colapso

Alon Feuerwerker: Deslockdown

No Distrito Federal, o governo decidiu pela volta às aulas presenciais nas escolas e pela reabertura das academias (leia). Em Manaus (AM), cidade que semanas atrás atraiu a atenção pela trágica falta de oxigênio para os pacientes graves internados nos hospitais, a mesma coisa (leia).

Nas próximas semanas veremos se as decisões foram prudentes e se o sistema hospitalar em ambas as capitais está preparado para receber o impacto.

Em São Paulo, caminhoneiros bloquearam importantes estradas e vias urbanas protestando contra o endurecimento das medidas restritivas (leia). Ainda foi um movimento limitado, mas nada indica que não possa se repetir em escala ampliada.

Até porque reflete uma disputa mais no terreno da política que da economia. De um lado, os caminhoneiros apoiadores de Jair Bolsonaro. Do outro, o governador João Doria, que a pandemia e a corrida para 2022 colocaram no canto oposto do ringue.

Dois fatores dificultam a entrada e saída organizada de lockdowns país afora. Um é a disputa política entre o presidente da República e governadores, cada vez mais fora de controle. Outro é o cansaço da população. E o crescimento deste coloca lenha na fogueira daquela.
O vírus agradece.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Marcus Pestana: O agravamento da pandemia e a emergência

“Onde há vida há esperanças” (Miguel de Cervantes).

Não é fácil acalentar a esperança quando encaramos manchetes como “País tem recorde de mortes”, “No maior salto da pandemia, país perde 1.726 em 24 horas”. Mas a esperança é o motor da vida. Um misto de pessimismo, pânico e decepção tende a tomar conta de corações e mentes num momento tão trágico. O inimigo oculto é traiçoeiro e mutante. Quando muitos achavam que a pandemia estava em seu finalzinho, o coronavírus dobrou a aposta e apareceu com carga maior de transmissibilidade e elevou o número de mortes.

A realidade está a exigir não um esforço isolado de um cavaleiro errante como Dom Quixote e sua luta contra moinhos de vento, mas uma agressiva ação unificada de governos e sociedade. Infelizmente, o Brasil lidou mal com a crise sanitária da COVID-19. Subestimamos a gravidade da pandemia, apostamos em terapias de eficácia desmentida pela ciência, assistimos a predominância do conflito nas relações políticas, emitimos sinais equivocados na mobilização da população para o comportamento social e individual preventivo. Perdemos o bonde da história na compra de vacinas. Precisamos de liderança, competência e exemplos.

Não adianta chorar o leite derramado. A situação é dramática e de emergência nacional. É hora de aprender com os erros. O roteiro da esperança é claro e conhecido, mas uma névoa de polêmicas inúteis obscurece o debate.

O lema tem que ser “vacinar, vacinar e vacinar”. Comprar todas as vacinas disponíveis num mercado global superaquecido. Poderia ser pior se não fosse a corajosa aposta do Governo de São Paulo na produção da “Coronavac”.

É inadiável aprofundar o trabalho de orientação à população, diante da ocorrência de novas cepas do vírus e do atraso na imunização, acerca do distanciamento social necessário e dos hábitos coletivos e individuais de prevenção, e recuperar a cooperação interfederativa.

Por outro lado, não podemos negar apoio a milhões de brasileiros que vivem em extrema pobreza, reestabelecendo imediatamente o auxílio emergencial viabilizado pela votação da PEC Emergencial, evitando a fome e a extrema exclusão social.

Fundamental também é perceber que os gestores públicos precisam de ferramentas e instrumentos para enfrentar a emergência nacional, rompendo temporariamente com regras feitas para tempos de normalidade. Isto, a PEC Emergencial também oferece. Inútil discutir quem está financiando o que. As transferências constitucionais são obrigatórias. Os gastos extraordinários com a pandemia estão sendo bancados por endividamento público, ou seja, pelas gerações futuras.

Precisamos integrar a saúde pública e privada neste esforço. O vírus e as mortes atingem indiscriminadamente a todos. E ter maior compreensão com prefeitos e governadores, que certamente não gostariam de fazê-lo, quando decretam paralização de atividades como medida extrema para fazer frente à calamidade sanitária. As lágrimas do governador da Bahia foram eloquentes. É falso o conflito entre vida e emprego. Não haverá recuperação econômica consistente enquanto não derrotarmos a COVID-19.

