cidades

Luiz Carlos Azedo: A volta ao leito natural

O cenário mostra recuperação dos partidos de centro e um enfraquecimento da polarização direita versus esquerda. Isso pode se repetir no segundo turno

Na elite brasileira, existe muito desprezo em relação à política municipalista, rivaliza com o preconceito em relação a Brasília. Duas causas destacam-se: (1) o fato de que sempre haverá políticos espertalhões, falsos moralistas e corruptos, imortalizados pelo prefeito Odorico Paraguaçu, genial personagem de Dias Gomes, interpretado por Paulo Gracindo, ainda hoje lembrado, mas em razão da política nacional; 2) o velho positivismo, que atribui à União a tutela da nação, como se o povo fosse incapaz de se autogovernar, quando o contrário acontece na maioria dos municípios brasileiros, apesar da crescente centralização política do governo federal, embora a Constituição de 1988 tenha dado aos municípios o status de entes federados.

Os indicadores mostram que os municípios gastam mais e melhor do que os governos estaduais e a União, em termos de investimentos públicos e prestação de serviços básicos, principalmente, nas áreas da saúde e da educação. Nesse aspecto, as eleições municipais têm colaborado para que essa tendência se afirme cada vez mais, em termos de qualidade da gestão e do gasto público, entre outras coisas, por causa da Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, a alternância de poder e a continuidade administrativa, como deve ser na democracia, funcionam como um mecanismo de peso e contrapeso bastante eficiente, tanto nas metrópoles quanto no Brasil mais profundo. A nota negativa é o aumento da violência nas áreas de expansão da atuação das milícias, no Rio de Janeiro e nas periferias de outras metrópoles; e nas regiões de fronteira agrícola, principalmente no norte do país, nas quais grileiros, madeireiros, garimpeiros e pecuaristas truculentos tentam tomar o poder político dos municípios onde atuam.

Nas capitais, cinco candidatos estão com chances de vencer as eleições no primeiro turno: Bruno Reis (DEM), em Salvador; Gean Loureiro (DEM), Florianópolis; Rafael Grega (DEM), Curitiba; Alexandre Kalil (PSD), Belo Horizonte; e Marquinhos Trad (PSD), Campo Grande. São os exemplos de continuidade administrativa, seja porque vão para o segundo mandato, seja porque houve transferência de votos de gestores bem-sucedidos. Nessa linha, destaca-se o candidato do PSDB em São Paulo, Bruno Covas, que lidera a disputa com folga e pode surpreender com uma vitória de primeiro turno.

Partidos
Na maioria das capitais e cidades com mais de 200 mil habitantes, a política voltou ao leito natural, sem muitas candidaturas disruptivas, ao contrário do que ocorreu em 2016 e 2018. Era de se esperar, se levarmos em conta que as eleições municipais existem desde o período colonial, mais precisamente, da criação da comarca de São Vicente (SP), em 1534. A tradição do voto uninominal vem daí, o que explica a resiliência dos partidos. Nosso sistema proporcional uninominal foi idealizado por Assis Brasil e adotado na redemocratização de 1945, com objetivo de canalizar para os partidos a tradição de votar nas pessoas. Nesse aspecto, o fim das coligações proporcionais ajudará a fortalecer e dar mais identidade às legendas que sobreviverem à cláusula de barreira em 2022.

No universo das capitais e municípios com mais de 200 mil eleitores, neste primeiro turno, segundo levantamento do site Poder360, grandes partidos despontam como líderes isolados em muitas cidades: PSDB (15), PSD (8), DEM (7), MDB e PT (6), PP e Podemos (5 cada), PDT (3), PSB, SD e Pros (2 cada), Cidadania, PL, PTN, PCdoB e PSol (1 cada). Além disso, em outras cidades, disputam a liderança: MDB (9), PT (6), PP (5), PSD (4), Cidadania e Republicanos (3 cada), DEM e Pros (2), PDT, SD, PL, PTB, Rede, PSL e DC (1 cada).

Esse cenário mostra recuperação dos partidos de centro e um enfraquecimento da polarização direita versus esquerda. Isso pode se repetir no segundo turno, mas não significa que será a tendência das eleições de 2022, embora o protagonismo do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha sido reduzido e/ou até negativo no pleito deste ano. Diante da mudança de conjuntura internacional, com a eleição do democrata Joe Biden, e das grandes dificuldades econômicas que o governo enfrenta, o cenário eleitoral — a se confirmar no segundo turno — aponta para uma reestruturação do quadro partidário, forçada pela cláusula de barreira, e uma disputa aberta pela Presidência, na qual Bolsonaro continua sendo o favorito, mas terá dificuldades para se reeleger, correndo risco de virar um Trump dos trópicos.

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Luiz Carlos Azedo: Quanto pior, pior mesmo

O ministro da Economia, Paulo Guedes, antecipou que pretende prorrogar o auxílio emergencial caso a pandemia de COVID-19 tenha uma segunda onda

As eleições de domingo já estão razoavelmente desenhadas nas pesquisas de opinião, principalmente no chamado Triângulo das Bermudas — Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte —, que revelam opções prudentes dos eleitores. Estão preferindo manter os prefeitos Bruno Covas (PSDB), em São Paulo, e Alexandre Kalil(PSD), em Belo Horizonte, e trazer de volta o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), diante da desastrosa administração do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro.

