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Ricardo Noblat: A lista do faz de conta que o governo quer aprovar

Nenhuma menção a programas sociais

Era previsível. Um governo que se instalou sem dispor de um projeto para o país e que assim continua dois anos depois, não tem prioridades, e, por isso, nada pode propor ao Congresso que surpreenda. Foi o que mais uma vez ficou demonstrado.

Jair Bolsonaro entregou aos novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados o que espera deles, eleitos com seu aval – uma lista com 35 medidas a serem votadas em breve ou quando der. São medidas demais para o conturbado tempo que lhe resta.

2020 foi o ano da pandemia, onde o vírus atrapalhou o funcionamento normal do Congresso. 2021 será o ano da vacinação que, na melhor das hipóteses, entrará pelo próximo ano. 2020 é o ano que não acabou, e 2021 o que acabou cancelado.

Os políticos já estão em 2022 quando terão de renovar seus mandatos ou disputar outros. Nada farão que possa lhes custar votos. Reforma tributária? É complicado demais. Administrativa? Bolsonaro não parece disposto a cortar privilégios.

Privatização de empresas estatais? A Eletrobras poderá ir à leilão como falsa prova de que esse é um governo liberal. Mas não se conte nessa área com um processo robusto de vendas de empresas. Bolsonaro compartilha o nacionalismo equivocado dos militares.

O que de fato interessa a ele é que o Congresso chancele o que mantenha coesa sua base tradicional de sustentação. Assim – quem sabe? – ela engula sem reclamar tanto sua aliança recente com o Centrão, algo que ele disse que jamais faria.

Em um país com cerca de 1 milhão de cidadãos armados, Bolsonaro quer mais facilidades para armar o maior número possível. Milícias e organizações criminosas agradecem. Quer o endurecimento de penas para crimes considerados hediondos.

Quer também o ensino em casa para crianças e adolescentes, longe da influência de professores esquerdistas e sob a desculpa de que só os pais sabem o que deve ser ensinado aos seus filhos. E quer ainda que a mineração em terras indígenas seja liberada.

Ficou de fora do pacote de medidas qualquer menção ao restabelecimento do auxílio emergencial pago aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, e o eventual reforço do programa Bolsa Família que, se depender de Bolsonaro, mudará de nome.

Nada causou espanto na cena montada para que Bolsonaro prestigiasse a reabertura dos trabalhos do Congresso – nem as vaias, nem os gritos de “mito”, nem as imprecações de “fascista” e “genocida”. Sequer mais uma mentira pregada por ele.

Bolsonaro disse que concedeu até aqui mais títulos de terra do que os distribuídos nos últimos 14 anos. Foi para fustigar o PT que governou o país por quase 13 anos. Em 2019, ele concedeu apenas seis títulos. A média anterior foi de três mil títulos por ano.


Gabriela Prioli: Quem ganhar vai perder

Bolsonaro vai sorrir amarelo para o centrão?

Quando seu candidato ganhou a eleição à presidência da Câmara, Bolsonaro perdeu um ponto de sustentação da sua narrativa. E ele sabe disso, por isso a reação de afastamento: "eu apenas fiquei na torcida".

Jair existe na reação porque a sua presidência —ou a sua existência— não tem plano de ação. A estratégia é colocar a culpa nos outros. Foi assim até agora e tem funcionado.

O problema é que Arthur Lira não me parece ter qualidade essencial para que alguém seja considerado aliado do plano egocêntrico do capitão: a disposição para servir de muleta para o presidente. Alguém imagina Lira num vídeo como o de Regina Duarte na sua saída da Secretaria de Cultura? O sorriso amarelo de uma existência que se coloca a serviço do mito? Eu não. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Isso significa que Lira não poderá fazer concessões aos arroubos e discursos simbólicos de Jair? É claro que não. Fará, desde que a realidade se oriente em direção àquilo que é interesse do centrão. O sorriso amarelo pode se tornar o de Jair.

A pandemia produzirá os seus efeitos agravados pela péssima gestão de um presidente negacionista que boicota até a vacina. Um possível sucesso na pauta dos costumes segura Bolsonaro até a página dois. Se a economia afunda, não há conservadorismo que segure a insatisfação. Quando a hora do descontentamento chegar, o centrão, se lhe parecer conveniente, pode dizer: a culpa não é nossa, é do presidente, que não nos deixou fazer nada. Para isso, claro, precisam apresentar uma nova liderança.

O desafio dos que se contrapõem à agenda de Bolsonaro é compreender o resultado das eleições de 2018 e dos primeiros anos de governo com menos espanto e mais estratégia. Construir um denominador comum. A eleição na Câmara mostrou quantos votos se fazem com a frente ampla que a gente não construiu: um segundo lugar com menos da metade dos votos. Vitória no primeiro turno.

Que fique o recado para pensarmos 2022.


Bruno Boghossian: Ministros do STF veem 'dois anos difíceis' com aliança Bolsonaro-Centrão

Com aliados no Congresso, integrantes do tribunal acreditam que presidente voltará a 'se soltar'

Os sinais emitidos depois do casamento de Jair Bolsonaro com o centrão fizeram com que ministros do Supremo erguessem a guarda. A ala que enxerga o tribunal como um contrapeso necessário aos planos mais audaciosos do presidente prevê “dois anos difíceis”, nas palavras de um deles.

O comportamento de Bolsonaro nos próximos meses vai mostrar de que maneira o governo pretende aproveitar a rede de proteção que foi estendida a seu favor no Congresso. Com a saída de um opositor que lhe impôs alguns freios no comando da Câmara, a expectativa é que o presidente volte “a se soltar”.

No ano passado, Bolsonaro se viu ameaçado por investigações que cercavam seu grupo político e abandonou o espírito conflituoso com o Legislativo e o Judiciário. Agora, um grupo de ministros do STF prevê novos episódios de tensão com o Palácio do Planalto. A diferença é que, em algumas brigas, o centrão deverá ficar ao lado do presidente.

Os choques com o Supremo podem voltar a ocorrer não só nos acenos autoritários e decretos ilegais de Bolsonaro, mas também nas pautas aprovadas em parceria entre o Planalto e o Congresso. Além da agenda das armas e de retrocessos no meio ambiente, integrantes do STF preveem disputas no tribunal em torno de mudanças na Lei da Ficha Limpa e na Lei da Improbidade.

Essa ala do Supremo acredita que Arthur Lira (PP) vá pavimentar boa parte das propostas de Bolsonaro entre os deputados. Já Rodrigo Pacheco (DEM) é visto como um potencial aliado para barrar alguns desses planos, embora o senador também tenha interesses políticos em jogo.

Para alguns desses magistrados, a única barreira de contenção possível teria sido um atropelo à Constituição para autorizar a reeleição de Rodrigo Maia (DEM) na Câmara e Davi Alcolumbre (DEM) no Senado. Vencidos no julgamento, eles dizem que a decisão do tribunal foi um erro que abriu caminho para a permanência de Bolsonaro no poder a partir da próxima eleição.