Em suma, um pouco de bom senso nesta hora não faria mal. Somado à esperança, à coragem de corrigir erros e à clareza de diminuir tensões políticas, poderemos nos concentrar no essencial: defender a vida dos brasileiros.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


João Gabriel de Lima: Cabe ao eleitor encontrar o culpado

Nos regimes presidencialistas, o mordomo costuma ser o próprio presidente

De quem é a culpa por nossas tragédias simultâneas – a da pandemia e a da economia? Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro acusou os governadores de mau uso de repasses federais. Os governadores responderam – em entrevistas, nas redes sociais e até num manifesto – afirmando que Bolsonaro mente. Segundo eles, o presidente, além de falsear números, atrapalha o combate à pandemia ao ignorar a ciência. “Será que os principais países do mundo, que adotaram o distanciamento e a vacinação como estratégia de combate ao vírus, estão errados – e o Brasil, com 260 mil vidas ceifadas, está certo?”, perguntou no Twitter o governador gaúcho Eduardo Leite

As duas tragédias se expressam em números eloquentes. Na quarta-feira, o Brasil contabilizou 74 mil novos casos de infecções pelo coronavírus, assumindo a triste liderança nessa estatística, à frente dos Estados Unidos. No mesmo dia soube-se que a economia encolheu 4,1% em 2020. Segundo cálculos de Claudio Considera, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e personagem do minipodcast da semana, a retração tira o Brasil do “top ten” da economia. Éramos o sétimo do mundo depois do ciclo social-democrata de Fernando Henrique e Lula. Com Dilma, caímos para o nono lugar. Sob Bolsonaro, passamos para décimo segundo. De quem é a culpa? 

Não importa se a crise é mundial. Os números doem na vida do eleitor. O Brasil hoje tem 32 milhões de desempregados, maior contingente dos últimos dez anos. E a inflação vem voltando aos poucos – o arroz subiu 74,1% e a carne, 22,8%, de acordo com dados do IPCA. O brasileiro está com medo de sair à rua e de perder o emprego, e falta dinheiro para comprar comida. De quem é a culpa? 

O jogo de empurra-empurra para livrar-se dela remete a um debate em curso na ciência política: o da responsabilização. Nas democracias, os cidadãos usam o voto para recompensar ou punir os governantes. Avalia-se principalmente o desempenho econômico – aquilo que sentimos no bolso. Mas o que acontece quando a responsabilidade é difusa? 

Pesquisas recentes mostraram que, durante a crise do euro, parte dos cidadãos da União Europeia relevou a responsabilidade de seus governantes, culpando os burocratas de Bruxelas. Em países semipresidencialistas, como França e Portugal, o crédito pelos sucessos e insucessos costuma se dividir entre Executivo e Legislativo. 

Em regimes presidencialistas, no entanto, o eleitor não costuma ter dúvidas. Estudos feitos nos Estados Unidos mostram que o presidente costuma ser responsabilizado pelo desempenho econômico, para o bem ou para o mal. No Brasil, é só olhar para o passado recente. Fernando Henrique e Lula foram recompensados com reeleições em períodos de crescimento. Collor e Dilma, que presidiram crises graves, enfrentaram ruas cheias e sofreram impeachments. 

Para Claudio Considera, o Brasil teria mais chance de voltar a crescer se adotasse as duas condutas-padrão no combate à pandemia: fechamento rigoroso por tempo limitado e vacinação em massa. Bolsonaro já zombou da vacina, e até hoje questiona o isolamento social. Se conseguir responsabilizar os governadores pela derrocada do País, será um caso de estudo em ciência política. Nas democracias, cabe ao eleitor o papel do detetive nos filmes policiais: encontrar o culpado. As evidências mostram que, nos regimes presidencialistas, o mordomo costuma ser o próprio presidente. 


Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados

Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano

Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.

Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.

O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.

A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.

Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.

O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.


Cristina Serra: A profecia do imigrante haitiano

Há um ano ele enunciou a nossa desgraça

Um ano. Faz um ano que um imigrante haitiano enunciou a nossa desgraça: "Bolsonaro acabou (...) Você não é presidente mais. Precisa desistir. Você está espalhando o vírus e vai matar os brasileiros!". Um ano. Mas parece que um século nos separa dessa profecia, tão apavorante ela soou e tão terrivelmente se confirmou. Bolsonaro está matando os brasileiros e não conseguimos detê-lo.

Os 260 mil mortos até agora e os muitos que ainda virão, os sobreviventes com sequelas, os trabalhadores da saúde esgotados, uma geração de órfãos do vírus, os alertas de cientistas, os apelos de autoridades, os desempregados, os desesperados"... Nada abala a calculada estratégia assassina de Bolsonaro, demonstrada nas medidas que tomou ou que deixou de tomar na pandemia.

Bolsonaro tem a morte como projeto. Ele comanda o exército da peste, sustentado por um consórcio macabro de interesses. Cerram fileiras o centrão, militares, empresários adoradores de Paulo Guedes e setores necrosados do Judiciário. Com essa retaguarda, Bolsonaro continuará zombando de nós, mentindo, rindo de suicídios, regozijando-se enquanto empilha cadáveres.