Com exceção de Kalil, que deve ser eleito no primeiro turno — está com 63% de intenções de votos, contra João Vitor Xavier (Cidadania), que tem 8%, em segundo —, Covas e Paes provavelmente terão que suar a camisa no segundo turno, principalmente se os adversários forem Marta Rocha (PDT) e Guilherme Boulos(PSOL), respectivamente. Num balanço rápido pelas capitais, as expectativas de que o presidente Jair Bolsonaro teria influência decisiva nas eleições se confirmaram com o sinal trocado: está puxando os candidatos que apoia para baixo.

Os melhores exemplos são Celso Russomano, que liderava em São Paulo, cuja candidatura desidratou completamente e está fora do segundo turno. E a Delegada Patrícia (Podemos), no Recife, que parecia ir para o segundo turno contra o líder nas pesquisas, João Campos (PSB), mas, a partir do apoio de Bolsonaro, também definhou. Marília Arraes (PT) e Mendonça Filho (DEM) disputam o segundo lugar. Ontem, pesquisa DataFolha mostrou o porquê de o apoio de Bolsonaro se tonar tóxico nessas disputas eleitorais: sua rejeição aumentou muito, chegando a 50% em São Paulo.

Bolsonaro havia sido aconselhado a somente se definir no segundo turno, buscando aliança com um dos dois candidatos em confronto, mas não resistiu ao apelo de alguns aliados e resolveu meter a colher na sopa das capitais, entornando o caldo. Agora, no segundo turno, terá dificuldades para fazê-lo, pois é muito provável que essa aproximação seja considerada desvantajosa eleitoralmente. Quem mais vai querer um apoio que pode tirar mais votos do que transferir? Tudo bem que o segundo turno é outra eleição, mas suas tendências principais estão dadas. Uma delas é de que os eleitores está rejeitando aventuras quando têm opções mais razoáveis.

As dificuldades de Bolsonaro nas eleições estão diretamente relacionadas à pandemia do novo coronavírus e às altas taxas de desemprego, sem que haja um horizonte seguro para a maioria da população, afora as bobagens que faz e fala. E ao fato de que R$ 300 de auxílio emergencial não são a mesma coisa que R$ 600, ainda mais com a inflação de alimentos. O auxílio dado a mais de 60 milhões de pessoas que perderam a fonte de renda havia alavancado a popularidade de Bolsonaro, mas sua redução parece estar neutralizando esse efeito. O projeto de Renda Cidadã, que Bolsonaro quer implantar para atender essa demanda popular, não tem fonte de receita ainda, ou seja, subiu no telhado.

Pandemia

Entretanto, numa reunião com empresários do setor de abastecimento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, antecipou que pretende prorrogar o auxílio emergencial caso a pandemia tenha uma segunda onda. Os sinais de que isso pode acontecer não vem apenas do Reino Unido, França, Itália e Espanha; nos hospitais particulares de São Paulo e do Rio Janeiro, o número de casos voltou a aumentar neste começo de semana. O relaxamento da política de isolamento social, principalmente com a reabertura dos bares, os bailes funk e a volta ao trabalho presencial, pode ter algum impacto nisso, mas não se deve desconsiderar a campanha eleitoral. Nestas últimas semanas, os candidatos que não estavam com covid-19 foram para o corpo a corpo com o eleitor.

Além disso, o presidente Bolsonaro faz tudo o que pode para atrapalhar a vida dos profissionais de saúde que lutam contra a pandemia. A última foi comemorar a morte de um dos voluntários da pesquisa da vacina CoronaVac, de procedência chinesa, que está sendo realizada pelo Instituto Butantã, de São Paulo. Bolsonaro culpou a vacina, mandou a Anvisa suspender a pesquisa, mas a agência teve que voltar atrás quando ficou comprovado que a causa da morte foi suicídio, por meio de sedativos fortíssimos, e não a vacina. O presidente da República não percebeu ainda que a conta da pandemia está chegando para ele também.

É aí que chegamos ao quando pior, pior. A situação da economia emite sinais preocupantes de deterioração, por causa do aumento da dívida pública, que já está em 100% do PIB, e as dificuldades para rolar essa dívida sem a venda de títulos públicos de curto prazo, com juros duas ou três vezes maiores do que a taxa Selic, que é de 2%. O ministro Guedes ainda não sabe o que fazer para fechar as contas públicas e criar o Renda Cidadã, sem romper o Teto de Gastos, a balisa do mercado financeiro para não entrar em estado de emergência. Quanto fala na segunda onda, aposta no quanto pior, melhor, porque a dívida pública explodirá de vez e, aí sim, se nada for feito para restabelecer o equilíbrio fiscal, vamos ingressar num cenário de hiperinflação.

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Paulo Hartung: Cidades inteligentes, sustentáveis e humanas

Que estas eleições sejam mais um passo para fortalecer os valores humanísticos.

Em poucos dias o País vai às urnas para o primeiro turno das eleições municipais. Trata-se de um pleito marcado por peculiaridades importantes. A primeira é que ocorre em meio a uma pandemia agoniante e terrível nos planos sanitário e socioeconômico, exigindo novos protocolos num dos momentos mais desafiantes para as atuais gerações.

Estamos testemunhando o fim das coligações proporcionais, o que deve mudar o quadro partidário nacional, algo necessário e urgente. Há ainda o aumento da inserção de movimentos cívicos. O voto é importante, mas não se encerra aí a participação da sociedade civil. Nestas eleições podemos destacar candidaturas oriundas de iniciativas dedicadas a estimular e formar jovens para o mundo da política, como o Livres, o Raps e o RenovaBR.

