Constituição

Zulu Araujo: Em defesa da cultura, da democracia e da liberdade de expressão

Nunca imaginei que no limiar do aniversário de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, onde a liberdade de expressão foi categoricamente inscrita, tivéssemos que gritar em alto e bom som, mais uma vez, os versos acima, contidos no hino da proclamação da República: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.

A sucessão de fatos que tem ocorrido no Brasil, nas últimas semanas, agredindo de forma violenta o direito inalienável do povo brasileiro de liberdade expressão é de preocupar. Num dia, um grupo de direitistas confessos tentam impedir a todo custo a exibição de uma apresentação artística num museu em São Paulo, acusando o artista de pedofilia. No outro, o Prefeito do Rio de Janeiro, proíbe os museus da cidade de receberem a referida exposição, sob o mesmo pretexto.

Mais adiante, um grupo de vândalos, tenta agredir artistas num museu em Belo Horizonte, onde encontra firme reação dos artistas locais, liderados pelo Secretário de Cultura Juca Ferreira. No último final de semana, em Salvador, um juiz, a pedido de um deputado evangélico, suspende a apresentação de um espetáculo que era protagonizado por uma artista trans, apenas pelo fato dela ser trans. Nesse interim, um movimento conservador, liderado por um artista pornô xinga, calunia e ameaça artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, pelas redes sociais. E por fim, o absurdo dos absurdos, uma juíza, em São Paulo, proíbe a apresentação do artista Caetano Veloso, num acampamento de sem tetos, sob a alegação de que poderia gerar violência.

Ironia do destino, Caetano foi um dos grandes protagonistas na luta pela liberdade de expressão no Brasil, no período da ditadura e contribuiu enormemente para a conquista das liberdades democráticas em nosso país. Aliás, sua frase, singela e direta, que expressa um misto de surpresa e indignação diz tudo: “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”.

Aparentemente isto não tem nada a ver com as causas negras, ou com o movimento negro. Ledo engano. Tem tudo a ver sim. Estas manifestações são em verdade, extensões das ações de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, das discriminações e atitudes racistas que os artistas, futebolistas e personalidades negras tem sofrido nas redes sociais, assim como são parte integrante dos mesmos grupos que patrocinam o extermínio da juventude negra. É tudo farinha do mesmo saco.

Não se enganem os protagonistas são os mesmos. Os objetivos são os mesmos. E a metodologia é a mesma. Ou seja, a intimidação, o uso da emoção enquanto catalizador de processos antidemocráticos e sobretudo o completo desrespeito as liberdades democráticas tão duramente conquistadas em nosso país.

Por isso mesmo, cabe a todos nós, pretos, brancos, mestiços, mas sobretudo aos democratas de todas as cores, de todas as idades e de todas as religiões e de todos os gêneros a reagirem veementemente contra essa onda conservadora que tenta se apossar do país.

Mais, do que reagir, precisamos nos mobilizar para fazer valer aquilo que está inscrito em nossa constituição federal. Daí, mais que nunca ser necessário gritarmos em alto e bom som – “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós..”.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

* Zulu Araujo foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.


Hubert Alquéres: Vivandeiras petistas

“O que nós de esquerda devemos perguntar aos militares é a quem eles querem servir: ao povo e à nação ou à facção financista e rentista que assaltou o poder? Que rasgou a Constituição e o pacto social e que destrói, dia a dia, a soberania nacional, entregando de mão beijada para o capital externo nossas empresas – estatais ou não -, nossas riquezas minerais, nossas terras férteis.”

Não se trata, caros leitores, de um manifesto dos anos 50/60, quando a esquerda, contaminada pelo golpismo que permeou a nossa história desde o advento da República, também rondava os quartéis em busca de um “general do povo” e dava sua contribuição negativa para a divisão das Forças Armadas.

A citação é parte de um artigo de José Dirceu publicado recentemente no site Diário do Centro do Mundo e compartilhado nas redes sociais do lulopetismo, propugnando o “diálogo com os militares” para atrai-los para seu projeto de poder.

O apelo a um discurso eivado de um nacionalismo anacrônico presta-se ainda a disputar com o deputado federal Jair Messias Bolsonaro a influência no mundo castrense, dada a pregação “nacionalista” do militar candidato. Não gratuitamente, o PT tem sido pródigo em elogios ao modelo “nacional estatista” do período, do presidente e general, Ernesto Geisel.