O mundo já nos considera uma ameaça, porque demos ao vírus as condições ideais para ele se tornar mais agressivo. Os investimentos estrangeiros vão demorar anos para retornar. A economia quebrou. Bolsonaro tem a maior parcela de responsabilidade nessa hecatombe, mas outros também têm deveres e obrigações. Governadores e prefeitos, tenham a coragem de adotar confinamento mais rigoroso !

Não se conhece a identidade do haitiano que confrontou o contaminador-geral da República, nem se sabe se está vivo. Mas sua voz não para de ressoar na minha cabeça. Eleição e voto não dão a ninguém licença para matar. Bolsonaro e seu comparsa Eduardo Pazuello têm que ser interditados, processados e julgados. A pior escolha que podemos fazer como sociedade é a resignação, a apatia.


Demétrio Magnoli: Biopolítica da pandemia

Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada

A eclosão da Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia, silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.

O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em diversos países europeus.Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
árvore de mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.

Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como, também, mais letais no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando a Covid já se disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.

2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China, triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.

A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento, virarão o jogo.


Ricardo Noblat: Compra de mansão por Flávio Bolsonaro vira um negócio tarja preta

Informações escondidas em cartório

Pode ser considerado sério, muito menos transparente, um negócio de R$ 6 milhões registrado em cartório em que 18 trechos estão cobertos com tarjas de cor preta que omitem informações tais como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de uma das partes?

O jornal O Estado de S. Paulo obteve cópia da escritura da compra de uma mansão em Brasília pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e sua mulher. A dentista Fernanda Antunes Figueiredo Bolsonaro. A renda declarada pelo casal é um dos trechos cobertos por tarja.

O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o país e representa tratamento especial conferido ao filho do presidente Bolsonaro. A escritura da compra e venda de um imóvel, pela lei, deve ser acessível a qualquer pessoa. Leis que tratam da atividade cartorial não preveem sigilo.

O cartório fica em Brazlândia, a 45 km de Brasília. Seu titular, Allan Guerra Nunes, disse ao jornal que usou a tarja para proteger os dados pessoais do senador e da sua mulher. Duas outras escrituras de imóveis em nome da família Bolsonaro, obtidas pelo jornal em dois outros cartórios, foram fornecidas sem tarjas.

“Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, justificou Nunes. Para comprar o imóvel, o senador financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil.

As prestações representam 70% do salário líquido de Flávio – R$ 24,7 mil. Nos 299 artigos da Lei de Registro Público, não há previsão de sigilo de informação, seja pessoal, bancária ou fiscal. Flávio disse que o negócio foi “transparente” e que usou “recursos próprios” e um financiamento para comprar a mansão.


Pablo Ortellado: Eles em nós

A editora Record acaba de lançar o novo livro de Idelber Avelar, “Eles em nós”, que busca interpretar os acontecimentos recentes da política brasileira com os instrumentos da análise retórica.

O maior mérito da obra é examinar os processos políticos recentes, reconstruindo cuidadosamente os acontecimentos, de uma perspectiva razoavelmente distanciada. A posição política do autor, que vem da esquerda, mas se afasta dela, confere rara equidistância para tratar criticamente as administrações petistas e o governo Bolsonaro.

A principal limitação do livro é justamente o que seria a sua virtude: o uso de categorias da retórica para explicar os processos políticos. Avelar tem larga experiência como comentador político, mas preferiu se apoiar em sua especialidade, como professor de Literatura, para se lançar neste projeto de interpretação do Brasil contemporâneo. Os conceitos da retórica às vezes dificultam, em vez de ajudar a esclarecer as questões.

Avelar usa, por exemplo, o conceito de oximoro (figura de linguagem que combina palavras de sentido oposto) para tratar das contradições do lulismo. Mostra que, enquanto Lula criticava os ruralistas, tinha Blairo Maggi como interlocutor; enquanto atacava os meios de comunicação, ampliava as verbas de publicidade do governo.

A análise dessas contradições é perspicaz, mas o recurso à figura do oximoro não as ilumina. Lula não empregava expressões antinômicas, mas adotava uma postura ideológica junto à militância, contraditada por seu pragmatismo como presidente. Se se debruçasse sobre o conceito de “governo em disputa”, reivindicado pela militância petista, talvez pudesse entender melhor o fenômeno.

Avelar caracteriza essa ambivalência como uma forma de administração dos antagonismos sociais. E é essa forma de gerenciar os conflitos que teria implodido com os protestos de junho de 2013. A incapacidade do sistema político de entender e dar resposta à revolta teria criado as condições para a emergência de Bolsonaro, cuja radicalidade antissistêmica daria uma expressão de ultradireita aos antagonismos represados.

O último capítulo do livro trata da ascensão de Bolsonaro. Avelar explica sua candidatura a presidente por meio de uma aliança entre o agronegócio, o punitivismo policial e judiciário e o evangelismo cristão. A coalizão teria, no ativismo de internet, uma espécie de vanguarda digital e seria sacramentada pelo compromisso liberal de Paulo Guedes.