Só a partir do RenovaBR se colocaram 1.032 candidatos, sendo 115 a prefeito, filiados a 29 dos 33 partidos brasileiros, em 398 cidades de todos os Estados. É um esforço para preencher o enorme vazio de lideranças no nosso país. A esperança é que os partidos se inspirem e assumam também a formação de novos quadros.

Além dessas peculiaridades do pleito, vale destacar que os gestores vão encontrar um quadro desafiador, agravado pela pandemia, mas não causado exclusivamente por ela. Mesmo antes da covid-19 a capacidade das prefeituras de ofertar serviços e obras já vinha sendo velozmente reduzida. As despesas obrigatórias, que crescem muito mais que o País, vêm esmagando as despesas discricionárias, limitando a possibilidade de construir escolas, unidades de saúde, praças, ruas, etc.

Não vai ser fácil, mas sempre há um caminho, que pode ser efetivamente construído com racionalidade, trabalho incessante e devoção ao interesse comum. Nessa direção, vejo seis passos decisivos, além do básico, que contempla equipes que combinem diversidade, boa técnica e boa política, ferramentas modernas de gestão e planejamento estratégico.

O primeiro passo é a digitalização, que, além de promover o encontro do modus operandi da burocracia com o modus vivendi da sociedade, torna viável a constituição de uma cidade conectada. Com inteligência artificial podemos efetivar uma verdadeira revolução na qualidade de vida, incrementando serviços de educação, saúde, mobilidade urbana e segurança, entre outros.

Um segundo passo é a opção preferencial por investimento nas oportunidades da “economia verde”, com vista a uma cidade sustentável, incluindo desde questões de saneamento até transporte público sem combustíveis fósseis, passando por incubadoras de negócios amigáveis ao meio ambiente.

As chances da economia criativa, incentivando as expertises e as culturas locais, e da nova economia de base tecnológica, com incremento de startups e fintechs, por exemplo, constituem um terceiro passo em direção à inovação e à inclusão como fundamentos da vida produtiva dos municípios.

Nessa caminhada, outro passo decisivo é a atração de investimentos privados. Além de dialogar com todos os pontos anteriores, a parcerias são fundamentais para avançarmos em áreas como saneamento e iluminação pública. As concessões de limpeza urbana e destinação adequada de resíduos são outra frente de parcerias.

Também no caminho da convergência de forças, outro movimento nos leva às organizações do terceiro setor. Em vez de ficar reinventando a roda, a saída é difundir boas políticas públicas já testadas e aprovadas. Há oportunidades na educação (Todos pela Educação, Instituto Ayrton Senna, etc.), na saúde (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS), na segurança (Igarapé) e em gestão pública (Comunitas), entre outras.

Um sexto passo importante é identificar desperdícios e, com o seu combate, obter meios para melhorar a oferta de obras e serviços. A partir de minha experiência, posso afirmar que os ralos que consomem os limitadíssimos recursos públicos são gigantescos.

Sobre esta eleição, também merece destaque a necessária ampliação da agenda do poder local. A segurança pública tem de entrar de vez na pauta das prefeituras e câmaras municipais. É preciso, ainda, que as lideranças eleitas participem do debate das reformas estruturantes, como a PEC emergencial e a reforma administrativa, que precisa alcançar os atuais servidores, melhorando as condições de governabilidade e a conexão entre poderes públicos e interesses dos cidadãos.

Aos novos líderes institucionais dos municípios cabe uma pergunta: que vocação essencial se deve dar às cidades, ainda mais considerando desafios e aprendizados tão ímpares pautados pela pandemia? Uma inspiração assertiva e valiosa é dada pelo arquiteto dinamarquês Jan Ghel, para quem é possível “um novo planejamento que diz que a cidade deve ser para as pessoas”.

O objetivo essencial da república é a vida plena para todas e todos, sendo a cidade – do latim civitas, lugar de cidadãos – o ícone de sua efetividade. Que estas eleições sejam, pois, mais um passo para fortalecer os valores humanísticos e democrático-republicanos entre nós, exatamente onde vive o cidadão, no território em que efetivamente deve vicejar a cidadania, os municípios.

*Economista, presidente executivo da Indústria brasileira de Árvores (IBÁ), membro do conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Luiz Carlos Azedo: A pandemia e o luto

No Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado

Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.

Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.

Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.

Negação e resiliência
Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada da pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma firmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.

Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.

O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.

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Luiz Carlos Azedo: O jabutizeiro do SUS

Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, introduzidas em massa durante a pandemia, vieram para ficar

A Prefeitura de Vitória (ES) tem uma das melhores redes de atendimento básico à saúde do país, resultado de sucessivas administrações, mas, sobretudo, do avanço tecnológico promovido pelo atual prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), que encerra o seu segundo mandato. Com as inovações, foi possível ampliar o atendimento em 30%, sem contratação de médicos ou construção de novos postos de saúde. Qualquer cidadão atendido na rede, inclusive nos dois pronto atendimentos (PAs) da cidade, recebe um torpedo no celular para dar uma nota de 0 a 10 de avaliação do atendimento. A nota média, em setembro, mesmo na pandemia da covid-19, foi 9,11. O ovo de Colombo surgiu depois de uma viagem de avião, quando o prefeito recebeu uma mensagem pedindo uma nota de avaliação do serviço da companhia aérea.

A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.

A chave para o alto desempenho foi a sinergia entre as secretarias de Saúde e da Fazenda, que colocou o time da subsecretaria de Tecnologia de Informação para desenvolver soluções que melhorassem a gestão da Saúde, obrigada a fazer mais com menos, devido à queda de 25% da arrecadação da cidade, com o fim do Fundap (fundo de desenvolvimento extinto em 2002, que beneficiava o complexo exportador capixaba). Ao contrário de outros municípios, que estão na latitude dos poços da Bacia de Campos, Vitória se beneficia pouco dos royalties de petróleo destinados aos capixabas.