Míriam Leitão: Festa, mentiras e videotapes

Quem tem 35 prioridades no meio de uma crise desta dimensão não tem nenhuma. Mas foi essa a lista que o presidente Jair Bolsonaro entregou ontem ao Congresso. Quem acha que o importante é o homescholling não tem ideia da tragédia que está acontecendo na educação brasileira, com 47 milhões de estudantes longe das escolas. Quem acha que o importante é liberar armas num país em que há um milhão de civis armados, como este jornal informou, quer alimentar a formação de milícias no Brasil.

Na abertura do ano legislativo, a oposição recebeu o presidente com gritos de “genocida” e “fascista”, e os governistas responderam com “mito, mito”. O presidente Bolsonaro, diante disso, afirmou que foi deputado por 28 anos e nunca desrespeitou as autoridades. Ele disse que fuzilaria Fernando Henrique e exaltou torturadores de Dilma Rousseff. Só para citar duas agressões das muitas com as quais ele cimentou sua notoriedade. No seu discurso, ele falou uma coleção de mentiras. O espaço é curto para listá-las. Falarei de uma. Bolsonaro disse que concedeu mais títulos de terra do que os distribuídos nos 14 anos anteriores. Mentira. A média anterior era três mil títulos distribuídos por ano. A pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, conta que em 2019 houve “um apagão fundiário”. Foram apenas seis títulos. No blog, publiquei nota com gráficos. Os dados foram obtidos pela ONG graças à Lei de Acesso à Informação.

Os novos presidentes da Câmara e do Senado, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foram ao Palácio do Planalto ontem cedo e fizeram declaração pelo combate à pandemia e seus efeitos econômicos. A cena pública estava correta, as palavras eram boas, mas era impossível não compará-las com o que fora feito pelo deputado Arthur Lira e outros parlamentares e ministros.

A festa espalha vírus promovida pelos vitoriosos da Câmara dos Deputados, com a presença de dois ministros, foi um ultraje. Organizar esta festa é crer na impunidade. Participar dela, sem máscara, dançando e se aglomerando entre 300 pessoas é uma demonstração de que para esses ministros e parlamentares a vida dos brasileiros não tem valor. A festa em plena pandemia, como escrevi no blog, é um tapa na cara do país.

A primeira urgência na pauta do Congresso é ter um orçamento, porque sem isso alguns serviços essenciais podem entrar em colapso. O Ministério da Economia quer o orçamento aprovado até março. Na lista do Ministério há também a PEC Fiscal e a aprovação de marcos legais. Entre eles, o do petróleo, que permitirá que se possa ter concessão em áreas onde há o modelo de partilha. Os outros marcos são de ferrovias, cabotagem e do setor elétrico.

Nenhum desses é simples. Para se ter ideia, o senador Rodrigo Pacheco prometeu colocar hoje para votar a MP do setor elétrico, antes que ela caduque na semana que vem. Ela reduz os incentivos às novas fontes renováveis, solar, eólica, biomassa, e cria um encargo na conta de luz para financiar a interminável e caríssima Angra 3.

A atenção de Jair Bolsonaro está em outros pontos da sua lista de prioridades. Quer aumento de armas nas mãos dos extremistas que o apoiam e a retenção de crianças e adolescentes em casa, sob o argumento medieval de que só os pais sabem o que deve ser ensinado.

Há momentos no Brasil em que a dúvida é quanto mais podemos piorar. Certamente um passo na decisão da piora aguda é pensar no nome da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ela é protagonista de uma série infindável de agressões ao direito, à ciência e à democracia. Propagadora de mentiras. Em plenário, defendeu a intervenção militar em caso de divergência entre poderes, dizendo que este é o sentido do artigo 142. Está sendo investigada por envolvimento em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Que uma pessoa que proponha rasgar a Constituição seja cogitada para a Comissão que deve zelar pelos princípios constitucionais é uma anomalia que ilustra os tempos atuais.

O senador Rodrigo Pacheco, lembrando JK, falou muito em pacificação. Soa bonito. Juscelino fez alianças com adversários pela frente ampla, mas sabia com quem não deveria buscar a pacificação. Com a ditadura militar, que o cassou e que inspira Bolsonaro.


Merval Pereira: Os caminhos até 22

O presidente Bolsonaro descreve uma rota de escape em sua trajetória política, movendo-se para longe de sua origem, deixando a incoerência como sua marca, o que não chega a ser novidade entre nós. Eleito à Presidência da República em situação radicalizada, identificada pelos cientistas políticos como um ponto fora da curva, tentará a reeleição a bordo de uma coligação partidária comandada pelo “Centrão”, expressão máxima da baixa política que fingiu abominar durante a campanha presidencial.

Quis, sem sucesso, governar prescindindo dos partidos e das instituições democráticas. Perdeu seu primeiro ano de mandato com tentativas golpistas, alimentando uma turba extremista. Conflitos com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal (STF) provocaram crises institucionais, que só abandonou quando a prisão de seu ex-auxiliar, o ex-PM Fabrício Queiroz, pôs em risco seus filhos, especialmente o senador Flávio Bolsonaro, investigado pelas “rachadinhas” quando era deputado estadual.

Buscou cordialidade com o Supremo quando os processos sobre fake news e manobras antidemocráticas chegaram dentro do Palácio do Planalto, no gabinete do ódio. Livrou-se de Sergio Moro, um ministro simbólico de seu pseudo-empenho em combater a corrupção, e foi se blindar justamente no avesso do avesso disso. O Centrão tem a pretensão de domá-lo, para transformá-lo de líder político tosco e autoritário em candidato populista e sensível às necessidades do povo.

Na posse, o novo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, sublinhou a necessidade de auxiliar os necessitados (leia-se auxílio emergencial) e repetiu: “Vacinar, vacinar, vacinar”. Os políticos já sabem que o negacionismo tira votos de Bolsonaro e querem dar-lhe um banho de humanismo. Escancarada a inutilidade dos partidos — só Bolsonaro já esteve em dez deles —, assim como a pandemia escancarou a desigualdade social, ambos fenômenos bem brasileiros, o presidente que só pensa naquilo busca a reeleição com nova roupagem, mas disposto a conservar seus eleitores extremistas.

Uma engenharia política semelhante à de 2018, mas naquela ocasião não havia candidato na centro-direita que fosse competitivo. Bolsonaro engoliu o eleitorado do PSDB no Sudeste e obrigou que os fisiológicos do Centrão aderissem a ele em meio à campanha. O fantasma do petismo uniu diversas correntes em torno de Bolsonaro, e continuará sendo assim caso a centro-esquerda não se organize.

A eleição para as presidências da Câmara e do Senado mostrou que os partidos de centro-direita já estão tomando o caminho da adesão, oficial ou camuflada, ao governo Bolsonaro. A esquerda está dominada pelo petismo, talvez até com Lula na cabeça da chapa, o sonho de consumo de Bolsonaro. Provavelmente Moro será considerado parcial com o voto de minerva do ministro Nunes Marques.

