Matheus Magenta*, BBC News Brasil
Para Ash, que é um estudioso da liberdade de expressão, as ofensivas contra o que chama de “ar que permite a todas as outras liberdades respirarem” põem em risco a participação democrática dos cidadãos, a internet, a qualidade dos governos, a diversidade, a privacidade, a educação, a liberdade religiosa, o jornalismo, a prosperidade coletiva e a busca pela verdade.
A liberdade de expressão é definida há séculos como o direito de manifestar opiniões e ideias praticamente sem obstáculos. Mas a defesa dela, na maioria dos países democráticos, passa por não violar direitos dos outros nem levar a males evitáveis.
Os problemas começam a surgir quando há discordância sobre quais seriam os limites da liberdade de expressão e quem teria o poder para defini-los. Governo? Juízes? Deputados e senadores? Quem se sentiu ofendido? A mídia? Professores? Redes sociais? Eles devem permitir ou barrar críticas e ofensas ao governo, à religião e às minorias? E o que deve ser feito em relação à pornografia e à incitação à violência?
Nenhum país democrático trata a liberdade de expressão como um direito ilimitado, acima dos demais e sem consequências. Mas os embates não se limitam às leis. Eles passam também por religião, jornalismo, universidades e internet.
As disputas nesses campos de batalha se transformaram ao longo dos anos. Se antes passavam por lutar para se expressar sem ser oprimido, hoje muitos defendem uma versão ilimitada da liberdade de expressão (inclusive para oprimir).
Para entender como esse debate surgiu e se desenvolveu no Brasil e em outros países, a BBC News Brasil detalha abaixo as origens da liberdade de expressão há milhares de anos. Em seguida, explica o que baseia os principais limites adotados (contra discurso de ódio e incitação à violência, por exemplo) e como esses limites passaram a ser considerados por alguns uma grave forma de censura.
As origens do conceito de liberdade de expressão
O marco inicial dos embates sobre limites à expressão no Ocidente é famoso. Um dos fundadores da filosofia ocidental, o grego Sócrates, é figura-chave nesta história.
Conta-se que Sócrates era conhecido como “a mosca de Atenas” e que até gostava deste apelido porque o descrevia muito bem: sua missão era provocar as pessoas por meio de perguntas e explicações que incomodavam e, sobretudo, faziam pensar.
Mas Sócrates foi condenado à morte por suas ideias e crenças nesta mesma Atenas, uma cidade que praticava e exaltava a livre expressão (e que ainda é vista quase como um sinônimo da democracia em si).
Há poucas informações disponíveis sobre o julgamento de Sócrates. Não há descrições oficiais sobre as acusações, as evidências e as leis que teriam sido desrespeitadas. Todos os registros conhecidos do processo foram feitos por dois discípulos de Sócrates: Xenofonte e Platão.
Mas muitos especialistas ressaltam que a atuação política de Sócrates antes do julgamento pode ter pesado para sua condenação.
O pensador ateniense tinha relações próximas com pessoas que eram consideradas inimigas da democracia ateniense. A exemplo de Crítias, um dos Trinta Tiranos que governaram Atenas por um breve período, e de famílias aristocráticas que preferiam a concentração de poder como a adotada por Esparta à distribuição mais igualitária de poder em Atenas.
Para parte dos atenienses, atitudes como essa faziam de Sócrates um traidor e uma ameaça à democracia. Por isso o simbolismo do caso de Sócrates, considerado por alguns um “mártir da liberdade de expressão”, ganha ainda mais força, já que sua condenação buscava, em tese, conter os danos indiretos que suas ideias, atitudes e relações causavam à democracia ateniense.
No processo, Sócrates foi acusado de introduzir novas divindades, de não reconhecer os deuses de Atenas e de corromper os jovens. Em sua defesa, ele nega ter transmitido visões subversivas, mas argumenta que também não poderia ser responsabilizado pelas ações praticadas por aqueles que ouvem suas palavras.
Ao ser condenado à morte pelo júri, Sócrates defende sua liberdade de expressão sob o argumento de que ficar em silêncio e não refletir sobre a vida a tornaria sem valor ou sentido. “Encontramos aqui a insistência de Sócrates de que todos somos chamados a refletir sobre o que acreditamos, explicar o que sabemos e o que não sabemos e, em geral, buscar, viver de acordo e defender as visões que contribuem para uma vida significativa e bem vivida”, explica o filósofo e professor James Ambury (Universidade de Notre Dame).