A pretendida aproximação com os militares é parte de movimento estratégico mais amplo do PT, na direção de sua bolivarianização. O modelo chavista de “democracia direta” voltou a ser cultivado por Lula. Em entrevista ao jornal espanhol El Mundo declarou que, se eleito, convocará referendo revogatório de medidas adotadas no governo Michel Temer. Para delírio do braço esquerdo do lulopetismo, o caudilho repetiu a ameaça em comício de sua caravana em Minas Gerais.

Na hipótese de um novo governo, dificilmente Lula teria maioria no parlamento para impor seu programa. Como o mensalão e o petrolão inviabilizaram a construção de uma maioria pela via da corrupção, restaria a ele a alternativa de emparedar o Congresso e o Poder Judiciário por meio de consultas populares.

Não há na nossa Constituição a figura do referendo revogatório. Sua aplicação no Brasil implicaria em ruptura constitucional, em o país se enveredar por uma “ditadura popular”, a exemplo da Venezuela de Hugo Chavez e Nicolás Maduro. Mas quem disse que não é essa a ideia?

Ora, as Forças Armadas são um obstáculo a tais planos. Desde a redemocratização dedicam-se exclusivamente a cumprir suas obrigações constitucionais e profissionais, razão pela qual temos o maior período desde o advento da República sem quartelada ou qualquer tipo de intervenção militar na vida política nacional.

Desviá-las de suas funções constitucionais é pré-requisito para o Partido dos Trabalhadores avançar em seu projeto autoritário. É aí que entram em campo as vivandeiras petistas com o objetivo de reintroduzir nos quartéis a polarização “esquerda-direita”. Querem retornar aos tempos da guerra-fria, quando a esquerda, maniqueisticamente, dividia as Forças Armadas em duas correntes: a “entreguista e golpista” e a “nacionalista e democrática”. Sintomaticamente, os termos estão presentes no artigo de José Dirceu.

A história está aí para registrar que o golpismo não foi monopólio da direita. A esquerda também fez suas incursões golpistas, vide 1935.

Na Venezuela, a cooptação dos militares se deu pela sua transformação em uma elite econômica dotada de privilégios e detentora dos principais cargos de direção das principais empresas e dos altos escalões do governo. Hoje, são o principal esteio da ditadura venezuelana. Os estrategistas do PT não ignoram o precedente histórico do modelo chavista, que, de resto, é o mesmo da Coreia do Norte, onde os militares são o principal sustentáculo da ditadura de Kim Jong-Um.

Para atrair os militares, o lulopetismo ressuscita concepções da esquerda que não deram conta da realidade brasileira nos anos 50/60, que dirá agora.

Em pleno século vinte e um, no limiar da Quarta Revolução Industrial e de mudança de paradigmas na economia, pensam o desenvolvimento do país pela via autóctone e de ruptura com o capital externo. O “imperialismo yankee” é visto como o invasor externo que suga as riquezas nacionais. Nessa visão distorcida, a missão das Forças Armadas seria defender o pré-sal, a Amazônia, as empresas nacionais do “polvo imperialista”.

Só que o Brasil não é a Venezuela e nossas instituições castrenses em nada se assemelham às do país de Chavez e Maduro. Temos uma economia diversificada e integrada à economia mundial, uma sociedade bem mais complexa. Nossas Forças Armadas são instituições permanente de Estado e impermeáveis a discursos de quem quer instrumentalizá-las para viabilizar seu projeto de poder.

Os remanescentes da esquerda armada ainda não deglutiram a derrota do passado e agora tentam dividir as Forças Armadas.

Se pensam, com seu canto, atrair os militares para uma aventura, as vivandeiras, de esquerda ou de direita, darão com os burros n’água. Os militares brasileiros parecem estar escolados para embarcar nessa nau de insensatez.

* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo


Roberto Freire: A Constituição e a travessia

Mesmo diante do recrudescimento da grave crise política que o Brasil enfrenta, o processo de transição iniciado com o impeachment de Dilma Rousseff, a agenda de reformas necessárias para o país e, sobretudo, o início da retomada da economia após a pior recessão de nossa história não estão ameaçados. Independentemente de quem ocupe a Presidência da República, o mais importante é continuarmos trilhando o caminho da recuperação e seguirmos o que determina a Constituição Federal.

