bruno covas
Bernardo Mello Franco: Vinte anos depois, Bruno Covas repete drama do avô
Duas décadas depois, Bruno Covas repete o drama do avô. Mario Covas descobriu um câncer no auge da carreira política. Havia acabado de se reeleger governador de São Paulo. Ele rompeu uma tradição da política brasileira e manteve os cidadãos informados sobre a evolução da doença. Morreu em 2001, aos 70 anos.
O prefeito Bruno também escolheu enfrentar a tragédia pessoal com transparência. Além de explicar cada etapa do tratamento, usou as redes sociais para divulgar boletins médicos e mensagens de otimismo. Na quinta-feira, ele publicou a última foto no hospital. Morreu neste domingo, aos 41 anos.
O câncer de Bruno Covas interrompe uma carreira política promissora. Em 2016, ele se elegeu vice-prefeito na chapa de João Doria. Quando Doria renunciou para concorrer ao governo paulista, tornou-se o prefeito mais jovem da história da cidade.
Covas não herdou o carisma do avô, mas honrou sua trajetória de combate ao autoritarismo. Em 2018, foi um dos poucos líderes tucanos a negar apoio a Jair Bolsonaro no segundo turno da eleição presidencial. Depois ofereceu ajuda para encenar peças de teatro boicotadas pelo governo federal.
Num ambiente político marcado pela radicalização, o prefeito se destacava pela moderação e pelo equilíbrio. Ele também representava uma face mais progressista do PSDB, partido que caminhou para a direita desde o fim do governo FH.
Em 2020, Covas se reelegeu ao vencer uma disputa civilizada com Guilherme Boulos. Chegou a se desculpar publicamente quando um aliado fez ataques pessoais ao candidato do PSOL. Um dos pontos fracos de sua campanha foi a escolha do vice Ricardo Nunes, num arranjo para garantir o apoio do MDB. Agora o ex-vereador assume o comando da maior cidade do país.
Fonte:
O Globo
Míriam Leitão: A perda prematura do prefeito nascido em berço da boa política
Neste tempo das dores sem fim, o jovem político Bruno Covas perde a luta para o câncer. Das cenas do começo da pandemia, que ficarão na memória, uma delas é a do prefeito de São Paulo morando na prefeitura para trabalhar e, ao mesmo tempo, respeitar o confinamento. A imagem da cama colocada abaixo do quadro do Pátio do Colégio, lugar onde a cidade começou, era forte demais. Simbolizava a união entre a capital e seu prefeito.
Neste tempo em que o país precisa tanto de políticos dedicados à causa pública, o que São Paulo e o Brasil viram foi uma dessas pessoas em combate pela saúde da cidade enquanto travava a sua própria luta. Bruno Covas nasceu em berço da boa política e governou a mesma cidade que seu avô, Mário, governou. E com igual senso de dever. Foi abatido pela mesma doença.
Durante a campanha eleitoral, neste tempo dos conflitos extremados e polarizados, São Paulo viu alguns debates entre Bruno Covas e o candidato Guilherme Boulos, em que as divergências eram colocadas com elegância e respeito. Parecia lembrar ao Brasil o que o Brasil pode ser. É inevitável pensar, neste momento, no futuro que ainda aguardaria o jovem político que administrava a maior cidade do país.
Fonte:
O Globo
Vera Magalhães: Maior marca de Covas foi política, não administrativa
Confirmada a notícia trágica da morte do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, aos 41 anos recém-completados, fui questionada pelo jornalista Fernando Andrade, na CBN, a respeito da marca que o tucano deixou em sua gestão à frente da cidade.
Não é possível falar em uma marca distintiva do ponto de vista administrativo. Covas herdou a cadeira de João Doria menos de dois anos depois de ser eleito seu vice em uma inédita conquista em primeiro turno, em 2016.
Tinha então 36 anos, uma breve experiência no Executivo, como secretário estadual de Meio Ambiente de Geraldo Alckmin, mas uma longa trajetória partidária, além de uma vivência dos bastidores da política que vinha literalmente de berço, do convívio com o avô e ídolo Mário Covas, com quem chegou a morar no Palácio dos Bandeirantes.