Para a cientista política americana Arlene Saxonhouse, autora de Liberdade de Expressão e Democracia na Antiga Atenas, o julgamento de Sócrates deve ser analisado em torno da tensão entre a disposição de falar a “verdade” com franqueza e o respeito às tradições que servem de liga aos Estados.
Saxonhouse aponta para um dos principais paradoxos desse caso. Sócrates insiste em falar verdades de forma tão aberta e desavergonhada que o próprio regime democrático não pode suportar porque se torna uma ameaça contra o próprio sistema.
Ou seja, para a cientista política, a prática pura da liberdade de expressão individual pode ameaçar liberdades e ideais coletivos, e sua existência demandaria limites e senso de respeito democrático. Tudo isso porque a expressão é um instrumento muito poderoso que serve “para incitar o outro a fazer investigações que levarão à transformação de seu próprio caráter”.
Para Saxonhouse, a condenação de Sócrates à morte foi uma violação dos princípios democráticos básicos. “Atenas, ao executar Sócrates, admitiu a dependência da cidade ao aidôs (vergonha ou pudor) e ansiava por preservar suas tradições, por resistir à exposição de suas inadequações que a parrhesia (liberdade de expressão) estava preparada para relevar. Sócrates, por outro lado, livre do respeito ao passado e livre dos limites impostos pelo olhar julgador dos outros, era o homem verdadeiramente democrático.”
O caso de Sócrates é citado por diversos defensores da liberdade de expressão, como o filósofo e economista britânico John Stuart Mill. Este considerava que a grande ameaça à liberdade de pensamento e de debate nas democracias não era o Estado, mas a “tirania social” dos outros cidadãos.
No clássico Sobre a Liberdade, de 1859, Mill afirma que silenciar a expressão de uma opinião constitui um roubo à humanidade, à posteridade, à geração atual e àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que àqueles que sustentam essa opinião — porque não terão a oportunidade de serem confrontados em sua verdade e perceberem seu erro.
Limites e transformações
Por séculos após Sócrates, a liberdade de expressão era — quando muito — privilégio de poucos.
No Reino Unido, uma lei aprovada em 1275 proibia as pessoas de expressarem qualquer coisa que gerasse desacordo entre o rei e a população. A depender da gravidade, a pena prevista era de prisão, chicotadas ou mesmo a morte.
“Apenas a elite, a monarquia e a pequena nobreza tinham o poder e o direito de falar em público. Camponeses, artesãos e classes consideradas inferiores simplesmente tinham que se submeter às chamadas classes superiores. A voz do povo era na verdade a voz das pessoas no comando”, relata historiador e professor Justin Champion, da Universidade de Londres.
Mas por que se presumia naquela época que qualquer desacordo ou expressão livre era politicamente perigosa? “Porque todos os debates são sediciosos (rebeldes contra superiores). Ponto final”, resume Champion.
A primeira grande transformação ligada à liberdade de expressão ocorre no século 15, mais especificamente em 1455, ano em que o alemão Johannes Gutenberg inventou a prensa. Esse equipamento permitiria a impressão de livros em massa e, por extensão, uma crescente difusão de informações e de conhecimento.
No século seguinte, a liberdade de expressão começa a ser vista e defendida na Europa como um valor importante para a política. “Isso começa com o entendimento de que tipos tradicionais de autoridade, como a monarquia e a Igreja, são na verdade apenas tipos de autoridade. E uma vez em que o debate é visto dessa forma, as pessoas começam a questionar quem deveria ter autoridade e por quê”, afirma a pesquisadora e professora de literatura Karen O’Brien (Universidade de Oxford).
Estima-se que o número de títulos impressos por ano na Inglaterra passou de quase 2.000 no fim do século 17 para quase 6.000 no fim do século 19, entre livros, panfletos e outros produtos do tipo. “Isso foi acompanhado por um lento, mas crescente aumento na alfabetização da população, algo que claramente representa um desafio enorme para o Estado”, afirma O’Brien. Naquela época, livros também eram lidos em público pelos letrados para aqueles que não sabiam ler.
Vale lembrar que o avanço das publicações já era acompanhado de uma espécie de censura prévia. Na Inglaterra, por exemplo, cada obra precisava de autorização da igreja ou da monarquia para ser imprensa e distribuída ou comercializada no século 17.
