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Luiz Carlos Azedo: Fogo na camisa amarela

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração seria uma espécie de suicídio coletivo

O carnaval sempre foi um momento de inversão de papéis, de questionamento das normas, de fuga do padrão da vida cotidiana e da libertação da repressão. Neste ano, não. Ainda vamos levar algum tempo para ter a verdadeira dimensão do que está ocorrendo, mas, talvez, o carnaval deste ano seja um momento de choque da dura realidade, que é a crise sanitária pela qual o mundo está passando, agravada pela incompetência e pelo negacionismo do governo. Oxalá, no próximo carnaval, a maioria da população esteja imunizada contra a covid-19.

No começo da pandemia, imaginava-se que o carnaval de 2021 seria um dos maiores de todos os tempos, com a população indo às ruas se divertir, superada a peste. Estaríamos vivendo momentos felizes, de muita contestação aos tabus da nudez e da sensualidade, de ironias e críticas escrachadas aos governantes e, como não poderia deixar de ser, ao presidente Jair Bolsonaro. Feminismo, racismo, diversidade, exclusão, os temas caraterísticos do debate contemporâneo, numa sociedade pluralista e democrática, estariam sendo tratados com bom humor e muita sagacidade pelo povo nas ruas, cantando marchinhas e sambas.

Por incrível que possa parecer, o carnaval — essa festa tão desvairada — também é um momento de conscientização da população. É quase impossível na vida de um brasileiro não ter visto um desfile de escola de samba, não ter saído num bloco ou participado de um baile de carnaval no qual não houvesse ruptura ou transformação de costumes. É uma festa muito ambígua, na qual a fuga da realidade funciona como um espelho da sociedade, quando a velha senhora que passa roupa para fora se veste de luxuosa baiana, a madame vira figurante numa ala de escola de samba, o jovem desempregado brilha na bateria, a socialite leva uma bronca do bombeiro hidráulico por atrasar o desfile e o galã da novela arrisca um desengonçado samba no pé, sendo ele mesmo, e não o seu personagem.

O carnaval substituiu o entrudo, que era uma festa embrutecida, na qual o povo tomava as ruas para jogar farinha, baldes d’água, limões de cheiro e até lama e areia uns nos outros. Ou seja, um avanço civilizatório. Roberto DaMatta, o antropólogo estudioso dos foliões e dos malandros, sempre destacou que o carnaval não é apenas um momento de alienação da realidade, é um espaço de transformação dos padrões da sociedade. O Rio de Janeiro, quanta ironia, teve um prefeito que não gosta de carnaval e não conseguiu se reeleger. Temos um presidente da República que também não gosta e que, talvez, se regozije pelo fato de o povo não ter tomado as ruas para fazer troça das autoridades e de si próprio.

Folião de raça
Um dos maiores carnavais de todos os tempos, segundo os historiadores, foi o de 1919, no Rio de Janeiro, ano de estreia do Cordão do Bola Preta, que havia sido fundado em dezembro do ano anterior e, hoje, é o maior bloco do país, arrastando milhões pelo centro do Rio de Janeiro no sábado de carnaval, o que deveria ter acontecido ontem. Aquele foi um carnaval no qual a população comemorou o fim da gripe espanhola, a epidemia que matou 15 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. Neste carnaval, a média de óbitos na cidade está em 158 mortes por dia, sendo 234 óbitos e 5,5 mil casos de contaminação nas últimas 24 horas. Já são 551 mil casos no estado.

Não é privilégio de cariocas e fluminenses. No Distrito Federal, a covid-19 matou 4.198 pessoas, de um total de 247 mil infectados; oito vezes mais do que acidentes e homicídios. Em Belo Horizonte, foram 16,5 mil mortes, de um total de 798 mil infectados. Em São Paulo, 55 mil mortes, com 1,9 milhão de infectados. Na Bahia, 10,6 mil mortos para 623 mil infectados. Em Pernambuco, 10,6 mil mortos para 277 mil infectados; no Amazonas, são 9,7 mil mortos para 292 mil infectados. Estamos vivendo a rebordosa das campanhas eleitorais e das festas de fim de ano.

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Agora, com a segunda onda da pandemia, ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração e contato físico seria uma espécie de suicídio coletivo. Por isso, mesmo que a festa seja em casa e nas redes sociais, neste ano, o carnaval não valeu. Melhor ficar em casa, cantar A Jardineira e pôr fogo na camisa amarela, como aquele folião de raça de Ary e Elizeth, na quarta-feira de cinzas.

PS: até quinta-feira!

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Luiz Carlos Azedo: A vacina dos camarotes

A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos

Uma das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela. A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56 milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).

Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.

A conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta, principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação, transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.

Lei de Murici
Um retrospecto das declarações do presidente Jair Bolsonaro; do ministro da Economia, Paulo Guedes; e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mostra um governo errático na condução do país e focado apenas na preservação e fortalecimento do seu poder em relação ao Legislativo, ao Judiciário e aos demais entes federados. O sucesso do Palácio do Planalto nas disputas pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado fixará o foco na “guerra de posições” para consolidar um governo bonapartista, que se pretende tutor da sociedade. O problema das desigualdades está fora de sua agenda. A crise sanitária mostra isso. Uma política de transferência de renda com objetivo apenas eleitoral não será sustentável.

A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica. Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários, furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS) legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a “pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do general Pazuello na Saúde.

Acontece que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar, no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.

O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.

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Luiz Carlos Azedo: Pazuello em Manaus

O ministro do STF Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise sanitária no Amazonas, onde o SUS entrou em colapso

Em tempos de quarentenas e isolamento social, o filme Operação Final é um dos mais populares da Netflix. Narra o sequestro do criminoso nazista Adolf Eichmann (Ben Kingsley, em interpretação magistral), na Argentina, para submetê-lo a julgamento em Jerusalém pelos crimes que cometeu na Segunda Guerra Mundial. Os principais líderes nazistas, como Adolf Hitler, evitaram a Justiça por meio do suicídio, mas o responsável pelos campos de concentração conseguiu escapar e vivia escondido, até ser identificado e localizado por causa das suas ligações com a extrema direita argentina.