O estilo jovial, o gosto não disfarçado por viagens e baladas, uma então recém-adquirida disposição para perder peso, mudar a alimentação e investir na saúde e na forma física levavam a que seus adversários, e mesmo alguns aliados, apontassem nele a inapetência pelo dia a dia da administração, que exige longas horas dedicadas a questões burocráticas e que numa cidade como São Paulo, que de fato não para, significa uma rotina exaustiva de trabalho.
Essa crítica, aliada à dúvida a respeito de se ele conseguiria imprimir a própria marca à gestão herdada de Doria, consumiu os primeiros meses de sua gestão, nos quais Covas se eximiu de fazer grandes mudanças, até para não atrapalhar uma já complicada eleição do correligionário ao governo do Estado.
Foi só a partir de 2019 que ele se sentiu livre para fazer as mudanças que entendia necessárias e que visavam também contemplar aliados políticos. Algumas, como a nomeação de Ale Youssef para a Cultura, levaram a que se indispusesse com o próprio Doria. Mas a dúvida quanto à vocação para a gestão permanecia.
No dia 11 de outubro de 2019, Covas me convidou para almoçar com ele e alguns secretários, em seu gabinete na prefeitura. Fiz a pergunta sobre isso diretamente a ele, e questionei justamente se essa característica seria uma ameaça à sua reeleição.
Não vou saber reproduzir as palavras exatas, mas me lembro do que ele disse: que vivia a política desde criança, estava no PSDB desde adolescente, tinha sido deputado, secretário, vice-prefeito. Como era possível que duvidassem de sua aptidão e de seu apetite pela vida pública. Faltava um ano para a eleição: a partir dali suas entregas começariam a aparecer e ele seria reeleito.
Bolsonaro já era presidente. O PT vinha do desgaste da prisão de Lula e do impeachment. Ele imaginava que seu aceno à esquerda na composição do secretariado e uma plataforma de centro que não estigmatizasse os adversários venceria a eleição.
No dia 29 daquele mesmo mês ele descobriu que tinha um câncer na cárdia, com metástase. Foi essa diferença de dias que fez com que a conversa permaecesse tão nítida na minha memória.
Cheguei a imaginar que o diagnóstico o levaria a desistir da candidatura. De fato, houve uma movimentação dos partidos para sondar a possibilidade de lançar outro nome. Mas, assim como foi firme ao encarar penosas sessões de quimioterapia sem se afastar da prefeitura (dissipando ali as críticas pela pouca afeição ao trabalho na prefeitura), Covas bateu o pé de que seria candidato para submeter seu trabalho ao escrutínio do eleitor.
Não foi a única circunstância adversa que enfrentou. Veio a pandemia. Ele teve covid-19 em meio ao tratamento. Mas levou a candidatura adiante, com transparência, conciliando uma campanha atípica com a quimioterapia. Tive a oportunidade de entrevistá-lo quatro vezes ao longo da campanha de 2020, além de questioná-lo em dois debates.
Em todas as vezes perguntei se sua situação de saúde não seria um entrave a novo mandato de quatro anos. Era uma dúvida mais que legítima, que a cidade merecia ver esclarecida. Ele em todas as vezes repetia que não estava curado, mas se sentia bem e confiava na cura.
E ao longo de um ano entre nossa conversa e sua reeleição construiu outro legado, que não foi de natureza administrativa — respondi ao Fernando Andrade e repito aqui que sua gestão não deixou grandes marcas de Educação, Saúde, urbanismo ou mobilidade urbana –, mas político.
Primeiro, ao conduzir a cidade durante a pandemia (mesmo vivendo um drama pessoal paralelo) segundo preceitos científicos, assumindo inclusive o potencial desgaste de adotar medidas impopulares num ano eleitoral.
E, depois, e não menos importante, ao se portar de forma republicana diante dos adversários, mesmo tendo a máquina e a maior estrutura financeira entre os postulantes. O Brasil vinha de duas campanhas, a presidencial de 2014 e a presidencial e estadual de 2018, tóxicas, abjetas mesmo, em que a aposta na desinformação, na aniquilação dos adversários e na negação da política foram marcas.
