Câmara

Míriam Leitão: Risco ao capital e à democracia

A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.

Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.

Bolsonaro fez atos explícitos de populismo fiscal e de intervencionismo. Numa penada, aumentou em quase R$ 5 bilhões as despesas públicas, eliminando impostos sobre combustíveis fósseis, quando a equipe tenta cortar R$ 10 bilhões de um orçamento exaurido e ainda não aprovado. Paulo Guedes terá que fazer mais um truque ilusionista para fingir que cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A pandemia exigiu gastos extras e suspendeu limites legais, mas o presidente tem cometido crime de responsabilidade fiscal e não é por aumentar gastos na saúde. Ele ignora a tragédia sanitária que atinge o país. A gestão de Bolsonaro elevou o número de mortes do Brasil.

Os tumultos criados pelo presidente e seus histriônicos radicais feriram a economia e a política. Por eles, o país desperdiçou mais uma semana que deveria ter sido dedicada à luta por saúde, auxílio aos mais pobres e reajuste das contas públicas. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que falou em dar uma surra nos ministros do Supremo, “até o gato miar”, está fora do jogo. A Câmara aprovou o ato do STF de prendê-lo. Ele provavelmente será cassado.

Silveira ameaçou o Supremo. Bolsonaro, também. Silveira defendeu o AI-5. Bolsonaro, também. Silveira é truculento e ameaça os adversários de eliminação física. Bolsonaro, também. Silveira praticou crimes na internet. Bolsonaro, também. Silveira foi preso. Bolsonaro governa o país. Do posto, conspira contra a democracia, a economia e a saúde dos brasileiros. Na sexta-feira, ele, de chapéu de couro, fazia demagogias no Nordeste. No sábado, numa escola militar, falou uma frase dúbia sobre o regime democrático.

A Petrobras será presidida pelo general Silva Luna, o Conselho pelo Almirante Leal Ferreira e o ministro da área é o almirante Bento Albuquerque. Eles agora farão juras à economia de mercado e à governança da empresa. Será mentira. Alguns do mercado vão fingir acreditar. Há muita liquidez na economia global procurando ativos.

No Alto Comando do Exército, em 2018, quando o general Villas Bôas postou as mensagens para intimidar o Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, estavam o general Eduardo Ramos, o general Braga Netto, o general Fernando Azevedo e Silva. O próprio Villas Bôas, mesmo no momento final de uma doença degenerativa, ajudou a História ao informar que os integrantes do Alto Comando foram ouvidos. O general Silva Luna era ministro da Defesa e também soube. Perguntei ao atual ministro da Defesa, Azevedo e Silva, através da sua assessoria, se ele havia visto a nota. “O ministro não vai comentar. O conteúdo do livro cabe ao seu autor”, respondeu o Ministério.

A governança da Petrobras foi atacada por Bolsonaro para impor o controle de preços. Nem isso contentará os caminhoneiros. Bolsonaro é inimigo do liberalismo econômico e derrubou o valor da ação da Petrobras. Mas isso se recupera no futuro. O bem mais caro que Bolsonaro ameaça é a democracia. O país sabe o alto preço que pagou por ela.


Bruno Boghossian: Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Integrantes do tribunal acreditam que deputado tem menos chances de ser condenado se ação mudar de instância

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Alguns ministros consideram improvável que Silveira seja condenado em sua cidade natal. Um dos juízes federais que atuam no município já citou Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo radical, ao rejeitar uma denúncia de estupro contra um militar da ditadura. Ele escreveu que direitos humanos não devem ser “meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Ainda que a Câmara prefira não cassar Silveira, o deputado pode renunciar para encontrar um terreno mais confortável. De quebra, ele escaparia de se tornar inelegível e poderia disputar eleições em 2022.

Integrantes do Supremo querem parar o chamado “elevador processual”. Um dos ministros defende uma questão de ordem para que o processo continue no tribunal em caso de cassação ou renúncia, sob o argumento de que não é possível escolher o órgão julgador. O próprio STF manteve essa brecha no confuso processo que atropelou a lei e mudou à força as regras do foro especial.


Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Villas Bôas também esperou três anos

O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.

Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.

Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.

“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.

Nas suas palavras:

“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”

O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.

Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”

Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.

Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.

Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.

Nunes Marques

Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.

Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.

Ricardo Boechat

Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.

Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.

Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.

Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.

Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.

Turismo irresponsável

Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.

Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.

Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.

Perseverança

Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.

Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.

Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.

A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.


Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.


Cristovam Buarque: Labirinto de espelhos

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Paulo Fábio Dantas Neto: Emergência sanitária e paciência política - O fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social.

Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

A representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável. Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado, ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em governadores e prefeitos, deputados e vereadores. 

No mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.

É fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo. E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a dinâmica partidária do Legislativo.  Portanto, não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no Congresso.

Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da disputa e exercício da Presidência, outra.  O fato de Bolsonaro ser um protofascista não deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica atentar a esse aspecto.

Conclamações, no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República, acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa a competição política.

Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico - para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de alianças e a construção de consensos.  Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.

Resulta, daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na arena presidencial.

Considerar assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub vacinados.  Seriam folclóricos, se não fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres seguintes?

Há, portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como devem fazer.  A operação militar cujas consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo institucional de política pública com alta capacidade de agregação política, que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta, destruir o arranjo que ele armou. 

A memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o fato à consistência do legado de uma gestão.

Uma oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos em círculo para reinventar a roda.  Se quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência, agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.

Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro.  E já ali se interrompia o fluxo de informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.

Infelizmente não se deu a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada, como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo, o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da pandemia.

Hoje já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.

Os pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .

Ele também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do eleitorado  sem a mediação de uma prévia identidade partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido, Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.

Por esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência. Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária.  

O diálogo com parlamentares e partidos pode correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui, além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela, divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio. Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate, numa emergência.

*Cientista político e professor da UFBa


Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Alon Feuerwerker: Como anda a luta pelo poder

Os dois principais acontecimentos políticos ao longo da semana ajudaram a sedimentar a configuração de poder em Brasília a esta altura do agitado mandato presidencial. O desenho passa, naturalmente, pelo presidente da República; pela relação cada vez mais estreita dele com os oficiais-generais da reserva que as crises vão aspirando para a máquina; e pelo domínio que hoje se pode chamar de absoluto dos partidos do dito centrão sobre o Congresso Nacional, especialmente sobre a Câmara.

O episódio do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) vem sendo exemplar. O parlamentar entrou numa briga que não era dele, com o objetivo de catapultar musculatura política. Deu tudo errado. Acabou oferecendo ao antes acossado Supremo Tribunal Federal a oportunidade de um contra-ataque no ponto mais vulnerável do front adversário, o Legislativo. Mas isso abriu para o presidente da Câmara uma via rápida de cristalização da autoridade sobre os pares. 

E atraiu para ele a simpatia de um setor da opinião pública que o via com um pé atrás. Ou, pelo menos, tirou-o momentaneamente da linha de tiro.

O segundo fato, a mudança no comando da Petrobras, ainda em curso, traz ao presidente da República a brecha para, finalmente, colocar uma cunha na, lá atrás, toda poderosa equipe econômica. Erros têm consequências, e a insensibilidade da petroleira diante da possibilidade de sua política de preços provocar uma greve nacional de caminhoneiros acabou custando a cabeça do presidente da estatal. Trocado convenientemente por um general, ex-ministro da Defesa e atual presidente de Itaipu.

Uma greve de caminhoneiros em meio às seriíssimas dificuldades provocadas pela pandemia teria forte potencial de desestabilização. É natural que os adversários desejem e estimulem. E é esperado que o Planalto procure evitar.

Vida que segue. Se tudo se passar como habitual no Brasil, haverá ainda alguma turbulência nos dois casos, mas rapidamente o mundo político-jornalístico retornará para o infindável debate sobre as vacinas da Covid-19 e sobre o novo auxílio emergencial, com que nome for. E o Congresso, agora mais arrumado politicamente, não deixará fechar a janela das reformas. Que precisarão ser negociadas, claro, mas cuja esperança de aprovação é o respirador a manter acesas duas luzes: a tranquilidade do Legislativo e o protagonismo do ministro da Economia.

Tudo pode desandar, dar errado para o Planalto? Sempre pode, mas a impressão de momento é as melancias continuarem se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Um problema é o encolhimento da popularidade presidencial, causado pela atitude diante da pandemia e pela parada nas medidas de apoio emergencial. Mas em alguns meses estão previstas vacinas abundantes, da Fiocruz e do Butantan. E o Congresso vai acabar dando um jeito no socorro econômico. 

E quedas de popularidade, algo sempre arriscado no Brasil, podem ser mais confortavelmente administradas quando há aliados comandando as casas congressuais.