O PSDB parece se desmilinguir, e não é à toa que o ex-presidente Fernando Henrique insiste na candidatura de Luciano Huck. Um grupo de tucanos já abriu conversas com o Cidadania, mas quer que surja daí um novo partido, com outro nome, o que não agrada a Roberto Freire, seu presidente. Rede e Partido Verde já conversam também sobre fusão com o Cidadania, que pode até mesmo receber o deputado federal Rodrigo Maia. Juntamente com ACM Neto, o ex-presidente da Câmara mantinha contato constante com Huck, o que ficou prejudicado pelos recentes movimentos do DEM.

Com o desmantelamento do bloco de centro-esquerda que se tentava formar, com PSDB, DEM e MDB e Cidadania, para lançar Huck, Freire tenta manter a possível candidatura em pé. Huck tem acesso ao eleitorado nordestino, o que lhe coloca à frente de outros candidatos do mesmo grupo, como João Doria. Mas é o que bolsonaristas consideram “adepto de uma agenda identitária de esquerda”, um liberal-progressista que não seria bem aceito pelos liberais-conservadores e conservadores. Pode transformar-se na alternativa à polarização entre PT e Bolsonaro. Mais palatável para eleitores liberais do que Ciro Gomes, que também disputa, desde 2018, esse espectro da centro-esquerda.


William Waack: O que sempre fomos

Depois de tantas mudanças, a política brasileira se parece tanto ao que sempre foi

O que é o governo Bolsonaro dominado pelo Centrão? É a política brasileira como sempre foi nas últimas décadas, a ponto de se duvidar se realmente tivemos uma alternância de poder de esquerda para direita. Talvez a periodização à qual historiadores costumam recorrer indique como último grande divisor de águas na política brasileira o processo de redemocratização do período entre 1985 e 1989 (sim, quatro anos decisivos).

Visto com uma distância de três décadas, o que se iniciou ali foi uma tentativa fracassada de estabelecer no Brasil um estado de bem-estar social aos moldes do sul da Europa, sem que cuidássemos que nossa economia de baixa produtividade e competitividade conseguisse financiar gastos públicos que subiram sempre acima da inflação, não importa qual fosse o governo. O encontro com a verdade chama-se crise fiscal.

Com maior nitidez desde aquele período grupos diversos foram capturando a máquina de Estado – ou ampliaram o domínio já existente (como ocorre com a elite do funcionalismo público, espalhada por autarquias, estatais e Judiciário). A política foi se reduzindo à negociação entre grupos esparsos, com cada vez menos direção central, para acomodar às custas dos cofres públicos interesses setoriais e regionais dos mais variados. Dentro de um ambiente de ideias que o sociólogo Bolívar Lamounier chama de “maçaroca ideológica”.

O “desenho” do nosso sistema de governo, que opõe o vitorioso num plebiscito direto (o presidente da República) a um Legislativo fracionado e de baixa representatividade (mas cheio de prerrogativas), com partidos dominados por caciques, “funcionou” nesses moldes até a quebra dos cofres públicos. A atuação desses “donos do poder” foi muito facilitada pelo fato de os setores privados da economia brasileira não terem sido capazes de desenvolver um “projeto nacional”, uma visão de conjunto que fosse muito além do que sempre foi o “norte” para gerações de empresários e banqueiros: garantir a amizade e a proximidade do rei.

A reforma de Estado ensaiada por FHC foi tímida, assim como as privatizações. O projeto petista do “nacional-desenvolvimentismo” (para dar um rótulo aos 13 anos) era uma obra conjunta com o Centrão, entendido como esse conjunto de forças políticas setoriais, regionais, unidas apenas no intuito de se apoderar de pedaços da máquina pública. Como se constata nos índices, a tal “preocupação pelo social” tão propalada naquele período não alterou fundamentalmente o País em termos de sua desigualdade e misérias relativas.

Ironicamente, a política brasileira parece ter mudado tanto nos últimos quatro anos (desde o impeachment de Dilma) para desaguar no mesmo lugar: no papel essencial dessas forças do Centrão, agora carregando consigo um presidente de escassa capacidade de liderança e que não entendeu onde reside seu poder: na possibilidade de ditar a agenda política, e não na tinta da caneta em suas mãos (que, aliás, encolheu bastante nos últimos dois anos).

Ao celebrar o entendimento político com os dois novos homens do Centrão no comando do Legislativo, Bolsonaro voltou a escancarar o fato de não ter estratégia nem saber o que quer, além de se reeleger. Trinta e cinco prioridades entregues ao Congresso é o mesmo que dizer que não tem nenhuma. Nessa “shopping list”, em parte a pedidos de seu ministro da Economia, estão matérias prometidas desde sempre (como reformas administrativa e tributária, além de privatização de estatais) que não progrediram basicamente pela incapacidade ou falta de interesse político por parte do chefe do Executivo.

É possível que o dia 1.º de fevereiro de 2021, data da oficialização do comando do Centrão nas principais esferas da política, talvez sirva aos historiadores no futuro para marcar o fim de um intenso período nessa linha do tempo, o da onda disruptiva de 2018. É também a data da dissolução da força-tarefa da Lava Jato, sem a qual essa onda é impossível de ser entendida. Talvez os historiadores no futuro considerem que não foi mera coincidência.


Sonia Racy: 'O mundo político funciona no modo crise', diz Murillo de Aragão

Para consultor político e advogado, vitória de Jair Bolsonaro no Congresso lhe dá, enfim, uma base para governar

O período por que passa hoje o Brasil, com idas, vindas e incertezas no trato da pandemia, pode ser entendido como uma espécie de “terceira guerra mundial”, concorda o cientista político, consultor e advogado Murillo de Aragão, da Arko Advice. “O País nunca enfrentou um desafio dessa magnitude”, que “não afeta apenas a saúde, mas também o comércio, o entretenimento, a educação, os hábitos da sociedade”. Mas o pano de fundo, adverte, é “um mundo político que funciona no modo crise”: só quando a coisa fica muito grave, é que se consegue um consenso e uma saída. 

Aragão segue de perto esse circo de acertos e conchavos há cerca de 30 anos, como consultor de bancos e empresas, em contato frequente com a área de investimentos, aqui e no exterior, além de atuar como palestrante. Sobre a vitória política do presidente Jair Bolsonaro, anteontem, com a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco como presidentes de Câmara e Senado, ele pondera, nesta entrevista para Cenários: “Não significa que a coordenação política esteja feita, ela está só começando. E vai ser afetada pela reforma ministerial que vem por aí.” A seguir, vão os principais trechos da conversa.

A Câmara acaba de eleger, como presidente, Arthur Lira, preferido de Bolsonaro. Como vê essa mudança?

O Arthur Lira venceu pela força do governo e também pelo poder de articulação dele, do Ricardo Barros e do Ciro Nogueira dentro do Congresso. É um conforto para o governo, e também para as agendas da equipe econômica. Mas isso não significa que a coordenação política do governo está feita. Ela está apenas começando. 

E em que consiste essa nova coordenação? O que vai mudar?

É uma nova etapa, onde a presença de um aliado dará ao presidente a tranquilidade para enfrentar os ataques políticos que o governo vem sofrendo no caso da pandemia. Mas essa tranquilidade terá de ser mantida e reforçada por uma coordenação eficiente. E esta vai ser afetada pela reforma ministerial que deve ocorrer em breve. 

