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Liberdade de expressão | Foto: BBC News brasil

O que é liberdade de expressão?

Matheus Magenta*, BBC News Brasil

Para Ash, que é um estudioso da liberdade de expressão, as ofensivas contra o que chama de "ar que permite a todas as outras liberdades respirarem" põem em risco a participação democrática dos cidadãos, a internet, a qualidade dos governos, a diversidade, a privacidade, a educação, a liberdade religiosa, o jornalismo, a prosperidade coletiva e a busca pela verdade.

A liberdade de expressão é definida há séculos como o direito de manifestar opiniões e ideias praticamente sem obstáculos. Mas a defesa dela, na maioria dos países democráticos, passa por não violar direitos dos outros nem levar a males evitáveis.

Os problemas começam a surgir quando há discordância sobre quais seriam os limites da liberdade de expressão e quem teria o poder para defini-los. Governo? Juízes? Deputados e senadores? Quem se sentiu ofendido? A mídia? Professores? Redes sociais? Eles devem permitir ou barrar críticas e ofensas ao governo, à religião e às minorias? E o que deve ser feito em relação à pornografia e à incitação à violência?

Nenhum país democrático trata a liberdade de expressão como um direito ilimitado, acima dos demais e sem consequências. Mas os embates não se limitam às leis. Eles passam também por religião, jornalismo, universidades e internet.

As disputas nesses campos de batalha se transformaram ao longo dos anos. Se antes passavam por lutar para se expressar sem ser oprimido, hoje muitos defendem uma versão ilimitada da liberdade de expressão (inclusive para oprimir).

Para entender como esse debate surgiu e se desenvolveu no Brasil e em outros países, a BBC News Brasil detalha abaixo as origens da liberdade de expressão há milhares de anos. Em seguida, explica o que baseia os principais limites adotados (contra discurso de ódio e incitação à violência, por exemplo) e como esses limites passaram a ser considerados por alguns uma grave forma de censura.

As origens do conceito de liberdade de expressão

O marco inicial dos embates sobre limites à expressão no Ocidente é famoso. Um dos fundadores da filosofia ocidental, o grego Sócrates, é figura-chave nesta história.

Conta-se que Sócrates era conhecido como "a mosca de Atenas" e que até gostava deste apelido porque o descrevia muito bem: sua missão era provocar as pessoas por meio de perguntas e explicações que incomodavam e, sobretudo, faziam pensar.

Mas Sócrates foi condenado à morte por suas ideias e crenças nesta mesma Atenas, uma cidade que praticava e exaltava a livre expressão (e que ainda é vista quase como um sinônimo da democracia em si).

Há poucas informações disponíveis sobre o julgamento de Sócrates. Não há descrições oficiais sobre as acusações, as evidências e as leis que teriam sido desrespeitadas. Todos os registros conhecidos do processo foram feitos por dois discípulos de Sócrates: Xenofonte e Platão.

Mas muitos especialistas ressaltam que a atuação política de Sócrates antes do julgamento pode ter pesado para sua condenação.

'A Morte de Sócrates', tela do francês Jacques Louis David, de 1787

O pensador ateniense tinha relações próximas com pessoas que eram consideradas inimigas da democracia ateniense. A exemplo de Crítias, um dos Trinta Tiranos que governaram Atenas por um breve período, e de famílias aristocráticas que preferiam a concentração de poder como a adotada por Esparta à distribuição mais igualitária de poder em Atenas.

Para parte dos atenienses, atitudes como essa faziam de Sócrates um traidor e uma ameaça à democracia. Por isso o simbolismo do caso de Sócrates, considerado por alguns um "mártir da liberdade de expressão", ganha ainda mais força, já que sua condenação buscava, em tese, conter os danos indiretos que suas ideias, atitudes e relações causavam à democracia ateniense.

No processo, Sócrates foi acusado de introduzir novas divindades, de não reconhecer os deuses de Atenas e de corromper os jovens. Em sua defesa, ele nega ter transmitido visões subversivas, mas argumenta que também não poderia ser responsabilizado pelas ações praticadas por aqueles que ouvem suas palavras.

Ao ser condenado à morte pelo júri, Sócrates defende sua liberdade de expressão sob o argumento de que ficar em silêncio e não refletir sobre a vida a tornaria sem valor ou sentido. "Encontramos aqui a insistência de Sócrates de que todos somos chamados a refletir sobre o que acreditamos, explicar o que sabemos e o que não sabemos e, em geral, buscar, viver de acordo e defender as visões que contribuem para uma vida significativa e bem vivida", explica o filósofo e professor James Ambury (Universidade de Notre Dame).

Para a cientista política americana Arlene Saxonhouse, autora de Liberdade de Expressão e Democracia na Antiga Atenas, o julgamento de Sócrates deve ser analisado em torno da tensão entre a disposição de falar a "verdade" com franqueza e o respeito às tradições que servem de liga aos Estados.

Saxonhouse aponta para um dos principais paradoxos desse caso. Sócrates insiste em falar verdades de forma tão aberta e desavergonhada que o próprio regime democrático não pode suportar porque se torna uma ameaça contra o próprio sistema.

Ou seja, para a cientista política, a prática pura da liberdade de expressão individual pode ameaçar liberdades e ideais coletivos, e sua existência demandaria limites e senso de respeito democrático. Tudo isso porque a expressão é um instrumento muito poderoso que serve "para incitar o outro a fazer investigações que levarão à transformação de seu próprio caráter".

Para Saxonhouse, a condenação de Sócrates à morte foi uma violação dos princípios democráticos básicos. "Atenas, ao executar Sócrates, admitiu a dependência da cidade ao aidôs (vergonha ou pudor) e ansiava por preservar suas tradições, por resistir à exposição de suas inadequações que a parrhesia (liberdade de expressão) estava preparada para relevar. Sócrates, por outro lado, livre do respeito ao passado e livre dos limites impostos pelo olhar julgador dos outros, era o homem verdadeiramente democrático."

O caso de Sócrates é citado por diversos defensores da liberdade de expressão, como o filósofo e economista britânico John Stuart Mill. Este considerava que a grande ameaça à liberdade de pensamento e de debate nas democracias não era o Estado, mas a "tirania social" dos outros cidadãos.

No clássico Sobre a Liberdade, de 1859, Mill afirma que silenciar a expressão de uma opinião constitui um roubo à humanidade, à posteridade, à geração atual e àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que àqueles que sustentam essa opinião — porque não terão a oportunidade de serem confrontados em sua verdade e perceberem seu erro.

Limites e transformações

Por séculos após Sócrates, a liberdade de expressão era — quando muito — privilégio de poucos.

