Câmara

Vinicius Torres Freire: O que os EUA sem máscara dizem sobre vacina e epidemia no Brasil

Pessoas que tomaram as duas doses de vacina contra a Covid podem tirar as máscaras e esquecer o distanciamento social em praticamente todas as situações da vida, anunciou a direção dos Centros de Controle e Prevenção da Doença dos EUA (CDC), autoridade em assuntos científicos de saúde.

Isso quer dizer que, para os CDC, as vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna mais do que protegem de doença e morte. Novidade maior: parece implícito nos dados mais recentes que, mesmo infectada, uma pessoa não transmite a doença (ou o faz em níveis irrelevantes), o que permite vislumbrar o fim da epidemia por lá, caso não apareça variante preocupante do vírus.

As pesquisas que basearam o anúncio dos CDC não fazem observação diretamente orientada ou arranjada para detectar a transmissão, mas os cientistas chegaram a tal conclusão com base no progresso observado no estudo de profissionais de saúde. Em 2 de abril, um estudo dizia que as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna eram efetivas a ponto de evitar a doença em 90% dos casos de pessoas que tomaram as duas doses; no estudo divulgado pelos CDC em 14 de maio, o sucesso foi para 94%.

Das doses injetadas no Brasil até agora, cerca de 70% são de Coronavac. Pouco se sabe cientificamente de sua efetividade, seu efeito no mundo real. No Chile, uma pesquisa divulgada em abril mostrou que a vacina evita doença sintomática em 67% dos casos, internações, em 85%, e mortes, em 80%. Na Indonésia, estudo com pessoal de saúde, divulgado com pouquíssimos detalhes, indica que a vacina evitaria mortes em 98% dos casos, doenças, em 94%, e internações, em 96%. Um trabalho bem preliminar com vacinados no Hospital das Clínicas da USP indica que a Coronavac tem capacidade de prevenção de doença de 74%.

Em São Paulo, o número de mortes diminuiu proporcionalmente muito mais entre pessoas de grupos de idade mais vacinados (ou subiu menos, a depender da data de comparação). Em São Paulo, pessoas idosas começaram a ser vacinadas na semana encerrada no dia 12 fevereiro (no caso, as de 90 anos ou mais). O número de mortes de pessoas com 70 anos ou mais na semana passada cresceu 22% em relação àquela semana de fevereiro. Entre pessoas de 60 a 69 anos (vacinadas mais recentemente), aumentou 158%. Entre pessoas de 20 a 69, 214%.

Pouca gente recebeu duas doses no Brasil, 9% da população total, ante 36% nos EUA. Hoje, há doses disponíveis, já entregues, para vacinar totalmente 20% da população total e 27% daqueles com 18 anos ou mais. Na previsão esperançosa realista, até o final de junho haveria doses disponíveis para vacinar totalmente 48% da população total e 36% dos adultos.

O cronograma “esperançoso realista” deve se confirmar em maio. Para junho, há grande risco de apagão. O Butantan ora não tem perspectiva de receber matéria-prima da China. A Fiocruz tem material para entregar doses até a primeira semana de junho. É a Fiocruz que deve garantir o grosso das entregas de maio e junho (62% do total).

Como não temos governo, o que resta do Congresso tem de perguntar os motivos e riscos de atraso na entrega de matéria-prima da China, para que se tome alguma providência (Jair Bolsonaro continua a sabotar o processo).

Na melhor das hipóteses, apenas daqui a três meses chegaremos à taxa de vacinação dos EUA. Não há estudos precisos sobre efetividade, transmissão ou capacidade dos imunizantes de conter cepas novas e, dada a ainda enorme circulação do vírus, podemos criar ou disseminar bichos ruins. Ainda não há perspectiva de nos desmascararmos.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/o-que-os-eua-sem-mascara-dizem-sobre-vacina-e-epidemia-no-brasil.shtml


Eliane Catanhede: Quem obedece não precisa se incriminar, mas tem de contar tudo sobre quem manda

Quando o general da ativa Eduardo Pazuello sentar como testemunha na CPI da Covid, nesta quarta-feira, quem estará no foco não será ele, mas quem mandava nele no Ministério da Saúde. “Um manda, o outro obedece.” Logo, Pazuello é insignificante, o que importa são as ordens, ações e maquinações do presidente Jair Bolsonaro para manter e piorar a pandemia.

Foi isso que a decisão do ministro Ricardo Lewandowski preservou. Com linguagem simples, mas sofisticada engenharia jurídica, que ele não construiu sozinho, o ministro do STF deu um habeas corpus que diz o seguinte: Pazuello pode ficar mudo quando a questão for sobre ele, mas continua obrigado a falar quando for sobre Bolsonaro.

É o suficiente para a CPI, porque ninguém quer saber de Pazuello e todo mundo quer saber de Bolsonaro. O ex-ministro, homem errado na hora errada, tem o direito de não se incriminar e não produzir provas contra si mesmo, mas tem de responder e contar como, quando e onde aquele “que manda” agiu contra isolamento, máscaras e vacinas e a favor da cloroquina.

Lewandowski deve ter acalentado a ideia de simplesmente negar o habeas corpus da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinar que Pazuello falasse tudo, sobre todos, sob risco de prisão. Ele, porém, não seria tão voluntarista após as inúmeras vezes em que o Supremo concedeu o direito ao silêncio a depoentes de CPIs, tanto investigados quanto testemunhas. A solução foi o meio termo, mas até a previsão de prisão é dúbia.

O Planalto comemorou a “vitória” da AGU e o senadores Omar AzizRandolfe Rodrigues e Renan Calheiros cumpriram sua parte, “lamentando” o despacho do STF e repetindo docilmente que “decisão da Justiça se cumpre, goste-se ou não”. Tudo teatro. Na vida real, a cúpula da CPI festejou e o governo reclamou.

Cada dia sua agonia. Pazuello dá sinais de pânico e alegou contato com dois infectados pela covid para desertar, ops!, adiar o depoimento. E não é à toa que o presidente aciona AGU, o ministro Onyx Lorenzoni, mundos e fundos. É para tentar se salvar de Pazuello.