Medicina a distância
Para melhorar o atendimento à população, o acesso à informação, a organização e o controle das unidades de saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) registra a fila de atendimento, a classificação de risco, os procedimentos da sala de medicação, com prescrição e checagem de forma eletrônica. Os sistemas informatizados permitem agilizar procedimentos administrativos, gerenciais, de atendimento e acesso à informação de pacientes. Além disso, o sistema gera o prontuário eletrônico com os dados do atendimento prestado ao paciente. Para que o atendimento seja mais rápido, basta o usuário apresentar um documento com foto e ele será encaminhado para a classificação de risco. Depois, aguarda o atendimento médico ou odontológico de acordo com a gravidade do caso. As consultas são automaticamente remarcadas em caso de não confirmação. O time de engenheiros e programadores da prefeitura, funcionários de carreira, acabou com as filas de atendimento e reduziu a 5% as faltas às consultas médicas, que representavam 30% do total.

Além da rede de postos de saúde e centros de referência, a prefeitura mantém atendimentos psicossocial para adultos e infantojuvenil, de prevenção e tratamento de toxicômanos, atenção a idosos, gestantes e pediatria. São oferecidos serviços de cardiologia, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, neurologia, obstetrícia (alto risco), oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, proctologia, psiquiatria, reumatologia, urologia, homeopatia, acupuntura e pequenas cirurgias, além de tratamento odontológico (radiologia, endodontia, periodontia e prótese dentária), e de diagnóstico de câncer de boca. Tudo gratuito. Além de equipes de médicos de família, agentes comunitários de saúde e orientadores de exercícios físicos.

E quando é que os jabutis subiram na árvore? Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, por exemplo, que foram introduzidas em massa na rede pública de Vitória durante a crise sanitária, vieram para ficar, assim como outras inovações tecnológicas introduzidas por lá. Acontece que grandes empresas de tecnologia já estão operando na área médica, aqui no Brasil, como a Afya, que oferece ensino especializado e treinamento a distância em larga escala (Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Pará, Tocantins e Distrito Federal). Há grande interesse na gestão dos serviços do SUS. As soluções que a Prefeitura de Vitória oferece de graça às demais prefeituras do país, via Frente Nacional de Prefeitos, na ótica dos grupos de medicina privada, são um grande business inexplorado. Por isso, as unidades básicas de saúde inacabadas do governo federal são quatro mil jabutis. Falta descobrir quem armou o “jabutizeiro” do SUS, que é muito maior. Com certeza, não foi enchente, foi mão de gente.

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Luiz Carlos Azedo: Tudo é perigoso

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo a batalha para a violência

A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.

“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.

Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.

Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.

Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.

Enquanto isso…

Em Brasília, a cúpula do Senado pressiona o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) para que se licencie do cargo, antes do julgamento da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que o suspendeu do mandato, previsto para amanhã, no plenário da Corte. O parlamentar foi flagrado pela Polícia Federal (PF) tentando esconder R$ 33,1 mil na cueca, durante operação de busca e apreensão em sua residência. Agora, alega que o dinheiro era destinado ao pagamento de funcionários e tenta justificar a sua posse, argumento que não cola na opinião pública, mas é a linha de defesa de seus advogados. Os senadores do grupo Muda Senado querem cassar seu mandado no Conselho de Ética, mas o presidente do órgão, senador Jayme Campos (DEM-MT), seu colega de partido, se recusa a convocar uma reunião do colegiado — prefere sugerir que Chico se licencie logo.

Por sua vez, Bolsonaro resolveu reiniciar sua campanha negacionista contra a obrigatoriedade do uso da vacina contra a covid-19: “Tem uma lei de 1975 que diz que cabe ao Ministério da Saúde o Programa Nacional de Imunização, ali incluídas possíveis vacinas obrigatórias. A vacina contra a covid — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — não será obrigatória”, disse, em cerimônia no Palácio do Planalto, para apresentação de pesquisa sobre um medicamento. Completou: “Qualquer vacina precisa ter comprovação científica e ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que anunciou ontem a intenção de iniciar a vacinação contra a covid ainda neste ano. Uma vacina chinesa que está sendo testada pelo Instituto Butantan.

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FAP e Tema Editorial lançam publicação sobre cidades

Com artigos de 20 articulistas, publicação oferece pluralidade de visões e alternativas para fazer avançar a qualidade dos espaços urbanos no Brasil

 Beth Cataldo, da Tema Editorial

A discussão sobre a vida urbana, em suas diferentes dimensões, é o mote central da edição de setembro da revista Política Democrática, que reúne um grupo de 20 articulistas com abordagens instigantes sobre as cidades e seu futuro. Às vésperas das eleições municipais e sob o impacto gigantesco da epidemia do coronavírus, esse debate tornou-se não apenas oportuno como urgente. Intitulada “A reinvenção das cidades”, a publicação oferece pluralidade de visões e alternativas para fazer avançar a qualidade dos espaços urbanos no Brasil.

Diante das restrições impostas pela pandemia da covid-19 aos eventos presenciais, o lançamento será virtual, no próximo dia 30, às 19 horas, com transmissão ao vivo pelo site e pela página da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) no Facebook. O encontro terá a participação de autores da obra e marcará também a abertura do ciclo de debates sobre temas urbanos, que se estenderá pelo mês de outubro.