No Reino Unido, uma lei aprovada em 1275 proibia as pessoas de expressarem qualquer coisa que gerasse desacordo entre o rei e a população. A depender da gravidade, a pena prevista era de prisão, chicotadas ou mesmo a morte.

"Apenas a elite, a monarquia e a pequena nobreza tinham o poder e o direito de falar em público. Camponeses, artesãos e classes consideradas inferiores simplesmente tinham que se submeter às chamadas classes superiores. A voz do povo era na verdade a voz das pessoas no comando", relata historiador e professor Justin Champion, da Universidade de Londres.

Mas por que se presumia naquela época que qualquer desacordo ou expressão livre era politicamente perigosa? "Porque todos os debates são sediciosos (rebeldes contra superiores). Ponto final", resume Champion.

A primeira grande transformação ligada à liberdade de expressão ocorre no século 15, mais especificamente em 1455, ano em que o alemão Johannes Gutenberg inventou a prensa. Esse equipamento permitiria a impressão de livros em massa e, por extensão, uma crescente difusão de informações e de conhecimento.

No século seguinte, a liberdade de expressão começa a ser vista e defendida na Europa como um valor importante para a política. "Isso começa com o entendimento de que tipos tradicionais de autoridade, como a monarquia e a Igreja, são na verdade apenas tipos de autoridade. E uma vez em que o debate é visto dessa forma, as pessoas começam a questionar quem deveria ter autoridade e por quê", afirma a pesquisadora e professora de literatura Karen O'Brien (Universidade de Oxford).

Estima-se que o número de títulos impressos por ano na Inglaterra passou de quase 2.000 no fim do século 17 para quase 6.000 no fim do século 19, entre livros, panfletos e outros produtos do tipo. "Isso foi acompanhado por um lento, mas crescente aumento na alfabetização da população, algo que claramente representa um desafio enorme para o Estado", afirma O'Brien. Naquela época, livros também eram lidos em público pelos letrados para aqueles que não sabiam ler.

Vale lembrar que o avanço das publicações já era acompanhado de uma espécie de censura prévia. Na Inglaterra, por exemplo, cada obra precisava de autorização da igreja ou da monarquia para ser imprensa e distribuída ou comercializada no século 17.

Mas o próprio mecanismo da censura prévia já era criticado naquele mesmo século. No panfleto Areopagítica, de 1643, o poeta britânico John Milton, trata dos prejuízos dos obstáculos inadequados à livre expressão. Para ele, por exemplo, a censura prévia prejudica a proteção da moral e da religião porque, entre outros motivos, as pessoas perdem a capacidade de identificar e contestar imoralidades a partir do próprio discernimento, da própria reflexão.

Milton acreditava que a censura prévia atrapalhava o único caminho possível em busca da verdade. Mas naquela época, Milton e muitos outros acreditavam na existência de apenas uma verdade, e não de várias verdades a depender suas crenças religiosas, políticas ou éticas, por exemplo. Ou seja, as ideias de tolerância e pluralismo eram praticamente impensáveis porque, na prática, elas significariam que não havia apenas um Estado ou apenas uma religião.

E foi exatamente o que aconteceu na prática. A religião se torna um grande campo de batalha pela liberdade de expressão a partir do século 17. O gatilho surgiu no século anterior com o monge católico e teólogo alemão Martinho Lutero e a chamada Reforma Protestante, movimento ocorrido há mais de 500 anos que deu origem ao principal desdobramento da Igreja Católica desde o cisma entre as igrejas do Ocidente e do Oriente em 1054.

Para Lutero, as pessoas deveriam ser salvas por meio de sua fé em um contato direto e individual com Deus. E não por meio de perdões concedidos por líderes católicos, de indulgências vendidas ou de intermediários para entender a mensagem de Deus (como a tradição escolástica elaborada pelos teólogos católicos).

A Reforma Protestante levou a uma explosão de correntes e entidades religiosas ligadas ao cristianismo que passaram a disputar entre si. Mas o que a liberdade religiosa tem a ver com liberdade de expressão?

"A Reforma Protestante implodiu a unidade da igreja cristã. Então, não há apenas católicos perseguindo protestantes como também protestantes perseguindo católicos. Além da incrível proliferação de vários séquitos protestantes que perseguiam uns aos outros. E todo mundo envolvido nesse drama, nesse conflito acreditava que o futuro de sua alma imortal dependia sua capacidade de se expressar e de agir da maneira que eles pensavam que Deus queria. Então, a liberdade de expressão para essas pessoas não era apenas uma questão de vida ou morte, mas uma questão de vida ou morte para a eternidade", explica Hannah Dawson, professora de pensamento político no King's College de Londres, em entrevista à BBC.

Melina Malik, professora de Direito da Universidade de Londres, ressalta que a ideia de liberdade de expressão é diferente entre aqueles que têm fé e aqueles que não têm. E um bom exemplo disso seria a blasfêmia (ofensa contra algo sagrado). "Mas eu acredito que a imaginação e a empatia podem permitir àqueles que não têm fé de entenderem a importância do sagrado para aqueles que acreditam e de entenderem a dor que eles podem vivenciar quando suas mais profundas crenças são atacadas por meio da expressão."

E como dito logo acima, na prática, os princípios de tolerância e pluralismo levariam ao fim da ideia de uma só religião e também de um só Estado.

Por isso, também a partir do século 17, a democracia representativa começa a se tornar um grande campo de batalha pela liberdade de expressão. Ou seja, o poder de reis e rainhas passa gradativamente para os membros do Parlamento, que precisavam disputar eleitores por meio de suas ideias. Assim, começava a ganhar força política e autoridade a chamada opinião pública.

Uma das mais influentes defesas da liberdade de expressão na política seria publicada no século seguinte, de 1720 a 1723, pelos escritores britânicos John Trenchard e Thomas Gordon. A influência da obra Cartas de Catão seria percebida na Europa, na América e na Ásia.

"Sem liberdade de pensamento, não pode haver conhecimento; e não há qualquer liberdade pública sem liberdade de expressão; isso é direito de todo homem, na medida em que por ele não fere ou contraria o direito de outro: este é o único controle que deve sofrer, e o único limites que deve conhecer. Este privilégio sagrado é tão essencial para os governos livres que a segurança da propriedade e a liberdade de expressão andam sempre juntas; e nos países miseráveis onde um homem não pode chamar sua língua de sua, ele dificilmente pode chamar qualquer outra coisa de sua", afirma um trecho de um dos 144 manifestos que compõem Cartas de Catão, obra contra a tirania, a corrupção e o abuso de poder inicialmente publicada em jornais britânicos.