A enumeração das forças políticas que apoiam Bolsonaro é bem ponderada, mas a sugestão de que Bolsonaro tenha costurado uma coalizão política é pouco amparada em evidências. Tudo indica que Bolsonaro lançou sua candidatura de maneira aventureira e foi ganhando o apoio desses setores à medida que se popularizava.

As explicações de Avelar nem sempre são persuasivas, mas o livro tem o mérito de fazer as perguntas certas. Entender como passamos do impulso libertário de junho de 2013 para o pesadelo autoritário de 2018 segue sendo um dos grandes desafios da inteligência brasileira.


Marco Aurélio Nogueira: Impotência e ação democrática

Dois fatores travam a situação nacional: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Há uma sensação de impotência solta no ar. Faltam governo, coordenação, vacinação. Sobram ofensas presidenciais, mortes, medo, desolação. 

Parte da sociedade bate panelas e protesta nas redes. Outra parte, aplaude o presidente. Difícil dimensionar o peso de cada pedaço, mas a percepção é que Bolsonaro está encurralado e perdendo apoios. Precisa enfrentar a pandemia de algum modo, pois sem isso não haverá recuperação econômica, sua pedra mágica para sobreviver no cargo. Precisa também encobrir os crimes cometidos, em série, pela família. A mansão do filho mais velho, senador da República, é o problema mais recente. Mas não é o único. Há uma montanha de lixo tóxico pronta para desabar sobre o presidente que, acossado pela covid, pelas mortes assustadoras, pela crise econômica, não mostra capacidade de resposta. 

Na verdade, nunca mostrou capacidade de resposta. Com isso, facilitou o avanço da crise. O vírus se alimentou dessa incapacidade.

Daí sua recusa em assumir qualquer responsabilidade. Não é só expressão de uma ignorância fanática. É receio de ter de responder pelo que não fez quando devia e tinha condições de fazer. Joga a culpa nos outros. Até o vírus está sendo acusado de contribuir para revelar o que já se anunciava em 2018: Bolsonaro não preside, não governa, porque não tem preparo, porque se cercou de um bando de paspalhos tão despreparados quanto ele e porque tem um cálculo político voltado exclusivamente para sua sobrevivência, quer dizer, sua reeleição. 

Cada bobagem que fala, cada agressão que comete, cada mentira que conta, é parte de uma operação dedicada a ocultar sua incompetência, sua desonestidade, seu cinismo frio e criminoso. 

Analistas, pesquisadores, formadores de opinião, lideranças democráticas têm falado isso desde que a desgraça começou a tomar forma no Brasil. As coisas só foram piorando. O presidente não irá mudar: não tem como nem sabe fazer isso, está com o corpo amarrado a sua própria biografia. 

As coisas pioraram também para Bolsonaro. Hoje ele se movimenta com mais dificuldade, o ringue em que atua está menor, as cordas chegam a lhe bater no peito, as pernas pesam. A imagem é de uma fera acuada, suando, babando, adrenalina fora de controle. O sonho da reeleição está mais distante, porque o desgaste da pessoa acompanha a crise: quanto mais a desgraça avança, mais fraco fica o presidente. Ele posa de bam-bam-bam, mas está tremendo nas bases, com aquele travo amargo na boca, atarantado.

Dois fatores ainda lhe fornecem oxigênio: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Chega a constranger que não se tenha no Brasil uma reação política compatível com o tamanho do buraco em que estamos. Onde estão nossas lideranças, os chefes de partido, os políticos realistas, os que são tidos como guias geniais, os que dizem morar no coração do Brasil profundo? Por que não se manifestam, por que não se articulam, por que não conversam com a população para que ela entenda a situação, por que não se engajam numa campanha política de imunização, ou seja, em favor das vacinas e do uso crítico da razão? 

Com o avanço da vacinação, os protestos voltarão às ruas. É esperar para ver. Produzirão pressão, criarão esperança e desejo de mudar, massas se formarão. Irão se contrapor aos fanáticos que vêm no presidente o “mito” redentor. Modificarão a correlação de forças. 

Já quanto aos políticos democráticos, seu silêncio reverbera com a força de um trovão, chega a ensurdecer. Dizem que alguns são ativos nas redes, falam diariamente com seus fiéis. Outros dão entrevistas ou fazem discursos, nos quais repetem as mesmas obviedades de sempre, justas, mas inócuas. Pode ser, mas nada disso vira opinião pública, não se materializa em uma alternativa ao que existe, nem sequer no plano discursivo. Não acossa quem precisa ser acossado.  