E o Exército? Já foi duro engolir Bolsonaro usando um general intendente da ativa para fazer papel de bobo na Saúde, enquanto o “Gabinete das trevas” decidia no Planalto e o presidente espancava a realidade, a ciência e o bom senso. Mais duro ainda foi assistir às patetadas de Pazuello e às humilhações que o presidente lhe impunha – quanto a vacinas, por exemplo. Imaginem a exposição na CPI!

Justificativa do Ministério da Economia ao Congresso por não ter previsões orçamentárias para o combate à covid em 2021, optando por créditos suplementares: ninguém sabia que viria a segunda onda. Por que não? Porque Bolsonaro trocou médicos e epidemiologistas da Saúde por militares que nem conheciam SUS e curva epidemiológica e, portanto, eram incapazes de alertar o Planalto, o governo e o País para os cenários possíveis. Paulo Guedes e seus economistas foram imprevidentes, mas a obrigação de detectar uma nova onda não era deles, era da Saúde. E Bolsonaro nunca quis um real Ministério da Saúde.

A população captou isso. No Datafolha, a atuação do ministério na pandemia despencou de 76% com Luiz Henrique Mandetta para 28% com Pazuello. E, hoje, 51% reprovam e apenas 21% aprovam ação do presidente na pandemia, o que ajuda a entender por que a sua popularidade derrete.

O depoimento de Pazuello não vai reverter isso, pelo contrário, e Bolsonaro faz duas jogadas de risco: tenta usar os contratos mega-atrasados com a Pfizer para apagar tudo o que fez contra as vacinas e ataca grosseiramente a China para sabotar os insumos da “vacina chinesa do Doria”. Ao retaliar o líder errado, a China prejudica a população brasileira. Alguém aí pode dar um toque no Xi Jinping?

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,quem-obedece-nao-precisa-se-incriminar-mas-tem-de-contar-tudo-sobre-quem-manda,70003716315

 


Bruno Boghossian: Para onde vão os bolsonaristas de 2018?

Na última campanha, Jair Bolsonaro convenceu muita gente de que era um político liberal na economia, que defendia a causa lavajatista e rejeitava negociações com partidos tradicionais. Em pouco tempo, ele abandonou essas fantasias, sem fazer muita cerimônia. Resta saber quantos daqueles que se renderam ao estelionato de 2018 estão dispostos a repetir a dose em 2022.

Nem metade dos eleitores que declaram ter votado em Bolsonaro no segundo turno da última corrida presidencial admitem apoiá-lo no primeiro turno do ano que vem, mostra o Datafolha. Nesse grupo, ele teria 49% dos votos, enquanto os demais se dividiriam entre Lula (17%), Sergio Moro (9%) e outros candidatos.

Para comparação, eleitores de Fernando Haddad no segundo turno de 2018 escolheriam majoritariamente Lula no primeiro turno: 72%. Ciro Gomes receberia 8% e outros nomes teriam menos de 5% cada um.

Esse é o retrato de uma parcela específica do eleitorado, uma vez que muitos entrevistados esquecem, confundem ou escondem seus votos do passado. Na pesquisa, 36% dos entrevistados afirmaram ter votado em Bolsonaro em 2018, 30% citaram Haddad, 7% declararam voto em branco, e 27% não responderam. O recorte leva em conta os 36% que admitem ter votado no presidente.

Os números do Datafolha sugerem que, até agora, o antipetismo não foi suficiente para empurrar parte desses eleitores para o campo de Bolsonaro novamente. Numa das simulações de segundo turno, 65% dos entrevistados desse grupo repetiriam a opção pelo presidente, mas 24% escolheriam Lula, e 9% votariam em branco ou nulo. Outros 2% disseram não saber o que fariam.

Como esperado, os bolsonaristas confessos rejeitam Lula consideravelmente: 62% deles dizem que não votariam no petista de jeito nenhum. Apesar disso, 24% deles também responderam que se recusam a apoiar a reeleição do atual presidente. A rejeição de Bolsonaro nesse grupo é semelhante à de Moro (20% deles não votariam no ex-juiz).

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/para-onde-vao-os-bolsonaristas-de-2018.shtml

 


Mariliz Pereira Jorge: Wajngarten, o tchutchuca na CPI da Covid

Pelo que vimos nesta quarta (12), bolsonarista é o tipo tigrão nas redes sociais, quando escorado pelo aparato do governo, mas muito tchutchuca quando precisa enfrentar uma CPI. Fabio Wajngarten gaguejou, disse e desdisse, caiu em contradição, suou, tremeu e, sobretudo, mentiu em seu depoimento à comissão que investiga a má gestão da pandemia.

O ex-secretário da Secom sofre do mal que acomete essa turma que chegou ao Planalto com a eleição de Jair Bolsonaro. Cria as suas próprias narrativas, seguro de que pode manipular não apenas a opinião pública mas os fatos. Ignora que uma coisa é alimentar a militância bolsonarista com mentiras, a outra é bancá-las quando o que está em jogo é prisão.

Wajngarten achou que seria uma boa estratégia tentar livrar a barra do presidente ao colocar a culpa no ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, numa entrevista à revista Veja, que tem toda a cara de ter sido concedida exatamente para isso. Faltou combinar com os russos. Os senadores parecem pouco dispostos a tolerar as artimanhas de que Bolsonaro e apoiadores se servem e pelas quais nunca são cobrados .

A Secom, com Wajngarten à frente, fez campanha para o fim do isolamento e contra a obrigatoriedade da vacina, enalteceu o uso da cloroquina e usou o Telegram, famoso entre os bolsonaristas, para disseminar essas informações. O ex-secretário diz que não sabe, não viu, que estava de licença médica, mas o print é eterno. Seria cômico, se não fosse trágico.