O século 18 ainda é marcado pelo avanço das mulheres na esfera pública, tanto como leitoras como escritoras, apesar de todos os obstáculos que elas enfrentam até hoje para fazer suas vozes serem ouvidas.

"Há em todas as sociedades uma certa porção de homens para quem a tirania é, em certa medida, lucrativa. Eles consideram os defensores da liberdade uma perturbação da paz. Não há sinal mais claro de uma administração impotente ou mal arranjada do que as tentativas de restringir a liberdade de falar ou escrever", escreveu uma das mais populares escritoras em língua inglesa daquela época, a historiadora britânica Catharine Macaulay, no oitavo volume da obra A História da Inglaterra.

Mercado de ideias

A liberdade de expressão ganharia um de seus principais pilares ainda durante o século 18: a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, país que historicamente é conhecido como um dos que mais defendem uma ampla liberdade de expressão.

É um dos poucos países com Constituição que permite espalhar discurso de ódio, negar o Holocausto e até queimar a bandeira nacional. Ao longo dos anos, a Justiça americana adotou pouquíssimos limites, como proibições à incitação da violência, à fraude e à pornografia infantil.

"O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas", afirma o texto da Primeira Emenda, que data de 1791.

O pilar da doutrina por trás da Primeira Emenda é o chamado "mercado de ideias", cuja premissa é a crença na proteção de um ambiente livre em que as ideias e opiniões entrarão em disputa e a verdade prevalecerá no fim.

A origem da analogia com a lógica de livre comércio é apontada para Sobre a Liberdade, obra do britânico John Stuart Mill citada acima neste texto. "Mill argumenta contra a censura e a favor da livre circulação de ideias. Ao afirmar que ninguém sozinho conhece a verdade, ou que nenhuma ideia sozinha carrega a verdade ou sua antítese, ou que a verdade sem confrontação acabará sendo um dogma, Mill defende que a livre competição de ideias é a melhor forma de separar falsidades dos fatos", explica o cientista político e professor americano David Schultz (Universidade Hamline) na Enciclopédia da Primeira Emenda.

Expansão das publicações foi acompanhada desde o início por mecanismos de censura prévia

Essa metáfora de um mercado de ideias ganharia forma na prática no início do século 20 com uma decisão do juiz da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes. Segundo ele, "o melhor teste para a verdade é o poder do pensamento de se fazer aceito na competição do mercado", sem qualquer interferência governamental ou restrição à liberdade.

Apesar da grande influência da Primeira Emenda na defesa da liberdade de expressão nos EUA e em outros países, esse conceito de livre mercado de ideias é alvo de muitas críticas ao redor do mundo.

Para diversos especialistas, como qualquer outro tipo de mercado, o chamado mercado de ideias demanda regulação. Afinal, os participantes não têm, por exemplo, o mesmo peso político ou econômico nem os mesmos valores éticos.

Outra crítica é que um dos principais "mercados" atuais, as redes sociais, tem algoritmos, vieses e regras que não representariam um mercado realmente livre de ideias. Algo parecido costuma ser dito sobre outro "mercado", o jornalismo.

Para além dessas limitações práticas nos mercados de ideias concretos, "inexiste evidência de que nas circunstâncias atuais a verdade prevaleça sobre a falsidade nas sociedades onde exista uma maior proteção à liberdade de expressão", escreve a advogada criminalista Milena Gordon Baker no livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro.

Baker cita diversos casos, aliás, em que falsidades continuam em circulação na sociedade apesar de os fatos serem inquestionáveis, a exemplo da negação infundada da existência do Holocausto, em que foram mortos pelos nazistas mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, integrantes da etnia roma e outras minorias.

No século 20, a liberdade de expressão passaria a ser reconhecida como um direito universal. Em 1948, a Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU) insere o conceito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, "uma norma comum a ser alcançada por todos os povos".

Liberdade de expressão seria reconhecida como um direito universal a partir do século 20

Segundo o artigo 19 do texto, "todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".

Atualmente, os limites à liberdade de expressão nos países democráticos estão previstos em leis e preveem punições a crimes ligados à expressão, como incitação à violência, sedição (motim contra autoridades), difamação, calúnia, blasfêmia, racismo e conspiração.

No Brasil, a trajetória da liberdade de expressão é repleta de idas e vindas.

Em 1808, quando a família real portuguesa transferiu a Corte para o Brasil ao fugir das tropas francesas, um dos primeiros jornais brasileiros era editado e impresso na Inglaterra porque o editor e fundador do Correio Braziliense enfrentaria no Brasil um cenário de censura prévia e perseguição a jornalistas.

Apesar de proibições à circulação e à leitura do jornal no Brasil por causa de sua oposição à Coroa portuguesa, o Correio Braziliense e outras publicações conseguiam chegar e circular de forma clandestina no país.

O direito à liberdade de expressão apareceria pouco depois na primeira Constituição brasileira, a de 1824, que entrou em vigor dois anos após a declaração de independência do Brasil em relação a Portugal.

"Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritas e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura, contando que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito, nos casos e pela forma que a lei determinar", afirmava o artigo 179 daquele texto constitucional.

Com o fim da monarquia e a proclamação da República, em 1889, a liberdade de expressão avança e regride em curtos espaços de tempo. A exemplo da era Vargas, que em 1934 previu esse direito na Constituição, mas no ano seguinte criou um departamento para instituir a censura dentro dos jornais.

Outro revés para a liberdade de expressão conhecido se daria durante a ditadura militar (1964-85), com a volta da censura prévia, fechamento de jornais, perseguição a profissionais como artistas e jornalistas e a criação da chamada Lei de Imprensa (que instituiria crimes como "ofensa à hora do presidente" ou "propaganda subversiva"), entre outras medidas autoritárias.

Com o fim da ditadura militar em 1985, a nova Constituição de 1988 traria de volta a liberdade de expressão sem censura prévia e outros instrumentos. "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição", diz o artigo 220 do texto constitucional em vigor atualmente no país.

Impacto da internet na liberdade de expressão

Mas, poucas décadas depois, o surgimento da internet levaria à maior transformação — e crise — da liberdade de expressão desde a invenção da prensa, no século 15, quando livros, jornais e panfletos passaram a circular em massa.

O novo ambiente de disseminação de informação agravou ou criou embates sobre o tema que as leis não conseguem acompanhar. Entre eles, a disseminação de discurso de ódio e notícias falsas, a incitação à violência, os algoritmos enviesados contra determinadas correntes políticas, a chamada cultura do cancelamento, o direito ao esquecimento e o poder das empresas de tecnologia de excluir usuários e conteúdos.

Como o caso do ex-presidente americano Donald Trump, que protagonizou o mais polêmico debate contemporâneo sobre liberdade de expressão.