Mas o próprio mecanismo da censura prévia já era criticado naquele mesmo século. No panfleto Areopagítica, de 1643, o poeta britânico John Milton, trata dos prejuízos dos obstáculos inadequados à livre expressão. Para ele, por exemplo, a censura prévia prejudica a proteção da moral e da religião porque, entre outros motivos, as pessoas perdem a capacidade de identificar e contestar imoralidades a partir do próprio discernimento, da própria reflexão.
Milton acreditava que a censura prévia atrapalhava o único caminho possível em busca da verdade. Mas naquela época, Milton e muitos outros acreditavam na existência de apenas uma verdade, e não de várias verdades a depender suas crenças religiosas, políticas ou éticas, por exemplo. Ou seja, as ideias de tolerância e pluralismo eram praticamente impensáveis porque, na prática, elas significariam que não havia apenas um Estado ou apenas uma religião.
E foi exatamente o que aconteceu na prática. A religião se torna um grande campo de batalha pela liberdade de expressão a partir do século 17. O gatilho surgiu no século anterior com o monge católico e teólogo alemão Martinho Lutero e a chamada Reforma Protestante, movimento ocorrido há mais de 500 anos que deu origem ao principal desdobramento da Igreja Católica desde o cisma entre as igrejas do Ocidente e do Oriente em 1054.
Para Lutero, as pessoas deveriam ser salvas por meio de sua fé em um contato direto e individual com Deus. E não por meio de perdões concedidos por líderes católicos, de indulgências vendidas ou de intermediários para entender a mensagem de Deus (como a tradição escolástica elaborada pelos teólogos católicos).
A Reforma Protestante levou a uma explosão de correntes e entidades religiosas ligadas ao cristianismo que passaram a disputar entre si. Mas o que a liberdade religiosa tem a ver com liberdade de expressão?
“A Reforma Protestante implodiu a unidade da igreja cristã. Então, não há apenas católicos perseguindo protestantes como também protestantes perseguindo católicos. Além da incrível proliferação de vários séquitos protestantes que perseguiam uns aos outros. E todo mundo envolvido nesse drama, nesse conflito acreditava que o futuro de sua alma imortal dependia sua capacidade de se expressar e de agir da maneira que eles pensavam que Deus queria. Então, a liberdade de expressão para essas pessoas não era apenas uma questão de vida ou morte, mas uma questão de vida ou morte para a eternidade”, explica Hannah Dawson, professora de pensamento político no King’s College de Londres, em entrevista à BBC.
Melina Malik, professora de Direito da Universidade de Londres, ressalta que a ideia de liberdade de expressão é diferente entre aqueles que têm fé e aqueles que não têm. E um bom exemplo disso seria a blasfêmia (ofensa contra algo sagrado). “Mas eu acredito que a imaginação e a empatia podem permitir àqueles que não têm fé de entenderem a importância do sagrado para aqueles que acreditam e de entenderem a dor que eles podem vivenciar quando suas mais profundas crenças são atacadas por meio da expressão.”
E como dito logo acima, na prática, os princípios de tolerância e pluralismo levariam ao fim da ideia de uma só religião e também de um só Estado.
Por isso, também a partir do século 17, a democracia representativa começa a se tornar um grande campo de batalha pela liberdade de expressão. Ou seja, o poder de reis e rainhas passa gradativamente para os membros do Parlamento, que precisavam disputar eleitores por meio de suas ideias. Assim, começava a ganhar força política e autoridade a chamada opinião pública.
Uma das mais influentes defesas da liberdade de expressão na política seria publicada no século seguinte, de 1720 a 1723, pelos escritores britânicos John Trenchard e Thomas Gordon. A influência da obra Cartas de Catão seria percebida na Europa, na América e na Ásia.
“Sem liberdade de pensamento, não pode haver conhecimento; e não há qualquer liberdade pública sem liberdade de expressão; isso é direito de todo homem, na medida em que por ele não fere ou contraria o direito de outro: este é o único controle que deve sofrer, e o único limites que deve conhecer. Este privilégio sagrado é tão essencial para os governos livres que a segurança da propriedade e a liberdade de expressão andam sempre juntas; e nos países miseráveis onde um homem não pode chamar sua língua de sua, ele dificilmente pode chamar qualquer outra coisa de sua”, afirma um trecho de um dos 144 manifestos que compõem Cartas de Catão, obra contra a tirania, a corrupção e o abuso de poder inicialmente publicada em jornais britânicos.