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 “Olhar para o que acontece nas cidades neste momento poderá dizer muito a respeito do nosso futuro coletivo e da nossa capacidade de construí-lo”, afirma o engenheiro Roberto Alvarez, um dos autores da coletânea, que representa a primeira coedição da Fundação Astrojildo Pereira com a Tema Editorial. A preocupação em buscar caminhos inovadores para a transformação sustentável das cidades está presente também nos textos de dois colaboradores estrangeiros – o português André Corrêa d’Almeida e o americano Jerry Hultin, ambos com trajetórias reconhecidas e publicações sobre o tema.

Jerry Hultin é um dos colaboradores estrangeiros desta edição da Política Democrática

O percurso para a atualização da agenda urbana no Brasil, no entanto, é complexo e desafiador. O cientista político Jackson De Toni, especialista em planejamento urbano e regional, busca respostas para as barreiras que travam o processo de modernização da gestão municipal no Brasil. Sua convicção, como escreve na revista, é que “nos últimos trinta anos transferiu-se para os municípios, de forma assimétrica e desproporcional, uma gama enorme de pautas e agendas que os prefeitos e as cidades não estavam preparados para assumir.”

Questões históricas

Cabem nesse debate questões como o atraso histórico do país na área de saneamento básico, um problema dissecado pelo deputado federal Arnaldo Jardim, do Cidadania, à luz de mudanças legislativas recentes, e as difíceis escolhas na área de segurança. O artigo de Felipe Sampaio, com ampla experiência no assunto, traz para o contexto urbano e democrático a discussão sobre a criminalidade, que costuma ser expressa em traços autoritários e soluções voluntaristas. A sua visão, ao contrário, privilegia políticas estruturantes de longo prazo, ao mesmo tempo em que delineia o papel que os municípios podem cumprir para garantir segurança à população.

Arnaldo Jardim escreve sobre o atraso histórico do país na área de saneamento básico

Uma publicação dedicada às questões urbanas não poderia prescindir da troca de ideias sobre as linhas de ocupação das cidades – mais compactas ou espraiadas em espaços amplos e distantes?  A emergência da covid-19 acentuou esse embate em função das inquietações relacionadas ao adensamento urbano e à maneira como o coronavírus surgiu e se disseminou. Na única entrevista publicada na revista, o consagrado arquiteto Jaime Lerner também aborda essa questão, mas com um contraponto otimista. Ao mesmo tempo, rejeita iniciativas públicas que se tornaram recorrentes no país. O programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, recebe dele a alcunha irônica de “meu fim de mundo”. 

Para Jaime Lerner, o programa Minha Casa, Minha Vida, poderia ser “meu fim de mundo”

As reflexões da academia sobre a vida urbana estão bem retratadas nos artigos dos professores Artur Rozestraten, da Universidade de São Paulo (FAUUSP), e Ana Fernandes, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Rozestraten escreve em coautoria com Diogo Augusto Mondini Pereira e Gabriel Mazzola Poli de Figueiredo, todos participantes do grupo de pesquisa Representações: Imaginário e Tecnologia (RITe) junto ao Centre de Recherches Internationales sur L’Imaginaire (CRI2i).

No texto, os autores iluminam a singularidade dos espaços da cidade de São Paulo e se propõem a “explorar vertentes dos devaneios sobre outras realidades paulistanas”. A irrupção da pandemia atravessa esse contexto e lança indagações sobre o que nos espera. “Seremos capazes de aprender e mudar ou será que o amanhecer do dia seguinte irá reatar a continuidade de uma normalidade indistinta de tudo o que já vivemos antes e retomaremos anestesiados nossa rotina de trabalho e afazeres cotidianos sem nenhum estranhamento?” – é a interrogação com que encerram sua participação na obra.

Cidade contemporânea

A professora Ana Fernandes, por sua vez, classifica o texto que publica na revista como um “ensaio-panorama”, que trata das “relações entre cidade contemporânea, urbanismo e o comum como potência”. Suas observações são agudas e ensejam a percepção mais nítida a respeito da teia de conexões que se constrói em torno da vida urbana. “Cidades e metrópoles são a materialização mais evidente do urbano, por sua capacidade de concentração e centralização de fluxos e fixos, tensionados em antagonismos, conflitos e relações assimétricas de poder”, ensina.

Conflitos e relações de poder perpassam a discussão levantada pelo jornalista Marcos Magalhães sobre as tensões que a atuação da indústria imobiliária provoca no ambiente urbano, a partir de casos concretos registrados em cidades como Recife, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. De acordo com sua visão, “é principalmente nos municípios que se trava atualmente o grande debate sobre a relação entre os interesses econômicos do setor imobiliário – aí incluídos os donos de terras urbanas e os construtores – e os interesses mais amplos dos cidadãos.” O arquiteto Roberto Andrés enriquece ainda mais essa questão sob o prisma do meio ambiente.

Brasília completou 60 anos em 2020. Três autores tratam da capital federal

Por fim, a edição da revista Política Democrática não passa ao largo do desafio de traduzir e pensar a capital brasileira, que completou 60 anos em 2020. Brasília é um objeto urbano por excelência, com as marcas da arquitetura modernista e o signo da esperança de um país progressista e arrojado com que foi concebida. Seus descaminhos também estão presentes nos textos publicados. Três autores – Eduardo Rossetti, Emilia Stenzel e Aldo Paviani – escrevem sobre o tema, emoldurado ainda por um ensaio fotográfico que joga luzes sobre a silhueta peculiar do universo brasiliense.