Criação e difusão da internet levaram a uma das principais transformações da história da liberdade de expressão

Em 6 de janeiro de 2021, ele ainda era presidente dos EUA quando discursou publicamente e usou redes sociais para contestar sua derrota na eleição e incentivar apoiadores a irem até o Congresso e "demonstrar força". Em seguida, centenas de pessoas que ouviram o discurso invadiram a Casa Legislativa para tentar impedir a certificação do resultado das urnas. Cinco pessoas morreram.

Dias depois, Trump foi banido do Facebook, do YouTube e do Twitter por incitação à violência, crime que levou à aprovação do seu segundo impeachment pela Câmara dos Representantes. Ou seja, suas palavras levaram a ações concretas de violência de acordo com esse julgamento.

Esse banimento de sua plataforma política para milhões de seguidores levou a acusações de censura, discriminação política e violação do direito à liberdade de expressão. Uma empresa privada tem o poder de barrar o presidente do país mais poderoso do mundo?

"Ter que tomar essas ações fragmenta o diálogo público. Nos divide. Limita o potencial de esclarecimento, redenção e aprendizado. E estabelece um precedente que acredito ser perigoso: o poder que um indivíduo ou empresa tem sobre uma parte da conversa pública global", admitiu o então presidente-executivo do Twitter, Jack Dorsey. A disputa foi levada aos tribunais, e Trump acabou derrotado.

As críticas às plataformas de redes sociais no caso Trump ilustram o que especialistas enxergam como certa inversão de papéis entre a esquerda e a direita no antigo debate sobre liberdade de expressão.

Antes, as vozes que lutavam por mais espaço no debate público e menos obstáculos às críticas aos donos do poder eram majoritariamente ligadas à esquerda. Agora, nomes da direita brasileira, por exemplo, dizem ser ilegalmente tolhidos por redes sociais, veículos de comunicação e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Apoiadores importantes do presidente brasileiro Jair Bolsonaro tiveram contas ou conteúdos apagados de redes sociais em meio a investigações no STF sob acusação de disseminação de informações falsas e discurso de ódio contra autoridades e participação em atos antidemocráticos.

Para o Twitter e o Google, em manifestações feitas no âmbito em processo judicial no STF, a determinação da Corte de excluir as contas é "desproporcional" e pode configurar "censura prévia". O argumento das plataformas é que o Marco Civil da Internet demanda que a ordem judicial aponte especificamente qual conteúdo é ilegal, e não apontar de forma genérica o perfil como um todo.

"Embora as operadoras tenham dado cumprimento à ordem de bloqueio da conta indicada por vossa excelência, o Twitter Brasil respeitosamente entende que a medida pode se mostrar, data máxima venia, desproporcional, podendo configurar-se inclusive como exemplo de censura prévia", afirmou o Twitter. "Ainda que o objetivo seja impedir eventuais incitações criminosas que poderiam vir a ocorrer, seria necessário apontar a ilicitude que justificaria a remoção de conteúdos já existentes", disse o Google.

O próprio Bolsonaro, que defende maior regulação sobre as redes sociais e quer impedi-las de excluir usuários e conteúdos sem justa causa, é investigado pela Corte e já teve excluídas postagens com informações falsas sobre o coronavírus por decisão das próprias empresas de tecnologia.

Em conflitos políticos como o de Trump e o de Bolsonaro, a defesa da liberdade de expressão mostra como vem sendo cada vez mais usada como arma pela direita e pela extrema-direita ao redor do mundo, afirma a historiadora e professora americana Joan Wallach Scott (Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton).

Segundo Scott, o objetivo da defesa da liberdade de expressão aqui deixou de ser aceitar opiniões diversas, mas, sim, confundir e disseminar informações falsas nas disputas com a esquerda sobre temas como feminismo, vacinas, direitos dos homossexuais e currículo das universidades.

Ao provocar repúdio, protestos e às vezes violência, diz Scott, a direita atrai holofotes e se apresenta como vítima de discriminação, cancelamento, discurso politicamente correto e censura. Como resultado, os temas caros à esquerda deixam de ser o foco dos debates.

Trump em evento que antecedeu invasão do Congresso americano e levou ao seu banimento de redes sociais

Para a jurista e feminista americana Catharine MacKinnon, a liberdade de expressão deixou de ser "uma proteção para dissidentes, radicais, artistas, ativistas, socialistas, pacifistas e desvalidos para se tornar uma arma para autoritários, racistas, misóginos, nazistas, supremacistas, pornógrafos e corporações que compram eleições na surdina".

Por outro lado, o jurista e professor americano Alan Dershowitz (Universidade Harvard) afirma que a liberdade de expressão enfrenta sua maior ameaça em 200 anos graças à "censura" liderada por progressistas em esferas privadas, como universidades e redes sociais, onde a lei não alcança.

"Tornou-se perigoso para carreiras, amizades e discurso público ficar do lado de direitos constitucionais e liberdades civis quando esses direitos e liberdades acabam por beneficiar Donald Trump", afirma Dershowitz.

O professor e pesquisador brasileiro Wilson Gomes (UFBA) aponta contradições desse conceito de liberdade de expressão absoluta que ele classifica como libertarianista (corrente mais radical do liberalismo que prega uma enorme redução da interferência do Estado na vida dos cidadãos).

"Não existe liberdade de expressão absoluta. Só nessa concepção libertarianista. Ou seja, 'eu posso dizer o que quiser, eu posso falar o que quiser, posso me comportar como queira e o Estado não pode pode censurar o que eu digo, e nem a Lei nem nada pode me punir'. Nem eles acreditam nisso. Porque, no fundo, no fundo, a qualquer momento eles partem para cima de outros. Os professores não podem ter liberdade de expressão, por exemplo, porque isso seria a doutrinação comunista", afirma Gomes, autor de Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder.

Limites ao discurso de ódio x acusações de censura

Não há uma definição universal sobre o que é discurso de ódio, mas segundo a ONU, ele pode ser entendido como qualquer tipo de comunicação que ataque ou use termos pejorativos contra uma pessoa ou um grupo com base em sua religião, nacionalidade, etnia, cor de pele, raça, gênero ou qualquer outro elemento de identidade.

A tolerância ao discurso de ódio varia de um país para outro. "O sistema jurídico americano proíbe o discurso do ódio o mais tarde possível — apenas quando há perigo iminente de atos ilícitos. Já a jurisprudência alemã coíbe o discurso do ódio o mais cedo possível", exemplifica o jurista alemão Winfried Brugger.

No Brasil, a lei federal 7.716/89 prevê prisão para quem comete discriminação contra os outros por causa de "raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Em 2019, o STF decidiu que declarações homofóbicas também deveriam ser enquadradas no crime de racismo. A pena vai de um a três anos de prisão, pode chegar a cinco nos casos mais graves.