Fugitivo, Eichmann era imaginado como um sujeito brutal e sanguinário, mas o julgamento mostrou outro tipo de personalidade: um burocrata militar (tenente-coronel das SS), cujo objetivo central era vencer na vida a todo custo, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações. Eichmann era o gestor de um conjunto de instruções voltadas à destruição dos judeus. Cumpria ordens para dar cabo dos objetivos genocidas do movimento nacional-socialista alemão, fundado e chefiado por Hitler. Era o mais comum dos homens, educado, inteligente e afirmava que, particularmente, não era antissemita. Era apenas um servidor público cumpridor das leis.

Eichmann foi um dos responsáveis pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração. Ele cuidava da logística que levaria milhões de pessoas aos mais diversos tipos de torturas e à morte. Entretanto, via sua função como sendo apenas parte do sistema, como se estivesse meramente cumprindo ordens, executando corretamente suas tarefas, sem levar em consideração o que realmente significava sua parte no esquema nazista. Ele era um de muitos do mesmo tipo, indiferente ao sofrimento alheio, com frieza e incapacidade de comiseração.

A filósofa judia-alemã Hannah Arendt acompanhou o julgamento e escreveu um livro (Eichmann em Jerusalém) no qual caracterizou a atuação do oficial nazista como a banalização do mal: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram, e ainda são, terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições, e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um novo tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, escreveu. O filme Hannah Arendt — Ideias que chocaram o mundo conta muito bem essa história.

Inquérito
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise de saúde do Amazonas, que entrou em colapso, com superlotação dos leitos hospitalares e desabastecimento de oxigênio. Em depoimento do ministro à Polícia Federal, em data a ser marcada, ele terá que apresentar informações sobre as ações efetivamente adotadas em relação ao estado da saúde pública de Manaus. Lewandowski definiu prazo inicial de 60 dias para a investigações da Procuradoria-Geral da República (PGR) serem concluídas.

O caso foi enviado a Lewandowski pela vice-presidente do STF, Rosa Weber, à frente do plantão judiciário durante o recesso, porque o ministro é o relator de outros processos ligados à pandemia. O pedido de inquérito foi feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, com base em uma representação do partido Cidadania e em informações apresentadas pelo próprio ministro Pazuello, além de apuração preliminar dos procuradores federais que atuam na área de Saúde. O ministro soube do colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus em dezembro, mas só tomou providências efetivas em janeiro. Dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio, enquanto o Ministério da Saúde insistia em prescrever cloroquina para conter a crise sanitária.

Nem de longe as mortes causadas pela pandemia no Brasil, apesar de toda a incúria e falta de empatia do presidente Jair Bolsonaro, se comparam aos horrores do Holocausto. Entretanto, a “banalidade” com que são tratadas é um espanto. O comportamento é o mesmo apontado por Arendt na descrição de Eichmann: alguém que não conseguia perceber a realidade, não se colocava no lugar de outra pessoa, porque internalizou que o que estava fazendo era o correto. Eichmann cumpria ordens sem questionar o certo e o errado, dessa forma tornou-se um dos maiores criminosos de guerra. Bolsonaro manda, Pazuello obedece e, com isso, se tornou o pior ministro da Saúde da nossa história.

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Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra

Tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja

Há derrotas por antecipação. Geralmente, como já disse, ocorrem quando se comete um erro de conceito estratégico. A partir daí, os planejamentos tático e operacional são desastres sucessivos. Em tese, oficiais superiores são treinados para serem bons estrategistas. O marechal Castelo Branco, por exemplo, conquistou essa fama nos campos da Itália, na II Guerra Mundial, ao elaborar o bem-sucedido plano da tomada de Monte Castelo, que veio a ser uma das glórias de nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Não é o caso do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, apesar da fama de craque em logística.

O primeiro erro de conceito de Pazuello é considerar a pandemia uma guerra. Como figura de linguagem, ainda se pode dar um desconto; como conceito de política sanitária, porém, leva a conclusões equivocadas. Logo no começo da pandemia, o sanitarista Luiz Antônio Santini, médico e ex-diretor do Inca, publicou um artigo no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz chamando atenção para isso: “A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país. Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitar, é seguramente ineficiente”.

Segundo o sanitarista, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Muito provavelmente, o que está acontecendo em Manaus, e pode se repetir em outras cidades, é consequência de uma mutação genética do vírus da covid-19, que fez com que a doença se propagasse mais rapidamente e a subestimação da importância do distanciamento social e outros cuidados, como uso de máscaras.

A pandemia não é culpa de Pazuello, mas um fenômeno da natureza. Entretanto, deveria ter sido mitigada pelo Ministério da Saúde, enquanto a ciência busca respostas com vacinas, medicamentos, mais conhecimentos e tecnologias. O problema é que Pazuello não foi nomeado para o cargo de ministro da Saúde por seus conhecimentos em saúde pública, mas porque obedece cegamente ao presidente Jair Bolsonaro, um capitão que pauta sua atuação na Presidência pelo improviso e, no caso da pandemia, pelo negacionismo.

Aposta errada

Por ordem de Bolsonaro, Pazuello apostou no “tratamento precoce” à base de um coquetel cuja eficiência é contestada pelos epidemiologistas. No caso de Manaus, segundo depoimentos de intensivistas, a maioria dos mortos havia tomado hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina. O general foi a Manaus recomendar esse tratamento alternativo em massa, na expectativa de que isso contivesse a pandemia, em vez de dar a devida importância à escalada da doença, que provocou o colapso dos hospitais, a começar pela falta de oxigênio. Pesaram na sua avaliação a sua autossuficiência e ignorância em matéria de saúde pública.

A mentalidade bélica também cobra um preço na questão das vacinas. O tempo todo o governador de São Paulo, João Doria, foi tratado como inimigo por Bolsonaro, que demitiu Henrique Mandetta por ciúmes. O ex-ministro havia alcançado grande popularidade, ao liderar a luta contra a pandemia, e havia se encontrado com o governador paulista para discutir a colaboração entre os governos federal e estadual no enfrentamento da crise sanitária. À época, Bolsonaro considerava a covid-19 uma “gripezinha”, sabotava o distanciamento social e desacreditava a vacina, que ainda se recusa a tomar, com argumento de que foi imunizado pela doença, embora os casos de reinfecção estejam aumentando.

