros, e é nesse ponto que a campanha de Boulos serve como case nacional.

A distopia bolsonarista parece ter atingido o eleitor jovem mais que qualquer outro. A forma desrespeitosa e ameaçadora com que o presidente trata mulheres, negros e LGBTQIA+ e questões como a preservação ambiental causa urticária natural em um eleitorado para o qual diversidade, representatividade e sustentabilidade não são pautas “identitárias”, mas sim o modo pelo qual enxergam o mundo.

Falar com esse eleitor nada tem a ver com “lacrar" na internet ou se eleger à custa de memes e fake news, como fez Bolsonaro em 2018. Significa acordar para a necessidade de se comunicar de forma sincera, orgânica e eficiente com um público que vai, nas eleições vindouras, decidir qual o perfil do político para enfrentar Bolsonaro e também para ocupar cadeiras no Congresso.

A “virada” pregada por Boulos parece difícil, pelo voto consolidado de Covas nos segmentos e nos bairros da cidade, além da máquina mais poderosa a seu dispor e da avaliação consistente que tem como prefeito num ano em que as escolhas também se pautaram pela experiência dos gestores. Mas fica o aprendizado de que a disputa civilizada, sem gravata e dentro das balizas da política travada na cidade pode ser laboratório para conquistar corações e mentes de um eleitor ainda não viciado em polarização raivosa.


Rosângela Bittar: A terceira eleição

PSDB não teme solução radical para buscar um novo nome: a realização de prévias

Ao apurar as urnas, no domingo, o município de São Paulo terá o resultado de três eleições. A primeira revelará a identidade do novo prefeito. A segunda, de dimensão nacional, indicará os efeitos desta definição na peleja do governador João Doria e do presidente Jair Bolsonaro. A terceira e mais complexa deflagrará a disputa interna no PSDB, de que pouco se fala mas, com certeza, desabrochará.

A resistência a João Doria definirá sua proporção, no PSDB, a partir de agora. Com o desempenho eleitoral do prefeito Bruno Covas este grupo, que contava apenas com a presença discreta do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passa a ter um novo ponto de articulação.

Se conseguir levar seu eleitorado a comparecer, Covas continua favorito para vencer o segundo turno, apesar do impulso de crescimento de seu oponente em cima do contingente de indecisos. Se não, pelo resultado até aqui, passou a ser um ator importante nas definições político-eleitorais do PSDB. Não é mais o vice, de carona em um mandato tampão de prefeito. Sua votação tornou-se pessoal. A campanha lhe permitiu, também, mostrar uma gestão reconhecida, apesar da travessia de períodos dramáticos que viveram os cidadãos e ele próprio.

Desempenho eleitoral e gestão o credenciam como força partidária. Não necessariamente em futuro benefício próprio, devido aos problemas de saúde, mas para fortalecer a oposição interna que não vê em Doria o destino do PSDB. Doria está desgastado. Sabe-se, inclusive, o ponto nevrálgico de seu esgotamento, e não está na gestão. O governo é bem avaliado, tem uma equipe melhor que a do governo federal, fez uma reforma administrativa que Bolsonaro levará ano e meio para começar. Como se formou, então, tão denso desgaste? Especialistas identificaram sua origem em um fenômeno que definem como “excesso de imagem”.

Desde o momento inicial, que ficou conhecido como a fase de traição a Geraldo Alckmin, ao abandono precoce do mandato de prefeito, passando pelas dificuldades para desatar a armadilha BolsoDoria, mais os palanques diários, a voz onipresente. Acreditou na comunicação direta como um ativo e cansou o distinto público.

A tese se comprova. Tanto que o momento mais bem sucedido de Doria, no quesito aceitação, se deu quando saiu de cena e deixou Bolsonaro falando sozinho, a comemorar a suspensão da vacina anticoronavírus do Butantã. Colocou médicos e cientistas para duelar com o provocador, levando o Presidente da República a murchar seu ímpeto num instante, completamente sem graça. Mas foi exceção. O PSDB sente-se preparado para articular alternativas. Eduardo Leite, considerado um belo produto político, galvaniza estas forças. Como é pouco conhecido, foi um opositor discreto internamente. Mas agora pode contar com São Paulo. Além de oferecer ao partido a construção de uma candidatura a partir do zero.

Estão todos conscientes de que uma reação como esta é de difícil operação. Bruno Covas tem a política na sua natureza, conhece o centro do poder e sintoniza-se melhor com Leite do que com Doria. Mas é certo que terá enormes dificuldades de liderar o movimento de dentro para fora de São Paulo. Não só pelo constrangimento que, em política, se dilui, mas por questões de outra natureza, como a relação do prefeito com o governador e do partido com o Estado onde se encontra o maior colégio eleitoral.

Reconhecer que é difícil não significa que não vai haver. O PSDB já sente profundamente a necessidade de buscar um novo nome. Gosta de seu dilema de sempre que considera sua marca: não se discute se o partido terá candidato, mas quem será. E não teme, em último caso, a solução radical para este tipo de impasse: a realização de prévias. Que podem ser organizadas num estalar de dedos. Para o PSDB, isto é muito.