Para o projeto de Bolsonaro, o prestígio dele só precisa estar tinindo daqui a um ano e meio. O risco da popularidade baixa no meio do mandato é atiçar os apetites pelo impeachment. Isso está, no momento, muito distante depois das eleições no Legislativo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Luiz Carlos Azedo: Dispensa adversários…

Daniel Silveira não é querido e respeitado por seus colegas, tem apenas dois anos de mandato, nenhuma experiência parlamentar e comportamento arrogante

Quem tem um aliado como o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) não precisa de adversários. É a situação do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), na antessala de um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), absolutamente imprevisto e desnecessário, por causa dos ataques do parlamentar àquela Corte e seus ministros. Hoje, o plenário da Câmara deverá decidir se revoga a sua prisão em flagrante — motivo de grande controvérsia jurídica, porque se baseia em postagens nas redes sociais —, sobre a qual a decisão unânime do Supremo firmou jurisprudência. Ontem, a tendência da maioria dos deputados era de manter a prisão e aguardar que o próprio Supremo a relaxasse, substituindo por outras medidas, como prisão domiciliar e tornozeleira eletrônica.

O deputado foi transferido para o batalhão prisional da Polícia Militar fluminense, em Niterói, no final da tarde de ontem; antes, os policiais federais encontraram dois celulares em sua cela. Na reunião de líderes, à tarde, somente quatro partidos haviam decidido pela revogação da prisão: PSL, Pros, Novo e PSC. Manifestaram-se formalmente pela manutenção PSDB, Republicanos, Cidadania, Rede, PSB, PDT, PT, PcdoB, PSol. O deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), que também é a favor da manutenção da prisão, foi escolhido relator pelo presidente da Câmara, o que indica uma tendência da votação. Lira tem dado demonstrações de que não pretende tomar partido do deputado contra o Supremo, muito pelo contrário. Entretanto, também não quer se desgastar com sua base de apoio.

O fato é que Daniel Silveira conseguiu isolar os deputados de extrema-direita na Câmara, que reagiram de forma atabalhoada à prisão, com duras críticas ao STF, criando constrangimentos para os deputados contrários à prisão em flagrante por razões jurídicas. Esses parlamentares discordam da interpretação dada pelo Supremo às circunstâncias em que os ataques foram cometidos, no caso, por meio das redes sociais, para caracterizar o flagrante delito. Consideram a prisão abusiva, por supostamente desrespeitar o instituto da imunidade parlamentar. A maioria dos deputados, porém, repudia as agressões de Daniel ao Supremo e seus ministros, por representarem um atentado ao Estado de direito democrático. Muitos já se manifestam a favor da cassação do mandato do parlamentar pelo Conselho de Ética da Câmara.

Para os deputados do chamado Centrão, a força hegemônica na Câmara, a votação de hoje pode ser um providencial divisor de águas em relação ao grupo bolsonarista de raiz, demarcando os limites institucionais nos quais estão dispostos a conviver com o grupo e também a apoiar o presidente Jair Bolsonaro. De certa forma, essa fronteira foi delineada por Lira na conversa que teve ontem com o presidente Jair Bolsonaro, na qual o avisou de que a tendência da Câmara era manter a prisão. Silveira está sendo tratado como um falastrão desastrado e radical, que só cria problemas para seus aliados.

Náufrago

Além de manter a prisão do parlamentar, o clima é favorável à cassação do mandato no Conselho de Ética, que já está funcionando e quer tratar o assunto em ritmo acelerado. Daniel Silveira não é um parlamentar querido e respeitado por seus colegas, tem apenas dois anos de mandato, nenhuma experiência parlamentar anterior e comportamento considerado arrogante. Esse é o perfil sob medida para uma cassação pela própria Câmara, que tem a tradição de expurgar àqueles que são considerados indesejáveis, às vezes para purgar os próprios pecados da Casa. É bom lembrar que a maioria dos integrantes do Centrão é formada por políticos tradicionais que sobreviveram ao tsunami eleitoral de 2018, em cujas ondas surfaram Daniel Silveira e outros deputados de extrema-direita.

O vento da eleição de Arthur Lira à Presidência da Câmara, na qual contou com o apoio do grupo bolsonarista, rondou. Daniel Silveira não ajustou as velas e naufragou. O próprio presidente Jair Bolsonaro lavou as mãos no caso de sua prisão, apesar das pressões dos filhos Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal, e Carlos Bolsonaro (PR), vereador no Rio de Janeiro. A prioridade do Palácio do Planalto é aprovar a PEC Emergencial, que incluirá o auxílio emergencial, e o Orçamento de 2021. Nesse sentido, a confusão criada por Silveira somente atrapalha os objetivos do governo. Em algum momento, provavelmente, Bolsonaro sinalizará para sua base de apoio alguma solidariedade ao parlamentar, mas isso somente criará mais problemas para o próprio governo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/dispensa-adversarios/

William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

MAIS INFORMAÇÕES

Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.