Covas resgatou a importância dos partidos, não fez uma falsa estigmatização da esquerda, não procurou surfar a onda de direita que vinha de dois anos atrás e não se furtou a traçar uma linha divisória no chão, mostrando que o presidente representava a negação da política e um risco à democracia.
Principalmente no segundo turno, ele e também seu rival, Guilherme Boulos (PSOL), brindaram uma cidade abatida pelo vírus e pela crise econômica com o mínimo que se deveria esperar dos homens públicos: respeito, razoabilidade, diálogo, divergência republicana.
O fato de o eleitor ter referendado sua gestão ao reelegê-lo não se deveu a nenhuma obra, ou à melhora significativa em indicadores sociais e econômicos. Mas a uma gestão confiável da pandemia e à razoabilidade na política. A direita histérica bolsonarista, ex-bolsonarista ou protobolsonarista não foi nem ao segundo turno na maior cidade do Brasil dois anos depois de o capitão se eleger. Não foi pouca coisa. E aquela campanha, ainda tão fresca na memória de todos, projeta um caminho para 2022: o de que é possível uma candidatura de centro viável, desde que haja autenticidade.
Não só o sobrenome, o câncer, a risada por vezes sarcástica e as entradas acentuadas nas têmporas uniram a trajetória dos dois Covas, o avô e o neto, com a diferença de 20 anos entre a morte de um e de outro: também foi um traço de ambos a prática da política dos cavalheiros, o que não os eximia de ser grosseiros ou irritadiços às vezes, mas nunca autoritários.
Por tudo isso, a marca que Covas deixou para o debate público e para a História foi que o que existe de melhor na política não é nenhuma panaceia de “nova política” ou o culto a uma falsa “não-política”: é a prática da arte da política em sua plenitude, com as idiossincrasia, as contradições, as imperfeições e as limitações que ela tem numa democracia que muitas vezes vive de solavancos, mas não pode prescindir da negociação e do dissenso, sob pena de deixar de ser democracia.
Fonte:
O Globo
Splash: Alê Youssef diz que cultura segue sob ataque e projeta calendário de 2022
Guilherme Lucio da Rocha, Splash
O secretário municipal de Cultura de São Paulo, Alê Youssef, acredita que o setor "entrou em 2021 levando porrada e sofrendo ataques". Ele vê muita ideologização em relação à cultura por parte do governo federal, sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Acumulando duas passagens na pasta da maior cidade do país desde 2019, Youssef recebeu Splash com exclusividade em seu gabinete para conversar sobre suas ações e as dificuldades neste período de pandemia, em que o setor cultural foi o primeiro a sentir os impactos das medidas restritivas e deve ser o último a conseguir voltar à normalidade em 100%.
"Eu vejo 2021 como um período com os desafios que vêm desse processo pandêmico permanente, desse início de esperança [por conta da vacinação], mas de incerteza. A cultura foi a primeira a entrar e será a última a sair."
O secretário da gestão Bruno Covas (PSDB) já foi filiado ao PT e ao PV e mantém boas relações com diversas frentes políticas. Ele se diz preocupado com o "imbróglio ideológico" promovido pelo governo federal. A melhor maneira de explicar isso é citando o post do deputado preso Daniel Silveira e do Mário Frias [secretário de Cultura do governo Bolsonaro] falando sobre a estratégia para defenestrar a cultura e misturando-a com a esquerda. O vídeo em questão, postado por Silveira (PSL-RJ) em seu Instagram e já excluído, falava sobre um controle de verbas da pasta federal para "financiar projetos nefastos" desse "câncer chamado esquerda".
Contraponto
A maior cidade do país acabou se tornando uma espécie de contraponto às medidas do governo federal em relação à cultura. Um dos principais exemplos disso foi o festival "Verão Sem Censura", realizado no início de 2020 (época pré-pandemia). O evento reuniu peças teatrais, intervenções e shows musicais de artistas que sofreram com censura ou tiveram seus trabalhos rejeitados pela União. O secretário afirma que a atuação do governo federal é de "ataque", e que São Paulo deve ser uma voz de resistência.