O momento-chave para esse debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio no Brasil ocorreu em 2003 durante um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Tratava-se do caso de Siegfried Ellwanger Castan (1928-2010), um brasileiro que foi um editor de livros antissemitas e de negação do Holocausto. Ele já havia sido condenado por racismo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas recorreu ao STF, que manteve a condenação.

"O caso foi muito importante pois a Corte chegou a um entendimento sobre dois pontos", disse à BBC News Brasil o jurista, ex-ministro e professor emérito Celso Lafer (USP), que atuou no julgamento como amicus curiae (convidado a dar seu parecer no tribunal sobre um assunto de grande relevância). "O primeiro que antissemitismo se enquadra como crime de racismo. O segundo ponto foi sobre a amplitude da liberdade de expressão: existe ou não e quais os limites à liberdade de expressão."

No acórdão sobre a condenação de Ellwanger, o STF deixou claro que, embora a liberdade de manifestação do pensamento seja um direito garantido pela Constituição, ele não é um direito absoluto e há limites morais e jurídicos.

E a legislação, quando define o crime de racismo, deixa bem claro que discurso de ódio é um desses limites pois fere o direito à dignidade humana de quem é alvo desse discurso.

Debate sobre liberdade de expressão tem vivido profusão de acusações de censura

"O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação do racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os direitos contra a honra", escreveu o ministro Maurício Correa. "Escrever, editar, divulgar e comerciar livros 'fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias' contra a comunidade judaica constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade."

Há muitos riscos coletivos em torno da livre circulação de discurso de ódio sob o pretexto de tolerância com ideias e opiniões diferentes. É o que pensava o filósofo da ciência austríaco Karl Popper, que cunhou o termo "paradoxo da tolerância" para discutir como uma tolerância ilimitada ao discurso de ódio põe em risco a democracia e, por extensão, pode levar ao desaparecimento da própria tolerância.

Para Popper, a melhor forma de combater a intolerância é debatê-la com argumentos racionais, e a proibição só deve ser usada como último recurso, quando o intolerante recorre a "punhos e pistolas", ou seja, à violência.

E o que uma plataforma como o Facebook, por exemplo, faz diante do discurso de ódio? Em texto sobre o tema, a empresa afirma excluir por mês quase 300 mil postagens denunciadas como discurso de ódio por meio de checadores e conselhos decisórios. A plataforma admite cometer erros nesse processo ao apagar conteúdo de teor político legítimo, mas nega que seu algoritmo tenha viés contra correntes políticas específicas.

A população discorda. Nos EUA, uma pesquisa do instituto Pew apontou que 90% dos republicanos (partido de Trump) e 59% dos democratas (partido de Biden) avaliam que as plataformas de redes sociais censuram suas opiniões políticas.

Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, combater o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a liberdade de expressão, mas evitar que ele se transforme em algo ainda mais perigoso, como incitações a discriminação, hostilidade e violência, que são proibidas na lei internacional.

Há cinco elementos de um discurso de ódio com grandes chances de catalisar ou amplificar a violência de um grupo contra outro, aponta a jornalista americana Susan Benesch, fundadora do projeto Fala Perigosa:

1. A pessoa que discursa tem bastante influência sobre o público;

2. O discurso claramente incita a violência;

3. O público tem medos ou mágoas que podem ser usados pela pessoa que discursa;

4. O local tem uma aceitação maior a episódios de violência (por já ter vivenciado vários deles, por exemplo);

5. O meio de transmissão desse discurso, como rádios e emissoras de TV, tem bastante influência e popularidade no local.

Para alguns especialistas, um exemplo recente de como o discurso chegou às vias de fato ocorreu durante o governo Trump. O FBI, polícia federal americana, registrou no período um aumento de quase 20% dos crimes de ódio, puxado por ataques a latinos e pessoas transgênero.

Houve uma explosão de casos logo após a eleição de Trump em 2016, e 2019 foi o período mais violento no país em 16 anos.

O Brasil registrou algo parecido no segundo turno da eleição de 2018, em que Bolsonaro saiu vitorioso. Segundo a ONG SaferNet, o número total de denúncias de discurso de ódio, como intolerância religiosa e xenofobia, mais que dobrou em relação ao pleito de 2014, de 14.653 para 39.316. Houve também aumento de denúncias de lgbtfobia (discriminação contra pessoas que não são heterossexuais), principalmente na internet.

Desde 2018, houve também um aumento considerável de ataques à liberdade de imprensa, considerada um dos pilares da liberdade de expressão.

"Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro. Qualquer revelação da mídia que ameace os seus interesses ou de seu governo desencadeia uma nova rodada de ataques verbais violentos, que fomentam um clima de ódio e desconfiança em relação aos jornalistas no Brasil", afirma a entidade Repórteres sem Fronteiras, que incluiu Bolsonaro em sua lista global de predadores da liberdade de imprensa.

Em resposta a essas críticas e acusações, Bolsonaro, Trump e seus apoiadores afirmam que os grandes veículos de comunicação e as plataformas de redes sociais agem contra eles com notícias falsas, discriminação e perseguição a posições políticas que não são de esquerda.

Além da corrosão na confiabilidade da imprensa, a liberdade de expressão também é ameaçada pela crescente disseminação de notícias falsas, afirmaram MacKenzie Common e Rasmus Nielsen, pesquisadores da Universidade de Oxford, em relatório à ONU em 2021.

Segundo eles, países podem adotar medidas de combate à desinformação vagas demais que acabem servindo para restringir a livre expressão, ao serem usadas "seletiva ou indiscriminadamente por governos para incentivar ou obrigar empresas privadas a policiar o conteúdo de modo que fira a livre expressão e restrinja o debate público". Entre os exemplos citados pelos pesquisadores estão Vietnã, Turquia e Paquistão.

Ao redor do mundo, as respostas sobre como os governos devem agir dependem da corrente política de cada cidadão, do gênero, da idade, da origem, entre outras características.

Os Estados Unidos costumam ser o país que mais defende uma ampla liberdade de expressão, mas nem toda a sociedade americana apoia essa liberdade toda.

Em 2015, um levantamento do instituto de pesquisa Pew apontou que 40% das pessoas de 18 a 35 anos defendiam nos EUA que o governo pudesse impedir ofensas públicas a minorias. Esse apoio cai para 12% entre as pessoas de 70 a 87 anos. A oposição a limites é maior entre homens, brancos, pessoas mais velhas, pessoas com menor escolaridade e eleitores do Partido Republicano (dos ex-presidentes George W. Bush e Donald Trump).