O resultado todo mundo sabe. A vacina do Butantan (CoronaVac) é a única disponível até agora. O governador João Doria começou a campanha de vacinação no domingo. Pazuello corre contra o prejuízo. As vacinas disponíveis — 6 milhões de doses, equivalentes à vacinação de 3 milhões de pessoas, a maioria profissionais de saúde — são insuficientes para imunizar a população. Além disso, tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja. Outro erro estratégico de Bolsonaro, nesta pandemia, foi falar mal da China. Pode nos custar muito mais caro do que se imagina.

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Luiz Carlos Azedo: Faca manchada de sangue

Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”

O colapso do sistema de saúde pública em Manaus, por falta de oxigênio, indignou a sociedade, além de traumatizar os profissionais de saúde do país inteiro, porque o episódio provocou a morte por asfixia de pacientes que estavam estabilizados e chegou a obrigar a transferência de crianças recém-nascidas para outros estados, ou seja, que não tinham nada a ver com a pandemia de covid-19. Dois dias antes do colapso, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, fora avisado da falta de oxigênio. Esteve em Manaus, com o propósito de convencer as autoridades locais a prescreverem em massa o “tratamento precoce” da covid-19, que vem sendo a opção preferencial dos militares à frente da pasta para combater a pandemia.

Trata-se de um coquetel utilizado em larga escala por médicos clínicos, como tratamento alternativo: hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina, já usada preventivamente, a cada 15 dias, de forma generalizada, por parte da população de baixa renda, como santo remédio contra o novo coronavírus. Rejeitada pelos infectologistas, por falta de comprovação científica, na surdina, essa fórmula virou o eixo da política sanitária do Ministério da Saúde. Na cabeça do presidente Jair Bolsonaro, o coquetel é mais eficiente e mais barato do que as vacinas, além de dispensar as políticas de distanciamento social, ao supostamente transformar a covid-19 numa “gripezinha”.

Apesar de criticado por infectologistas e sanitaristas, o “tratamento precoce” é uma prerrogativa da clínica médica, ao qual muitos recorreram e acham que, por isso, foram salvos da morte. Entretanto, a essência da política de saúde pública é preventiva. Por essa razão, o descaso em relação à necessidade de distanciamento social, para desacelerar a propagação da pandemia, e o atraso na vacinação em massa, para imunizar a população, mais cedo ou mais tarde, além da falta de insumos, como oxigênio, seringas e agulhas, resultarão em investigações e processos criminais na Justiça.

Vacinas

O general Pazuello está no cargo por ter fama de especialista em logística e para levar adiante o “tratamento precoce”. Mas esse é clamoroso erro de conceito, tanto assim que os dois ministros que o antecederam se recusaram a cumprir essa orientação do presidente Bolsonaro. Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades de seus executantes em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”. É o caso, por exemplo, do secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército reformado Antônio Elcio Franco Filho, cuja experiência como secretário de Saúde de Roraima o guindou ao cargo operacional mais importante de todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nas entrevistas, exibe na lapela uma faca ensangüentada, broche de ex-integrante de equipe de operações especiais, cujo lema é “O ideal como motivação/ A abnegação como rotina/ O perigo como irmão e/ A morte como companheira”. Sem dúvida, o Brasil precisa de soldados treinados para “causar o máximo de confusão, morte e destruição na retaguarda do inimigo”, mas o lugar deles não é o Ministério da Saúde.

Na quarta-feira, em entrevista coletiva, o “faca manchada de sangue” se jactava da operação que estava sendo montada para buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na Índia. O governo federal pretendia realizar uma grande jogada de marketing, iniciando a campanha nacional de imunização com a vacina que também será produzida pela Fiocruz, antes de autorizar o uso da vacina do Instituto Butantan, cuja eficácia o presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de colocar em dúvida. O avião da Azul adesivado para transportar as vacinas não pode decolar, porque as autoridades da Índia não haviam liberado as vacinas.

O Brasil, porém, é um grande país, mas não é para principiantes. Começamos a produzir 8 milhões de doses/mês da vacina russa Sputnik V, em Santa Maria, no Distrito Federal, e em Valparaíso de Goiás, no Entorno de Brasília. Os russos contrataram a União Química, que possui mais 7 fábricas no Brasil, para produzir a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia e financiada pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. Todas as doses da vacina russa produzidas no Brasil serão exportadas para países da América Latina que já registraram o imunizante, como Argentina e Bolívia, enquanto aguarda autorização da Anvisa para realização de testes clínicos no Brasil. Ou seja, em breve teremos 3 vacinas produzidas aqui: a CoronaVac, do Instituto Butantan; a Oxford, da Fiocruz; e a Sputnik V, da União Química (privada), um “business” russo. Apesar de tanta incompetência, a esperança não morreu.

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Luiz Carlos Azedo: Cidade Maravilhosa

E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos)

Refrão: “Cidade maravilhosa,/ Cheia de encantos mil!/ Cidade maravilhosa,/ Coração do meu Brasil! (Bis)”. Primeira parte: “Berço do samba e das lindas can- ções/ Que vivem n’alma da gente,/ És o altar dos nossos corações/ Que cantam alegremente”. Segunda parte: “Jardim florido de amor e saudade,/ Terra que a todos seduz, /Que Deus te cubra de feli- cidade, /Ninho de sonho e de luz”. O velho Sérgio Cabral, pai, foi quem me chamou a atenção para o fato de que o famoso hino carioca Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho, começa como se a orquestra fosse tocar uma sinfonia e logo vira marchinha de carnaval.

Coube ao maranhense Coelho Neto — que hoje empresta o nome a um dos subúrbios cariocas da antiga Central do Brasil —, cunhar a expressão “cidade maravilhosa”, num artigo publicado no jornal A Notícia, em 1908. Mais tarde, em 1928, publicaria um livro de contos com esse título. Era época em que a antiga capital da República fervilhava, em todos os sentidos, aspirando à condição de Paris dos trópicos, ambição criada após a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no começo do século. O jornalista Ruy Castro relata essa época no livro Metrópole à beira mar (Companhia das Letras).

A marchinha surgiu logo depois, em 1934, mas somente fez sucesso no carnaval do ano seguinte. A primeira parte da música é realmente sinfônica, plagiada de Mimi é una civetta, o terceiro ato da ópera La Bohème, de Puccini. André Filho era amigo de Noel Rosa, com quem divide a autoria do samba “Filosofia”, gravado por Mário Reis, em 1933. A amizade entre ambos, porém, gerou controvérsias sobre a autoria do hino carioca, que alguns atribuem ao poeta de Vila Isabel, como registrou Jacy Pacheco, em Noel Rosa e sua época: “Aqui nos lembramos de composições que ele deu e que vendeu. Que foram divulgadas com outros nomes… dentro da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil…” Pode ser pura maldade.

