BOLÍVAR LAMOUNIER

Bolívar Lamounier: Elogio do comedimento

Salta aos olhos que Bolsonaro não assimilou os conceitos e deveres da função pública

Em 2020, quer se reeleja ou não, Jair Bolsonaro provavelmente terá ainda à sua frente um país consumido por várias devastações, umas bem visíveis, outras quase invisíveis. Comecemos pelas devastações visíveis.

Falar da Amazônia é chover no molhado. Pensemos só em nossa incapacidade de efetivar as reformas sem as quais não retomaremos o crescimento econômico em bases sustentáveis. Em nosso calamitoso sistema de ensino, sobre o qual nenhuma proposta relevante de reforma veio a público nestes quase dois anos de governo. No disparate de um país que não consegue ajustar as contas do governo, mas insiste em se desenvolver com base no investimento público, e num governo que mantém o ministro Paulo Guedes como personagem figurativo. Num país corroído até a medula pela corrupção, que alimentava a esperança de reformar essa área de forma drástica, mas, em vez disso, assistiu à defenestração do ex-juiz Sergio Moro e a um tapete vermelho estendido na rampa do Planalto para o retorno da “velha política”.

Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre nossa medíocre taxa de investimento, que nos mantém aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Aprisionados até onde a vista alcança, uma vez que uma renda anual per capita crescendo 2% ao ano não será dobrada em menos de 30 anos – o que ainda seria um resultado medíocre. Em tal quadro, nutrimos a ilusão de que dentro de mais alguns anos o nosso decantado “país do futuro” será um pouco melhor ou pelo menos igual a esse de que hoje dispomos, como se a possibilidade do retrocesso não existisse, a pior hipótese sendo a de ficarmos parados no tempo, sem sair do lugar.

Dediquei o parágrafo acima a focos bem visíveis de devastação, todos eles de conhecimento geral. Entre as devastações menos visíveis, a primeira a mencionar é, sem dúvida, o abandono da reforma política. Já nem falamos nela, como se o nosso sistema político fosse um primor de funcionalidade, como se as instituições, nos três Poderes, estivessem funcionando esplendidamente e como se a máquina do Estado estivesse pronta a responder ao primeiro impulso favorável ao crescimento da economia. O que se vê, infelizmente, é bem o contrário, e aqui vou me ater a um aspecto apenas da estratégia política de Jair Bolsonaro.

Nunca em nossa História tivemos tantos militares graduados no Executivo. Não estou sugerindo que isso seja ilegal, nem quero recorrer ao termo “cooptação”, sabidamente pejorativo. Mas, inegavelmente, o recrutamento para o Executivo de tantos oficiais militares não se harmoniza com o artigo 142 da Constituição de 1988, que define as Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina”. Essa definição do status das Forças Armadas é o núcleo conceitual que as diferencia de uma força suscetível de partidarização ou de eventual devoção a um governo de índole caudilhesca. É óbvio que falo em tese, sem me referir a nenhuma conduta específica das Forças Armadas no atual governo. Contudo, no momento atual, expressar tal preocupação é normal e cabível, tendo em vista o clima de desvairada radicalização que possibilitou a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência e, igualmente importante, as atitudes por vezes desnorteadas que Sua Excelência assume.

Mesmo tendo passado 29 anos na Câmara dos Deputados e obtido expressiva votação no pleito presidencial, salta aos olhos que Jair Bolsonaro não assimilou na extensão devida os conceitos e deveres inerentes a toda função pública. Bem ao contrário, ele parece desconhecer a noção de “liturgia do cargo”; contraria (para não dizer sabota) de maneira frontal o trabalho dos Estados e municípios no combate à pandemia de covid-19, fomentando aglomerações e recusando-se a usar a máscara; procura influenciar a Polícia Federal, desconhecendo, ao que parece, que também ela é uma instituição de Estado; e muda de orientação política como quem troca de camisa, por exemplo, deixando de lado a “nova” e retornando à “velha” política.