Ficha técnica
Título: A reinvenção das cidades – Revista Política Democrática edição 55
Número de páginas: 282
Projeto gráfico e diagramação: Rosivan Pereira
Revisão textual: Mariana Ribeiro
Preço versão impressa: R$ 45,00
Publicação: Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Tema Editorial


Luiz Carlos Azedo: Witzel, o brevíssimo

“O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação o senador Flávio Bolsonaro”

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve, ontem, o afastamento de Wilson Witzel do cargo de governador do Rio de Janeiro por ampla maioria, por suspeitas de envolvimento direto em corrupção. O relator do processo, ministro Benedito Gonçalves, que havia decidido pelo afastamento monocraticamente, convenceu a maioria dos pares de que havia tomado a decisão acertada, com o argumento de que existem provas suficientes para justificar o afastamento e que a medida era “menos gravosa” do que a prisão preventiva do governador fluminense, solicitada pelo Ministério Público Federal (MPF).

Dificilmente Witzel voltará a ocupar o cargo, porque seu impeachment na Assembléia Legislativa (Alerj) é uma questão de tempo. O vice-governador Cláudio Castro, de 41 anos, que já exerce o cargo, também é investigado. Filiado ao PSC, é o segundo vice-governador mais novo da história do Rio, atrás, apenas, de Roberto Silveira, eleito com 32 anos de idade, nos anos 1950.
Cantor gospel, começou na política em 2004 como chefe de gabinete do então vereador Márcio Pacheco (PSC), denunciado pelo Ministério Público do Rio por integrar um suposto esquema de rachadinhas na Alerj. Castro tem o apoio de Jair Bolsonaro e de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado no caso Fabrício Queiroz, amigo de seu pai e seu ex-assessor parlamentar. O senador está enrolado no caso das rachadinhas da Assembléia Legislativa. Witzel elegeu-se no rastro eleitoral de Bolsonaro, em 2018, mas rompeu com o presidente e nunca escondeu o desejo de morar no Palácio da Alvorada. Agora, é mais um governador fluminense que pode parar na cadeia.

Não se pode dizer que houve uma mudança de rumo no Rio, porque o sistema de poder que controla a política fluminense continua o mesmo, balizado pelo Palácio do Planalto e pela Prefeitura carioca. Com a consolidação de Cláudio Castro no cargo, um santista sem nenhuma tradição política no estado, o poder da Alerj, que sempre foi muito grande, aumenta ainda mais. Entretanto, o deputado André Ceciliano (PT), que comanda o processo de impeachment de Witzel, também é investigado. Se a cassação de Witzel for aprovada neste ano, pela legislação, teriam que se realizar novas eleições. Nesse caso, sim, haveria um realinhamento de forças políticas no estado. A outra hipótese é uma alteração na correlação de forças em razão das eleições municipais. Marcelo Crivella (Republicanos) concorre à reeleição, mas enfrenta forte oposição: está ameaçado pelo ex-prefeito Eduardo Paes, derrotado por Witzel nas eleições passadas, mas que agora lidera as pesquisas eleitorais na disputa pela Prefeitura do Rio.

Meteoro
O caso Witzel é jogo jogado. O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação de mandato de Flávio. Eleito na onda eleitoral provocada pela crise ética, com um discurso de duro combate à criminalidade (a tese do “tiro na cabecinha”), durante a pandemia da covid-19 entrou em confronto aberto com o governo federal. Não contava, porém, com o monitoramento da execução financeira de verbas federais pelos órgãos de controle do Estado, que, hoje, operam com inteligência artificial para cruzamento de dados. Assim, foram detectadas operações fraudulentas na Secretaria Estadual de Saúde. Em delação premiada, o ex-secretário Edmar Santos denunciou Witzel.

Edmar foi preso em julho, durante operação do MP-RJ que investigava fraudes na compra de respiradores. No mesmo dia, os promotores encontraram R$ 8,5 milhões em dinheiro vivo. O ex-secretário fez acordo e denunciou Witzel, o que fez o processo passar à esfera federal, por decisão do STJ. A partir daí, os acontecimentos precipitaram-se. Segundo o governador afastado, teria havido interferência de Bolsonaro, com objetivo de tirá-lo do cargo para influenciar a nomeação do novo procurador-geral do Estado, que deverá ocorrer em novembro. Marcelo Lopes, atual ocupante do cargo, seria aliado de Witzel e é responsável pela investigação do caso Queiroz. O governador nega, veementemente, as acusações e diz que a denúncia do ex-secretário é mentirosa.

Segundo a PGR, Witzel está envolvido no esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos às organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de saúde e educação. Há a suspeita de que o governador tenha recebido, por intermédio do escritório de advocacia da mulher, Helena, R$ 554,2 mil em propina. Uma transferência de R$ 74 mil dela para a conta pessoal do governador reforçou as suspeitas. O esquema criminoso foi investigado a partir da apuração de irregularidades na contratação dos hospitais de campanha, respiradores e medicamentos para o enfrentamento da pandemia, logo no seu começo. O afastamento de Witzel também pôs os governadores de oposição com as barbas de molho, porque há muitas investigações sobre suspeitas de irregularidades na compra de respiradores, equipamentos de proteção individual e montagem de hospitais de campanha em outros estados. Ou seja, uma paúra do chamado efeito Orloff: “eu sou você amanhã”.

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Luiz Carlos Azedo: A derradeira estação

“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”

Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”

A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não foi repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.

Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.

Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.