Qualquer que seja o resultado da votação, no plenário da Câmara dos Deputados, sobre a autorização para o prosseguimento da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o presidente Michel Temer e a eventual abertura de processo no Supremo Tribunal Federal (STF), a travessia democrática e constitucional até as eleições de 2018 seguirá sem interrupção.

Se o pedido da PGR for aprovado, o deputado Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, assumirá interinamente a Presidência da República por até 180 dias, tal como dispõe a Constituição e exatamente como ocorreu com o próprio Temer quando do afastamento inicial de Dilma. Caso haja uma condenação definitiva pelo STF, haverá eleição indireta para a escolha do próximo presidente – obedecendo rigorosamente àquilo que está expresso na Carta Magna.

É evidente que as sinalizações em relação à pauta de reformas e à política econômica bem sucedida adotada pelo atual governo são as melhores possíveis. Se Temer for afastado, o presidente interino dará continuidade a essa agenda virtuosa e talvez conte até com mais estabilidade política para fazê-la avançar. A garantia da manutenção da equipe econômica reforça a credibilidade do Brasil e a confiança readquirida junto aos agentes econômicos.

Ao contrário do que querem fazer crer aqueles que integram uma oposição que se diz progressista, mas é essencialmente reacionária e está cada vez mais isolada, a elevada temperatura da crise política não comprometeu a retomada da economia nem tirou o país dos trilhos. Um estudo divulgado pela Tendências Consultoria e publicado pelo jornal “O Estado de S. Paulo” mostra que, com ou sem o presidente Temer, não há receio no mercado de que haja qualquer tipo de retrocesso. Segundo o levantamento, que considerou 28 indicadores, há uma clara tendência de recuperação desde o final do ano passado, algo que não se restringe a resultados pontuais.

Dados como massa de renda do trabalho, crédito para pessoas físicas, venda de automóveis e produção de bens duráveis vêm experimentando uma alta significativa desde novembro de 2016. Com exceção do nível de ocupação, que apresentou sinais mais concretos de recuperação apenas em abril e maio, os demais indicadores registram crescimento ao menos há quatro meses.

Em junho, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial no país, registrou a taxa mais baixa para o mês nos últimos 19 anos (-0,23%). A produção de veículos, por sua vez, subiu 23,3% nos seis primeiros meses de 2017 em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). O resultado foi impulsionado, principalmente, pela alta de nada menos que 57,2% nas exportações.

Mesmo os indicadores econômicos mais sensíveis às instabilidades políticas não sofreram maiores abalos neste momento de forte turbulência. O dólar prossegue em sua trajetória de queda, assim como o risco-país e os juros, enquanto a Bolsa sobe. Em meio às boas notícias na área econômica, é importante destacar a aprovação da reforma trabalhista pelo Senado Federal. Trata-se de uma das principais conquistas do governo de transição e, fundamentalmente, do Brasil.

Como se vê, a crise política que parece se encaminhar rapidamente para um desfecho no Congresso Nacional não impede o avanço das reformas, a recuperação da economia brasileira e o pleno funcionamento da transição iniciada com o impeachment. Este é o momento de termos responsabilidade com o país e concluirmos a travessia constitucional até 2018, quando a população se manifestará nas urnas, em eleições gerais, e escolherá o próximo presidente, governadores e um novo Congresso Nacional.

Até lá, nossa missão é apoiar a transição independentemente de quem ocupe a Presidência da República. Além disso, devemos aglutinar as forças de centro e da esquerda democrática em torno de um movimento político que tenha condições de impedir o retorno de um populismo vinculado a uma esquerda atrasada e reacionária – que recentemente levou o Brasil ao buraco – ou a ascensão de uma extrema-direita autoritária e sem nenhum compromisso com a democracia.

Para tanto, nosso guia será sempre a Carta Magna. Dentro da Constituição, tudo. Fora dela, nada.

* Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS


O Globo: Fragilização de Temer fortalece alternativa Maia

Relatório na CCJ é uma derrota do presidente, que deseja um processo rápido de votação para evitar o aprofundamento do desgaste político contínuo

Já era esperado que o relator do pedido de licença para que o presidente Michel Temer seja julgado no Supremo pelo crime de corrupção passiva, deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ), aprovasse a admissibilidade do processo. Na sessão de ontem da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Zveiter, advogado de profissão, disse que a denúncia encaminhada pela Procuradoria-Geral da República contém “sólidos indícios de práticas delituosas”.