Ao todo, 28% dos americanos defendem que o governo restrinja as ofensas públicas contra minorias. Na Alemanha, o patamar é de 70%.

Especialistas afirmam que debate sobre limites à liberdade de expressão deve passar também por mudanças contra a opressão a minorias

Seis anos depois, o instituto Pew publicou um levantamento com cidadãos de quatro países sobre assuntos como o politicamente correto e o discurso ofensivo. Apenas na Alemanha a maioria dos cidadãos concordou que "as pessoas devem ser cuidadosas com o que dizem para evitar ofender os outros".

Na direção oposta, a maioria das pessoas na França, nos EUA e no Reino Unido afirmou que "as pessoas hoje se ofendem fácil demais com o que os outros dizem".

A principal divergência entre essas duas posições se dá nos EUA: 65% das pessoas de esquerda defendem o cuidado com discurso ofensivo, e apenas 23% das pessoas de direita concordam com isso.

A socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes (Universidade Livre de Berlim) defende que todo esse debate sobre liberdade de expressão e seus limites e soluções deveria passar também por livrar as pessoas da opressão antes se discutir a linguagem.

"É preciso libertar as pessoas da opressão também. E aí tudo se torna natural, porque se você tem uma sociedade que é mais feminista e menos machista, você não vai precisar ficar regulando as coisas machistas que as pessoas falam porque elas não vão sentir necessidade de falar isso. Porque se promoveu mudanças mais profundas", afirma Fernandes.

Para o linguista e professor Sírio Possenti (Unicamp), as palavras ou expressões não carregam significados intrínsecos, em si, mas, sim, significados consolidados nas estruturas e relações sociais e culturais.

Por isso, diz Possenti, se uma sociedade é racista, mudar os termos considerados ofensivos (ou criminosos) por outros mais "neutros" somente não tornará as relações ou os falantes menos ou mais racistas, e os significados preconceituosos acabarão sendo carregados e reproduzidos nas novas expressões substitutas.

*Texto publicado originalmente nBBC News Brasil.


Alberto Aggio: O paradoxal e iluminante conceito de "revolução passiva"

Revolução passiva expressa combinação de continuidade e mudança ou uma dialética entre conservação e renovação

Alberto Aggio / Horizontes Democráticos

La Liberté guidant le peuple, Delacroix, 1830

"O conceito de revolução passiva é reconhecidamente um dos pilares dos escritos gramscianos e alude originariamente a transformações históricas ocorridas a partir do século XIX, como desdobramento dos impactos da Revolução Francesa de 1789 na Europa. Esta categoria, voltada para a compreensão de processos de imposição capitalista nos quais não ocorreram ou fracassaram revoluções político-sociais, ou mesmo para compreender as dinâmicas político-sociais que se desdobraram de processos revolucionários que perderam ou arrefeceram este caráter, assume, como afirma Gramsci, o estatuto mais geral de um critério de interpretação na análise “de toda época complexa de transformações históricas” (GRAMSCI. 2002, p. 331)."

Reconhecendo que essa é uma formulação geral, é importante ter em conta que há nos Cadernos do Cárcere um certo ritmo no desenvolvimento do conceito que, de acordo com Gramsci, parte de um pressuposto: “O conceito de ‘revolução passiva’ deve ser deduzido rigorosamente dos princípios fundamentais de ciência política: 1) nenhuma formação social desaparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar para um novo movimento progressista; 2) a sociedade não se põe tarefas para cuja solução ainda não tenham germinado as condições necessárias, etc.”(GRAMSCI, 1975, p. 1827).

A preocupação de Gramsci estaria em compreender essencialmente os nexos que vinculam economia e política e, por conseguinte, o lugar do Estado, nos processos de afirmação da modernização capitalista que acabaram conformando, historicamente, processos de transformação real da sociedade muito menos óbvios do que aquele que se tornou o clássico exemplo da “revolução em ativação”, a Revolução Francesa de 1789. Para se compreender tais processos se deveria levar em conta, de acordo com Gramsci, que “o impulso para a renovação pode ser dado pela combinação de forças progressistas escassas e insuficientes em si mesmas (a despeito de seu elevadíssimo potencial, porque representam o futuro de seu país) com uma situação internacional favorável a sua expansão e vitória”. Desta forma, “quando o impulso do progresso não se encontra intimamente vinculado a um vasto desenvolvimento econômico local, que é artificialmente limitado e reprimido, mas que é o reflexo do desenvolvimento internacional que manda à periferia suas correntes ideológicas, nascidas com base no desenvolvimento produtivo dos países mais avançados, então, o grupo portador das novas ideias não é o grupo econômico, mas a camada de intelectuais, e a concepção de Estado da qual faz propaganda muda de aspecto: este é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional”(GRAMSCI, 1999. p. 428).

Por meio desta referência, pode-se inferir que a revolução passiva, compreendida como um critério de interpretação, possibilita pensar processos bastante variados de construção estatal e de modernização capitalista, implicando a sua verificação por meio da análise histórica. Isto porque a modernização capitalista e o Estado moderno não se generalizaram por meio de uma “revolução em ativação”, ainda que Gramsci tenha chamado atenção para o fato de que a Revolução Francesa de 1789 tenha “criado uma mentalidade”.

Risorgimento italiano – iconografia

De um ponto de vista teórico, a epistemologia gramsciana da “revolução sem revolução”, de acordo com Luisa Mangoni (1987), tende a individualizar um procedimento metodológico circular, isto é, “de um fenômeno definido como um paradigma interpretativo mais geral que, por sua vez, deve ser verificado concretamente à luz de específicas exemplificações históricas”. Para a mesma estudiosa, trata-se de um método de trabalho que “comporta uma progressiva articulação da mesma hipótese inicial”.

Supor, como se afirmou acima, que pode-se supor a existência da revolução passiva onde se dá “uma combinação de forças progressistas escassas e insuficientes por si mesmas… com uma situação internacional favorável à sua expansão e vitória”, implica trabalhar com a ideia de que “a complexa realidade política que está contida na ‘expressão metafórica’ da Restauração não pode ser lida como puro processo de conservação, a partir do momento que detrás do aparente imobilismo de uma ‘envoltura política’ ocorre, na realidade, uma transformação molecular das ‘relações sociais fundamentais’” (MANGONI, 1987). A metáfora da Restauração, referida ao período posterior à queda de Napoleão Bonaparte, que implicou o restabelecimento das monarquias na Europa, à primeira vista, esconde a sua verdadeira natureza de uma “evolução reformista” na qual o fundamental é a “transformação molecular” que se processa (DE FELICE, 1978). A revolução passiva, “uma construção linguística propositalmente paradoxal”, não pode ser vista, portanto, como uma reação integral à mudança social, esta sim melhor definida como uma “contrarrevolução” (VIANNA, 1997).