A carta da Pfizer, enviada em setembro de 2020, em que a empresa cobra resposta sobre a oferta de vacinas feita no mês anterior, foi ignorada por dois meses, até que Wajngarten foi procurado, segundo ele, pelo dono da Rede TV. Como a vida de milhões passou a depender da conversa entre um dono de uma empresa privada e um secretário de Comunicação para que a negociação da vacina fosse adiante? Que Pazuello explique em seu depoimento.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2021/05/wajngarten-o-tchutchuca-na-cpi-da-covid.shtml

 


Vinicius Torres Freire: CPI da Covid tem de chamar mais gente para mentir e deixar o ‘teje preso’ para depois

CPI da Covid e parte do país parou para discutir se Fabio Wajngarten deveria ser preso por ter mentido em seu depoimento no inquérito parlamentar. O país já deveria ter aprendido a besteira violenta que dá sair prendendo gente a torto e a direito, mas o assunto de interesse mais imediato nem é esse. A CPI não deve ameaçar os depoentes. Deve chamar mais gente para mentir mais ou até contar a verdade. Seja qual for a opção dos inquiridos, o governo Bolsonaro vai ficar exposto, para usar um eufemismo juridicamente seguro.

general Eduardo Pazuello, ex-chefe do almoxarifado da Saúde, é o próximo da fila do vexame e de um futuro programa de acareações, mas já é uma figura manjada. A fila tem de andar. Por exemplo, quando a CPI vai convocar o general Braga Netto, ora ministro da Defesa e ex-ministro da Casa Civil?

Braga Netto tomou decisões relativas à vacina. Um documento do governo diz que ele liderou o “processo decisório” de adesão do Brasil à iniciativa da OMS (ACT Accelerator) do qual fazia parte a Covax (distribuição de vacinas para países mais pobres). Muito bem. O que ele mais sabe sobre os processos decisórios? A Casa Civil, o ministério da Saúde e o ministério da Economia fizeram reuniões para decidir o que fazer da vacina da AstraZeneca, em 19 de junho de 2020, por exemplo. Os ministros dessas pastas também receberam a célebre carta ignorada em que a Pfizer oferecia vacinas.

Isso consta dos relatórios do “Grupo de Trabalho para a Coordenação de Esforços da União na Aquisição e na Distribuição de Vacinas contra a Covid-19”, que faz também uma lista de instituições que participaram dos debates e ouviram as posições do Ministério da Saúde (associações médicas, Butantan, Fiocruz, conselho de secretários de Saúde etc.). Seriam ótimas fontes de material para as acareações do general Pesadello ou de Wajngarten, pelo menos, dado que não vão poder fundamentar as perguntas para essas criaturas.

Paulo Guedes deveria ser o próximo ministro a sentar no banco do inquérito parlamentar. Além de seu ministério ter participado de decisões ou conselhos relativos à vacina, a Economia também manifestou publicamente opiniões enfáticas a respeito da epidemia. No mesmo dia 17 de novembro em que Wajngarten dizia bater um papinho informal com a Pfizer, a Secretaria de Política Econômica de Guedes afirmava que a possibilidade de “segunda onda” era “baixíssima” no Brasil, entre outras temeridades. Até dezembro, pelo menos, Guedes negava o risco de novo desastre, quando o repique do morticínio já era evidente. Revelou-se outra vez um mestre, quiçá doutor, em avaliação de risco e previsões certeiras (as quais o ministro costuma errar na casa das dezenas de milhões ao trilhão).

O que Braga Netto e mesmo Guedes têm a dizer sobre o fato de o Brasil ter encomendado poucas vacinas da Covax (para cerca de 10% da população, bastantes para pessoas com mais de 80 anos, com comorbidades e trabalhadores de saúde, como argumentou a Saúde)?

Como explicam que a oferta da Pfizer ficou no limbo? Negligência? Levaram a proposta a Bolsonaro? Fizeram alguma coisa? É uma pergunta simples, com respostas simples. Assumem a responsabilidade ou a jogam nas costas de alguém. Não dá nem para mentir.

Ainda falta roteiro de investigação para a CPI. Um quadro de “perguntas sem resposta”, uma planilha de mentiras já registradas, um organograma de responsabilidades a ser preenchido com esses nomes ministeriais e outros.

O “teje preso” é para depois.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/cpi-da-covid-tem-de-chamar-mais-gente-para-mentir-e-deixar-o-teje-preso-para-depois.shtml


Maria Hermínia Tavares: Autobiografia de uma nação

Em um artigo publicado em 1994 no jornal turinês La Stampa, sob o título “Aquela Itália modelo Berlusconi”, o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) se perguntou, com um misto de espanto e tristeza, se o berlusconismo não seria “uma espécie de autobiografia da nação, da Itália de hoje”.

A pergunta vale para o Brasil, embora talvez seja precipitado falar em bolsonarismo para designar, seja os seguidores militantes do presidente —os seus minions—, seja o sentimento difuso de apatia benevolente ou simpatia aberta de quase a metade dos brasileiros em relação ao chefe do desgoverno. A despeito da administração catastrófica da pandemia —responsável por um número decerto elevado de mortes evitáveis e estagnação econômica—, sucessivas sondagens indicam que segue estável o contingente dos que consideram o desempenho de Bolsonaro ótimo ou bom, na casa de 30%, e o dos que lhe atribuem conceito regular (da ordem de 20%).

A constância das opiniões parece dizer muito do estado da nação que seus habitantes construíram sem querer ou perceber. É o país da educação pouca e precária, que abre espaço a explicações estapafúrdias sobre a origem da Covid-19 e as maneiras de enfrentá-la.É onde, diante do imperativo de ganhar a vida e à falta de alternativas para fazê-lo de forma segura, milhões de pobres viraram cativos dos discursos que minimizam o perigo da praga e desprezam as medidas básicas de proteção contra ela.

É a nação que deixou que o crime se apropriasse de extensos territórios urbanos, disseminando o medo, a insegurança e a consequente aceitação das formas mais brutais de reprimir a criminalidade. É o país da favela do Jacarezinho, que toma com naturalidade que suspeitos —até de delitos menores— sejam exterminados com autorização do governador do estado, aplausos de apresentadores de TV e apoio ostensivo do presidente e de seu vice.