A defesa de Temer, feita por Antonio Cláudio Mariz, seguiu a linha da tentativa de desconstruir a denúncia pela suposta falta de provas. Por exemplo, de que os R$ 500 mil guardados na mala com que Rocha Loures foi filmado nas ruas de São Paulo seriam mesmo para o presidente.

O fato é que começa a se desenhar a saída de Temer, por até 180 dias, com a posse do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para esperar o veredicto do STF, e, se houver a condenação do presidente, convocar uma eleição indireta em 30 dias, à qual o próprio Maia poderia ser candidato de consenso da base do governo.

A rigor, a crise política que desgasta o governo Temer transita em pista dupla: da consolidação do entendimento de que a posição do presidente é indefensável, e pela via das negociações no Congresso em torno de um nome que possa levar o país até as eleições de 2018, daqui a pouco mais de um ano. É neste contexto que se fortalece Rodrigo Maia, também aceito por ter forte compromisso com as reformas. Definido este consenso, Temer terá ainda mais dificuldades políticas.

Por tudo já conhecido até agora — desde a revelação pelo GLOBO da gravação por Joesley Batista de sua conversa nada republicana, em altas horas, com Michel Temer, no porão do Palácio do Jaburu —, as provas e indícios contra o presidente são fortes. Da temática daquela conversa — cuidados pecuniários com Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, para não fecharem acordos de delação — à propina acertada com Loures, indicado por Temer para o empresário tratar de qualquer assunto.

O tempo corre contra Temer, à medida que as informações decantam na opinião pública. Daí o Planalto querer que as votações ocorram logo na Câmara — na CCJ e, depois, no plenário. Quebra-se, também, uma espécie de encanto que se tentou criar em torno de Temer, vendido no mercado das esperanças como o único capaz de garantir as reformas. Quando, na verdade, passou a ser o contrário, à medida que o inquilino do Planalto, fragilizado, deixou de ter condições de aprová-las, a não ser negociando-as no balcão do toma lá dá cá. E assim, tornando-as inócuas. Uma aprovação de fantasia.

Haja vista o exemplo da reforma trabalhista, em que o Planalto emite sinais de recuar no fim do imposto sindical, tornando-o uma contribuição espontânea, mas por etapas. Assim, será perdida chance preciosa de se moralizar a vida sindical, tornando as agremiações de fato representativas, inclusive as patronais, sem espertalhões acostumados ao acesso fácil do dinheiro público, arrecadado pelo imposto que precisa ser extinto.

Fica cada vez mais evidente, na prática, que a Constituição tem o mapa do caminho para a saída da crise, por definir de maneira clara o rito para a saída de Temer ou a sua permanência.

 


Luiz Werneck Vianna: A política não é jogo de azar

Os alardeados arquitetos do futuro não se dão conta do terreno em que pisam

A bordo de uma embarcação precária estamos em pleno mar com tripulantes e passageiros surdos aos avisos dos perigos que correm por navegarem sem atinar com os rumos a seguir. Cada qual aferrado a seus interesses particulares sinaliza um caminho: sem forças próprias à mão há os que confiam na sorte e clamam pela eleição direta para a Presidência, remédio heroico inconstitucional e de resultados sabidamente aleatórios; outros, com as virtudes da prudência, recomendam a singela travessia de uma pinguela ainda à disposição.

Vozes dissonantes sugerem o recurso ao clamor popular a fim de obrigar a renúncia da tripulação, embora o som ao redor não aparente estimular os que recorrem a essa solução. Mas nestes tempos estranhos que vivemos se faz ouvir em alto e bom som o grito de guerra salvacionista: fiat iustitia, pereat mundus. O nó górdio que nos ata deveria ser cortado de imediato por decisão judicial, a cabeça presidencial exibida como o bode expiatório que nos expurgaria dos nossos males.

As soluções engenhadas nessa alquimia hermenêutica a que estamos sujeitos encontram, como no poema, uma pedra no seu caminho, o Estado Democrático de Direito e a Carta Constitucional que o institui. No caso, a denúncia a ser apresentada por presumidas ilicitudes contra o presidente da República demanda, conforme a lei, sua aprovação por dois terços de votos na Câmara dos Deputados, inviável, segundo consta, diante da correlação de forças políticas vigente.