Ética da malandragem

Para complicar, a Constituinte da Fusão, em 1975, que acompanhei como repórter do antigo Diário de Notícias, encarregou-se de inchar a máquina do novo estado, que já nasceu envelhecida, efetivando os comissionados e celetistas dos antigos governos dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, e mais os que foram incorporados à intervenção pelo brigadeiro Faria Lima. Sem muita racionalidade na distribuição de responsabilidades entre a administração estadual e a nova prefeitura da capital, o resultado foram mais gastos públicos e ineficiências, além de um passivo previdenciário exponencial e impagável. Essa situação agravou-se após a Constituição de 1988, com a efetivação de mais comissionados na aprovação da nova Constituição estadual.

A última grande frustração do estado foi o governo de Sérgio Cabral, que, inicialmente, parecia a redenção do Rio de Janeiro, por causa da exploração de petróleo e das Olimpíadas, mas se atolou no mar de lama da corrupção. A euforia do pré-sal logo se esvaziou, com a mudança do regime de concessões para partilha, que desorganizou o “cluster” de empresas do setor, devido à suspensão dos leilões de poços de petróleo por sete anos, e o escândalo de corrupção da Petrobras, que colapsou ainda mais a economia fluminense, em meio à recessão do governo Dilma Rousseff.

A corrupção endêmica nos governos do Rio de Janeiro, porém, tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem e da tolerância da elite fluminense com a secular e sistemática captura das políticas públicas por grandes interesses privados, que levam à formação de máfias de empresários e políticos, que drenam os recursos do estado para a constituição de patrimônio, além do compadrio, do fisiologismo e do clientelismo. O consequente apagão administrativo favorece, também, a ocupação de territórios cada vez maiores pelo tráfico de drogas e pelas milícias, protegidos pela banda podre do sistema de segurança pública.

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Luiz Carlos Azedo: A fome do Centrão

“A vida de Guedes não será fácil: remanejar R$ 5 bilhões do orçamento deste ano, cujo deficit deve chegar a R$ 800 bilhões, para investir em obras públicas nos estados e municípios”

O acordo com o Centrão custará R$ 5 bilhões ao Tesouro da União, em plena pandemia, por causa das eleições municipais deste ano. Esse foi o trato feito pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente Jair Bolsonaro, para manter o “teto de gastos” e, ao mesmo tempo, atender à demanda de investimentos em obras dos parlamentares do Centrão, que se articulam com os ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e os militares do Palácio do Planalto, entre os quais o general Luiz Ramos, secretário de Governo. A pressão decorre das demandas de prefeitos e vereadores que apoiam os parlamentares que agora integram o esquema de sustentação política de Bolsonaro no Congresso.

O velho toma lá, dá cá renasce das cinzas a cada eleição municipal. O acordo foi sacramentado na reunião de Bolsonaro com Guedes, os ministros e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), além dos senadores Fernando Bezerra (MDB-PE), líder do governo no Senado, e Eduardo Braga (AM), líder do MDB; e os deputados Arthur Lira (AL), líder do Progressistas, e Ricardo Barros (Progressistas-PR), novo líder do governo na Câmara. Todas raposas felpudas do Congresso, profissionais da política que conhecem o caminho das pedras das verbas federais e as articulações parlamentares que miram as eleições municipais.

Em princípio, o tsunami que ocorreu nas eleições passadas pode até não se repetir, mas mesmo que venha a ocorrer nas municipais, sobretudo nas grandes cidades, não será com o protagonismo do presidente. Bolsonaro voltou ao leito natural em que sempre atuou ao longo da carreira parlamentar: a defesa de interesses corporativos e as alianças com parlamentares das bancadas evangélica, ruralista e da bala, além do baixo clero. Não se deve subestimar, também, a lógica própria das eleições municipais. As disputas locais, desde a primeira eleição, na antiga comarca de São Vicente, em São Paulo, em 1532, sempre foram muito “fulanizadas” e polarizadas em função do controle das respectivas prefeituras. Entretanto, estabelecem as bases para a eleição ou não da maioria dos deputados estaduais, federais e senadores.

A vida de Guedes não será fácil, pois cumprir o acordo significa remanejar recursos do orçamento deste ano, cujo deficit deve chegar a R$ 800 bilhões, devido aos gastos emergenciais com a pandemia. R$ 5 milhões, porém, são café pequeno em comparação às verbas de investimento que os ministros “gastadores”, como são chamados na equipe econômica, exigem para o programa de investimentos para o ano de 2021: R$ 35 bilhões. De onde virá esse dinheiro? Até agora ninguém sabe, porque a proposta da nova Lei de Diretrizes Orçamentárias ainda não foi apresentada. Ou seja, teremos ainda grandes emoções pela frente nessa queda de braço de Guedes com os ministros Tarcísio de Freitas e Rogério Marinho, apoiados pelos militares.

Arapongagem

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento realizado ontem, resolveu pôr limites à arapongagem no governo Bolsonaro. Com base em relatório da ministra Cármem Lúcia, decidiu que o fornecimento de informações por órgãos do governo à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) só seja feito com motivação específica e levando em conta o interesse público. Os ministros julgaram ação apresentada pela Rede Sustentabilidade e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). As legendas questionavam o fornecimento à Abin de dados fiscais, bancários, telefônicos e informações de inquéritos policiais ou da base de dados da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), atual Unidade de Inteligência Fiscal (UIF), sem autorização judicial. A decisão deve influenciar o julgamento, no próximo dia 19, do caso do dossiê de servidores antifascistas elaborado pelo setor de inteligência do Ministério da Justiça, que extrapolou suas funções.