Quando você tem pilhas de projetos da Ancine e da Lei Rouanet parados, é quase que uma censura prévia. Você desliga o motor que faz a engrenagem girar. Além disso, tem a exclusão das pessoas e personalidades da Fundação Palmares. Como alguém, por pura arbitrariedade, exclui pessoas tão emblemáticas, históricas, de uma hora para outra? A cultura é fundamental no processo antirracista.
Um dos pontos de possível diálogo entre governo federal e secretaria de Cultura de São Paulo é a Cinemateca. O local, que fica em São Paulo, mas é de responsabilidade do governo federal, não recebeu repasse de verbas em 2019 nem em 2020, colocando em risco parte de seu acervo histórico.
"Estamos tentando [um diálogo]. Precisamos achar uma solução. Para nós, além de ser uma responsabilidade em relação ao acervo nacional, tem a ver com um espaço emblemático da cidade."
Carnaval na pandemia
A trajetória de Alê Youssef está muito ligada ao bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, do qual o secretário é um dos fundadores. Por conta da pandemia, não houve comemoração oficial neste ano, e o prejuízo vai além da questão afetiva: em 2020, o Carnaval movimentou quase R$ 3 bilhões na cidade. A gente estava numa crescente e, em 2021, teria um número ainda maior do que em 2020. Óbvio também que existiram as festas clandestinas, mas acho que demos uma demonstração de maturidade. Os grandes protagonistas do Carnaval [blocos de rua e escolas de samba] respeitaram o momento.
Sobre o Carnaval de 2020, o Ministério Público de São Paulo ofereceu denúncia contra Youssef, a SPTuris e seu presidente, Osvaldo Arvate Junior, além de outros funcionários da administração pública e a Ambev. Segundo o MP-SP, o contrato firmado entre prefeitura e a empresa para o patrocínio da festa de rua foi "extremamente vago".
"Recebi a denúncia perplexo, mas fiquei também tranquilo quando li os argumentos. Estamos preparando a defesa. Tenho muita consciência dos ritos que tomamos, acho que faz parte do exercício da atividade pública esse tipo de questionamentos. E temos o dever de responder no tempo certo."
Periferia modernista
Tentando manter a cultura viva em 2021, com políticas de resgate e apoio aos profissionais da área, a esperança é que 2022, pós vacinação, seja histórico. O ano marca o centenário da Semana de Arte Moderna, que marcou a era modernista no Brasil e foi um marco para a cidade de São Paulo.
Youssef revela que o prefeito Bruno Covas deve anunciar detalhes das celebrações mais para a frente, mas já adianta que o grande destaque será a valorização da cultura periférica. "Nós encaramos o centenário de 2022 como um grande reencontro da cidade consigo mesma. E ele se dá a partir da percepção de que o novo modernismo é concentrado na cultura da periferia. Ela é a protagonista."
O discurso encontra reflexo em seu gabinete. Desde janeiro, a secretária-adjunta da pasta é a produtora cultural Ingrid Soares, articuladora que tem ligações com as periferias da cidade. "Precisamos ter um olhar estratégico de valorização da cultura periférica. É o olhar para a formação cultural, o quanto a cultura tem que estar próxima das nossas crianças".
Se o assunto é cultura periférica de São Paulo, é preciso falar de funk e dos bailes de rua, que arrastam multidões pelos extremos da cidade. As medidas relacionadas a esses eventos costumam estar mais ligadas à pasta de Segurança Pública. No entanto, Youssef destaca o programa Funk da Hora, que visa levar infraestrutura para a realização desses eventos de forma organizada, com o aval do Estado.
Em 2015, a gestão de Fernando Haddad tentou instituir um programa similar, o Funk SP. No entanto, a medida adotada pelo petista durou cerca de um ano e recebia criticas sobre o "engessamento" das festas. Youssef argumenta que o Funk da Hora é diferente do projeto da gestão anterior e busca manter diálogo com produtores e artistas locais.