Mas há quem sustente que os objetivos maiores de salvação nacional não deveriam recuar diante de questiúnculas formais – conservadores empedernidos ousam falar sem enrubescer a linguagem das revoluções. Que se mude de afogadilho a Constituição para se instituírem de um só golpe as diretas já – há juristas para isso? – se esse for o preço a ser pago pela cabeça do presidente. A ser sucedido por quem, mesmo?

A política virou jogo de azar e diante da roleta se aposta com audácia contra a banca, como se a invocação do grande número – a multidão ainda em silêncio obsequioso – tivesse o condão de fazer a roda do destino favorecer os desejos recônditos dos apostadores. Não se flerta impunemente com as revoluções. As paixões das multidões podem ser desencadeadas por intervenções messiânicas de setores da elite do Judiciário em aliança com a mídia hegemônica, mas é preciso viver no mundo da lua para cogitar, no caso de elas irromperem na cena pública de modo generalizado, de que seriam apaziguadas num passe de mágica com a mera higienização do sistema político. As jornadas de junho de 2013, que conheceram seu momento de fúria, quando apresentaram sua conta não havia quem pudesse pagá-la. A conta de agora pode ser muito maior.

Os alardeados arquitetos do futuro não se dão conta do terreno em que pisam e, definitivamente, o Brasil não é um país para principiantes, em particular para aqueles jejunos em matéria política e que dela só conhecem o que se passa no círculo fechado das corporações. Com efeito, somos aqui refratários à linha reta, amigos do barroco, onde temos fixado boa parte de nossas raízes. Sobretudo, não somos, para o bem e para o mal, filhos da Reforma. Não tememos os ziguezagues, nosso Estado-nação foi criado em nome do liberalismo político e dos ideais da civilização, mas preservou instrumentalmente a escravidão, fizemos a revolução burguesa sem revolução, nos moldes das revoluções passivas, e realizamos uma potente obra de modernização econômica e social sem remover as estruturas patrimonialistas do Estado, que, aliás, também foram instrumentais a ela.

No processo constituinte que conduziu a promulgação da Carta de 88, realizado ainda no curso de uma difícil transição do regime autoritário para a democracia política – vale dizer, sem ruptura com a ordem anterior –, essa história errática foi a matéria-prima com que o legislador teve de se confrontar nos seus pontos mais sensíveis. A questão agrária foi um deles, frustrando-se as tentativas de democratização da propriedade da terra com ameaças de resistência armada por parte de grandes proprietários. A questão sindical não teve melhor sorte, constitucionalizando-se mais uma vez, tal como ocorrera na Carta de 1946, o cerne da legislação do Estado Novo, com o expurgo de sua ganga autoritária.

O gênio do legislador constituinte foi o de continuar descontinuando, democratizando o que lhe foi acessível numa arriscada circunstância de transição. Compensou, no entanto, sua atitude prudencial em alguns temas com uma arrojada legislação em matéria de direitos civis e sociais, criando novos institutos, entre os quais o Ministério Público, destinados a ser lugares de concretização dos direitos que estatuiu, alguns deles facultados à intervenção da sociedade civil para a defesa ou mesmo a aquisição de direitos. Ao estilo de uma obra aberta, o constituinte confiou à sociedade a materialização, ao longo do tempo, do espírito que a animou.

A Operação Lava Jato, herdeira da Carta que criou esse Ministério Público que aí está, não deixa de exercer, em surdina, “papéis constituintes” quanto ao sistema político, dimensão que, em face do clima libertário dos anos 1980, foi negligenciada. Nesse sentido, tem sido muito bem-sucedida, embora, ao contrário do legislador constituinte, que se manteve atento ao realismo político, arrisque temerariamente comprometer sua obra pelo comportamento de “apóstolos iluminados” de alguns dos seus quadros que, visando a passar nossa História a limpo, não temem jogar fora o bebê com a água do banho – no caso, o bebê é a política e a Constituição.