E no médio e longo prazo? Como vê as eleições de 2022?

Considerando a máquina pública e a popularidade do presidente, ele é um forte candidato a estar no segundo turno. E até agora não temos uma candidatura forte no outro campo. Aí, existem desafios, e o maior desafio de Bolsonaro é ele mesmo. Porque existe uma narrativa antipolítica e, agora, ele se volta para o mundo político. Mas há outros dois problemas intimamente ligados – a pandemia e a economia.

Como vê a politização da pandemia, a briga entre governos e vacinas?

Olha, na área científica existe uma vaidade enorme... Eu tenho uma passagem pela academia, onde fiz meu doutorado, dou aula, e conheço o universo científico, onde há muita competição. E tem a questão geopolítica da vacina. Podemos fazer um paralelo com a guerra: quem tiver a vacina terá uma arma mais moderna...

Pode-se encarar o atual desafio como uma espécie de terceira guerra mundial, contra um inimigo invisível?

Sim, é como eu vejo. Olha, um ano atrás postei na minha coluna na (revista) Veja um alerta sobre a pandemia, e tudo o que eu mencionei lá atrás mais ou menos se realizou. O País nunca enfrentou um problema dessa magnitude. Ela afeta a todos no Planeta, igualmente. E mais: não afeta apenas a saúde. Afeta os hábitos da sociedade, o comércio, o entretenimento. No livro Ano Zero, que escrevi no ano passado, comparei alguns efeitos da guerra na sociedade. Por exemplo, o número de abortos na Alemanha foi gigantesco, depois da Grande Guerra. Nos Estados Unidos, depois do crash de 1929, famílias foram destruídas, centenas de milhares de pessoas vagavam pelo país como vagabundos... A pandemia pode ter esse mesmo efeito.

Como isso poderia ser resolvido?

O Brasil é um País que funciona no modo crise. Quando a situação piora muito, aí se chega a um consenso. A gente vai marchando entre conchavos e acertos, veja aí a eleição de agora na Câmara e no Senado. Partidos têm um pé no governo e outro fora do governo, a ambiguidade é parte do sistema. Só haveria união se a situação piorasse muito. 

O ministro Paulo Guedes condicionou a volta do auxílio emergencial a um corte de custos que depende do Congresso. Acha isso possível? 

Essa questão tem uma complexidade e uma simplicidade enorme. Vou falar da simplicidade. O Estado aqui é mais forte que a sociedade e o aumento da despesa acaba sendo financiado pelo aumento da arrecadação. Alguém dirá que o teto de gastos cria limites. Mas se a pandemia se tornar mais dramática, ele será flexibilizado, talvez por uma PEC, e acaba caindo na conta do cidadão. Num imposto sobre transações digitais, uma CPMF, uma contribuição social sobre lucro dos bancos, um Bolsa Família vindo de outras fontes. 

Acha possível a união de forças políticas se a pandemia se agravar ainda mais? Acredita num impeachment?

A única razão que me pareceria capaz de unir as forças políticas seria para derrubar o presidente. Mas não vejo nada disso acontecendo. Porque o impeachment tem uma forma. Na Arko Advice a gente fez uma fórmula que foi aplicada no caso Collor, lá de 1992. Você tem de avaliar três fatores. O primeiro é o motivo, e esse é o que menos importa. Segundo, e este importa bastante, é a popularidade. Presidente popular segura um impeachment. Bolsonaro tem hoje popularidade (somando ótima, boa e regular) acima dos 50% e militância muito aguerrida. 

Ele é um político que tem estratégia?

Eu o vejo mais tático do que estratégico. Bolsonaro foi competente ao criar sua candidatura, num momento de descrédito do centro político e da esquerda. Criou uma estratégia para se eleger, mas no governo ele não tem estratégia. O governo foi montado, desmontado, e aí chegou a pandemia. O hiperpresidencialismo deixou de existir e Bolsonaro aprendeu isso na marra. Quando diz “eu não consigo fazer nada, a Justiça não deixa fazer”, é verdade. E isso é o que protege a nossa democracia – e talvez paralise alguns dos nossos avanços. 

Muito se fala num poder exacerbado do STF. Isso é bom para a democracia?

Judiciário foi por muito tempo um Poder opaco, quase chapa branca. De certo modo, continua sendo. Mas o que tivemos desde o mensalão em 2005, com Joaquim Barbosa, foi um crescente protagonismo do Judiciário. O STF virou tribunal recursal da política, toda polêmica termina lá. 

Fala-se a toda hora em governo de esquerda, de direita. Diria que o atual governo é de direita?

Às vezes, o governo é politicamente de direita e economicamente de esquerda.. O atual é politicamente de direita, sim, e economicamente liberal, mas não deixa de ter traços do tenentismo, surgido nos anos 20, e que é intervencionista. Foi o tenentismo que criou a Petrobrás, a Eletrobrás. Então, há traços de direita, de esquerda... O Brasil é assim.

Tem uma frase muito boa do Nizan Guanaes, publicitário, mas que só faz sentido em inglês: não existem mais “left” ou “right”, existem “right” ou “wrong”, certo ou errado...

É uma realidade. O pragmatismo se impõe sobre os fatos e as crenças. Uma vez, meu filho Tiago foi com um grupo à China e, numa palestra que assistiram, na Juventude Comunista do PC Chinês, alguém disse: “Vocês sabem por que a América do Sul não dá certo? É porque vocês não respeitam o mercado!” Os mais esquerdistas, na sala, ficaram horrorizados. O conferencista explicou: “Nós respeitamos o mercado, produzimos o que ele quer”. Esse é o pragmatismo que nós deveríamos ter.

O Fernando Gabeira me disse anos atrás uma frase sobre capitalismo. “Não adianta você mandar o capitalismo para o inferno, que ele há de fazer um bom negócio por lá.” Mas, voltando ao tema, qual seria a reação se o Paulo Guedes pedisse o chapéu?

Em uma ou duas ocasiões, houve rumores de que ele iria embora. Acho que todo ministro deveria ter, não digo uma carta de demissão na gaveta, mas estar preparado para uma eventualidade. Foi mais ou menos o que aconteceu com o Wilson Ferreira, na Eletrobrás, quando sentiu que não ia fazer diferença no processo. E ele fez um belíssimo trabalho de reorganização na Eletrobrás. 

Você acredita num programa de privatização do atual governo?

Acredito sim, principalmente naqueles itens já colocados nas PPIs, que são uma herança do Uma Ponte para o Futuro, projeto do Michel Temer, que deu as bases do programa do ministro Tarcísio de Freitas, na Infraestrutura.

Que recado, enfim, você daria aqui sobre o futuro do País?

Estou há 40 anos em Brasília e diria que o País melhorou muito, sobretudo porque a sociedade se interessou mais pela política. Há hoje uma presença maior das elites empresariais e culturais debatendo o Estado e seu funcionamento. Outro avanço importante é a redução do corporativismo. A reforma política vem sendo feito em fatias. E temos US$ 350 bilhões em reservas, um sistema financeiro saudável e taxas de juros mais realistas. 

Pelo que você diz, continuamos, então, a ser o País do futuro?