O século 18 ainda é marcado pelo avanço das mulheres na esfera pública, tanto como leitoras como escritoras, apesar de todos os obstáculos que elas enfrentam até hoje para fazer suas vozes serem ouvidas.
“Há em todas as sociedades uma certa porção de homens para quem a tirania é, em certa medida, lucrativa. Eles consideram os defensores da liberdade uma perturbação da paz. Não há sinal mais claro de uma administração impotente ou mal arranjada do que as tentativas de restringir a liberdade de falar ou escrever”, escreveu uma das mais populares escritoras em língua inglesa daquela época, a historiadora britânica Catharine Macaulay, no oitavo volume da obra A História da Inglaterra.
Mercado de ideias
A liberdade de expressão ganharia um de seus principais pilares ainda durante o século 18: a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, país que historicamente é conhecido como um dos que mais defendem uma ampla liberdade de expressão.
É um dos poucos países com Constituição que permite espalhar discurso de ódio, negar o Holocausto e até queimar a bandeira nacional. Ao longo dos anos, a Justiça americana adotou pouquíssimos limites, como proibições à incitação da violência, à fraude e à pornografia infantil.
“O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”, afirma o texto da Primeira Emenda, que data de 1791.
O pilar da doutrina por trás da Primeira Emenda é o chamado “mercado de ideias”, cuja premissa é a crença na proteção de um ambiente livre em que as ideias e opiniões entrarão em disputa e a verdade prevalecerá no fim.
A origem da analogia com a lógica de livre comércio é apontada para Sobre a Liberdade, obra do britânico John Stuart Mill citada acima neste texto. “Mill argumenta contra a censura e a favor da livre circulação de ideias. Ao afirmar que ninguém sozinho conhece a verdade, ou que nenhuma ideia sozinha carrega a verdade ou sua antítese, ou que a verdade sem confrontação acabará sendo um dogma, Mill defende que a livre competição de ideias é a melhor forma de separar falsidades dos fatos”, explica o cientista político e professor americano David Schultz (Universidade Hamline) na Enciclopédia da Primeira Emenda.
Essa metáfora de um mercado de ideias ganharia forma na prática no início do século 20 com uma decisão do juiz da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes. Segundo ele, “o melhor teste para a verdade é o poder do pensamento de se fazer aceito na competição do mercado”, sem qualquer interferência governamental ou restrição à liberdade.
Apesar da grande influência da Primeira Emenda na defesa da liberdade de expressão nos EUA e em outros países, esse conceito de livre mercado de ideias é alvo de muitas críticas ao redor do mundo.
Para diversos especialistas, como qualquer outro tipo de mercado, o chamado mercado de ideias demanda regulação. Afinal, os participantes não têm, por exemplo, o mesmo peso político ou econômico nem os mesmos valores éticos.
Outra crítica é que um dos principais “mercados” atuais, as redes sociais, tem algoritmos, vieses e regras que não representariam um mercado realmente livre de ideias. Algo parecido costuma ser dito sobre outro “mercado”, o jornalismo.
Para além dessas limitações práticas nos mercados de ideias concretos, “inexiste evidência de que nas circunstâncias atuais a verdade prevaleça sobre a falsidade nas sociedades onde exista uma maior proteção à liberdade de expressão”, escreve a advogada criminalista Milena Gordon Baker no livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro.
Baker cita diversos casos, aliás, em que falsidades continuam em circulação na sociedade apesar de os fatos serem inquestionáveis, a exemplo da negação infundada da existência do Holocausto, em que foram mortos pelos nazistas mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, integrantes da etnia roma e outras minorias.
No século 20, a liberdade de expressão passaria a ser reconhecida como um direito universal. Em 1948, a Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU) insere o conceito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, “uma norma comum a ser alcançada por todos os povos”.
Segundo o artigo 19 do texto, “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Atualmente, os limites à liberdade de expressão nos países democráticos estão previstos em leis e preveem punições a crimes ligados à expressão, como incitação à violência, sedição (motim contra autoridades), difamação, calúnia, blasfêmia, racismo e conspiração.
No Brasil, a trajetória da liberdade de expressão é repleta de idas e vindas.