"Nossa ideia era estruturar festas públicas nas comunidades, para fazer com que a juventude e os artistas locais pudessem estar presentes nos palcos. Realizamos alguns eventos antes da pandemia, entramos em 2020 com essa agenda, era algo que levaríamos durante todo ano. Tratamos o funk como uma das principais expressões culturais da cidade."
RPD || Especial: Bolsonaro quer destruir política nacional de saúde mental para favorecer evangélicos
Em São Paulo, João Doria e Bruno Covas seguem na mesma linha do governo federal, mostra a reportagem especial da Revista Política Democrática Online de janeiro
Cleomar Almeida
Uma multidão de dependentes químicos ocupa parte da Alameda Dino Bueno, no Centro de São Paulo, na região conhecida pelo intenso consumo e tráfico de crack. Alguns improvisam tendas para se protegerem de sol e chuva e não interromperem a fumaça que exala do cachimbo, mesmo com a cracolândia cercada por tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana e um número ínfimo de profissionais de saúde e assistência social.
A cena, que já é comum para quem vive na região, pode se espalhar para outras capitais diante do risco de retrocesso no socorro a dependentes químicos no país. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) planeja desmontar a Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda garante o mínimo desse tipo de atendimento a dependentes químicos e outras pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade social, agravada pela pandemia do coronavírus.
Sem se identificar, a equipe de reportagem da revista Política Democrática Online transitou pela cracolândia de São Paulo e constatou a ausência do Estado para garantir atendimento adequado e resposta efetiva ao problema. Por um lado, essa omissão faz aumentar a reclamação de moradores contrários à aglomeração de dependentes químicos na região, que, por outro lado, ficam ainda mais suscetíveis ao tráfico e imersos na onda de desassistência à saúde.
A última pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cracolândia mostrou que 50,3% dos frequentadores da região tinham algum nível de quadro psicótico, 48,4% já haviam praticado automutilação e 38,2%, tentado suicídio. Além disso, 63% da população local já havia contraído sífilis, a doença que mais se manifesta entre essas pessoas.
Compilados no Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), os dados da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp foram extraídos de entrevistas com 240 pessoas que afirmaram consumir crack na cracolândia. Divulgada no ano passado, a pesquisa sobre a região é a mais recente realizada por uma universidade e exemplifica a necessidade de fortalecimento do atendimento em saúde mental do SUS.
Em São Paulo, apesar de se apresentarem como oposição ao bolsonarismo, o governador João Dória e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, estão totalmente alinhados com Bolsonaro no plano de desmonte da política de saúde pública mental. Defensores da internação, eles agem para favorecer comunidades terapêuticas, alvo de denúncias em todo o país e mantidas em sua maioria por igrejas, como forma de devolver favores dos evangélicos em apoio às suas eleições.
Na capital paulista, desde 2017, quando Dória assumiu a prefeitura, intensificou-se um processo de enfraquecimento do atendimento a dependentes químicos. Ele substituiu o programa Braços Abertos, da administração de Fernando Haddad (PT), que oferecia trabalho, moradia e outras formas de acolhimento como estímulo para que cada dependente químico pudesse reduzir o uso de drogas. No lugar, instituiu o Redenção, focado na internação e ligado a clínicas religiosas, além de instalar laboratórios de militarização na região, para aumentar as operações policiais. Covas mantém essa linha.
“O que se vê é o esvaziamento de qualquer política na cracolândia. A principal política atual da gestão Dória e Covas é bater nas pessoas que estão ali”, afirma Daniel Mello, ativista da Craco Resiste, movimento que existe desde o final de 2016, logo após Dória ser eleito para a prefeitura com a promessa de que iria acabar com a cracolândia. “As pessoas usam drogas para suprir outras necessidades. Quando tinha oferta de abrigo e emprego, a grande maioria mantinha o uso, mas sob controle”, diz.
No mês passado, o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. Exposta em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), a medida pode atingir estratégias de cuidado das pessoas com problema psíquico baseadas nos direitos humanos e conquistadas com a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei Federal 10.2016 de 2001. O cuidado em rede pode ser desmontado para favorecer a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Na prática, a proposta tem o objetivo de rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é baseada na humanização do tratamento e formada por estratégias e equipamentos. Entre eles estão os centros de atenção psicossocial (Caps) nos tipos I, II, álcool e outras drogas, álcool e outras drogas 24h (III) e infantil; leitos de atenção Integral em saúde mental em hospital geral; unidade de acolhimento transitório; serviço residencial terapêutico; consultório na rua e iniciativas de geração de renda.