Estamos construindo o futuro, ainda que a passo de tartaruga. E acho que vamos continuar avançando. Os embates que tivemos nestes dois anos de governo Bolsonaro revelam uma sociedade democrática e a existência de instituições fortes. Isso é muito importante.

*CEO da Arko Advice, sócio fundador da advocacia Murillo de Aragão, professor adjunto da Columbia University (Nova York), autor de “Reforma política – o debate inadiável.”


Folha de S. Paulo: Veja como chefes no Congresso lidaram com presidentes da República

Histórico é marcado por impeachments e reformas aprovadas pelos parlamentares

Desde a redemocratização, a relação entre os chefes do Congresso e o presidente da República tem sido marcada por tensão, fossem os comandantes do Legislativo governistas ou oposicionistas.

Prestes a deixar o posto, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, subiu o tom contra Jair Bolsonaro (sem partido), chamando o chefe do Executivo de covarde e irresponsável por atitudes tomadas na gestão da pandemia.

Ainda na Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ) foi um dos principais responsáveis pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Veja, abaixo, como foi a relação entre os Poderes nos últimos 30 anos.

CÂMARA



Ulysses Guimarães (SP) MDB
1985-1987/1987-1989

O “senhor Diretas” tinha sua imagem vinculada à de José Sarney. Com a posse do presidente, em 1985, Ulysses participou ativamente da composição do governo, até mais do que o chefe do Executivo. Em discurso em 2012 em homenagem a Ulysses, Sarney, então presidente do Senado, afirmou: “Era um exímio costurador e alinhavava com extrema perfeição a conspiração da boa causa”. A proximidade com Sarney, cujo governo foi marcado pela hiperinflação, acabou prejudicando a campanha de Ulysses à Presidência em 1989. Ele terminou em sétimo lugar, com apenas 4,4% dos votos.

Paes de Andrade (CE) MDB 
1989-1991

Durante 1989, assumiu 12 vezes a Presidência da República. Nessas ocasiões, foi alvo de críticas por não seguir determinações de Sarney e quase demitir um ministro interino, Paulo César Ximenes, da Fazenda. Ao voltar para a Câmara, após passagem pelo Executivo, manteve o arquivamento de denúncias contra Sarney apresentadas pela CPI que investigou irregularidades na administração. A decisão havia sido tomada por Inocêncio de Oliveira, seu substituto no comando da Casa.

Ibsen Pinheiro (RS) MDB
1991-1993

Comandou a Casa durante o processo de impeachment de Fernando Collor.

Inocêncio de Oliveira (PE) PFL (atual DEM) 
1993-1995

Votou a favor da abertura do processo de impeachment contra Collor. Já com Itamar Franco no Executivo, foi defensor do Plano Real, principal medida do presidente.

Luís Eduardo Magalhães (BA) PFL (atual DEM)
1995-1997

Próximo de Fernando Henrique Cardoso, atuou para que o PFL apoiasse a candidatura do tucano à Presidência. O partido acabou assumindo a vice, com Marco Maciel. Teve o apoio de FHC na campanha para o comando à Câmara. Morreu em 1998, quando era líder do governo na Casa.

Michel Temer (SP) MDB 
1997-1999/1999-2001

Sua candidatura ao comando da Casa teve apoio do Planalto, que contava com o MDB para a aprovação da emenda da reeleição —a medida acabou passando. Em 1999, foi reeleito para o posto, sendo o único candidato na corrida. Barrou iniciativa da oposição que pedia abertura de processo de impeachment contra FHC.

Aécio Neves (MG) PSDB 
2001-2002

Eleito em primeiro turno, derrotou o candidato do PFL, Inocêncio de Oliveira. Ao assumir o posto, disse que a relação com o Planalto seria “serena e sóbria, mas altiva”. “É possível ser presidente da Câmara, filiado ao partido do presidente e dar dignidade a esta Casa”.

Efraim de A. Morais (PB) PFL (atual DEM) 
2002-2003

Assumiu o posto após Aécio Neves, eleito governador de Minas Gerais, renunciar.

João Paulo Cunha (SP) PT 
2003-2005

Candidato único, foi eleito com 434 votos. Liderou propostas de reforma lançadas por Lula.

João Severino Cavalcanti (PE) PPB (atual PP) 
2005

O “rei do baixo clero”, como ficou conhecido em 2005, aproveitou-se de um racha na base do PT e venceu a disputa contra o candidato oficial do governo Lula, Luiz Eduardo Greenhalgh. Passou apenas sete meses no cargo. Nesse período, barrou pedidos de abertura de impeachment contra Lula.

Aldo Rebelo (SP) PC do B
2005-2007

Antes de ser eleito, foi ministro de Lula. Identificado com os petistas, teve apoio do Planalto na corrida para o cargo

Arlindo Chinaglia (SP) PT 
2007-2009

A eleição, vencida no segundo turno contra Rebelo, gerou um racha na base aliada do governo Lula. O bloco de apoio de Chinaglia, que contava com partido como MDB e PP, foi alvo de críticas por aliados do presidente.

Michel Temer (SP) MDB 
2009-2010

A terceira passagem de Temer pela presidência da Câmara gerou preocupação do Planalto logo na eleição. O emedebista venceu Rebelo e Ciro Nogueira (PP-PI), de partidos aliados do governo. Na época, José Múcio Monteiro, ministro de Relações Institucionais, admitiu que a disputa deixaria sequelas na base governista.

Marco Maia (RS) PT
2010-2012

O petista foi eleito com 375 votos, contra 106 de Sandro Mabel (PR-GO, hoje PL), 16 de Chico Alencar (PSOL-RJ) e apenas 9 do então deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). A eleição fez parte de um acordo costurado com o MDB. Maia foi escolhido o candidato oficial do Planalto, e sua vitória significou, portanto, uma vitória do governo.

Henrique Eduardo Alves (RN) MDB 
2013-2014

O emedebista foi eleito amparado em um acordo entre PT e MDB que havia sido fechado seis anos antes. As siglas haviam acertado os termos de um rodízio no comando nos anos seguintes —embrião da indicação de Temer para a vice de Dilma. O pacto surgiu em meio ao racha da base de Lula na eleição para a presidência da Câmara em 2007. Mesmo assim, Eduardo Alves foi eleito com um discurso incômodo ao Planalto.

Eduardo Cunha (RJ) MDB
2015-2016

A vitória em primeiro turno do emedebista marcou uma derrota histórica para o governo Dilma. Considerado um aliado pouco confiável, já que liderou rebelião no Legislativo contra Dilma em 2014, Cunha, cassado e hoje em prisão domiciliar, bateu o petista Arlindo Chinaglia (SP), nome bancado pelo Planalto, por 267 votos contra 136. A previsão se concretizou, e ele rompeu oficialmente com o governo, levando a votação diversos projetos que criaram gastos extras, agravando a crise econômica enfrentada pelo país. No fim de 2015, em retaliação ao PT e ao Planalto, que não asseguraram votos para enterrar seu processo de cassação, o deputado acatou pedido de impeachment contra Dilma, que cairia depois de oito meses.