O filósofo Roberto Romano, em Sobre golpes e Lava Jato, luminoso artigo publicado nesta página em 18 de junho, identificou os efeitos nefastos do uso da lei como recurso tático em nome da salvação pública. Eis aí o caminho aberto para um Estado de exceção.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-politica-nao-e-jogo-de-azar,70001873316

 


O Estado de S.Paulo: A falácia das ‘diretas já’

Aproveitar-se da convulsão política no País para promover alterações constitucionais com vista a favorecer um grupo político viola escandalosamente a democracia

O Estado de São Paulo

Os defensores da antecipação da eleição direta para presidente querem fazer acreditar que somente assim teremos um governo com legitimidade e, portanto, capaz de tirar o País da crise. Essa concepção do voto direto como panaceia dos problemas nacionais se presta a vários propósitos, a maioria inconfessáveis, e nenhum deles efetivamente democrático. Quem apregoa a eleição direta para presidente agora, de afogadilho, ou defende interesses turvos ou é apenas oportunista.

Em primeiro lugar, basta observar quais partidos lideram o esforço para colocar o tema na pauta do Congresso. São em sua maioria siglas que desde sempre se dedicam a questionar a legitimidade e a sabotar qualquer governo democraticamente eleito que não seja integrado por um dos seus. Os notórios PT, PSOL, Rede e PCdoB, entre outros, informaram que vão se reunir na semana que vem para discutir a formação de uma “frente nacional” para defender a antecipação da eleição presidencial direta. A memória nacional está repleta de exemplos de como os petistas e seus filhotes mais radicais jamais aceitaram o resultado das eleições presidenciais que perderam, e provavelmente continuarão a não aceitar caso o vencedor do próximo pleito não seja Lula da Silva ou alguém da patota.

Com Michel Temer na Presidência, a estratégia antidemocrática consiste em infernizar a vida do presidente para que ele renuncie e, ato contínuo, sejam convocadas eleições diretas. Para tanto, apostam na aprovação de alguma das propostas que estão no Congresso com vista a alterar o artigo 81 da Constituição, que determina que, em caso de vacância da Presidência e da Vice-Presidência nos últimos dois anos do mandato, haverá eleição para ambos os cargos “trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. Na proposta que está no Senado, torna-se direta a eleição quando ocorrer a vacância nos três primeiros anos.

O casuísmo é tão evidente que custa acreditar que esse tipo de proposta esteja sendo levado a sério e eventualmente avance. Os parlamentares envolvidos nesse esforço usam o especioso argumento, expresso no projeto, de que é preciso “devolver à população brasileira o direito de escolher o presidente da República, por meio de eleições diretas”. Para eles, o atual Congresso, engolfado em escândalos de corrupção, não tem “legitimidade” para fazer essa escolha.

Ora, os atuais congressistas foram eleitos pelo voto direto, o mesmo voto direto que os defensores da antecipação da eleição presidencial direta consideram essencial para conferir legitimidade ao eleito. Michel Temer também foi escolhido em eleições diretas. Estava, como vice, na chapa de Dilma Rousseff à Presidência em 2010 e em 2014. Por quatro vezes – os dois turnos de cada eleição –, cada um de seus eleitores visualizou sua foto e seu nome na urna eletrônica e confirmou o voto. Hoje se encontra no exercício da Presidência em decorrência do estrito cumprimento dos preceitos constitucionais. E, se tiver de deixar o cargo, a Constituição diz claramente como substituí-lo.

Mas os inimigos da democracia só apreciam a Constituição quando esta lhes dá alguma vantagem. Se for um entrave para suas pretensões políticas, então que seja rasgada, sob a alegação aparentemente democrática de que a antecipação da eleição direta “atende aos anseios da sociedade brasileira, sob o eco do histórico grito das ruas a clamar ‘Diretas Já’, nos idos da década de 1980”, como diz o texto da PEC no Senado. A justificativa omite, marotamente, que aquele era um dos componentes do processo de restabelecimento da democracia, na saída do regime militar, ao passo que hoje a democracia está em pleno vigor.

Finalmente, não são apenas eleições diretas que definem um regime democrático, muito menos conferem legitimidade automática aos eleitos. A democracia, em primeiro lugar, se realiza pelo respeito à Constituição, expressão máxima do pacto entre os cidadãos. Aproveitar-se da convulsão política para promover alterações constitucionais com vista a favorecer um grupo político viola escandalosamente esse pacto e, portanto, a própria democracia.