O plano do governo federal é cortar mais verba do SUS, que em 2019 teve perda de R$20 bilhões, pois pretende revogar portarias que instituem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos Caps. Os centros de atenção psicossocial fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.
No entanto, a proposta do Ministério da Saúde quer criar ambulatórios gerais de psiquiatria e unidades especializadas em emergências psiquiátricas. Pela atual Política de Saúde Mental do SUS, somente pessoas em situações mais graves são encaminhadas para internação, que deve ocorrer em hospitais gerais.
O risco de desmonte dessa política do SUS fez mais de 100 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil criarem, no mês passado, a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: por que querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia?”, questiona um trecho do manifesto.
Na avaliação das pesquisadoras Elizabeth Sousa Hernandes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (Neppos), e Waleska Batista Fernandes, tutora da residência multiprofissional em saúde mental do adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), o risco é iminente. Segundo elas, “o Brasil não pode permitir um retrocesso em termos de política de saúde mental”.
“É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com direitos humanos levantem a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos”, escrevem elas, em análise sobre o risco de desmonte.
Artista visual, ativista de movimentos sociais e morador da região da cracolândia, Paulo Fluxos disse que a situação dos dependentes químicos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade no local piorou ainda mais durante a crise sanitária global provocada pelo coronavírus. “Já passei aqui oito meses, escutando, acompanhando como essa população de rua enfrentou a pandemia. Completamente abandonada”, diz ele. “Única coisa que a Prefeitura e o Estado de São Paulo ofereceram foi a polícia”, acrescenta.
A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) já solicitaram ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta, com o objetivo de alterar políticas públicas destinadas ao tratamento em saúde mental e de dependentes químicos no país. Ele ainda não respondeu.
Procurados pela reportagem, o Ministério da Saúde, o governo de São Paulo e a prefeitura da cidade não se pronunciaram. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas também não retornou ao pedido de resposta.
Governo desconsidera alertas sobre violação de direitos em comunidades terapêuticas
Para favorecer comunidades terapêuticas, o governo brasileiro tem agido na contramão de alertas feitos por instituições nacionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF). Relatório de fiscalização chama atenção da sociedade para o risco de o país reviver o “holocausto brasileiro”.
Uma série de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas no país foi constatada em fiscalização dessas instituições e registradas no mais recente Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, divulgado em 2018. Entre os principais problemas identificados estão privação de liberdade, castigos, punições, indícios de tortura, trabalhos forçados e sem remuneração – conhecidos como laborterapia –, e violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.
Mesmo com os diversos alertas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, em julho de 2019, a lei das comunidades terapêuticas, retirando recursos da saúde para colocá-los na assistência social, área em que elas estão classificadas. No entanto, prometem tratamento e, muitas vezes, “cura” para dependentes químicos, sem receber qualquer fiscalização da vigilância em saúde.
O médico psiquiatra e artista Flávio Falcone, conhecido como o palhaço da cracolândia, critica a política proibicionista e punitivista em relação ao consumo de drogas, que, segundo ele, reforça a estratégia manicomial contra dependentes químicos. “As comunidades terapêuticas são os novos manicômios”, afirma.
Falcone, que já atuou em programas de atendimento e acolhimento a dependentes químicos em São Paulo, ressalta que, por lei, as comunidades terapêuticas são de assistência, mas, na prática, fazem tratamento. “É comum uma pessoa ter passado por 20 ou 25 internações em comunidades, mas continuam na cracolândia”, afirma.
Na avaliação do psiquiatra, o modelo de internação não tem êxito porque reforça o foco proibicionista e punitivista. “A oferta de tratamento é sempre na visão de abstinência e quem não a consegue é punido pela segurança pública, com repressão policial e violação de direitos humanos. Vejo isso acontecer cotidianamente na região”, lamenta.
