Dorrit Harazim: O amanhã de cada um

Henry Miller, diante do precipício de se tornar octogenário, considerou meio caminho andado quem consegue escapar do amargor.
Foto: Twitter
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Henry Miller, diante do precipício de se tornar octogenário, considerou meio caminho andado quem consegue escapar do amargor

A entrevista não é recente. Conduzida pela jornalista Natacha Cortêz e publicada na revista “Marie Claire” de setembro passado, começa com uma pergunta sobre os reiterados comentários em torno da idade da entrevistada — não seria hora de se aposentar, de ceder espaço? Pergunta pertinente por se tratar de Luiza Erundina, que, aos 85 anos, disputa o cargo de vice-prefeita da pantagruélica São Paulo. A resposta veio igualmente pertinente, ao estilo da paraibana: “Que se danem! Estou vivendo meu tempo, minha saúde e inteligência, minha experiência. Estou fazendo mal para alguém? Não estou… Não preciso de cuidadora, não sou dependente…”. Lamenta apenas as limitações impostas pela Covid-19 a sua faixa etária.

Quando o 41º presidente dos Estados Unidos, George H.W. Bush, fez um salto de skydive de uma altura de 1.920 metros em comemoração a seus 90 anos, o mundo ficou encantado. Não fora a primeira vez: já celebrara o 75º e o 80º aniversários saltando de paraquedas, sempre aplaudido pela estamina e destemor. Fosse esse o hobby da vida de Luiza Erundina, ela seria considerada uma vovó amalucada, mais adequada para desenhos animados.

Pois a boa notícia de 2020, se é que há alguma, está no fato de uma mulher do sertão nordestino não se contentar, aos 85 anos, em já ter sido burgomestre de São Paulo nem de estar em seu sexto mandato de deputada federal. Não quer aposentar sua inteligência — dita por ela, a frase tem um frescor único, além de contagiar outras mulheres pela persistência útil que independe de idade. Para mulheres marcadas pela vida, que nunca puderam ser jovens e amadureceram aos solavancos neste Brasil duro, o aceno de Luiza Erundina é empolgante — bem mais duradouro que o resultado de uma eleição. “Meu projeto de vida não termina no meu tempo”, garantiu na mesma entrevista.

A premiada escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin, que morreu em 2018 quase nonagenária, tinha 81 anos quando se aventurou pela primeira vez no universo digital. Criou um blog e nele foi feliz para sempre. O projeto de vida que a manteve criativa também continua a dar asas. Argumentava que livros nunca serão apenas commodities, apesar da centrífuga do capitalismo parecer inescapável — o direito divino dos reis também pareceu ser eterno. Ao final da vida, Le Guin deu-se por satisfeita ao constatar que resistência e mudança continuarão brotando de palavras: “O nome de nossa esplêndida recompensa por escrevermos não é o lucro. É outra coisa — chama-se liberdade”.

A cada um de saber o quanto vale viver, e para quê. Henry Miller, diante do precipício de se tornar octogenário, considerou meio caminho andado quem consegue escapar do cinismo e do amargor, quem aprende a esquecer, talvez perdoar. Romancista maldito pelos clássicos que escreveu, ele sustentava que só assim se alcança a felicidade maior — a de poder amar infinitas vezes na vida. Bertrand Russell nos deixou sua visão mais humanista no ensaio “Como ficar velho”, escrito pouco depois de completar 81 anos. O filósofo e historiador britânico acreditava na dissolução do ego em benefício de algo maior. “Amplie gradualmente seus interesses, torne-os mais impessoais, até que as paredes do seu ego recuem, e sua vida possa se fundir na vida universal.” Contou que gostaria de morrer trabalhando, certo de que “outros vão continuar o que não posso mais fazer e contente com o pensamento de que o possível foi feito”.

Sabia o que queria e, sobretudo, o que não queria. No ano de 1962, já detentor de um Nobel de Literatura, ele recebeu várias cartas de um remetente inesperado: Sir Oswald Mosley, fundador da União Britânica de Fascistas nas vésperas da Segunda Guerra. As insistentes missivas propunham ao mundialmente respeitado intelectual um debate público em torno dos méritos do fascismo. Bertrand Russell deixou a pilha se acumular até pouco antes de completar 90 anos e só então respondeu. Em três memoráveis parágrafos, ensinou como lidar com fascistas usando luvas de pelica. A seguir dois trechos em tradução livre:

“É sempre difícil decidir como responder a pessoas cujo etos é tão estranho e, na verdade, tão repelente ao nosso. Não se trata de discordar de seus pontos de vista gerais, mas do fato de que cada grama de minha energia tem sido voltada a uma oposição ativa contra a intolerância cruel, a violência compulsiva e a perseguição sádica que caracteriza a filosofia e a prática fascistas.

Me sinto obrigado a dizer que os universos emocionais que habitamos são tão diversos, e tão profundamente opostos, que nada de frutífero ou sincero poderia emergir deste encontro entre nós.”

O fascismo parecia adormecido quando a carta foi postada, 68 anos atrás. Hoje, o movimento anda mais assanhado. Convém dar uma relida em Bertrand Russell vez por outra.

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