André Filho morou na casa da mãe do músico Oscar Bolão entre o final dos anos 1950 até início dos 1960. Como sofria de problemas psiquiátricos, acabou internado no hospital da Ordem do Carmo. Ali, quando soube, tempos depois, por meio de um repórter do Diário da Noite, que “Cidade maravilhosa” tinha sido reconhecida como marcha oficial da cidade do Rio de Janeiro — por meio da Lei no5, de5 de maio de 1960—, segundo Bolão, enfiou a cabeça dentro do vaso sanitário e, dando descarga, gritava: “Tô rico, tô rico”. Multiinstrumentista (piano, violão, bandolim, violino, banjo, percussão), compositor, cantor e radialista, ficou órfão muito cedo, sendo, por isso, criado pela avó. Começou a estudar música erudita aos 8 anos, com Pascoale Gambardella, e formou-se em ciências e letras no Colégio Salesiano de Niterói, RJ, onde foi colega de Henrique Foréis Domingues, o radialista Almirante.

Sísifo
Cronista esportivo e historiador do samba, o velho Cabral dizia que Cidade Maravilhosa era uma síntese da alma do Rio de Janeiro: “Tudo vira marchinha de carnaval”. E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Intitulada “Bispo no xadrez”, a marchinha é muito cruel: “Crivella, Crivella/ Pode entrar / Já abençoamos a sua cela”, diz o refrão. E segue adiante: “É essa aqui que escolhemos pro senhor/ Fica ao lado da do governador/ Tem um palquinho pra fazer os seus sermões/ Os carcereiros são seus novos guardiões (…)”. É mais uma música de carnaval que vai para o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), criado por Almirante. A verdadeira história dos cariocas é contada pelo samba e pelas marchinhas de carnaval. Está registrada no acervo do MIS, com cerca de 305 mil documentos, entre discos, partituras, fotos, cartas, textos e vídeos.

Voltando ao prefeito Crivella, havia sérias dúvidas sobre a necessidade de sua prisão, a 10 dias de passar o cargo para o prefeito eleito, Eduardo Paes (DEM). Era preciso comprovar que estava obstruindo a Justiça e tentando eliminar provas. Horas depois, o Superior Tribunal de Justiça acabou por revogar a detenção preventiva, mandando-o para a prisão domiciliar.

A prisão do prefeito carioca abre um novo ciclo de investigações criminais no Rio de Janeiro, envolvendo o partido Republicanos e a Igreja Universal do Reino de Deus. A prisão de Crivella deve ter deixado o presidente Jair Bolsonaro bastante cabreiro, devido às investigações que envolvem seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), muito próximos de Crivella, também no âmbito do Ministério Público e da Justiça fluminenses. A postagem bolada de Bolsonaro no Twitter, ontem à tarde, alusiva à Síndrome de Sísifo, tem tudo a ver com a cidade maravilhosa.

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Luiz Carlos Azedo: Quem larga na frente?

Bolsonaro saiu do pleito muito menor do que entrou, embora os partidos de Centrão, principalmente o PP e o PSD, tenham revelado um excelente desempenho eleitoral

Quando começa a próxima campanha eleitoral? Para a maioria dos políticos, quando a última eleição termina. Se tiver juízo, porém, o presidente Jair Bolsonaro, que tirou o gênio da garrafa antecipando sua estratégia de reeleição, levará em conta o resultado das eleições municipais e puxará o freio de mão nas articulações eleitorais para 2022, para acelerar as reformas. Do jeito que as coisas vão, não terá nenhuma grande realização para entregar no terceiro e quarto anos de governo, apenas obras iniciadas por seus antecessores e ainda em fase de conclusão.

A estratégia de Bolsonaro nas eleições municipais fracassou: esperava conquistar as prefeituras de São Paulo, com Celso Russomano (Republicanos), que nem chegou ao segundo turno, e do Rio de Janeiro, com Marcelo Crivella (Republicanos), que não conseguiu se reeleger. Saiu do pleito muito menor do que entrou, embora os partidos de Centrão, principalmente o PP e o PSD, tenham revelado um excelente desempenho eleitoral. Para manter sua base no Congresso, Bolsonaro terá de fazer mais concessões a esses aliados.

Os partidos do grupo saíram muito fortalecidos, principalmente o PP, que venceu em 685 municípios; o PSD, com 655; e o PL, com 345 prefeituras. Com as demais legendas, o Centrão controla cerca de 2,4 mil cidades, nas quais residem 35% da população: PTB, 212; Republicanos, 211; PSC, 115; Solidariedade, 94; Avante, 82; Patriotas, 49; e PROS, 41. Os líderes desses partidos pressionam Bolsonaro para fazer mudanças na Esplanada, na qual desejam ocupar mais espaços, sobretudo os ministérios de Minas e Energia e da Saúde.

João Doria

Enquanto Bolsonaro precisa reorganizar suas forças, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-governador do Ceará Ciro Gomes saem na frente, embalados por vitórias eleitorais dentro de casa. Com a vitória de Bruno Covas, em São Paulo, o PSDB manteve seu poder de fogo, sob controle dos tucanos paulistas. Dória tem dois trunfos na manga: o vice Rodrigo Garcia (DEM), que assumiria o Palácio dos Bandeirantes; e a aliança com o deputado Baleia Rossi (SP), que preside o MDB, e pode vir a ser o futuro presidente da Câmara. O que perde em números absolutos na eleição, Doria pode ganhar com a política de alianças, se atrair o MDB e o DEM.

O MDB continua sendo o maior partido do país, com 766 prefeitos, 7.300 vereadores e 10,9 milhões de votos. O partido teve um desempenho excepcional nas capitais, aumentando de três para cinco o número de prefeitos, sendo duas cidades polos regionais importantes: Porto Alegre, (RS), no Sul; e Goiânia (GO), no Centro-Oeste. O problema é que o MDB tem tradição de se dividir e/ou cristianizar os aliados, principalmente os paulistas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, macaco velho em disputas nacionais, já advertiu Doria de que ele precisa se “nacionalizar”. O DEM também foi um campeão nas eleições municipais, vencendo em quatro capitais, sendo duas entre as mais populosas do país: Rio de Janeiro (RJ), com Eduardo Paes, e Salvador (BA), com Bruno Reis.