Estarão eles estarrecidos, assustados com a ignomínia presidencial? Ou estarão cegos pelos próprios cálculos, convencidos de que o silêncio poderá dar-lhes a musculatura de que julgam necessitar para avançar em 2022? Ou se protegem nas sendas da moderação, da temperança, da prudência, certos de que o mais importante é não atrapalhar a luta contra a pandemia? 

Mas como, se a luta contra a pandemia só será vitoriosa com a remoção do entulho político que impede a gestão sanitária eficiente? 

Estamos mal parados, o tempo corre contra nós. A exigência de ação precisa nos contagiar e fazer com que os democratas se movimentem. 


Ascânio Seleme: Na casa da tua mãe

A frase foi usada por Bolsonaro, em agenda em Uberlândia (MG), para falar sobre "idiota que pede compra de vacina"

Jair, onde você absorveu tanta arrogância? Onde você iniciou o processo involutivo que o transformou no indivíduo tosco que deixa o Brasil atônito? Foi na casa da tua mãe.

Onde você emburreceu tanto e virou esse indivíduo desconectado do mundo civilizado? Onde você encontrou tanta gente obtusa como você para reunir ao seu redor? Foi na casa da tua mãe.

Onde você teve seu caráter desviado de forma tão radical que alcança até mesmo todos os zeros que você criou? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você construiu toda a perversidade que escorre em suas veias e baba da sua boca? Onde você foi encontrar tanto ódio que se percebe claramente no seu olhar e na sua risada sádica? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi concebido este espírito antidemocrático que o domina de maneira irrevogável e que ameaça um país inteiro? Foi na casa da tua mãe.

Onde o seu coração de pedra foi lapidado, ou dilapidado? Onde foi que o endureceram de tal forma que a empatia não consegue penetrar? Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde talharam e envernizaram esta sua lustrosa cara de pau? Onde você aprendeu a mentir tanto, Jair? Foi na casa da tua mãe.

Onde mesmo foi que te ensinaram que chorar por seus mortos é frescura e mimimi?

Onde foi que você descobriu que os corajosos enfrentam o vírus e saem às ruas? Na casa da tua mãe.

Onde você aprendeu a roubar, a desviar dinheiro público para comer gente? Teria sido no mesmo lugar em que você ensinou seus filhos a fazer rachadinhas? Foi na casa da tua mãe.

Jair, onde você se tornou homofóbico e misógino? Onde começou a entender que mulher é filha da fraqueza e gay deve levar porrada? Foi na casa da tua mãe.

Conte onde foi que você descobriu que o Brasil é um país de maricas? Foi na casa da tua mãe.

E onde você percebeu que há excessos de direitos no Brasil? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você se afastou da luz e mergulhou nas trevas? Onde você aprendeu que torturar e matar fazem parte da vida? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que a ditadura errou por torturar e não matar? Aposto que foi no mesmo lugar onde você ouviu que os porões deveriam ter fuzilado 30 mil corruptos e erraram por não matar Fernando Henrique Cardoso. Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde você entendeu que Pinochet, o mais sanguinário ditador latino americano, devia ter matado mais gente? Foi no mesmo lugar em que você passou a idolatrar o torturador Brilhante Ustra? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi, Jair, que você descobriu que fazer cocô dia sim, dia não, melhora o meio ambiente? Que comer menos resolve o problema das queimadas? Foi na casa da tua mãe.

Explique, onde você percebeu que trabalho infantil, de meninos e meninas com menos de dez anos de idade, não prejudica em nada as crianças? Foi na casa da tua mãe.

Conte, onde foi mesmo que te disseram que é uma grande mentira falar que tem gente passando fome no Brasil? Que isso só acontece em outros países? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que é correto beneficiar filhos, como os zeros que você tem, quando se exerce cargo público, capitão? Foi na casa da tua mãe.

Finalmente, onde foi mesmo que você virou este monstro que assombra o país e espanta o mundo? Foi na casa da tua mãe.

Nosso Rio 1

Para conseguir fazer algumas poucas restrições na cidade contra o coronavírus, o prefeito Eduardo Paes teve de enfrentar os membros do comitê científico que ele mesmo montou quando tomou posse e do qual participam os ex-ministros da Saúde José Gomes Temporão e José Agenor Álvares da Silva. “O comitê mandou manter tudo do jeito que está”, disse o prefeito um dia antes de anunciar as novas medidas. “Estou enfrentando os cientistas”, explicou Paes, referindo-se ao comitê, no dia em que saíram as medidas.

Nosso Rio 2

De acordo com o prefeito, o comitê só recomendaria medidas se houvesse “alguma tendência de alta” de episódios, o que não era o caso, segundo Paes. O secretário de Saúde, Daniel Soranz, garantiu que 15 dias antes de qualquer medida se saberia que os casos estariam aumentando em razão de eventos de gripe verificados nas UPAs. Disse também que não havia razão para fechar ou reduzir o tempo de funcionamento de estabelecimentos comerciais porque “o Rio é a cidade com a segunda menor taxa de ocupação hospitalar do país, atrás apenas de Aracaju”.