Rodrigo Maia (RJ) DEM 
2016-2021

Reeleito em 2019, o demista era um dos principais defensores da agenda econômica do governo. Maia assumiu o protagonismo de costurar acordos para aprovar a reforma da Previdência. Em julho de 2019, pouco antes de anunciar o resultado da votação da medida em plenário, aprovada com placar elástico, fez uma crítica velada a Bolsonaro, dizendo que os problemas do país seriam resolvidos a partir do Congresso. No ano passado, o deputado foi um dos grande críticos da condução da crise pelo governo federal. No começo deste ano, subiu o tom, chamando o presidente de covarde e irresponsável. Maia disse ainda que a discussão sobre o impeachment será “inevitável” no futuro.


SENADO



José Fragelli (MS) MDB 
1985-1987

Participou das articulações em torno da candidatura de Tancredo Neves, em 1983. Dois anos depois, deu posse ao então vice, José Sarney, diante do quadro de saúde de Tancredo.

Humberto Lucena (PB) MDB 
1987-1989

Durante a elaboração da Constituição, apresentou emenda que mantinha o presidencialismo. Era a favor de dar prioridade à Constituinte, mas também defendeu que o Congresso seguisse votando legislação ordinária.

Nelson Carneiro (RJ) MDB 
1989-1991

Presidiu a sessão do Congresso que empossou Fernando Collor.

Mauro Benevides (CE) MDB 
1991-1993

Presidiu a Casa na época de instalação da CPI voltada a apurar denúncias contra Paulo César Farias, tesoureiro da campanha de Collor. Rebateu crítica do presidente, que havia classificado a oposição a seu governo como “sindicato do golpe”. Votou a favor do afastamento do chefe do Executivo.

Humberto Lucena (PB) MDB 
1993-1995

Em seu segundo mandato, travou disputa com a Câmara pela direção dos trabalhos de revisão da Constituição. Na época, em entrevista à Folha, disse que “não [ficava] bem para a opinião pública uma disputa dessa natureza (...), porque [dava] a impressão de um conflito de natureza institucional”. As duas Casas acabaram chegando a um acordo, e a presidência da comissão ficou com o Senado.

José Sarney (MA) MDB 
1995-1997

A segunda passagem de Sarney no comando da Casa foi marcada por atritos com o Executivo, principalmente em torno de medidas provisórias. Para o grupo do senador, o governo FHC vinha abusando do instrumento e desacelerou a tramitação dessas iniciativas.

Antônio Carlos Magalhães (BA) PFL (atual DEM) 
1997-1999/1999-2001

Ao tomar posse, declarou que iria cooperar o máximo com o governo, “mas isso não significa que o Executivo vai fazer o que quiser aqui dentro”. Sua promessa era acelerar as reformas constitucionais, incluindo a emenda que permitiria a reeleição —a medida acabou passando. Também levou a votação medidas de ajuste econômico que interessavam ao governo. Na sua gestão, os senadores aprovaram a lei que criou o contrato temporário de trabalho, por exemplo. Mas também usou o poder de pautar projetos para retardar a votação de medidas provisórias e acelerar a derrubada de vetos do Planalto.

Jader Barbalho (PA) MDB 
2001-2001

O maior atrito do emedebista durante seu mandato foi com outro senador, Antônio Carlos Magalhães. ACM se recusou a cumprimentar Barbalho na transmissão do cargo. Os desentendimentos começaram ainda em 1999, na gestão do parlamentar baiano. Na época, a discussão girava em torno da criação de CPIs. ACM era a favor de criar uma para investigar o Judiciário. Já Barbalho era a favor da instalação de uma comissão com foco nos bancos.

Edison Lobão (MA) PFL (atual DEM) 
2001-2001

Assumiu o cargo interinamente após Barbalho, alvo de acusações de corrupção, se licenciar.

Ramez Tebet (MS) MDB 
2001-2003

Então ministro da Integração Nacional, teve sua candidatura patrocinada pelo Planalto. A vitória na disputa ocorreu na esteira do conflito entre MDB e PFL, alimentada pela troca de acusações entre ACM e Barbalho.

José Sarney (MA) MDB 
2003-2005

Atuou para inviabilizar duas CPIs incômodas ao governo. Uma delas visava investigar denúncias de lavagem de dinheiro por meio de bingos e caça-níqueis. A outra tinha como objetivo apurar as supostas relações entre o assassinato do petista Celso Daniel, prefeito de Santo André (SP) na época, e um esquema de corrupção na administração local.

Renan Calheiros (AL) MDB
2005-2007/2007-2007

Eleito com apoio de Lula, atuou em consonância com o Executivo. Ainda assim, disse ser “presidente do Congresso, não líder do governo”. Na época da instalação das CPIs dos bingos, dos Correios e do mensalão, defendeu que, “se houver algum culpado, que seja punido”. Em 2005, atuou junto à bancada do MDB para conquistar votos para Aldo Rebelo, candidato de Lula para o comando da Câmara. Em 2006, articulou o apoio de seu partido à campanha de reeleição de Lula. Em seu segundo mandato à frente do Senado, foi alvo de diversas denúncias, incluindo o pagamento de despesas pessoais por um lobista ligado à construtora Mendes Júnior. Acabou renunciando ao posto.

Tião Vianna (AC) PT
2007-2007

Ocupou o posto interinamente após a saída de Calheiros.

Garibaldi Alves Filho (RN) MDB
2007-2009

Candidato único, foi eleito com 68 votos. Durante seu período à frente da Casa, criticou o “número excessivo” de medidas provisórias encaminhadas pelo Executivo, que tirariam o tempo dos senadores para discutir outros projetos. Mais tarde, foi nomeado por Dilma para o Ministério da Previdência Social.

José Sarney (MA) MDB
2009-2011/2011-2013

O emedebista enfrentou diversas acusações durante seu terceiro mandato. Uma delas envolvia a nomeação, por ato secreto, de um de seus netos para o cargo de secretário parlamentar de um senador. Lula saiu em defesa do emedebista, dizendo que Sarney não poderia ser tratado “como se fosse uma pessoa comum”. Reeleito para a posição, fortaleceu seu posto de aliado do governo.

Renan Calheiros (AL) MDB
2013-2015/2015-2017

Eleito com apoio do Planalto, pediu “serenidade” na época em que o então presidente Michel Termer foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção passiva no caso JBS. Defendeu, na mesma época, uma pauta própria para o Congresso.

Davi Alcolumbre (AP) DEM
2019-2021

A eleição do demista foi uma vitória para o governo. A candidatura de Alcolumbre foi bancada pelo então ministro da Casa Civil, Onys Lorenzoni (DEM). Entre os senadores, é visto tanto como “pacificador” quanto como “office boy de luxo” de Bolsonaro. Conseguiu o apoio do presidente para o seu candidato à sucessão no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).


Folha de S. Paulo: Alcolumbre divide opiniões ao deixar comando do Senado

Senador deixa o posto após dois anos visto como habilidoso ao construir pontes com oposição e situação

Renato Machado, Folha de S. Paulo

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), encerra nesta semana seu período de comando da Casa, quando passou de um parlamentar relativamente desconhecido a um político poderoso, que se mostrou bom articulador e ganhou respeito de governo e oposição.