De acordo com Falcone, a estratégia proibicionista e punitivista e o foco na abstinência também se sustentam na perversão do conceito de redução de danos, dizendo que é caminho para a abstinência, sendo que é um dos recursos disponíveis para tratamento das pessoas.
“A redução de danos é um conceito, não tem uma fórmula nem protocolo que vai dar certo para todas as pessoas. Precisa de projeto terapêutico singular entendendo que cada pessoa tem um processo”, explica o psiquiatra, ressaltando que esse conceito é uma das bases do tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que está em risco.
Michel Temer iniciou processo de desmonte contrário à luta antimanicomial
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ameaça emplacar um desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, em um esforço para cortar mais verbas da saúde e que começou antes de seu mandato, no governo Michel Temer (MDB). Pesquisadores analisaram os efeitos das primeiras mudanças que pretendiam vencer a luta antimanicomial no Brasil.
No trabalho intitulado Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, os pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado constataram que o governo Temer iniciou o processo de desmonte.
Eles analisaram 14 documentos – portarias, resoluções, nota técnica e decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que, afirmam, indicam “os primeiros efeitos das mudanças na rede de atenção psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas”. Essas ações, ressaltam, são fundamentadas em abordagem proibicionista de questões sobre o uso de álcool e outras drogas e, ainda, confirmam “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária”.
De 2003 a 2016, houve a implementação da Política Nacional de Saúde Mental, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional. Nesse período, houve destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e descredenciamento significativo de leitos e hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram à expansão dos serviços e ações.
Na última década, também houve significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.
Especialistas internacionais chegaram a reconhecer resultados práticos da política de saúde mental. Ela ficou conhecida, principalmente, por extinguir “depósitos de loucos e indesejáveis” e propor a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade. Elas recebiam os cuidados adequados nos três níveis de atenção do SUS (básica, média e alta complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.
Francisco Góes: É o ‘emprego, emprego, emprego’, diz Covas
Incerteza é sobre a capacidade dos municípios de sustentar suas receitas
No discurso da vitória, no domingo à noite, o prefeito reeleito de São Paulo, Bruno Covas, deu ênfase à prioridade que dará, no segundo mandato, ao combate ao desemprego: “Nós temos que fazer da nossa gestão mantra na busca de emprego, emprego, emprego e busca de oportunidades”, afirmou. O foco, avisou, tem que estar sobretudo nos jovens da periferia, que são os que mais sofrem com a crise. Ontem, no dia seguinte à eleição, o tucano reconheceu as limitações que todo prefeito tem no manejo de políticas macroeconômicas, mas prometeu mais ações de inclusão e investimentos na economia criativa para estimular startups, cultura, esporte lazer e turismo.
A taxa de desemprego precisa mesmo ser uma das preocupações dos prefeitos que assumem os cargos a partir de 1º de janeiro, afinal as pessoas moram nas cidades, e costumam atribuir aos gestores municipais parte dos problemas que vivem no dia a dia. No terceiro trimestre, a taxa de desemprego medida pelo IBGE ficou em 14,6%, a mais alta da série histórica desde 2012. Até setembro, o país tinha 14,1 milhões de desempregados. Só no Estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, a taxa de desemprego ficou em 15,1% no terceiro trimestre.
Como disse Covas ontem, os prefeitos não têm ferramentas para mudar taxa de câmbio, controlar a inflação ou emitir moeda. Assim, dependem, em boa medida, da retomada da economia para garantir mais investimentos e geração de emprego e renda. O problema é que na situação atual, com a pandemia dando sinais de piora, o cenário é de incertezas. É voo quase cego considerando o efeito que eventual novo fechamento do comércio, por exemplo, poderia ter sobre as receitas municipais. E também porque as indicações são de que não haverá novo apoio do governo federal a Estados e municípios. No Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, a ajuda a Estados e municípios chegou a R$ 60,1 bilhões, além do diferimento de dívidas com a União de R$ 65 bilhões. Tudo leva a crer que a ajuda não vai se repetir em 2021.