Nosso Rio 3

Aliás, alguém consegue explicar por que bares e restaurantes podem ficar abertos até às 17h? Significa que o cidadão pode se contaminar à vontade de dia, mas de noite não? E as praias, por que ambulantes e quiosqueiros estão proibidos e os bacanas não? Não vale dizer que sem ambulantes vendendo água de coco os bacanas saem logo da areia. Se for essa a explicação, significa que a estes é dada a chance de se infectar por uma ou duas horas, e nada mais?

Nosso Rio 4

O secretário Soranz disse que o número de infectados no Rio não aumentou tanto nos dois primeiros meses do ano, que os registros do Consórcio de Veículos de Imprensa não refletem a realidade. “Os números foram represados na gestão de Marcelo Crivella”, afirmou o secretário. E mais. Ele acrescentou que o ex-prefeito fechou praias e parques, como o Campo de Santana, para economizar com gastos de manutenção.

Ah, Bittar

O senador Márcio Bittar (MDB-AC) lamentou muito não ter conseguido garfar dinheiro de Saúde e Educação no seu texto da PEC Emergencial. Ele foi obrigado a desistir de acabar com as vinculações obrigatórias das duas áreas por falta de apoio da maioria dos senadores. Bittar disse que queria uma PEC “mais robusta, com mais itens”, mas se viu forçado a desidratar a proposta. Sorte do Brasil e dos brasileiros.

Conta outra

Querem criminalizar a política, dizem os que tentam defender deputados e senadores de malfeitos. Estes normalmente ganham as causas nos tribunais superiores quase sempre por tecnicalidades. Não estamos defendendo a corrupção, mas a legalidade. Porque hoje é o parlamentar que está sendo condenado com estes erros processuais, amanhã pode ser você.

Casa do zero

Você conhece alguém que tenha 39 anos, que trabalha há apenas 20 anos com remuneração mensal variando de R$ 15 mil a R$ 28 mil ao longo dos anos, que tem dois filhos em idade escolar e que conseguiu reunir dinheiro suficiente para comprar uma casa de R$ 6 milhões? Pois é. Eu também não.

Faz sentido

O nome do condomínio da nova mansão do Zero das Rachadinhas em Brasília é perfeito. Chama-se “Ouro Branco”, que pode significar tanto riqueza quanto chocolate. Nas duas modalidades o Zerinho abunda.

Custo zero

“Geralmente quando se fala em famílias na política, são famílias enroladas em atos de corrupção. A minha família é limpa na política”. A frase é de Jair Bolsonaro, pronunciada na entrevista que deu na bancada do Jornal Nacional na campanha eleitoral de 2018. A imagem mostra o cara de pau com um ar de seriedade que nunca mais se viu. Lembrar não custa nada.

No crea em brujas

A fabulosa Bia Kicis tem prometido miragens aos deputados. Na tentativa de viabilizar sua candidatura para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, diz que vai ser democrática e respeitará as diferenças. Tem bobo que acredita. Como se ela fosse de fato capaz de cumprir a promessa, apesar de democracia não ser parte da sua natureza. Há também os aliados de Artur Lira que defendem a candidatura de Kicis para não atrapalhar outros entendimentos partidários. Bobagem. O que se quer é controlar toda a agenda da Casa.

Enquanto isso

E a oposição por onde anda? Por que não vemos mobilização articulada contra o monstro. Na quinta-feira, enquanto Jair Bolsonaro falava em chororô e mimimi, os próceres deputados Paulo Pimenta e Paulo Teixeira, do PT, convocaram a imprensa para uma importante comunicação: denunciaram a Lava Jata e pediram a punição do procurador Deltan Dallagnol.

Lula e FHC

E por que não vemos uma ação coordenada dos ex-presidentes? Tirando Collor, que já se aliou ao capitão, claro, caberia muito bem uma manifestação dos demais em favor da vida e da democracia, sugere o autor e roteirista George Moura. Uma ação conjunta de Sarney, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer pode não dar em nada, mas mostraria que os ex-líderes do país repudiam esse amontoado de agressões de Bolsonaro.

Intervenção

Os bolsonaristas mais atrasados, Jair em primeiríssimo lugar, que imaginavam que o Brasil sofreria uma ocupação de países ricos em razão das riquezas da Amazônia, podem acabar surpreendidos com uma intervenção global para sanear o país e salvar o mundo.


Adriana Fernandes: Quem vai disparar as medidas de socorro e apertar o botão de guerra?

Saúde e Economia caminham em passos distintos, enquanto o colapso do sistema de saúde de Manaus atinge o resto do País

Na briga insana contra as medidas de isolamento social para frear a pandemia, Jair Bolsonaro repete a toda hora que a economia e a saúde “andam juntas”. No seu governo, essas duas áreas, porém, não se conversam.