Em 1808, quando a família real portuguesa transferiu a Corte para o Brasil ao fugir das tropas francesas, um dos primeiros jornais brasileiros era editado e impresso na Inglaterra porque o editor e fundador do Correio Braziliense enfrentaria no Brasil um cenário de censura prévia e perseguição a jornalistas.
Apesar de proibições à circulação e à leitura do jornal no Brasil por causa de sua oposição à Coroa portuguesa, o Correio Braziliense e outras publicações conseguiam chegar e circular de forma clandestina no país.
O direito à liberdade de expressão apareceria pouco depois na primeira Constituição brasileira, a de 1824, que entrou em vigor dois anos após a declaração de independência do Brasil em relação a Portugal.
“Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritas e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura, contando que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito, nos casos e pela forma que a lei determinar”, afirmava o artigo 179 daquele texto constitucional.
Com o fim da monarquia e a proclamação da República, em 1889, a liberdade de expressão avança e regride em curtos espaços de tempo. A exemplo da era Vargas, que em 1934 previu esse direito na Constituição, mas no ano seguinte criou um departamento para instituir a censura dentro dos jornais.
Outro revés para a liberdade de expressão conhecido se daria durante a ditadura militar (1964-85), com a volta da censura prévia, fechamento de jornais, perseguição a profissionais como artistas e jornalistas e a criação da chamada Lei de Imprensa (que instituiria crimes como “ofensa à hora do presidente” ou “propaganda subversiva”), entre outras medidas autoritárias.
Com o fim da ditadura militar em 1985, a nova Constituição de 1988 traria de volta a liberdade de expressão sem censura prévia e outros instrumentos. “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, diz o artigo 220 do texto constitucional em vigor atualmente no país.
Impacto da internet na liberdade de expressão
Mas, poucas décadas depois, o surgimento da internet levaria à maior transformação — e crise — da liberdade de expressão desde a invenção da prensa, no século 15, quando livros, jornais e panfletos passaram a circular em massa.
O novo ambiente de disseminação de informação agravou ou criou embates sobre o tema que as leis não conseguem acompanhar. Entre eles, a disseminação de discurso de ódio e notícias falsas, a incitação à violência, os algoritmos enviesados contra determinadas correntes políticas, a chamada cultura do cancelamento, o direito ao esquecimento e o poder das empresas de tecnologia de excluir usuários e conteúdos.
Como o caso do ex-presidente americano Donald Trump, que protagonizou o mais polêmico debate contemporâneo sobre liberdade de expressão.
Em 6 de janeiro de 2021, ele ainda era presidente dos EUA quando discursou publicamente e usou redes sociais para contestar sua derrota na eleição e incentivar apoiadores a irem até o Congresso e “demonstrar força”. Em seguida, centenas de pessoas que ouviram o discurso invadiram a Casa Legislativa para tentar impedir a certificação do resultado das urnas. Cinco pessoas morreram.
Dias depois, Trump foi banido do Facebook, do YouTube e do Twitter por incitação à violência, crime que levou à aprovação do seu segundo impeachment pela Câmara dos Representantes. Ou seja, suas palavras levaram a ações concretas de violência de acordo com esse julgamento.
Esse banimento de sua plataforma política para milhões de seguidores levou a acusações de censura, discriminação política e violação do direito à liberdade de expressão. Uma empresa privada tem o poder de barrar o presidente do país mais poderoso do mundo?
“Ter que tomar essas ações fragmenta o diálogo público. Nos divide. Limita o potencial de esclarecimento, redenção e aprendizado. E estabelece um precedente que acredito ser perigoso: o poder que um indivíduo ou empresa tem sobre uma parte da conversa pública global”, admitiu o então presidente-executivo do Twitter, Jack Dorsey. A disputa foi levada aos tribunais, e Trump acabou derrotado.
As críticas às plataformas de redes sociais no caso Trump ilustram o que especialistas enxergam como certa inversão de papéis entre a esquerda e a direita no antigo debate sobre liberdade de expressão.
Antes, as vozes que lutavam por mais espaço no debate público e menos obstáculos às críticas aos donos do poder eram majoritariamente ligadas à esquerda. Agora, nomes da direita brasileira, por exemplo, dizem ser ilegalmente tolhidos por redes sociais, veículos de comunicação e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apoiadores importantes do presidente brasileiro Jair Bolsonaro tiveram contas ou conteúdos apagados de redes sociais em meio a investigações no STF sob acusação de disseminação de informações falsas e discurso de ódio contra autoridades e participação em atos antidemocráticos.