Ciro e Boulos

Com sua vitória em Fortaleza, Ciro Gomes também larga na frente, pois o PDT manteve Fortaleza (CE), com Sarto Nogueira, e Aracaju (SE), com Edvaldo Nogueira. Mas a grande aposta de Ciro, a delegada Marta Rocha (RJ), no Rio de Janeiro, não se materializou. Ocorreu no Rio o que pode vir a acontecer em nível nacional, um confronto com o PT. Os trabalhistas perderam votos na eleição (6,4 milhões para 5,3 milhões). A candidatura de Ciro, para se consolidar como alternativa de poder, precisaria ao menos de uma coligação com o PSB, cujas contradições com o PT se aprofundaram por causa da disputa no Recife (PE), na qual João Campos (PSB) consolidou-se como herdeiro do espólio do pai, Eduardo Campos, mas dividiu a base eleitoral do clã com a petista Marília Arraes, numa disputa familiar sangrenta.

Outro que larga na frente é Guilherme Boulos (PSol), com um desempenho espetacular em São Paulo, com 40% dos votos, o que praticamente consolida sua candidatura à Presidência pela legenda. O PSol elegeu o prefeitos de Belém, Edmilson Rodrigues, e a maior bancada de vereadores do Rio de Janeiro, mas não teve um grande desempenho nacional em termos de prefeituras. Mesmo assim, Boulos ganhou projeção nacional e pode ameaçar os demais candidatos de esquerda.

O PT precisa resolver o que deseja fazer em 2022. A candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é inviável, embora exista esperança de que sua condenação na Lava-Jato no caso do triplex de Guarujá seja anulada. O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad, que seria a opção, está sendo desidratado.

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Luiz Carlos Azedo: Três cidades

Em São Paulo, Bruno Covas é assediado por Boulos; no Rio de Janeiro, Eduardo Paes está praticamente eleito; em Recife, Marília e João Campos têm disputa acirrada

Muito interessante a disputa nas três principais capitais onde há segundo turno: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Apontam tendências políticas completamente diferentes. A única conclusão que podemos inferir em relação a 2022, com segurança, é o fato de que o presidente Jair Bolsonaro caiu do cavalo nas três cidades. Seus candidatos não emplacaram. A queda de sua popularidade em quase todo o território nacional, em razão da pandemia de coronavírus, das altas taxas de desemprego e das suas patacoadas em relação a alguns temas relevantes, como a política externa e o meio ambiente, fez com que seu apoio se tornasse irrelevante.

Em São Paulo, Bruno Covas (PSDB) mantém a liderança, mesmo caindo de 48% para 47%. Guilherme Boulos (PSol) estacionou nos 40%, segundo o DataFolha. Como o candidato de Bolsomaro, Celso Russomano (Republicanos), virou mosca morta no segundo turno, a disputa reflete uma guinada à esquerda na capital paulista. Bruno Covas é um tucano de raiz, com uma narrativa que não nega a herança familiar do ex-governador Mario Covas. É falsa a acusação de que seria um bolsonarista, sua candidatura se posiciona no campo da centro-esquerda.

O que acontece é que Boulos, candidato do PSol, está à esquerda do PT, o que está contingenciando sua candidatura. Não deixa de ser um fenômeno de implicações nacionais, pois sinaliza a quebra de hegemonia do PT e a emergência de uma nova liderança política em São Paulo com projeção para outros estados. Também é falsa a tese de que seria uma espécie de lulismo sem Lula, quando nada porque o transformismo do PT ocorreu no exercício do poder e não à margem dele. Não se pode confundir o aggiornamento de Boulos com isso.

Boulos tem ampla vantagem entre jovens de 16 a 24 anos (61% a 27%); Covas, entre quem tem 60 anos ou mais (61% a 28%). Os mais jovens, porém, pesam menos (12%) no eleitorado do que os mais velhos (23%). Entre os mais pobres, com renda familiar de até dois salários, o candidato do PSDB tem 46% das intenções de voto, ante 39% do adversário. Também lidera entre quem tem renda familiar de dois a cinco salários (48% a 38%). Boulos vence na faixa de renda de cinco a 10 salários (48% a 42%). Entre os mais ricos, com renda superior a 10 salários, Covas tem 53%, e Boulos, 42%. No total de votos válidos, Covas tem 54% e Boulos, 46%.

Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, a situação é completamente diferente da de São Paulo. O segundo turno virou uma disputa entre o centro e a direita. A novidade é o maciço apoio da esquerda ao candidato do DEM, Eduardo Paes, que passou de 54% para 55%. O prefeito Marcelo Crivella, um dos raros candidatos de Bolsonaro no segundo turno, mostra resiliência na sua base evangélica, mas avançou apenas de 21% para 23% dos votos, segundo o DataFolha. Em termos de votos válidos, Paes venceria Crivela por 70% a 30%.

A vitória de Eduardo Paes repercute no cenário nacional porque fortalece o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a ala do partido que namora a eventual candidatura a presidente da República do apresentador Luciano Huck. A disputa também aponta uma tendência de convergência de forças contra o presidente Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022.

A segmentação da pesquisa também mostra uma derrota profunda do projeto político da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, de quem Crivella é sobrinho. Sua narrativa conservadora em relação aos costumes esbarrou na vida mundana dos cariocas. O aparelhamento da administração da cidade pelos pastores evangélicos também se revelou um fracasso político.

Não é à toa que Paes ampliou a vantagem sobre Crivella entre as mulheres (74% contra 26%); entre os que têm 60 anos ou mais (75% a 25%); entre os mais instruídos (75% a 25%); entre os com renda familiar mensal acima de 10 salários mínimos (85% a 15%); entre os funcionários públicos (83% a 17%); entre os católicos (84% a 16%); e entre os simpatizantes do PT (93% a 7%). Crivella manteve-se em vantagem apenas entre os evangélicos (64% contra 36%).

Recife
A eleição no Recife está eletrizante e virou a política de Pernambuco de pernas para o ar. Marília Arraes (PT) subiu de 41% para 43%, mas João campos (PSB) tem uma curva de crescimento melhor: passou de 34% para 40%. Nos votos válidos, a petista venceria por 52% a 48%, uma diferença que caiu de 10 para quatro pontos, apenas. O mais inusitado da disputa é que ela se dá praticamente no mesmo campo, em todos os sentidos. PT e PSB são partidos de esquerda, socialistas, os dois candidatos pertencem ao clã da família do ex-governador Miguel Arraes e disputam a sua herança.