É a nação onde as distâncias sociais são tão imensas que as próprias instituições que em outras paragens dão corpo à solidariedade social —previdência, serviços de saúde e transporte coletivo— reproduzem desigualdades e diferenças. Sem estruturas de solidariedade social, os mais bem aquinhoados e protegidos veem os que morrem na porta dos hospitais, quando os veem, como estatísticas, e os abatidos numa favela como suspeitos habitantes de outro planeta, onde a vida é sórdida, abrutalhada e breve.

O crescimento da extrema direita, na última década, com seus movimentos, redes, gurus e porta-vozes, é um lado da autobiografia recente desta nação. Bolsonaro apenas deu-lhe o que tem: uma cara cruel e primitiva.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 08:55:00 Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/05/autobiografia-de-uma-nacao.shtml


Bruno Boghossian: Lula retoma territórios, e Bolsonaro se agarra a base mais restrita, aponta Datafolha

A fidelidade da base lulista e a hesitação do eleitorado que aderiu a Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018 ajudam a explicar o descolamento entre os dois principais personagens da próxima corrida presidencial.

De volta ao jogo depois que o STF (Supremo Tribunal Federal) anulou condenações que o impediam de concorrer no ano que vem, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) retomou o controle de territórios tradicionalmente petistas, de acordo com números da primeira pesquisa do Datafolha para a disputa de 2022.

Uma fatia da vantagem que o ex-presidente abriu sobre seus adversários aparece principalmente no grupo mais pobre da população —o que sugere que bandeiras petistas como as plataformas de distribuição de renda e redução da pobreza ainda ressoam nesse eleitorado.

Os números indicam que essa faixa é uma trincheira inicial de Lula. Entre eleitores que ganham até dois salários mínimos, o petista aparece com 47% no primeiro turno. Nos demais grupos de renda, ele não passa de 34%. Também está ali sua menor rejeição: 29%, contra mais de 40% em outros segmentos de renda.

Num eventual segundo turno contra Bolsonaro, os mais pobres dariam ao petista uma vitória por 60% a 28%.

A margem de Lula nesse recorte é relevante, no ponto de partida, porque o segmento de baixa renda representa mais da metade do eleitorado brasileiro. Além disso, esses grupos foram alvos de investidas de Bolsonaro ao longo do último ano.

O pagamento das parcelas de R$ 600 do auxílio emergencial, até setembro de 2020, aproximou esse eleitorado da órbita do presidente. O segmento ajudou o governo, em certa medida, a manter sua aprovação estável na pandemia e após a crise com o ex-juiz Sergio Moro, quando Bolsonaro perdeu popularidade em grupos de renda mais alta.

Os índices apresentados pelo Datafolha apontam que o presidente se agarra, agora, a uma base mais restrita. Com uma nova rodada do auxílio em valores menores, Bolsonaro não conseguiu avançar entre os mais pobres. Do outro lado, ele tem seus maiores índices de rejeição em segmentos mais ricos e com escolaridade mais alta.

Embora o presidente tenha consolidado um eleitorado fiel, ele encontra esse obstáculo em sua corrida à reeleição. Brasileiros com ensino superior completo foram alguns dos primeiros grupos a impulsionar a candidatura de Bolsonaro em 2018, abrindo caminho para sua vitória.

Agora, parte deles rejeita o presidente e parece buscar uma alternativa. Nesse segmento, Lula aparece com 30%, contra 22% de Bolsonaro, enquanto outros 36% se dividem entre os candidatos que disputam o rótulo da terceira via: Ciro Gomes (11%), Sergio Moro (10%), João Amoêdo (6%), Luciano Huck, João Doria e Luiz Henrique Mandetta (3% cada).

Esse pelotão, no entanto, não ameaça a vaga de Bolsonaro no segundo turno ou a liderança de Lula em nenhum recorte da população com peso relevante na pesquisa. Pode ser um sinal de que o eleitorado que rejeita os dois principais concorrentes não é tão numeroso quanto gostariam os demais candidatos.

Caso o cenário se cristalize como uma disputa concentrada entre Lula e Bolsonaro, a corrida vai se desenhar ao longo do próximo ano a partir dos movimentos dos dois líderes para preservar redutos, ampliar seus domínios e estimular a rejeição ao adversário.

No numeroso segmento de baixa renda, o desempenho da economia e o uso da caneta presidencial podem mexer nas curvas de intenção de voto. Ainda que os petistas enxerguem um vínculo histórico com esse grupo, a experiência do auxílio emergencial mostrou que parte dos eleitores responde rapidamente a medidas que tenham efeito direto sobre seu bolso.

As discussões no governo sobre a ampliação de despesas, os benefícios prometidos pelo presidente a categorias como caminhoneiros e o enfraquecimento da agenda de cortes do ministro da Economia, Paulo Guedes, indicam que Bolsonaro tem disposição para tomar decisões com potencial eleitoral considerável.

Além disso, auxiliares do presidente esperam que sinais de recuperação econômica e avanços na vacinação, embora extremamente lentos, possam se consolidar até 2022 e ajudar a reduzir a rejeição ao governo pela condução da resposta à pandemia da Covid-19.

A esperança dos bolsonaristas é recuperar, assim, parte do eleitorado que esteve com o presidente em 2018 e que não votaria em Lula no ano que vem. O foco da campanha seria despertar novamente o antipetismo, principalmente em segmentos da classe média e em grupos mais ricos da população.

Na visão de aliados do Palácio do Planalto, se nenhum outro candidato se mostrar competitivo até os meses finais da campanha, parte desse eleitorado poderia se aproximar de Bolsonaro por gravidade para derrotar o PT.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/lula-retoma-territorios-e-bolsonaro-se-agarra-a-base-mais-restrita-aponta-datafolha.shtml

 


José Serra: Orçamento sem bom censo

O Orçamento público aprovado no final de abril, com atraso e inconsistências técnicas, compromete o desempenho das políticas públicas no País e cancela, na prática, os recursos para a realização do Censo 2021. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden defende seu ambicioso plano de Estado para os próximos dez anos; já no Brasil, os formuladores de políticas governamentais promovem desorganização das contas públicas e desmantelamento de programas de governo indispensáveis ao desenvolvimento do País.