Para o Twitter e o Google, em manifestações feitas no âmbito em processo judicial no STF, a determinação da Corte de excluir as contas é “desproporcional” e pode configurar “censura prévia”. O argumento das plataformas é que o Marco Civil da Internet demanda que a ordem judicial aponte especificamente qual conteúdo é ilegal, e não apontar de forma genérica o perfil como um todo.
“Embora as operadoras tenham dado cumprimento à ordem de bloqueio da conta indicada por vossa excelência, o Twitter Brasil respeitosamente entende que a medida pode se mostrar, data máxima venia, desproporcional, podendo configurar-se inclusive como exemplo de censura prévia”, afirmou o Twitter. “Ainda que o objetivo seja impedir eventuais incitações criminosas que poderiam vir a ocorrer, seria necessário apontar a ilicitude que justificaria a remoção de conteúdos já existentes”, disse o Google.
O próprio Bolsonaro, que defende maior regulação sobre as redes sociais e quer impedi-las de excluir usuários e conteúdos sem justa causa, é investigado pela Corte e já teve excluídas postagens com informações falsas sobre o coronavírus por decisão das próprias empresas de tecnologia.
Em conflitos políticos como o de Trump e o de Bolsonaro, a defesa da liberdade de expressão mostra como vem sendo cada vez mais usada como arma pela direita e pela extrema-direita ao redor do mundo, afirma a historiadora e professora americana Joan Wallach Scott (Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton).
Segundo Scott, o objetivo da defesa da liberdade de expressão aqui deixou de ser aceitar opiniões diversas, mas, sim, confundir e disseminar informações falsas nas disputas com a esquerda sobre temas como feminismo, vacinas, direitos dos homossexuais e currículo das universidades.
Ao provocar repúdio, protestos e às vezes violência, diz Scott, a direita atrai holofotes e se apresenta como vítima de discriminação, cancelamento, discurso politicamente correto e censura. Como resultado, os temas caros à esquerda deixam de ser o foco dos debates.
Para a jurista e feminista americana Catharine MacKinnon, a liberdade de expressão deixou de ser “uma proteção para dissidentes, radicais, artistas, ativistas, socialistas, pacifistas e desvalidos para se tornar uma arma para autoritários, racistas, misóginos, nazistas, supremacistas, pornógrafos e corporações que compram eleições na surdina”.
Por outro lado, o jurista e professor americano Alan Dershowitz (Universidade Harvard) afirma que a liberdade de expressão enfrenta sua maior ameaça em 200 anos graças à “censura” liderada por progressistas em esferas privadas, como universidades e redes sociais, onde a lei não alcança.
“Tornou-se perigoso para carreiras, amizades e discurso público ficar do lado de direitos constitucionais e liberdades civis quando esses direitos e liberdades acabam por beneficiar Donald Trump”, afirma Dershowitz.
O professor e pesquisador brasileiro Wilson Gomes (UFBA) aponta contradições desse conceito de liberdade de expressão absoluta que ele classifica como libertarianista (corrente mais radical do liberalismo que prega uma enorme redução da interferência do Estado na vida dos cidadãos).
“Não existe liberdade de expressão absoluta. Só nessa concepção libertarianista. Ou seja, ‘eu posso dizer o que quiser, eu posso falar o que quiser, posso me comportar como queira e o Estado não pode pode censurar o que eu digo, e nem a Lei nem nada pode me punir’. Nem eles acreditam nisso. Porque, no fundo, no fundo, a qualquer momento eles partem para cima de outros. Os professores não podem ter liberdade de expressão, por exemplo, porque isso seria a doutrinação comunista”, afirma Gomes, autor de Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder.
Limites ao discurso de ódio x acusações de censura
Não há uma definição universal sobre o que é discurso de ódio, mas segundo a ONU, ele pode ser entendido como qualquer tipo de comunicação que ataque ou use termos pejorativos contra uma pessoa ou um grupo com base em sua religião, nacionalidade, etnia, cor de pele, raça, gênero ou qualquer outro elemento de identidade.
A tolerância ao discurso de ódio varia de um país para outro. “O sistema jurídico americano proíbe o discurso do ódio o mais tarde possível — apenas quando há perigo iminente de atos ilícitos. Já a jurisprudência alemã coíbe o discurso do ódio o mais cedo possível”, exemplifica o jurista alemão Winfried Brugger.