Curioso é o fato de a direita pernambucana apoiar maciçamente a candidata petista, com objetivo de enfraquecer o governador Paulo Câmara e o jovem deputado federal João Campos, neto de Arraes e herdeiro político do falecido governador Eduardo Campos, que morreu num desastre aéreo na Baixada Santista, em plena campanha eleitoral de 2014.

Marília Arraes leva vantagem entre os homens (46% a 36%); entre as mulheres, fica um pouco atrás (41% a 43%). Entre os mais jovens, de 16 a 24 anos, abre 14 pontos (47% a 33%). Na faixa seguinte, de 25 a 34 anos, tem 43%, ante 41% do candidato do PSB. Entre os eleitores de 35 a 44 anos, Campos lidera (45% a 37%), mas perde entre quem tem de 45 a 59 anos, faixa na qual a petista abre vantagem de 14 pontos novamente. No grupo de eleitores mais velhos, com 60 anos ou mais, o candidato do PSB tem 44% e Marília, 43%.

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Luiz Carlos Azedo: Decifra-me ou te devoro

A política no Brasil está no campo da moderna complexidade. As eleições municipais são um momento decisivo desse processo de ordem-desordem das relações políticas

Quem foi aluno de cursinho do falecido professor Manoel Maurício de Albuquerque, um expurgado do Instituto Rio Branco pelo regime militar, antes de qualquer aula sobre História do Brasil, aprendia a diferença entre uma totalidade simples e uma totalidade complexa. Ele desenhava um círculo com quatro traços verticais e pedia que um dos alunos o descrevesse em voz alta. Depois, desenhava o mesmo círculo e dispunha os demais elementos na posição da boca, do nariz e dos olhos. O primeiro representava a totalidade simples; o segundo, a complexa. Mais Paulo Freire, impossível.

Na sociologia moderna, a discussão é mais complicada. Newton consolidou o paradigma cartesiano de totalidade complexa a partir da lei da gravitação universal. Daí resultam conceitos que buscam separar a mente e o corpo, a verdade objetiva externa do observador, a estrutura dividida em parcelamentos e a noção de tempo flecha, entre outros. Trata-se da ideia de que a natureza tem uma ordem dada e, para decifrá-la, é preciso esquartejá-la em pequenos pedaços, mensuráveis.

O moderno paradigma da complexidade é mais complicado, surge da mecânica quântica e da teoria da relatividade, muda o entendimento da relação entre tempo e espaço, considera inseparável o sujeito do objeto e usa modelos matemáticos não lineares. Não existe uma estrutura dada, mas uma tensão entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, com forças de atração e dissipação. O princípio da separação não morreu, mas é insuficiente. É preciso separar, distinguir, mas também é necessário reunir e juntar. O princípio da ordem renasce na ordem-desordem-organização. Morre o princípio da simplificação e da redução, jamais chegaremos ao conhecimento de um todo a partir do conhecimento dos elementos de base.

No exemplo do Maneco, a chave da transformação era a mão de quem reorganizou os pauzinhos, ou seja, o trabalho direto. Agora, é mais complicado. A crise que enfrentamos resulta da modernização da sociedade e de suas estruturas de produção, com novos problemas, como a ressignifição do trabalho na sociedade do conhecimento, a separação entre o conhecimento e a consciência pela inteligência artificial, o novo papel das escolas, as novas relações entre a produção do conhecimento científico e tecnológico com o Estado, as universidades, empresas, mercado e a sociedade em geral. A tensão resultante de tudo isso deságua na política, cujas estruturas de representação se originaram na velha ordem das coisas e têm dificuldades para encontras as soluções. Boa parte dos problemas que enfrentamos no Brasil resulta desse processo — são de ordem objetiva — e de nossas seculares desigualdades e injustiças sociais, mas são agravados pela tentativa de simplificação desses problemas e da busca de soluções toscas, de um subjetivismo que nega a ciência e se baseiam no senso comum. A pandemia, por exemplo, resulta de um dos grandes fenômenos da criação: o encontro de um vírus com uma bactéria, que provoca uma mutação genética. Desprezar a ciência para enfrentá-la é uma derrota por antecipação.

Eleições
A política no Brasil está no campo da moderna complexidade. Nesse sentido, as eleições municipais são um momento decisivo desse processo de ordem-desordem das relações políticas, equilíbrio e desequilíbrio, caos e auto-organização. As pesquisas divulgadas ontem pelo DataFolha ilustram isso sobre vários aspectos; chocam o senso comum do que seria um processo linear. Em São Paulo, a reeleição do prefeito Bruno Covas (PSDB) é muito provável, porém, a emergência da liderança de Guilherme Boulos (PSOL) sinaliza o fim do hegemonismo petista no campo da esquerda e uma espécie de volta às origens jacobinas da esquerda, muito mais do que uma iminente ruptura político-administrativa.

Já no Rio de Janeiro, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) conseguiu a proeza de isolar as lideranças evangélicas, que aparelharam a administração e fracassaram como modelo para a ideia retrograda de governos teológicos. Tudo indica que Eduardo Paes (DEM) já está praticamente eleito, com apoio de toda a esquerda, inclusive do principal líder político do PSol, Marcelo Freixo, o que sinaliza uma tendência de frente única contra um inimigo comum cuja matriz está na eleição de Negrão de Lima (PSD), na antiga Guanabara, em 1965, a tática que ensinou a oposição o caminho para derrotar o regime militar. É uma tendência a se observar em 2022, principalmente no segundo turno.

Nada, porém, é mais surpreendente do que a disputa no Recife, entre Marília Arraes (PT) e João Campos. (PSB), um embate no campo da esquerda tradicional, entre a neta e o bisneto do ex-governador Miguel Arraes, na qual emerge uma inusitada aliança entre petistas e toda direita pernambucana, para quebrar a longa hegemonia do velho clã pernambucano, apoiando uma liderança dissidente da própria família para implodi-lo. Se levasse em conta essas e outras disputas, e os resultados do primeiro turno, o presidente Jair Bolsonaro veria diante de si a travessia de um grande deserto. A complexidade do novo cenário político é como o enigma da esfinge de Tebas: “Decifra-me ou te devoro”. Não se resolve somente reposicionando os pauzinhos.