Soma-se a esse inadmissível desacerto na condução da política econômica a inepta tese de que o Orçamento público deve ser decidido pelos parlamentares. Como se o papel do Executivo fosse somente largar na porta do Congresso Nacional o principal instrumento de planejamento e gestão do País. Não é admissível que um governo se exima de governar.

Nossa Constituição federal confere ao Poder Executivo competência privativa para elaborar o Orçamento, em função de metas e prioridades estabelecidas pelo presidente da República. Quando o governo abre mão dessa prerrogativa durante o processo de elaboração do Orçamento, o Parlamento ocupa esse espaço e, por inércia, tende a avançar na alocação unilateral dos recursos públicos, por meio de emendas orçamentárias.

Nota-se que o governo federal se descompromete das próprias metas e prioridades ao evitar interações com o Poder Legislativo na fase de discussão do Orçamento. Por sua vez, os parlamentares têm interesses próprios relacionados às suas bases eleitorais e locais. Num sistema político-partidário fragmentado, como se verifica no Brasil, a estratégia do governo, em última análise, compromete a qualidade do gasto e alimenta o viés deficitário do Orçamento.

Nesse contexto, o Congresso praticamente excluiu do Orçamento de 2021 a previsão de recursos para a realização do censo. O relator-geral do Orçamento adotou uma estratégia conhecida na Esplanada como “inversão de prioridades”: corta-se uma despesa essencial para financiar outros gastos de prioridade duvidosa, sabendo que, no fim das contas, haverá forte pressão para recompor a verba cortada.

Sabe-se que o censo, no Brasil, deve ser realizado a cada dez anos, nos termos do primeiro artigo da Lei 8.184, de 1991. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao ser provocado, decidiu corretamente ao determinar que o governo tome as providências para realizá-lo neste ano. A Corte julga agora um recurso da Advocacia-Geral da União contra essa determinação, mas, ao que tudo indica, os ministros devem manter a decisão anterior.

O Censo 2021 deve ter prioridade e medidas devem ser tomadas para superar questões sanitárias. Na ponta do lápis, o custo é irrisório comparado aos benefícios: gasta-se pouco para lançar mão de dados que ajudam os gestores públicos a fazer uma alocação melhor e mais eficiente dos recursos públicos. Trata-se de uma ampla pesquisa que cobre os domicílios brasileiros, com um retrato detalhado da população – desde quantidade e características das famílias até o tipo de moradia em que vivem, levando em conta acesso a coleta de lixo, energia elétrica e transporte público, por exemplo.

Cabe também observar que o Brasil vem sofrendo transformações substanciais na última década. São mudanças nos fluxos migratórios e na pirâmide etária do País, por exemplo, que só podem ser medidas com maior precisão com o censo. E são indicadores fundamentais para tomada de decisões e formulação de políticas públicas.

Em países avançados, o censo é considerado uma ferramenta essencial para o desenvolvimento. Recentemente tive a oportunidade de acompanhar a manifestação de um ministro canadense explicando a importância das pesquisas censitárias, especialmente para o planejamento dos negócios no setor privado e das políticas públicas mais importantes para as comunidades. Devemos seguir esse caminho, pondo o censo como instrumento prioritário da administração pública.

Quando ministro do Planejamento, tive a oportunidade de coordenar a elaboração do primeiro plano plurianual do governo Fernando Henrique Cardoso. A maioria das reuniões era realizada no ministério, mas não foram poucas as vezes em que fui pessoalmente ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), braço direito na elaboração do plano.

Eram presença marcante e constante dessas reuniões técnicos da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este, hoje tão desrespeitado e desprestigiado, foi o responsável por fornecer as estatísticas sobre o acesso da população brasileira aos serviços básicos, níveis educacionais e outros indicadores que nortearam a definição das políticas públicas a serem implementadas no Brasil à época.

É uma pena observar manobras no Orçamento federal que comprometem a realização do Censo 2021. O governo precisa recuperar seu protagonismo no processo de elaboração do Orçamento, sinalizando para o Congresso o compromisso com o planejamento das políticas públicas. Caso contrário, o Orçamento continuará sem bom censo.

*Senador (PSDB-SP)

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,orcamento-sem-bom-censo,70003713088

 


Fabio Graner: Reforma tributária exige debate, não tumulto

Ofuscado pelo tumulto gerado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) sobre a reforma tributária merece ser amplamente discutido pelo Congresso e pela sociedade. O texto mostra uma evolução importante em relação às PECs originais (45 e 110), porém, nasce com algumas lacunas que também precisam ser debatidas, entre elas não atacar a questão da baixa tributação sobre renda e patrimônio.

O substitutivo apenas tangencia o assunto ao reforçar na Constituição o princípio da progressividade fiscal, garantindo sua aplicação no imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e no IPVA.

Ao Valor Ribeiro diz que não se trata de omissão. Como as duas PECs originais são centradas na tributação de consumo, seu relatório teve foco nisso, justifica. “Até porque muita coisa de renda pode ser por lei, infraconstitucional. Eu me referi à renda e patrimônio, reforcei o caráter de progressividade. Nós registramos isso e deixamos aberto para os parlamentares fazerem essa contribuição e, se todos entenderem que é devido, não serei eu que vou dizer que não é. Pelo contrário.”

O relator vai receber nos próximos dias sugestões para seu texto, que, pelo calendário da comissão, pode ter uma nova versão contemplando as contribuições no próximo dia 11.

A despeito de Lira ter anunciado a extinção das comissões, o relator mantém o tom diplomático e diz acreditar que seu texto conseguirá ser bem-sucedido no Congresso. “Eu vejo possibilidade de avançar. Os presidentes das duas casas, Rodrigo Pacheco [Senado] e Arthur Lira, disseram que a reforma tributária era prioridade. Reforma tributária é o que eu defendo. Ajustes tributários são outra coisa, não se tem impacto na economia como na reforma”, disse, em crítica indireta à tese de fatiamento do governo. “Eu defendo reforma ampla e confio na liderança dos presidentes para que esse tema possa avançar.”