Não se tem notícia de nenhuma reunião de cúpula dos Ministérios da Economia e da Saúde – Paulo Guedes e Eduardo Pazuello – para a organização de uma estratégia conjunta, a não ser por repasse de dinheiro. Nenhum encontro sequer dos “generais” de Bolsonaro num gabinete de guerra, de crise.

Saúde e Economia caminham em passos distintos enquanto o cenário mais catastrófico do início do ano se confirmou: a disseminação do colapso do sistema de saúde de Manaus para o resto do País. Tudo ao mesmo tempo.

Vírus avançando, com famílias inteiras contraindo a doença, UTIs lotadas, retrocesso na retomada econômica, alta volatilidade dos mercados e desconfiança dos investidores em relação ao que vai acontecer com o Brasil. A paciência deles com o País indo embora. 

É a tempestade perfeita, que ocorre quando um evento ruim é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias que se transforma em um desastre sem proporções.

É bem verdade que vão dizer no governo que a coluna está equivocada. Que em março do ano passado foi criado um comitê de crise para a supervisão e monitoramento dos impactos da covid-19. Que o comitê já publicou uma série de resoluções com ações para o enfrentamento e está em pleno funcionamento. Que o comitê está atuando conjuntamente e tem uma lista de medidas para provar isso. Que está dando tudo certo e dentro do previsto.

Oficialmente, o discurso é o de que Guedes e Pazuello mantêm diálogos constantes e frequentes em relação às medidas para o enfrentamento da pandemia no Brasil, o que não traria a necessidade de encontros presenciais.

Quem viu essa tropa em ação reunida? O Ministério da Economia diz que faz a sua parte com o repasse de dinheiro e o Ministério da Saúde faz a dele cobrando os recursos que estão em falta.

No domingo passado, Bolsonaro postou nas suas redes sociais uma foto enfileirado ao lado dos presidentes Arthur Lira (Câmara), Rodrigo Pacheco (Senado), e os ministros Walter Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Guedes e Pazuello. O assunto oficial: vacina e a PEC do auxílio emergencial.

O tema de maior interesse foi outro: mostrar que Bolsonaro fez a sua parte repassando recursos para os Estados no ano passado. Tudo isso para desmontar o aperto nas restrições que estão sendo tomadas pelos governadores e prefeitos e que a disponibilidade de caixa dos Estados e municípios fechou 2020 em patamar 70% maior do que um ano antes.

Isso demonstra que ter mais dinheiro não basta. A prova disso é que o governo já pagou R$ 524 bilhões em medidas emergenciais e o Brasil está no topo entre os países com pior situação na pandemia.

Depois da cloroquina e do tratamento precoce, a prova de energia gasta fora do lugar é o envio de uma comitiva a Israel para conhecer o spray para o combate da covid-19.

Mas nunca mandaram uma comitiva de peso – de alto nível – atrás de vacina. Por que não Guedes e Pazuello juntos numa comitiva? A equipe econômica pode e deveria ter se engajado mais nessa cobrança e articulação da diplomacia, pois tem seus canais particulares de diálogo internacional e instrumentos outros econômicos. A compra de vacina é uma guerra internacional e se deve disputá-la com todas as armas possíveis.

Com o temor de uma desorganização econômica, Guedes repete que o Brasil precisa de vacina. Mas não temos vacina. Com lucidez, disse que a guerra sem fim não vai chegar a nenhum lugar. Guedes conta para o presidente? O pior temor de Bolsonaro ao se lançar contra o combate duro da pandemia, o desastre econômico, pode acabar se concretizando.

O ministro já falou diversas vezes que aguardaria o sinal de Pazuello para disparar as medidas de socorro e acionar o botão da calamidade. No fim de janeiro, afirmou que o governo poderia retomar os programas de socorro, caso houvesse o entendimento de que o número de mortes por covid-19 continuará acima de mil por dia com a vacinação atrasada. Nessa situação, seria declarado novamente “estado de guerra”.

Infelizmente, esse é o quadro de hoje no Brasil. Quem aperta o botão?


Correio Braziliense: Descontrole do novo coronavírus no Brasil ameaça o mundo, alerta OMS

País chegou, ontem, ao segundo maior número de mortes pela covid-19 em 24h: 1.800, segundo o Conass. Número reforça a preocupação manifestada pelo diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, que recomenda medidas "agressivas" para tentar conter o avanço do vírus

Sarah Teófilo e Maria Eduarda Cardim, Correio Braziliense

O descontrole na transmissão do novo coronavírus no Brasil já é motivo de preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ontem, o diretor-geral do organismo das Nações Unidas, Tedros Adhanom, afirmou, em resposta à pegunta feita pelo Correio, que a situação do país é uma ameaça para a América Latina e para o mundo. Para reforçar as afirmações do dirigente, de acordo com o Painel Conass Covid-19, elaborado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde –– cujos números são reproduzidos pelo Ministério da Saúde ––, o país chegou ontem às 1.800 mortes em apenas 24h, o segundo maior registro de óbitos de um dia para outro. O total de vidas perdidas é de 262.770 e o de casos da doença, 10.869.227.