Aprofundando mais a abordagem do conceito, podemos dizer que a revolução passiva expressa essencialmente uma combinação de continuidade e mudança ou uma dialética entre conservação e renovação. Num processo desta natureza, o conjunto da sociedade é afetado pela modernização, como um processo de mudança estrutural, sem que haja uma transformação político-social de caráter radical. Analiticamente, a revolução passiva se reporta, portanto, a situações onde as soluções são, em geral, encaminhadas “de cima”, com o Estado e a camada de intelectuais vinculada a ele exercendo um papel preponderante, uma vez que atuam em substituição a uma burguesia estruturalmente débil na transição do momento econômico-corporativo para o ético-político, ou seja, na construção e consolidação do Estado moderno.

Gramsci sugeriu que o americanismo fordista teria sido também uma revolução passiva

O tipo de acordo político eventualmente firmado (formalmente ou não) entre frações das classes dominantes, mais avançadas ou retardatárias do ponto de vista econômico, ou mesmo com outros segmentos ou grupos sociais (como as camadas médias), assim como a ausência ou não de uma aliança com as massas populares, além da incompletude da reforma intelectual e moral ou do grau de frustração no processo de afirmação de uma vontade nacional-popular, à moda jacobina, transformadora do aparelho estatal, são todos elementos que compõem analiticamente o conceito e que necessitam da verificação caso a caso, para que se possa aferir os resultados e as possíveis alternativas que existiam diante dos sujeitos históricos.

Se é correto afirmar que a revolução passiva, como um critério de interpretação, refere-se historicamente a processos diferenciados de formação, consolidação e defesa do bloco histórico da sociedade capitalista, ou seja, aos processos pelos quais “o grupo econômico portador da função produtiva alcança sua elaboração superior, fundando um novo tipo de Estado, desenvolvendo um complexo de superestruturas novas” para dar suporte à “expansão generalizada de uma nova sociedade civil” (KANOUSSI & MENA, 1985, p.125/6), também é importante ressaltar que o conceito de revolução passiva possibilita uma ampla abertura para a análise histórica da “forma política que permite ao capital conservar o poder”, ou seja, do “reformismo preventivo dos Estados modernos” (KANOUSSI & MENA, 1985, p. 109 e 125). Em outros termos, pode-se sinteticamente dizer que a revolução passiva alude aos processos históricos de formação dos Estados nacionais e também à etapa de crise burguesa subsequente à sua consolidação originária, que demandará a intervenção do Estado na absorção da crise e regulação da função produtiva.

Remo Bodei afirma que “em todos os lugares, de fato, assiste-se a revoluções passivas, na Europa e na América, tentativas de racionalização da economia e de controle do consenso”; o mesmo autor observa que na história da Itália “uma série contínua de revoluções passivas” (BODEI, 1978:104/106). Franco De Felice observa que o conceito de revolução passiva é desenvolvido por Gramsci de forma a atingir graus de especificações determinados. Nesta chave de análise, Gramsci interpretou tanto a fase posterior à Grande Guerra e à Revolução de Outubro quanto a emergência do que ele chamou de americanismo, como “governo das massas e governo da economia (…), estas novas casamatas através das quais passa a reconstituição do aparelho hegemônico das classes dominantes” (DE FELICE, 1978, p. 210).

Gramsci como ícone de manifestações no Dia do Trabalho na Itália

Em relação ao trânsito ao primado burguês, além da passagem de caráter revolucionário, Gramsci concebe a possibilidade da imposição do “transformismo”. Neste sentido, após a avaliação da “Restauração” conforme exposto acima e a admissão de que o critério da revolução passiva serve para pensar a generalização do predomínio da burguesia, não apenas o caso francês passa a ser visto como “atípico” como também se junta aos países retardatários neste processo, como foram a Alemanha e a Itália, nada menos do que a Inglaterra. Existe aqui uma indicação importantíssima. Ela se expressa no fato de que a revolução passiva não pode ser vista como um fenômeno atinente apenas a países retardatários. Em outros termos, a revolução passiva não pode ser tomada exclusivamente como um critério de interpretação da passagem do “Oriente” ao “Ocidente” pela via da modernização, ainda que seja inteiramente pertinente a sua utilização para se compreender processos de modernização ou de “ocidentalização”.

Como se sabe, o qualificativo de “retardatário” aplicado a alguns países se prende fundamentalmente à construção tardia do seu Estado moderno e se expressa, na avaliação gramsciana, ao que se pode compreender como um “primeiro ciclo” da revolução passiva, aquele posterior à conjuntura europeia entre 1789 e 1848, o ciclo do Risorgimento italiano. Um “segundo ciclo” seria aquele desencadeado depois da Guerra de 1914 a 1918, do qual fazem parte o fascismo – resultante da primeira onda de revolução passiva depois da Revolução de Outubro –, o americanismo e o fordismo – fenômenos, novos à época, da fortaleza estrutural demonstrada pelo capitalismo – e, por fim, indo além de Gramsci, a socialdemocracia e o Estado de Bem-estar social do pós-guerra – manifestas expressões da pouco compreendida, mas cristalina “revolução passiva europeia” (VIANNA, 1995; VACCA, 1991).

Neste segundo ciclo, estabelece-se um nexo de continuidade entre fenômenos aparentemente distintos mas que, por fim, evidenciam uma nova fase assumida pelo capitalismo, na qual passavam a predominar os modernos processos moleculares de transformismo social. Desta forma, a revolução passiva dessa fase poderia ser verificada no “fato de (se) transformar a estrutura econômica, ‘reformisticamente’, de individualista em economia segundo um plano” (GRAMSCI, 1975, p.1089; GRAMSCI, 1999, p.299/300), contraditando a prevalência individualística na esfera econômica e indicando a “necessidade imanente de (se) chegar à organização de uma economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estadoem sua trama privada.

A figura de Gramsci num mural em Firenze, Itália

Ocorre, assim, uma operação sutil de ampliação do conceito, visando apanhar as mudanças que se processaram historicamente: da tentativa de apreensão das formas pelas quais se processou a metamorfose “dos sujeitos sociais dominantes”, a revolução passiva passa a aludir, politicamente, ao modo de ser dos “seres dominantes” (DE FELICE, 1978, p.194). Avança-se, desta maneira, para a possibilidade de se observar e compreender não apenas as modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno. Em outras palavras, nesta nova conformação, esta “moderna revolução passiva” (KANOUSSI & MENA, 1985) se reporta, assim, a uma fase capitalista distinta da época da formação dos Estados Nacionais.