Ribeiro destaca no relatório a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em duas fases, iniciando-se com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) do governo federal por dois anos e no terceiro ano incorporando o ICMS e o ISS. Esse desenho, admite, foi feito para atender a equipe econômica.

Ele disse ter recebido muitos retornos positivos. “Acho que é importante a mudança estrutural na tributação do consumo. Isso vai de fato transformar o país. Hoje acho que temos um texto para ser debatido. Temos uma legislação única que tributa o consumo e não mais bens e serviços de forma diferenciada”, afirmou.

Ex-secretário da Receita Federal, o professor da FGV Marcos Cintra elogiou o relatório, mesmo não sendo simpático à tese de um IVA nacional. Para ele, o texto corrigiu problemas de “falta de realismo” na PEC 45. “Ele manteve o que tinha de bom na PEC 45, crédito financeiro, tributação no destino, unificação administrativa, e tirou o que era irrealista, como a universalidade, ao abrir exceções para o Simples, Zona Franca de Manaus, autorizar regimes especiais e permitir alíquotas menores para setores como saúde e educação.”

Cintra, porém, elogia a decisão de Lira e avalia que, com extinção das comissões, a PEC 45 está morta e abriu-se espaço para a CBS e o Imposto de Renda avançarem na Câmara, pois não há necessidade de quórum constitucional. Além disso, avalia, o relatório de Ribeiro pode tramitar sem problemas no Senado e avançar no Congresso, se conseguir apoio.

Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio de escritório do mesmo nome, o substitutivo, “embora bem feito, parece ter acolhido pouquíssimas manifestações dos setores empresariais”. Ele cita que não foram acatadas algumas sugestões relativas à compensação de créditos tributários acumulados no passado e critica regra de que os novos créditos do IBS só existirão após a comprovação do pagamento do tributo na etapa anterior (fornecedor). “Eu diria que aqueles que pagam a conta não foram muito ouvidos. E isso é particularmente grave num momento em que a recuperação econômica nem começou ainda.”

Há muitos aspectos de mérito ainda a se analisar do texto. Porém, não podemos escapar da tentativa de entender o embate político que Lira trouxe para a luz do dia. O chefe da Câmara anunciou que a comissão mista estava extinta ainda durante a leitura do texto. Para além da descortesia política, o mais grave foi que ele adicionou incerteza sobre o destino de uma reforma absolutamente necessária e sobre a qual já repousa justificado ceticismo, diante de décadas de fracassos.

Seus aliados apontam que a intenção de Lira seria acelerar o processo reformista. Isso porque o tema agora foi para o plenário, o que daria a ele maior controle sobre seus próximos passos. Se isso for verdade, ganha força a tese de reforma fatiada sem mudanças imediatas na Constituição e que priorize a CBS e as mudanças no Imposto de Renda, como ainda defendem o governo e o próprio Lira.

Uma das questões importantes é saber se as ações mais recentes do parlamentar não deixam rastro de mágoa e contrariedade que inviabilizaria essa alternativa. Na terça mesmo ficou claro que sua decisão não foi bem recebida por boa parte dos seus pares.

O presidente do Senado se posicionou pela continuidade da comissão e parlamentares dela também reagiram, lembrando que a discussão no colegiado era parte de um acordo. Ontem, os secretários estaduais de Fazenda emitiram nota contra a extinção da comissão mista e defenderam a continuidade dos trabalhos. A decisão de Lira, segundo a nota, foi desrespeitosa.

Cientista político e sócio da Hold Assessoria Legislativa, André Cesar avalia que o presidente da Câmara agiu movido por interesse em retomar o protagonismo perdido com a CPI da Pandemia, por rivalidade política com o grupo do seu antecessor, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo sonho de aparecer para o mercado financeiro como grande artífice da reforma. Para ele, a atitude deixa sequelas que dificultam o avanço dessa reforma. “Ele não combinou com os russos e a coisa ficou mal construída”, disse, apontando risco de o Senado engavetar a reforma fatiada.

A dúvida que persiste é se a série histórica de fracassos da reforma tributária prevalecerá ou se, como na Previdência, a inércia será quebrada. Nessa disputa, construir pontes ajuda muito mais do que movimentos bruscos e imprevisíveis.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/brasil/coluna/reforma-tributaria-exige-debate-nao-tumulto.ghtml


Everardo Maciel: Reforma tributária – Propostas subestimam impactos da tributação sobre preços

Não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de reforma tributária, no Brasil, por várias razões, como a natureza intrinsecamente imperfeita de todos os sistemas tributários, as mudanças, cada vez mais rápidas e relevantes, nas circunstâncias econômicas e sociais, as controvérsias conceituais em razão de instabilidades na interpretação administrativa e na jurisprudência, a voracidade da burocracia tributária, etc.

Essa necessidade, todavia, não é exclusiva do Brasil. Alcança todos os países, não necessariamente ao mesmo tempo, nem com a mesma agenda de questões a solucionar.

Propostas de reforma tributária devem, precipuamente, delimitar seu objeto e eleger a forma de execução, dispensando chavões, dogmatismos, ilações insubsistentes, pretensões de recepcionar acriticamente experiências estrangeiras, estudos e pareceres encomendados por interesses privados. Além disso, devem ser precedidas de estudos, que exponham de forma clara os problemas que pretende enfrentar, as possíveis soluções e suas repercussões, a serem submetidas a debate aberto e transparente.

É como se fez no Brasil, em 1953, quando da elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional.

Instituiu-se então uma comissão presidida pelo próprio ministro da FazendaOsvaldo Aranha, e integrada por qualificados tributaristas e servidores públicos, tendo como relator Rubens Gomes de Souza.

Durante nove meses, a Comissão fez inúmeras reuniões, produziu relatórios levados ao conhecimento público, examinou mais de mil sugestões, daí resultando um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação pelo Congresso Nacional.

De igual modo, em 1965, foi constituída uma comissão para elaborar o anteprojeto de reforma da discriminação constitucional de rendas, presidida por Simões Lopes, presidente da Fundação Getúlio Vargas, e integrada por Rubens Gomes de Sousa, na condição de relator, e, entre outros, por Gerson Augusto da Silva, Gilberto de Ulhôa Canto e Mário Henrique Simonsen.