De acordo com Adhanom, o Brasil precisa adotar medidas “agressivas” para a contenção do avanço do novo coronavírus, enquanto distribui a vacina à população. “Nós estamos preocupados, mas a preocupação não é apenas com o Brasil. Têm os vizinhos, quase toda América Latina, muitos países. Isso significa que, se o Brasil não for sério, vai continuar afetando todos os vizinhos, e além. Então, isso não é apenas sobre o Brasil, mas também sobre toda a América Latina e além”, explicou.

O diretor-geral da OMS ressaltou que, enquanto em muitos países observou-se uma redução de casos nas últimas seis semanas, no Brasil a tendência foi de aumento. “Acho que o Brasil precisa levar isso muito a sério”, reforçou. Adhanom acrescentou que “a adoção de medidas públicas de saúde em todo o país, de forma agressiva, seria crucial. Sem fazer nada para impactar na transmissão ou suprimir o vírus, não acho que, no Brasil, conseguiremos uma queda. Quero enfatizar isso: a situação é muito séria e estamos muito preocupados. E as medidas públicas que o Brasil adotar precisam ser muito agressivas, enquanto distribui vacinas”, afirmou.

A variante que surgiu no Amazonas é alvo de preocupação da OMS, já que tem mutações que dão ao novo coronavírus vantagens na transmissão. “Nós estamos preocupados sobre a P.1. Ela tem mutações específicas que dão ao vírus vantagens, particularmente na transmissão. Não há dúvida de que ela adicionou à complexidade da situação que o Brasil vive”, salientou o diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da organização, Mike Ryan.

Já a líder técnica de resposta à covid-19, Maria Van Kerkhove, pontuou que, entre as três variantes que estão sendo rastreadas pela OMS, está a amazonense, que, como ressaltou, é associada ao aumento de transmissibilidade. “Se você tem aumento de transmissibilidade, você terá aumento de casos, aumento de pacientes que vão precisar de hospitalizações e aumento daqueles que desenvolvem casos graves. Isso pode ter impacto no sistema de saúde, o que pode ocasionar no aumento de mortes. Vimos isso em outros países”, afirmou.

Sentido oposto

Enquanto a OMS alertava que o Brasil tornou-se uma ameaça ao mundo por causa do descontrole da pandemia e da nova cepa do vírus originária do Amazonas, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comentou que “podemos estar a duas ou três semanas de redução de casos de covid após forte vacinação”. Em evento promovido pela American Society/Council of the Americas, ele destacou que o ritmo da imunização no país não segue a velocidade dos EUA, pois o Brasil contemplou, até o momento, “4% da população”.

“O sistema de saúde está sob stress, mas, no geral, está bem. As pessoas querem vacinação, mas não querem o fechamento da economia”, disse Araújo, alfinetando os governadores que estão adotando restrições de circulação de pessoas e de funcionamento do comércio.

Enquanto o governo nega problemas no processo de vacinação e de esgotamento das UTIs dos sistemas de saúde público e privado dos estados, um total de 1.703 municípios, dentre os quais 23 capitais estaduais, formalizou interesse em compor o consórcio público a ser constituído pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) para comprar diretamente vacinas contra a covid-19. Segundo a entidade, o grupo de cidades interessadas soma mais de 125 milhões de habitantes, o que corresponde a cerca de 60% da população brasileira. As três capitais que, por ora, ficariam ausentes do consórcio são Macapá, Vitória e Natal.

Na última quarta-feira, o presidente da FNP, Jonas Donizette, afirmou que o anúncio do governo federal de que comprará as vacinas da Pfizer e da Janssen não conflita com a construção do consórcio de municípios, já que, segundo ele, o propósito da iniciativa sempre foi estruturar uma ação complementar à do Ministério da Saúde.

“Talvez a adesão maciça dos prefeitos tenha até ajudado o governo a tomar essa decisão. Jamais saberemos se o empurrão foi nosso, mas isso pouco importa”, escreveu o ex-prefeito de Campinas no Twitter. “O que nos interessa, mesmo, é que a vacinação dos brasileiros seja um fato, não uma promessa”.

Donizette relatou, ainda, que, mesmo que o governo federal compre todas as vacinas, o consórcio liderado pela FNP continuará sendo necessário para adquirir medicamentos, insumos e equipamentos “com possibilidade de negociação de preços melhores, poupando recursos públicos”.