No Brasil, a lei federal 7.716/89 prevê prisão para quem comete discriminação contra os outros por causa de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em 2019, o STF decidiu que declarações homofóbicas também deveriam ser enquadradas no crime de racismo. A pena vai de um a três anos de prisão, pode chegar a cinco nos casos mais graves.
O momento-chave para esse debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio no Brasil ocorreu em 2003 durante um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Tratava-se do caso de Siegfried Ellwanger Castan (1928-2010), um brasileiro que foi um editor de livros antissemitas e de negação do Holocausto. Ele já havia sido condenado por racismo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas recorreu ao STF, que manteve a condenação.
“O caso foi muito importante pois a Corte chegou a um entendimento sobre dois pontos”, disse à BBC News Brasil o jurista, ex-ministro e professor emérito Celso Lafer (USP), que atuou no julgamento como amicus curiae (convidado a dar seu parecer no tribunal sobre um assunto de grande relevância). “O primeiro que antissemitismo se enquadra como crime de racismo. O segundo ponto foi sobre a amplitude da liberdade de expressão: existe ou não e quais os limites à liberdade de expressão.”
No acórdão sobre a condenação de Ellwanger, o STF deixou claro que, embora a liberdade de manifestação do pensamento seja um direito garantido pela Constituição, ele não é um direito absoluto e há limites morais e jurídicos.
E a legislação, quando define o crime de racismo, deixa bem claro que discurso de ódio é um desses limites pois fere o direito à dignidade humana de quem é alvo desse discurso.
“O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação do racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os direitos contra a honra”, escreveu o ministro Maurício Correa. “Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade.”
Há muitos riscos coletivos em torno da livre circulação de discurso de ódio sob o pretexto de tolerância com ideias e opiniões diferentes. É o que pensava o filósofo da ciência austríaco Karl Popper, que cunhou o termo “paradoxo da tolerância” para discutir como uma tolerância ilimitada ao discurso de ódio põe em risco a democracia e, por extensão, pode levar ao desaparecimento da própria tolerância.
Para Popper, a melhor forma de combater a intolerância é debatê-la com argumentos racionais, e a proibição só deve ser usada como último recurso, quando o intolerante recorre a “punhos e pistolas”, ou seja, à violência.
E o que uma plataforma como o Facebook, por exemplo, faz diante do discurso de ódio? Em texto sobre o tema, a empresa afirma excluir por mês quase 300 mil postagens denunciadas como discurso de ódio por meio de checadores e conselhos decisórios. A plataforma admite cometer erros nesse processo ao apagar conteúdo de teor político legítimo, mas nega que seu algoritmo tenha viés contra correntes políticas específicas.
A população discorda. Nos EUA, uma pesquisa do instituto Pew apontou que 90% dos republicanos (partido de Trump) e 59% dos democratas (partido de Biden) avaliam que as plataformas de redes sociais censuram suas opiniões políticas.
Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, combater o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a liberdade de expressão, mas evitar que ele se transforme em algo ainda mais perigoso, como incitações a discriminação, hostilidade e violência, que são proibidas na lei internacional.
Há cinco elementos de um discurso de ódio com grandes chances de catalisar ou amplificar a violência de um grupo contra outro, aponta a jornalista americana Susan Benesch, fundadora do projeto Fala Perigosa:
1. A pessoa que discursa tem bastante influência sobre o público;
2. O discurso claramente incita a violência;
3. O público tem medos ou mágoas que podem ser usados pela pessoa que discursa;
4. O local tem uma aceitação maior a episódios de violência (por já ter vivenciado vários deles, por exemplo);
5. O meio de transmissão desse discurso, como rádios e emissoras de TV, tem bastante influência e popularidade no local.
Para alguns especialistas, um exemplo recente de como o discurso chegou às vias de fato ocorreu durante o governo Trump. O FBI, polícia federal americana, registrou no período um aumento de quase 20% dos crimes de ódio, puxado por ataques a latinos e pessoas transgênero.
Houve uma explosão de casos logo após a eleição de Trump em 2016, e 2019 foi o período mais violento no país em 16 anos.