Na prática, a decisão barra a formação de um Sistema Brasileiro de Inteligência nos moldes do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar, que seria composto por 42 órgãos de ministérios e instituições federais, de áreas como segurança, Forças Armadas, saúde, transportes, telecomunicações, fazenda e meio ambiente —, todos centralizados pela Abin. Bolsonaro, por decreto, havia aumentado o poder da agência em obter dados de cidadãos e de investigações. Segundo a ministra, relatora da ação, o compartilhamento de dados com a Abin tem de ser feito obedecendo ao que prevê a Constituição, que veda o acesso a informações sigilosas. A ministra afirmou que a “arapongagem (para usar uma expressão vulgar, mas que agora está em dicionário: ‘aquele que ilicitamente comete atividade de grampos’) é crime”. Foi acompanhada pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Marco Aurélio votou contra.

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Luiz Carlos Azedo: Eleições em novembro

“Bolsonaro não deu sinais de que pretende interferir diretamente nas eleições municipais, mas já pululam candidatos bolsonaristas de primeira hora”

A Câmara aprovou ontem, por 402 votos a favor e 90 contra, com quatro abstenções, a emenda constitucional que adia as eleições de 4 e 25 de outubro para 15 e 25 de novembro, em primeiro e segundo turnos, respectivamente. A proposta foi articulada com êxito pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Houve resistência por parte do Centrão, principalmente do PL, com 41 deputados, cujo líder na Câmara, Wellington Roberto (PB), comandou a oposição à mudança. O texto volta ao Senado para promulgação.

O adiamento das eleições era pedra cantada, em razão da pandemia da covid-19. Além do risco de contaminação dos eleitores nas seções eleitorais, existe a dificuldade criada pela situação sanitária do país para preparação do pleito por parte da Justiça eleitoral. O mais importante na discussão sobre o adiamento foi evitar a prorrogação de mandatos de prefeitos e vereadores, como alguns defendiam, inclusive, com propostas de coincidência do pleito com as eleições gerais de 2022. Esse risco foi afastado, embora o texto aprovado tenha um gatilho que permite ao Congresso, caso um município ou estado não apresente condições sanitárias para realizar as eleições em novembro, editar um decreto legislativo designando novas datas para a realização do pleito, tendo como data-limite o dia 27 de dezembro de 2020. A proposta original atribuía essa prerrogativa ao TSE, mas foi modificada.

Com isso, as regras do jogo para as eleições municipais estão finalmente definidas: o prazo de registro das candidaturas foi adiado de 15 de agosto para 26 de setembro; os partidos escolherão seus candidatos entre 31 de agosto e 16 de setembro, por meio virtual. No embalo, a legislação que proibia propaganda institucional das prefeituras no período de 90 dias anteriores ao pleito foi alterada. Atos e campanhas destinadas à luta contra a pandemia do coronavírus poderão ser feitos, mas sob rigorosa fiscalização da Justiça eleitoral, para evitar abusos.

A propaganda eleitoral começa apenas depois de 26 de setembro. Até lá, quem pedir voto antecipadamente ou gastar muito dinheiro em redes sociais corre o risco de ter a candidatura impugnada ou até mesmo ter o mandato cassado, se eleito, por campanha antecipada ou abuso de poder econômico, respectivamente. Expressões como “peço seu apoio”, “conte comigo”, “me dê um voto de confiança” e outras, nas redes sociais, podem servir de prova contra os candidatos.

Cenários
Serão eleições atípicas, por causa da pandemia. Teoricamente, os prefeitos que se candidatarem à reeleição terão a avaliação de sua gestão impactada pela pandemia, talvez mais até do que suas realizações anteriores. Levam a vantagem, porém, de que a campanha terá muito pouco corpo a corpo, o que em eleições municipais era decisivo, principalmente nas cidades de médio e pequeno portes. Mas os que não podem se reeleger e pretendem fazer o sucessor, em contrapartida, terão as mesmas dificuldades com seus candidatos. Além disso, com o fim das coligações proporcionais, haverá maior número de candidatos.

Mesmo nas grandes cidades, que influenciam os destinos da política nacional, como São Paulo, não se sabe ao certo qual será o grau de “nacionalização” da disputa eleitoral. De certa forma, a politização do combate à pandemia protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro é uma realidade, bem como o impacto da ajuda emergencial do governo de R$ 600 (que terão um total de cinco parcelas), principalmente nas periferias dos grandes centros e municípios do sertão. Quanto mais profundo o grotão, maior esse impacto.

O presidente Jair Bolsonaro ainda não deu sinais de que pretende interferir diretamente nas eleições municipais, mas já pululam candidatos que se dizem bolsonaristas de primeira hora. Nas eleições passadas, também não tinha candidatos, com exceção dos filhos Eduardo, em São Paulo, e Flávio, no Rio de Janeiro, e alguns poucos aliados, mas eles apareceram durante a campanha e surfaram a onda da sua eleição, nas disputas de vagas nas assembleias legislativas, na Câmara e no Senado, além de governos estaduais. O nanico PSL, por exemplo, emergiu com a segunda bancada da Câmara; novatos na política se elegeram até a governador, como Wilson Witzel, no Rio de Janeiro. As pesquisas de imagem com resultados negativos para Bolsonaro, por causa da pandemia, podem pôr em xeque essa vinculação, mas isso, ainda, é apenas uma especulação.

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Luiz Carlos Azedo: A pandemia e a vida banal

“Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia?”

Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.

Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.

É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.

A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.

Bandeira velha
Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.

De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.

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