Essa Comissão, tomando por base estudos que remontam a 1963, elaborou o anteprojeto da Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, que foi certamente a melhor reforma da tributação do consumo no Brasil.

Fica patente, em ambos os casos, que os projetos foram concebidos por especialistas, porém com efetiva participação do Estado, em nome da preservação do interesse público e da imparcialidade.

Espanha, em abril passado, adotou providência análoga, ao instituir comissão, integrada por tributaristas, economistas e servidores da Fazenda Pública, para analisar o sistema tributário espanhol e, até fevereiro de 2022, propor medidas visando a torná-lo mais eficiente no plano arrecadatório e mais eficaz no combate à pobreza, e, por fim, ajustá-lo ao contexto do século 21, especialmente no que concerne à atenção com a sustentabilidade e a economia digital.

Fatos recentes atestam que iniciativas tributárias movidas por mero voluntarismo, mesmo que lastreadas em teses razoáveis, podem resultar em custosas frustrações, em virtude da reação dos contribuintes.

Na França, em 2018, a elevação dos tributos incidentes sobre os combustíveis de origem fóssil gerou o movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes, em francês), que promoveu uma trágica rebelião popular, com pessoas mortas, feridas e detidas, além de barricadas, saques e danos à propriedade pública.

No início desta semana, o governo colombiano se viu obrigado a retirar proposta de reforma tributária que, entre outras medidas, previa tributar, com uma alíquota uniforme de 19%, bens e serviços consumidos pela classe média e pelos pobres. A proposta provocou uma revolta, com 19 mortos e 700 feridos.

Esses fatos constituem um alerta para propostas de reforma tributária, no Brasil, que subestimam reações aos impactos da tributação sobre os preços, especialmente em tempos de pandemia.

Os contribuintes, dizia Maurício de Nassau em seu testamento político, são como carneiros, que se, entretanto, tosquiados até a dor se convertem em terríveis alimárias.

*Consultor Tributário, foi Secretário da Receita Federal (1995-2002)

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,propostas-de-reforma-tributaria-subestimam-reacoes-aos-impactos-da-tributacao-sobre-precos,70003705502


Folha de S. Paulo: Câmara aprova projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional

Daniele Brandt, Folha de S. Paulo

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (4) o projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional e prevê punição para quem atentar contra o Estado democrático de Direito.

Após aprovação do texto-base em votação simbólica, os deputados rejeitaram sugestões de modificação ao projeto, que, agora, será submetido ao Senado.

A proposta aprovada prevê até cinco anos de prisão para quem contratar empresas para disseminar notícias falsas que possam comprometer o processo eleitoral no país.

Texto substitutivo da relatora Margarete Coelho (PP-PI), o projeto revoga a LSN, resquício da ditadura militar (1964-1985), que vem sendo usada com mais frequência nos últimos anos.

Reportagem publicada pela Folha mostrou que a Polícia Federal disse ter aberto 77 inquéritos com base na lei em 2019 e 2020, número que supera o registrado nos quatro anos anteriores, quando a corporação diz ter instaurado 44 inquéritos.

O ex-ministro da Justiça André Mendonça, hoje chefe da AGU (Advocacia-Geral da União), pediu que a PF investigasse jornalistas e opositores do governo Jair Bolsonaro, como o youtuber Felipe Neto.

Já o STF (Supremo Tribunal Federal) usou a mesma LSN para prender o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e organizadores de manifestações antidemocráticas.

A discussão sobre a revogação da LSN foi retomada no início de abril pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Com a votação, o Congresso tenta se antecipar à análise da legislação pelo Supremo.

O substitutivo de Margarete tomou como base projeto apresentado em 2002 por Miguel Reale Júnior, então ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002).

O texto insere um título dentro do Código Penal. A relatora retirou dispositivos relacionados a terrorismo, associação discriminatória e discriminação racial, que já possuem leis próprias. Também excluiu conspiração e crimes de atentado à autoridade.

Por outro lado, ela incluiu um capítulo sobre crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral. Um dos artigos inseridos pela deputada criminaliza a comunicação enganosa em massa.

O ato é descrito como “promover, ofertar, constituir, financiar, ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de colocar em risco a higidez do processo eleitoral, ou o livre exercício dos poderes constitucionais”.

Ou seja, pune quem contratar empresa que divulgar notícia que sabe ser falsa. A pena prevista é de reclusão de um a cinco anos e multa.

Outro dispositivo inserido trata da interrupção do processo eleitoral, como no caso de ataque hacker ao sistema da Justiça Eleitoral. A punição prevista é de três a seis anos de reclusão e multa.

Além disso, a relatora incluiu o crime de violência política, que seria “restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual, ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

A pena prevista é de de três a seis anos de reclusão e multa, além da pena correspondente à violência.

Margarete incluiu dispositivo que afirma não ser crime a manifestação crítica aos Poderes constituídos, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.

Essa era uma preocupação da oposição, que temia ter o direito de protestar tolhido.

O projeto também criminaliza a incitação à animosidade entre as Forças Armadas ou entre elas e Poderes legitimamente constituídos, as instituições civis ou a sociedade.

Além disso, Margarete acrescentou um dispositivo sobre abolição violenta do Estado democrático de Direito, que seria a tentativa, com emprego de violência ou grave ameaça, de abolir o Estado de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais.

É o que buscaram, por exemplo, apoiadores do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com a invasão do prédio do Capitólio, em janeiro. A pena prevista é de quatro a oito anos de reclusão, além da pena correspondente à violência.

A relatora estipulou ainda aumento das penas se o crime for cometido por funcionário público, que perderia o cargo ou função pública, ou por militar.

Na discussão do projeto, bolsonaristas criticaram a votação e disseram que o debate havia sido açodado. “É uma lei que deve ser estudada, é fato, mas da forma açodada que essa lei vem para este plenário, nós não podemos aceitar”, disse Carlos Jordy (PSL-RJ).