O Brasil registrou algo parecido no segundo turno da eleição de 2018, em que Bolsonaro saiu vitorioso. Segundo a ONG SaferNet, o número total de denúncias de discurso de ódio, como intolerância religiosa e xenofobia, mais que dobrou em relação ao pleito de 2014, de 14.653 para 39.316. Houve também aumento de denúncias de lgbtfobia (discriminação contra pessoas que não são heterossexuais), principalmente na internet.
Desde 2018, houve também um aumento considerável de ataques à liberdade de imprensa, considerada um dos pilares da liberdade de expressão.
“Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro. Qualquer revelação da mídia que ameace os seus interesses ou de seu governo desencadeia uma nova rodada de ataques verbais violentos, que fomentam um clima de ódio e desconfiança em relação aos jornalistas no Brasil”, afirma a entidade Repórteres sem Fronteiras, que incluiu Bolsonaro em sua lista global de predadores da liberdade de imprensa.
Em resposta a essas críticas e acusações, Bolsonaro, Trump e seus apoiadores afirmam que os grandes veículos de comunicação e as plataformas de redes sociais agem contra eles com notícias falsas, discriminação e perseguição a posições políticas que não são de esquerda.
Além da corrosão na confiabilidade da imprensa, a liberdade de expressão também é ameaçada pela crescente disseminação de notícias falsas, afirmaram MacKenzie Common e Rasmus Nielsen, pesquisadores da Universidade de Oxford, em relatório à ONU em 2021.
Segundo eles, países podem adotar medidas de combate à desinformação vagas demais que acabem servindo para restringir a livre expressão, ao serem usadas “seletiva ou indiscriminadamente por governos para incentivar ou obrigar empresas privadas a policiar o conteúdo de modo que fira a livre expressão e restrinja o debate público”. Entre os exemplos citados pelos pesquisadores estão Vietnã, Turquia e Paquistão.
Ao redor do mundo, as respostas sobre como os governos devem agir dependem da corrente política de cada cidadão, do gênero, da idade, da origem, entre outras características.
Os Estados Unidos costumam ser o país que mais defende uma ampla liberdade de expressão, mas nem toda a sociedade americana apoia essa liberdade toda.
Em 2015, um levantamento do instituto de pesquisa Pew apontou que 40% das pessoas de 18 a 35 anos defendiam nos EUA que o governo pudesse impedir ofensas públicas a minorias. Esse apoio cai para 12% entre as pessoas de 70 a 87 anos. A oposição a limites é maior entre homens, brancos, pessoas mais velhas, pessoas com menor escolaridade e eleitores do Partido Republicano (dos ex-presidentes George W. Bush e Donald Trump).
Ao todo, 28% dos americanos defendem que o governo restrinja as ofensas públicas contra minorias. Na Alemanha, o patamar é de 70%.
Seis anos depois, o instituto Pew publicou um levantamento com cidadãos de quatro países sobre assuntos como o politicamente correto e o discurso ofensivo. Apenas na Alemanha a maioria dos cidadãos concordou que “as pessoas devem ser cuidadosas com o que dizem para evitar ofender os outros”.
Na direção oposta, a maioria das pessoas na França, nos EUA e no Reino Unido afirmou que “as pessoas hoje se ofendem fácil demais com o que os outros dizem”.
A principal divergência entre essas duas posições se dá nos EUA: 65% das pessoas de esquerda defendem o cuidado com discurso ofensivo, e apenas 23% das pessoas de direita concordam com isso.
A socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes (Universidade Livre de Berlim) defende que todo esse debate sobre liberdade de expressão e seus limites e soluções deveria passar também por livrar as pessoas da opressão antes se discutir a linguagem.
“É preciso libertar as pessoas da opressão também. E aí tudo se torna natural, porque se você tem uma sociedade que é mais feminista e menos machista, você não vai precisar ficar regulando as coisas machistas que as pessoas falam porque elas não vão sentir necessidade de falar isso. Porque se promoveu mudanças mais profundas”, afirma Fernandes.
Para o linguista e professor Sírio Possenti (Unicamp), as palavras ou expressões não carregam significados intrínsecos, em si, mas, sim, significados consolidados nas estruturas e relações sociais e culturais.
Por isso, diz Possenti, se uma sociedade é racista, mudar os termos considerados ofensivos (ou criminosos) por outros mais “neutros” somente não tornará as relações ou os falantes menos ou mais racistas, e os significados preconceituosos acabarão sendo carregados e reproduzidos nas novas expressões substitutas.
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.