“O clima é de total incerteza, o que vai acontecer ninguém sabe, é loteria”, diz François Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais. Se houver lockdown e restrições nas cidades, os municípios terão queda na arrecadação própria, sobretudo no recolhimento de ISS, que, em 2019, representou 48% da receita tributária das capitais. Haverá ainda redução nos recursos recebidos via transferências feitas por Estados, no caso do ICMS, e pela União, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM), formado por receitas do IPI e do Imposto de Renda. Do total arrecadado, 22,5% ficam com os municípios. Na distribuição, aplica-se coeficiente que diz quanto cada um recebe.
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que de janeiro a novembro houve queda de 7,34% na arrecadação do FPM sobre igual período de 2019. Nota técnica da entidade reconhece que a proximidade do fim do ano deixa os gestores municipais preocupados com o fechamento das contas: “Nesse ano atípico com pandemia da covid-19, essa preocupação é mais pertinente.”
A CNM conduz pesquisa sobre as condições financeiras das prefeituras para pagar o 13º salário, e a tendência da enquete é que o resultado não seja ruim, diz Eduardo Stranz, consultor da CNM. A instituição também vai fazer trabalho para saber quanto os prefeitos vão deixar de caixa em 31 de dezembro. Stranz estima que a queda na arrecadação do FPM, no acumulado do ano, deva ser de 5%. A recuperação deve ser puxada pelas vendas de Natal.
Ele diz que o fim do auxílio federal a Estados e municípios impõe, a partir de janeiro, desafio de emprego e renda aos prefeitos. “O município terá que ser um dos indutores da retomada. Esse será o desafio, junto com um quadro de queda da arrecadação, de pandemia e de fim de auxílio federal”, diz o consultor da CNM.
Stranz afirma que o poder municipal é ator importante na economia uma vez que costuma ser também o maior comprador. Na crise, o gestor municipal pode direcionar compras para a própria comunidade encomendando uniformes escolares, por exemplo, a fornecedores locais. Pode ainda fazer uma boa organização do território, com licitações para uso de locais por micro e pequenos empreendedores. O dono da carrocinha de cachorro-quente se cadastra na prefeitura, ganha alvará e pode se instalar na frente do estádio ou do fórum. O prefeito tem a opção de criar um fundo de aval, mesmo que pequeno, para que esse empreendedor compre os equipamentos para o negócio. São soluções simples que o poder público pode tomar para fomentar negócios no município. O economista Mauro Osório, especialista em temas regionais, acrescenta que uma forma de melhorar a gestão municipal é integrar o trabalho das secretarias. “É integrar as políticas sociais, de saúde e educação, ter um olhar interdisciplinar”, diz.
Parte das soluções para os municípios depende, porém, de medidas macroeconômicas que podem ser implementadas a partir das reformas tributária e administrativa. Jonathas Goulart, economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), entende que é preciso inserir os municípios e o ISS na reforma tributária e também aproveitar a oportunidade para rediscutir a distribuição do FPM “Hoje há má distribuição dos recursos do fundo”, diz. Ele prevê que em 2021 os pequenos municípios, cujos orçamentos dependem mais das transferências da União e de Estados, podem sofrer impacto menor com a crise. Mas os municípios maiores, que dependem mais da arrecadação de ISS, tendem a ficar em situação mais complicada.
Matheus Rosa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a preocupação para 2021 é a dependência dos municípios do ISS. É imposto ligado à prestação de serviços, segmento cuja recuperação é mais lenta do que a indústria e o varejo. Os serviços também são mais suscetíveis a restrições provocadas pela pandemia. “A grande incerteza é saber se municípios vão sustentar a arrecadação em 2021 e se isso será em nova onda de covid. “Um novo apoio federal [a Estados e municípios] não parece provável dada a preocupação do governo com teto de gastos”, diz Rosa. Ele fez estudo que avaliou a arrecadação de 26 capitais na pandemia. As seis com maior PIB (Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Manaus) apresentaram até agosto relativa estabilidade da receita tributária. Nenhuma teve perda de receita acima de 1% e algumas tiveram alta. É o que todos os prefeitos esperam para 2021, como Covas e seu mantra por geração de emprego e renda.