Neste contexto, opera-se a difusão da hegemonia burguesa entre as massas, “amplia-se o seu Estado, captura-se e assimila-se elementos importantes da cultura das classes subalternas, com o propósito apenas aparentemente paradoxal de organizar as massas “para mantê-las desorganizadas”; enfim, exclui-se a experiência estatal das massas, mas contempla-se, ainda que restritiva e controladamente, seus interesses econômico-corporativos. Nesta fase, marcada, de um lado, pelo desenvolvimento desigual do capitalismo a nível mundial, e de outro, pela pujança, universalização e “alcance objetivo” do fenômeno do “americanismo”, o Estado já não é mais o “vigilante noturno” ou “gendarme” e sim um Estado moderno que solda instituições e massas e que intervêm centralizadamente no processo de reprodução social do capital, mediando produção e consumo.

Portanto, ademais do chamado “diagnóstico da fase” presente na avaliação das mudanças morfológicas pelas quais passa o capitalismo, Gramsci adiciona uma outra abordagem dos processos de trânsito à ordem burguesa que se configura como decisiva para fundamentar a revolução passiva como um critério de interpretação. Trata-se da possível distinção entre modalidades de revolução passiva.

Mostra Gramsci em Milão (2017) expos os originais dos Cadernos e os livros de Gramsci na prisão

As gradações no processo de ingresso e solidificação do predomínio burguês estabelecidas por Gramsci entre Itália, Alemanha e Inglaterra são elucidativas. Não se trata apenas de estabelecer uma distinção em relação aos processos de alteração da ordem tradicional, sem levar em conta a luta política e a conquista do poder. Para Gramsci, a Itália se configura como o processo mais atrasado de revolução passiva, em comparação com os dois outros, porque é aí que a burguesia se mostrou mais débil e o jacobinismo mais ausente. “É a maior ou menor presença ativa do portador da antítese, mesmo que derrotado, o que singulariza uma forma atrasada de uma forma avançada” de revolução passiva, sintetiza Luiz Werneck Vianna. Continua o mesmo autor: “a variável-chave na tipologia gramsciana sobre processos de revolução passiva está no elemento jacobino” (…) “nem toda revolução passiva se cumpre com plena subsunção da antítese pela tese: o ator subordinado pode ser ativo (ou ter sido), sobretudo deve, e é a sua ação que vai qualificar o resultado final como mais ou menos ‘atrasado’”(VIANNA, 1997, p.73-74). Neste quadro comparativo, a Alemanha expressaria um processo intermediário, de presença ativa, mas de frustração do elemento jacobino, e a Inglaterra – com seu “transformismo ininterrupto” – a mais avançada modalidade de revolução passiva, uma vez que o jacobinismo se afirmou como parte constitutiva das origens da história moderna britânica.

Mesmo assim, a versão mais atrasada de um processo de revolução passiva não se configura como capaz de impedir que a hegemonia burguesa se faça pela introdução de elementos de “progresso” na formação social. Pela situação internacional, o processo de imposição burguesa e de modernização capitalista se torna irrefreável em seus efeitos de irradiação e expansão. Nestas circunstâncias, em todas as modalidades de revolução passiva o problema está em saber em que graualcance e através de que formas as classes subalternas terão constrangido o seu protagonismo.

Pode-se admitir, assim, que há modalidades específicas de revolução passiva condicionadas ou determinadas pelo tipo de ativação alcançado ou conquistado pelas classes subalternas. Não se trata, como advertiu Gramsci, da inversão dos sinais, em chave de “antirrevolução passiva”, ou, ao contrário, do ator subalterno, em prospecção, assumir para si a revolução passiva como “programa”. Gramsci chamava atenção para o fato de que o conceito de revolução passiva continha o “perigo do derrotismo histórico, ou seja, de indiferentismo, porque a formulação geral do problema pode fazer crer num fatalismo etc.; mas a concepção permanece dialética, isto é, pressupõe e até postula como necessária uma antítese vigorosa e que disponha intransigentemente em campo todas as sua possiblidades de explicitação”. 

Entretanto, a modernização também carrega consigo um processo inelutável de democratização social que, do ponto de vista das classes subalternas, demanda e demandou uma ação política realista no sentido de “traduzir a revolução passiva” num outro signo: o de fazer com que a mudança venha a preponderar sobre a conservação. É esta avaliação que possibilitou a Gramsci sistematizar a complexidade que havia assumido a sociedade moderna: a revolução passiva expressaria, simultaneamente, positividade “em termos de processo, uma vez que, no seu curso, a democratização social, por meio de avanços moleculares, se faz ampliar” e negatividade “porque a ação das elites se exerce de modo a ‘conservar a tese na antítese’” (VIANNA, 1997).

As modalidades de revolução passiva guardam, portanto, este aspecto paradoxal e, encaradas desta maneira, aparecem à análise como processos abertos, a serem aferidos em seu percurso e resultados através do comportamento e protagonismo dos sujeitos históricos.

Se levarmos em conta a filiação e Gramsci ao marxismo e ao comunismo de sua época, não há como notar a grande inovação presente em toda essa formulação que se pode reconhecer nos escritos dos Cadernos do Cárcere. De acordo com Giuseppe Vacca, o conceito de revolução passiva formulado por Gramsci cumpre a função de “superar as limitações da teoria da história como história da luta de classes” e acabará por se tornar “um paradigma historiográfico da teoria da hegemonia” (VACCA, 2016, 143), reconhecidamente o núcleo central do pensamento político de Gramsci.

Referências

BODEI, Remo, “Gramsci: vontade, hegemonia, racionalização”. VVAA. Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.71-115, 1978.

DE FELICE, F., “Revolução Passiva, fascismo, americanismo em Gramsci” in VVAA., Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 189-257, 1978.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.1, 1999; v.5, 2002.

GRAMSCI, A. Quaderni del carcere, Torino: Einaudi, 1975.

KANOUSSI, D. & MENA, J. La Revolución Pasiva: una lectura de los Cuadernos de la Cárcel, Universidad Autónoma de Puebla, 1985.

MANGONI, L. “Rivoluzione Passiva”. Antonio Gramsci: le sue idee nel nostro tempo, Roma, Editrice L’Unità, pp. 129-130, 1987.

VACCA, G. Gramsci e Togliatti. Roma: Riuniti, 1991.

VACCA, G., Modernidades alternativas – o século XX de Antonio Gramsci. Brasília/Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2016.

VIANNA, L. W. A Revolução Passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, especialmente p. 28-88.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 07 de outubro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/revolucao-passiva-gramsci-aggio/)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-paradoxal-e-iluminante-conceito-de-revolucao-passiva/