“Se o objetivo da nova Lei de Segurança Nacional, ou Lei do Estado democrático de Direito, um termo que foi expressamente prostituído para poder alegar todo tipo de questões que estejam violando a própria democracia. Se é para torná-la melhor, ela deveria estar sendo melhorada, aprimorada. Da forma como está, traz consigo diversos dispositivos ruins da antiga Lei de Segurança Nacional e também traz questões muito piores para a nova legislação.”

Já a oposição defendeu a revogação da lei.

“Temos que acabar com a Lei de Segurança Nacional, aquilo que ainda vem da época sombria da nossa história que este país viveu, infelizmente, da ditadura, que alguns ensaiam, estimulam condutas para que volte e defendem como se aquilo fosse o melhor dos mundos, como se aquele período fosse democrático, não tivesse sido violento”, afirmou o deputado Alencar Santana (PT-SP) .

“Com base nessa lei, muitas pessoas foram punidas, injustamente. Eu acho que esse novo marco que nós podemos aprovar hoje é condizente com o Estado democrático que nós defendemos. O Judiciário vai ter melhores parâmetros para poder agir quando provocado. Não é justo que legislações como essas ainda sejam utilizadas”, acrescentou Santana.​

A votação dos destaques expôs um racha na esquerda. O PSOL considerou o texto aberto. “Sabemos bem, como esses tipos penais abertos, e aí eu quero me permitir divergir dos meus colegas da oposição, podem levar à criminalização, sim, de movimentos sociais”, afirmou a líder do partido na Câmara, Talíria Petrone (RJ).

“Sabemos o quão seletivo é o estado penal, que cada vez mais é reforçado por esta Casa e cada vez mais é utilizado para perseguir os mesmos corpos de sempre.”

O deputado Orlando Silva (PC do B-SP) divergiu e negou que a lei fosse ser instrumento para perseguir o movimento social.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais. Sem autorização, quero dizer que o PT também não o faria, o PSB também não o faria, o PDT, a Rede e tantos outros partidos, só para falar do nosso campo citei alguns deles, nós nunca iríamos subscrever uma lei que perseguisse movimentos sociais”, disse.

Silva disse que entendia a dificuldade de o PSOL explicar por que votou com o governo e o PSL, “mas o argumento não pode ser que a lei pode ser instrumento para perseguir movimento social”.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-revoga-a-lei-de-seguranca-nacional.shtml


Vinicius Torres Freire: Reforma tributária mexe no bolso, mas pode morrer na praia poluída de Bolsonaro

Em uma reforma tributária que preste, alguns tipos de empresas vão pagar mais imposto, outras menos, assim como os consumidores de bens e serviços afetados. O objetivo é uniformizar o quanto possível o custo dos tributos. A uniformização de carga tributária por setor ou empresa e a simplificação de normas será tanto maior se incluir impostos centrais para estados (ICMS) e municípios (ISS). Quanto menos uniformizar e simplificar, menos a reforma vai prestar.

As contas dessas perdas e ganhos nem foram detalhadas, embora se estime que serviços como saúde, educação, telecomunicações e serviços profissionais (como advocacia e consultorias, a depender do regime: se não estão no Simples) devam pagar mais, seja na mudança parcial proposta pelo governo seja na mudança geral que vinha sendo analisada pela Comissão Mista do Congresso.

Com dinheiro na mesa, a discussão engrossa. Se houver rolo político anterior mesmo ao debate de quem paga a conta e quanto, o caldo engrossa e entorna. Voltou a entornar nas últimas três semanas e nesta terça-feira (4) escorreu pelo chão.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-SE), que entre outras coisas quer ser o líder-mor do governo no Parlamento, por ora deu fim à Comissão Mista que unificava projetos (de Câmara e Senado) de uma reforma ampla, geral, que trata de todos os impostos relevantes e inclui estados e municípios na mudança. Lira quer tocar a reforma de Paulo Guedes ou do governo, embora Jair Bolsonaro não tenha ideia do que se trata e tende a fazer alguma besteira assim que começar a ouvir queixas de setores afetados. Ainda mais se for relembrado de que, no fim do caminho da reforma de Guedes tem uma espécie de CPMF.

Em tese, o “imposto sobre transações” de Guedes, jamais explicado, serviria para reduzir impostos sobre a folha salarial de empresas, carga que seria redistribuída pela sociedade, em particular, diz gente do governo, sobre setores novos ou que pagam pouco de imposto. Na proposta original do governo, “fatiada”, também tem pedaços de reforma do IR da pessoa física, com redução geral de alíquota e fim de isenções para saúde e educação —justo, mas rolo na certa.

aversão a alguma CPMF pode acabar com a reforma do governo que não trata de PIS/Cofins. O assunto, então, estaria morto até 2023, pelo menos.

Lira deu seu tiro na reforma geral quando o parecer sobre a emenda constitucional, aliás bem razoável, era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).

Guedes não quer a reforma geral. Quer aprovar a mudança e simplificação do PIS/Cofins, que vem de Michel Temer.

Embora ainda dê rolo (quem paga a conta), é de fato mais simples fazer essa mudança (em termos técnicos e legislativos). Tem também a vantagem de, talvez, mudar um pouco de assunto na política, dominado pela CPI da Covid. A cortina de fumaça deve ser furada, mas o governismo atropelado pela CPI não tem alternativa. Nem mesmo a ameaça dos comícios golpistas bolsonarianos do final de semana recebeu atenção.

Uniformizar impostos é necessário para que se tenha uma economia de mercado funcional. Impostos definem custos e, pois, podem distorcer investimentos. Trocando em miúdos bem simples e grossos, um investimento pode ser decidido não porque é rentável (com uso eficiente do capital), mas porque recebe algum favor (redução de impostos).

Jogar fora as emendas constitucionais da reforma tributária é desperdiçar um trabalho de anos. Mas tal reforma exige acordos sociais, econômicos e políticos complexos. Logo, não parece coisa de governo Bolsonaro.

Fonte:
Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/reforma-tributaria-mexe-no-bolso-mas-pode-morrer-na-praia-poluida-de-bolsonaro.shtml