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Ibmec-DF realiza live sobre reinvenção das cidades, com apoio da FAP e Tema editorial

Evento online será quinta-feira (26) e terá participação de autores de obra recém-lançada

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Apoiado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e Tema Editorial, o Ibmec-DF (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais no Distrito Federal) vai realizar, no dia 26 de novembro, das 19h às 21h, o debate a reinvenção das cidades, mesmo título da recém-lançada edição especial da revista Política Democrática. Inscrições estão abertas no site da instituição de ensino.

Clique aqui e faça a sua inscrição no site do Ibmec!

O debate do instituto integra a programação de discussões online com especialistas autores de artigos publicados na edição especial da revista, produzida e editada pela FAP em conjunto com a Tema Editorial. A publicação foi lançada em 30 de setembro, data de início da série do ciclo de cinco debates virtuais sobre as cidades. Todos os vídeos estão disponibilizados no site e na página da fundação no Facebook.

O livro reúne um grupo de 20 articulistas com abordagens instigantes sobre as cidades e seu futuro. O evento do Ibmec terá mediação do economista Jackson De Toni, doutor em Ciência Política, mestre em Planejamento Urbano e Regional e professor de Formulação e Avaliação de Políticas Públicas no instituto. Ele vai abordar a gestão municipal.

“Nos últimos trinta anos, transferiu-se para os municípios, de forma assimétrica e desproporcional, uma gama enorme de pautas e agendas que os prefeitos e as cidades não estavam preparados para assumir”, observa De Toni.

Entre os convidados está o doutor em Engenharia Roberto Alvarez, diretor executivo da GFCC (Federação Global de Conselhos de Competitividade), organização global sediada em Washington e presente em mais de 30 países. O autor vai destacar os principais desafios para inovação e sustentabilidade das cidades.

“Olhar para o que acontece nas cidades neste momento poderá dizer muito a respeito do nosso futuro coletivo e da nossa capacidade de construí-lo”, afirma Alvarez.

Também está confirmada a participação do fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole), Philip Yang. O especialista vai analisar a relação entre a política urbana e a desigualdade social, tendo como pano de fundo o cenário pós-pandemia do coronavírus.

Organizadora da revista Política Democrática e editora da Tema Editorial, a jornalista Beth Cataldo, mestre em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília) vai fazer uma apresentação do livro e explicar as motivações que justificaram sua edição especial. Ela também abordará a questão da comunicação e a vida urbana.

Veja vídeos do ciclo de debates A reinvenção das cidades

Indústria tem papel fundamental em inovação, dizem especialistas em webinar

Webinar da Política Democrática especial discute caminhos da inovação

Caótica, São Paulo tem ‘frestas poéticas’, avaliam especialistas em webinar

Webinar da Política Democrática impressa discute espaços de transformação urbana

Desigualdade socioespacial requer soluções de prefeitos, dizem especialistas

Webinar da Política Democrática impressa aborda meio ambiente e ocupação

Cenário da pandemia pode impulsionar desaglomeração, dizem especialistas

Ciclo de debates online discutirá impactos da pandemia na vida urbana

Especialistas apontam desafios e indicam rumos para gestão de municípios

Ciclo de debates A reinvenção das cidades tem início nesta quarta-feira (30)

FAP e Tema Editorial lançam publicação sobre cidades


Luiz Carlos Azedo: A nova onda

O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista da covid-19, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social

A pandemia da covid-19, no Brasil, virou um endemia e assim será, até que a população seja vacinada em massa. A segunda onda, que está sendo avassaladora nos Estados Unidos e na Europa, aqui está começando, sem que a primeira tenha ido embora, ou seja, se inicia de um patamar muito alto, como aconteceu nos EUA. O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social. Deveria prestar um pouco de atenção ao que acontece na Suécia, que tratou o novo coronavírus como uma gripezinha, mas, agora, mudou de paradigma e resolveu aceitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

São Paulo, por ser o estado mais populoso e também o mais conectado com os demais e o exterior, registra um aumento de 18% no número de casos de internações nas redes hospitalares pública e privada neste mês. Como na primeira onda, as classes A e B estão sendo as mais afetadas; a explosão deve ocorrer quando chegar à população de mais baixa renda, com menos capacidade de se manter a salvo do contato com o vírus. O grande dilema é como lidar com as medidas de proteção individual e, ao mesmo tempo, evitar o colapso econômico e social.

Bolsonaro reage a isso como quem entra em pânico numa emergência, apesar da retórica de valentão. Insiste na tese de que o isolamento social é a causa da crise econômica, culpando governadores, prefeitos, o Supremo e os “maricas” que têm medo do vírus, ou seja, a maioria de nós. Não reconhece que, em todo mundo, a origem da crise econômica é a pandemia; e que a política de isolamento social é uma maneira de evitar desastre ainda maior.

Um breve comentário de um confeiteiro do Sudoeste, bairro do Plano Piloto, em Brasília, resume a questão. Ele observa o comportamento dos clientes e conclui: a maioria dos que tomam os devidos cuidados no balcão de seu pequeno comércio — máscara e higienização das mãos — não teve a doença. Os que chegavam com máscara no queixo e não utilizavam o álcool em gel, em sua maioria, com a evolução da pandemia, disseram-lhe que contraíram a doença. “Um deles me disse que 22 pessoas da sua família tiveram a covid-19.”

Dívida pública
Este é o xis da questão: é impossível manter as atividades econômicas sem protocolos rígidos de procedimento nas empresas e um comportamento equivalente por parte dos consumidores. A maioria das pessoas não está contraindo o vírus nos locais de trabalho, que seguem regras rígidas de funcionamento, mas em razão de seu comportamento social. A generalização das aglomerações — e não apenas os bailes funks — e a campanha eleitoral, de certa forma, contribuíram para a segunda onda, mas é preciso verificar as características do vírus que está circulando, para saber seu grau de mutação genética. Mesmo quem já teve a doença, por essa razão, deve tomar cuidado.

O presidente continua negando a chegada da segunda onda, mais ou menos como fez na primeira. O problema é que não terá como negar seu impacto na economia, porque a situação do Tesouro é muito diferente. A dívida pública deve chegar a 100% do PIB no fim do ano. O governo não terá como prorrogar o auxílio emergencial por longo período, mesmo mantendo seu valor em R$ 300.