Por outro lado, é criticado por não encarnar a "renovação" que sua candidatura instigou, há dois anos. E também teve uma posição em relação ao Palácio do Planalto que dividiu opiniões: para alguns se mostrou um "pacificador", enquanto senadores mais críticos preferem expressões como "office boy de luxo" de Jair Bolsonaro (sem partido).

Alcolumbre foi eleito em fevereiro de 2019, revertendo o favoritismo de Renan Calheiros (MDB-AL), que queria se tornar presidente pela quinta vez. A eleição para a presidência do Senado tornou-se então um embate entre a nova e a velha política.

Os dois anos da presidência de Alcolumbre coincidem com o início da gestão Bolsonaro, período de turbulência institucional e da pandemia do novo coronavírus.

Enquanto o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se tornou um crítico frequente do presidente, Alcolumbre foi mais reservado.

As poucas manifestações que bateram de frente com o Planalto se deram no início da pandemia, quando considerou "grave" o pronunciamento de Bolsonaro em que atacou as medidas de isolamento social. Também divulgou nota afirmando ser "inconsequente" promover aglomerações, após a participação do presidente em manifestação.

"Se ele fosse ficar com um balde de gasolina, iria acabar incendiando tudo. Então ele foi um pacificador", afirmou Otto Alencar (PSD-BA), líder da bancada no Senado.

Crítico mais feroz do presidente da Casa, o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), por sua vez, disse que a posição de Alcolumbre frente ao Palácio do Planalto foi de submissão, comprometendo a independência do Senado.

"Ele [Alcolumbre] foi aceitando tudo. A relação dele com o presidente era só falar 'sim', era um office boy de luxo", afirmou Kajuru.

Alcolumbre defende sua atuação, afirmando que respeita as críticas, embora ressalte que trabalhou com "altivez, respeito, independência e equilíbrio entre os Poderes da República", segundo nota de sua assessoria de imprensa.

Se a relação com o Planalto divide opiniões, Alcolumbre conseguiu construir reputação dentro do Senado, construindo alianças com situação e oposição.

Prova disso é a articulação para a candidatura de seu apadrinhado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que reuniu no mesmo bloco dez bancadas, colocando no mesmo lado o presidente Bolsonaro e o PT.

Senadores próximos ressaltam sua habilidade política para "construir pontes".

"O presidente atendeu pautas de interesse do governo e da oposição. Para nós, foi positiva a possibilidade de ter pautas de interesse dos trabalhadores", afirmou o líder do PT, senador Rogério Carvalho (PT-SE), apontado como próximo a Alcolumbre.

Carvalho citou como exemplos as medidas provisórias que tramitaram durante a pandemia, como a que resultou na redução da jornada de trabalho e cancelamento de contratos, para evitar demissões.

Outros senadores, por outro lado, afirmam que a popularidade de Alcoumbre se deve ao aumento de privilégios.

"Ele conseguiu aumentar ainda mais os privilégios dessa capitania, aumentou os gastos, as contratações", afirmou Kajuru.

Lasier Martins (Podemos-RS) também citou a distribuição de emendas de relator, usada para ampliar o seu leque de alianças e rachar algumas bancadas oposicionistas. O parlamentar destacou emendas obtidas para estados e municípios, que não foram divididas com todos os senadores.

"Houve uma seleção discriminatória. E dessa forma ele estava pavimentando o caminho para a sua recondução, se não fosse o STF [Supremo Tribunal Federal]", afirmou.

O senador se referiu à decisão do Supremo, em dezembro, que barrou a reeleição dos presidentes das Casas Legislativas em uma mesma legislatura. Alcolumbre considerava como certa a possibilidade de disputar a reeleição.

Lasier Martins é integrante do grupo Muda Senado, que se mostrou fundamental para a eleição do senador amapaense, mas depois afirmou ter sido traído.

O grupo defende pautas anticorrupção, como a condenação em segunda instância, a instauração de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) e a abertura de processo de impeachment contra ministros do STF.

O grupo afirmou que perdeu espaço no diálogo com a presidência do Senado, vendo sua pauta ser preterida. Alcolumbre também não abriu nenhuma CPI e, no último mês de sua gestão, arquivou 38 petições para impeachment de autoridades do Judiciário, a maior parte delas de ministros do STF.

Em outra crítica, o presidente é acusado de blindar Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), no caso das "rachadinhas". O Conselho de Ética não abriu processo contra o filho 01 de Bolsonaro, assim como não o fez contra Chico Rodrigues (DEM-RR), então vice-líder do governo no Senado, flagrado com dinheiro em sua cueca.

Alcolumbre, por outro lado, é exaltado por dar procedimento aos trabalhos legislativos durante a pandemia do novo coronavírus, adotando o sistema remoto de sessões.

Os aliados lembram a aprovação rápida de medidas de enfrentamento à pandemia ou para estimular a economia, como o orçamento de guerra, auxílio emergencial aos trabalhadores informais e a liberação de recursos para vacinas contra a Covid-19.

Por outro lado, não houve o funcionamento das comissões e portanto Alcolumbre ganhou "superpoderes", levando matérias direto para a votação em plenário, escolhendo os relatores de sua preferência.

De saída da presidência do Senado, Alcolumbre vinha afirmando que queria ser vice-presidente da Casa, mas as articulações para atrair o MDB envolvem esse posto.

Se continuar na Casa, deve ficar então com a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Outra possibilidade é se tornar ministro do governo, no Desenvolvimento Regional ou na Secretaria de Governo.


Paulo Gontijo: Vacinação pode ser pontapé para conter ataques à liberdade

Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo, voltar a tomar as ruas

O início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa espécie anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação. Infelizmente, no Brasil, nós nos deparamos hoje é com o gigantismo da estupidez guiando a desordem e provocando instabilidades.

Não há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um governo para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê eleitoral. No lugar de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em churrascarias e cenas grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é alto e permanecerá sendo pago em largas prestações.

Após meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros.

Há, porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à vacinação. Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais incompetentes e a pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de implantação de um sistema de gestão do programa de imunização. E assim seguimos patinando, com consequências graves para a vida de todos os brasileiros e também para a economia.

As piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado, políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do caos político do governo Bolsonaro.

Criar uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais pobres e vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais como Thomas Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman. Indiscutível do ponto de vista social, essa necessidade ilumina um problema crônico e estrutural do Estado brasileiro: apesar de consumir 40% da riqueza nacional todos os anos com um orçamento trilionário, nosso poder público, engessado em despesas obrigatórias, não foi capaz de construir uma proteção minimamente robusta para os mais vulneráveis. Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações políticas.

Neste momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no presente, sem lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a covid-19 não pode perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da economia e do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tivermos a capacidade de implementar políticas públicas que sejam fruto da urgência, mas não se contaminem pelo desespero. Não apenas é possível, como necessário, aliar sensibilidade social à responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a eficiência do Estado brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social – elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em busca de mais efetividade.

Em direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento de prazos das medidas provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a injustificável menção a decreto de estado de defesa pelo procurador-geral da República e a ameaça aberta de insurreição antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na invasão dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso assegurar que não vamos retroceder.

O alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do que nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil pública para convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que ele reiteradamente alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em 2018. Não há espaço para omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é pilar da legitimidade da democracia liberal. Utilizar o prestígio da Presidência da República para minar as bases da democracia é um atentado à Constituição. Em meio a uma pandemia, faltam até palavras para classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos, o prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de defendê-la.

*Analista político, especialista pela universidade de Georgetown (Washington, D.C), é Diretor Executivo do Movimento Liberal Livres.


O Globo: 'O governo não vai aprovar tudo o que quiser’, diz o sociólogo Carlos Melo

Para professor do Insper, efeito da pandemia na popularidade de Jair Bolsonaro testará fidelidade dos deputados do centrão ao Palácio do Planalto

Eduardo Salgado / O Globo

SÃO PAULO — Para o professor sênior de Sociologia e Política do Insper Carlos Melo, a possível vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL) na disputa pela presidência da Câmara deve sacramentar uma aliança cujo principal objetivo é a “blindagem para evitar um eventual processo de impeachment”. Leia a entrevista com o sociólogo:

Qual é o tamanho do favoritismo de Arthur Lira, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, em relação a Baleia Rossi (MDB-SP), do grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ)?

As promessas do governo de liberação de recursos e reforma ministerial indicam uma vitória de Lira. Mas é claro que existem movimentações de última hora. Como é uma votação secreta, pode haver traições.

Na campanha de 2018, Bolsonaro prometia não fazer o que ele chamava de “velha política”. O apoio do presidente a Arthur Lira, expoente do centrão, configura uma quebra de promessa de campanha?

Certamente. Bolsonaro está mordendo a língua. É um estelionato eleitoral. O apoio mostra a inconsistência daquele discurso demagógico. E, em virtude disso, a aliança com o centrão aumenta o desalento em relação aos políticos e ao sistema político. O fisiologismo, desprovido de programa, não tem freio. Quando ouço promessas de acesso a recursos e ministérios, pergunto: a troco de quê? Em troca de blindagem para evitar um eventual processo de impeachment e para proteger os filhos. No máximo, um projeto de poder exclusivamente eleitoral. Não se discute como superar essa crise econômica, social, política e sanitária.

A agenda do governo, inclusive a ideológica, ganha fôlego no caso da vitória de Lira?

O governo não vai aprovar tudo o que quiser. Quando a prática é fisiológica, cada nova votação exige nova negociação e concessão de recursos. Não há fidelidade. Há interesses cruzados. O centrão não devota essa fidelidade a ninguém. Cada parlamentar do centrão é fiel a si mesmo. O desgaste popular do presidente e do sistema tende a continuar. O ex-presidente Tancredo Neves tinha uma frase ótima: “O político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga”.

Como essa união entre o governo e o grupo que apoia Lira deve impactar a base de apoio do presidente?

Vamos considerar que o apoio a Bolsonaro seja de um terço do eleitorado. Dentro desse grupo, há uma parcela de extrema direita, que sempre existiu no Brasil. Algo em torno de 15% do eleitorado, talvez. Esse grupo Bolsonaro não perde. Outro setor que ainda está com o presidente são os ultraliberais, que se frustram e se descolam à medida que as respostas para a economia não vêm. Há também um grupo que apoia o presidente por causa do auxílio emergencial, cuja tendência natural é diminuir. Por fim, há os antipetistas. A corrosão do apoio pode, sim, chegar num ponto em que acabe a blindagem popular. Isso aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff.

Quais serão os fatores de definirão a longevidade do casamento entre o governo e o centrão?

Enquanto houver uma expectativa de um projeto de poder, o centrão estará com o presidente. O objetivo é ter acesso continuado a recursos públicos. A meta é a reeleição de Bolsonaro e de cada parlamentar do grupo. A eventual eleição de Lira sela o abraço institucional de Bolsonaro no centrão. Agora, se a popularidade do presidente cair e a possibilidade de poder se dissipar, o centrão vai abandonar o navio. Se o país quiser sair dessa crise, vai precisar de uma agenda que exige três quintos dos parlamentares nas duas casas do Congresso, além do apoio da sociedade. Essa maioria é necessária para fazer reformas, criar impostos e reeditar o auxílio emergencial, o que me parece inevitável. Conseguir 257 deputados para eleger o Lira é uma coisa. Chegar a 308 votos na Câmara e 49 no Senado para mudar a Constituição é completamente diferente.

O senhor acredita no apoio voluntário dessa base que sustenta a candidatura de Arthur Lira às reformas?

O que interessa para eles é a dependência de Bolsonaro. Temos um presidente corporativista e sem habilidade política, que amaldiçoa a política, com uma base que demoniza o centrão. Se, lá na frente, Bolsonaro recuperar o apoio popular e plenas condições de governabilidade, quem garante que ele não abandonará seus novos amigos?

Em que medida o sucesso no enfrentamento da pandemia afeta a relação entre o presidente o Congresso?

A pandemia está sem controle. A chance de estancá-la a médio prazo é pequena. O desemprego e o desalento estão elevados e, com o fim do auxílio emergencial, devem aumentar. A pressão por medidas imediatas será muito forte. Já no Congresso, o processo de negociação do fisiologismo é lento porque os recursos são escassos. Uma das possibilidades é que o presidente venha a ter novos abalos na popularidade. Quando o apoio popular cai, a governabilidade mingua. Um influencia o outro. Quanto menos apoio popular Bolsonaro tiver, maior o poder de barganha do centrão. Isso se mantém até que exista oxigênio para combustão. Se acabar o oxigênio, é possível que um processo de impeachment seja votado ou que o Centrão decida não entrar no barco da reeleição de Bolsonaro.

E se Baleia reverter as previsões e ganhar a disputa na Câmara?

Com o Baleia, há um elevado grau de fisiologismo também, mas não da mesma ordem do de Lira. Não tenho ilusão. Baleia não é um estadista. Também não creio que iria facilmente para o impeachment. Mas é verdade que Maia construiu uma agenda, e Baleia poderia ser sua continuidade. Uma agenda de defesa da autonomia do Congresso e da permanência de um núcleo reformista. Maia surpreendeu no período em que esteve no comando da Câmara, salvando Bolsonaro do desastre que o próprio presidente construía. A reforma da Previdência era necessária e foi feita por Maia, a despeito de Bolsonaro. O auxílio emergencial também saiu do Congresso. Com Baleia, a agenda de costumes do presidente não teria chance e haveria algum ambiente para reformas.


Fernando Gabeira: A política que mata

Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.

Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse elemento vital.

Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavírus.

Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.

A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.

Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade. Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que estava a caminho.

No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.

Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.

Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.

Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à entrada de brasileiros.

Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que não acontece de um momento para outro.

Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica no norte do país. Na verdade, nem se toca no assunto, como se o vírus mutante fosse brasileiro e já tivesse o direito de circular livremente pelo nosso território.

Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta de recursos.

O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita a tiradas verbais. Ele tem uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de vírus?

Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde demais.

Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda do que o enviado ao Tribunal Internacional.

Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.E ele é apenas o homem que obedece.