Eleições
Estão saindo as primeiras pesquisas do segundo turno. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) lidera a corrida com 47% de intenções de votos, 12 pontos de vantagem em relação a Guilherme Boulos (PSol), com 35%, segundo o Ibope. Será uma disputa que reproduz a polarização tradicional da capital, com o candidato do PSol no lugar de um petista.

No Rio, o Ibope apurou uma grande vantagem de Eduardo Paes (DEM), com 53% de intenções de votos, contra o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que empacou nos 23%. Devido à rejeição astronômica do atual prefeito carioca, a eleição está no colo do ex-gestor da cidade.

No Recife, Marília Arraes (PT) assumiu mesmo a liderança, com 45%, contra João Campos (PSB), com 39%. A novidade é a coalizão entre a petista, que disputa a herança política do avô Miguel Arraes, e a direita pernambucana.

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Luiz Carlos Azedo: As forças centrífugas

“Nas disputas de segundo turno, há todo tipo de combinações. Não se pode falar de polarização entre Bolsonaro, que saiu do primeiro turno com fama de pé frio, e a oposição”

As eleições municipais no Brasil, mesmo na época do regime militar, sempre funcionaram como forças centrífugas, mitigando a polarização política das eleições gerais, para que um novo ciclo de reaglutinação de forças ocorresse. Tínhamos, a partir da redemocratização de 1945, um sistema partidário consolidado, no qual três grandes partidos nacionais predominavam — PSD, PTB e UDN —, com uma força regional importante — o Partido Social Progressista, de Ademar de Barros, em São Paulo — e a esquerda ideológica dividida entre o PSB, de João Mangabeira, e o então proscrito Partido Comunista, liderado por Luiz Carlos Prestes.

Com o golpe de 1964, para se manter no poder, os militares acabaram com os partidos políticos, impondo artificialmente o bipartidarismo oficial, com a criação da Arena e do antigo MDB, que se tornou uma frente legal de oposição; suprimiram as eleições presidenciais, marcadas para 1965; e acabaram com as eleições para governadores e prefeitos das capitais. Mas não puderam eliminar completamente as eleições municipais — ocorrera a mesma coisa durante o Estado Novo —, canceladas apenas naqueles municípios considerados “áreas de segurança nacional”. Mesmo assim, não conseguiram conter as forças centrífugas da política local, sendo obrigados a criar um subterfúgio, as sublegendas, para impedir que as eleições municipais implodissem a Arena, com suas dissidências migrando para o MDB, o que acabou ocorrendo com o passar dos anos, principalmente depois das eleições de 1974.

As eleições municipais do último domingo não fugiram à regra. Seus resultados mostram que atuaram como forças centrífugas do quadro político nacional, que estava muito polarizado entre Jair Bolsonaro e a oposição de esquerda. Os números permitem múltiplas interpretações, mas algumas conclusões são consensuais: 1) os partidos de centro cresceram muito, principalmente o PP, PSD e DEM; 2) a esquerda tradicional perdeu terreno, principalmente o PT; 3) os partidos de extrema-direita não hegemonizaram o pleito. Se há um grande derrotado no primeiro turno, é o presidente, que participou da disputa como aquele jogador de futebol que entra numa bola dividida, achando que vai chegar primeiro e tirá-la do adversário com o bico da chuteira, mas acaba perdendo para quem entrou na jogada mais decidido, com o pé mais firme.

A opção que Bolsonaro fez por alguns candidatos no primeiro turno, principalmente Celso Russomanno (Republicanos), em São Paulo, e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro, logo no começo da campanha, foi uma decisão tomada muito mais com o fígado que por estratégia. Sem partido, fora aconselhado a se manter distante das disputas municipais. Viu no apoio a Russomanno, que despontava como líder, uma maneira de derrotar o governador João Doria (PSDB).

No Rio de Janeiro, de igual maneira, seria uma forma de derrotar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), que articula ostensivamente a candidatura de Luciano Huck para 2022. Antecipar definições para 2022 nas eleições municipais é uma aposta de alto risco, porque não se pode combinar com os adversários nem com o eleitor. Bolsonaro ofuscou outros resultados que poderiam até beneficiá-lo.

Prefeituras

PSDB e MDB perderam o maior número de prefeituras na comparação do primeiro turno de 2016 e de 2020. O PSDB foi de 785 para 512 prefeitos eleitos — ou seja, 273 a menos. O MDB perdeu 261 prefeituras (caiu de 1.035 para 774), embora continue sendo o maior partido do país em número de prefeituras, vereadores eleitos e votação. O PT registrou mais uma queda, conquistando 179 prefeituras, 75 a menos que em 2016. DEM e PP foram partidos que ganharam mais prefeituras. O primeiro foi de 266 para 459, ou seja, 193 a mais, sendo três dos sete prefeitos eleitos no primeiro turno nas capitais. O segundo, saltou de 495 para 682 prefeitos, 187 a mais. Destaque também para o PSD, que passou de 537 para 650 prefeituras.

Nas disputas de segundo turno, há todo tipo de combinações: direita contra centro-direita, esquerda contra centro-esquerda, centro-esquerda contra o centro-direita. Nesse sentido, não se pode falar numa polarização entre Bolsonaro e a oposição. Além disso, o presidente da República saiu do primeiro turno com fama de pé frio — os políticos são muito supersticiosos —, o que desaconselha seu apoio. Vamos ver o que vai acontecer entre Bolsonaro e seus aliados neste segundo turno, no qual o objetivo de derrotar seus prováveis adversários em 2022 subiu no telhado.

No campo governista, digamos assim, o PP e o PSD emergiram como grandes forças políticas, fortalecendo setores mais moderados do Palácio do Planalto. A ala de extrema-direita ideológica do bolsonarismo foi derrotada no primeiro turno. No campo da oposição, o hegemonismo petista também está sendo derrotado, principalmente em razão do resultado de São Paulo, no qual Guilherme Boulos levou o PSol a ocupar um lugar que sempre fora do PT.

Finalmente, há que se destacar que o resultado das eleições municipais inviabilizou a sobrevivência de muitos partidos, à direita e à esquerda, que terão de repensar o próprio projeto, buscando fusões e incorporações àqueles com quem tem alguma afinidade ideológica e/ou programática e mais viabilidade eleitoral em 2022.

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