Ainda mais preocupante, a meu juízo, é o manifesto desprezo do presidente da República pelo imperativo do comedimento na vida pública. A pessoa investida numa magistratura do Estado tem de compreender que não se pertence mais. O respeito devido aos cidadãos e ao país impõe-lhe a mais estrita observação desse preceito que denominamos comedimento, moderação, temperança, senso de proporção. Em seu ensaio Os Inimigos Íntimos da Democracia, o filósofo francês Tzvetan Todorov vai direto ao ponto: descomedir-se é o caminho mais rápido para reunir num único feixe os riscos objetivos a que toda democracia vez por outra se torna vulnerável. “Na Grécia antiga”, o filósofo prossegue, “os deuses puniam o orgulho dos homens que pretendessem ascender ao lugar deles, como se fossem onipotentes; entre os cristãos, o ser humano é sujeito desde o nascimento pelo pecado original, que limita severamente suas aspirações.”

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Alguém sabe para onde estamos indo?

Mesmo vendo os riscos crescerem, nada faz crer que tenhamos clareza quanto ao rumo a seguir

Ao contrário da Argentina e de Portugal, o Brasil nunca viu seu passado como um período prolongado de decadência. Não tendo atrás de si nada que se assemelhe a uma idade de ouro, nunca experimentou sentimentos de declínio comparáveis aos vividos por aqueles países.

Os ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do ouro e do café não levaram ao esperado enriquecimento, mas, em cada caso, o empobrecimento foi compensado pelo surgimento de atividades importantes noutras regiões. O primeiro grande baque econômico deveu-se à crise de 1929. Assim, foi só nas três últimas décadas do século 20 e agora, com os trancos brutais causados pelo governo Dilma e pela pandemia de covid-19, que começamos a refletir seriamente sobre as agruras sociais, as desigualdades, o crime organizado, o estado calamitoso da educação, as nossas catastróficas condições sanitárias e, naturalmente, o azedume generalizado da sociedade em relação à política. Ainda assim, a verdade é que não sabemos se essa terrível coleção de tragédias vai solapar ou inverter nosso otimismo futurista de “país novo”.

Não é difícil perceber como essa identidade otimista se formou, apesar da pobreza generalizada. Durante a primeira metade do século 20, até os anos 70, conseguimos sustentar um ritmo acelerado de industrialização. Essa foi a época em que o desenvolvimentismo se firmou como mística mundial, impulsionado pelo New Deal e pela prosperidade americana no segundo pós-guerra, pela reconstrução da Europa, pelo “milagre japonês” e até pelos arroubos retóricos de Kruchev a respeito dos avanços da URSS. No Brasil, em 1958, a vitória das chuteiras nacionais na Suécia, a suavização da velha música de dor de cotovelo e o sorriso de JK contribuíram poderosamente para melhorar nossa autoestima. Víamos tudo no País por uma ótica dual. Agricultura era arcaísmo, indústria era modernidade. Interior era atraso, cidade grande era progresso. Silêncio era tristeza, barulho era alegria, a tal ponto que a aconchegante tranquilidade dos pequenos municípios hoje compartilha o ruído infernal produzido por potentes aparelhos de som.

Na esfera pública, nossos anseios de modernização política e democracia esbarraram em numerosos obstáculos. Isso não deve ser esquecido, pois, gostemos ou não, retrocessos podem acontecer na história de qualquer país, e suas consequências podem ser duradouras.

Sinais de preocupação não faltam. Na política e nas instituições, dificilmente veremos o Congresso aprovar uma reforma política digna desse nome. Dificilmente conseguiremos fazer algo contra um Supremo Tribunal Federal desnorteado ou contra as ações e omissões que empreende com o objetivo de combater o combate à corrupção. É duro constatar que temos na Presidência um homem tosco, agressivo, que não vacila em sabotar o trabalho dos agentes de saúde, ignora a liturgia do cargo que ocupa e ameaça agredir fisicamente jornalistas como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. E que as Forças Armadas, cristalinamente definidas na Constituição como “instituições nacionais”, se deixam cooptar pelo Executivo aos magotes, sem atentar para os riscos que tal comportamento implica para sua identidade histórica.

E não esqueçamos que sinais dessa ordem estão acontecendo em numerosos outros países. Na maior e mais exemplar democracia, a eleição de 2016 levou à Casa Branca ninguém menos que o sr. Donald Trump, um claro adepto do enfrentamento como forma de ação política, e cuja desídia no combate à pandemia certamente responde por muitos milhares de óbitos. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán só não impõe uma ditadura escancarada porque não tem força para tanto. Na Turquia, na contramão da mais elementar prudência, o sr. Recep T. Erdogan insufla clivagens religiosas, regredindo nos importantes avanços históricos de seu país no sentido de um Estado laico. Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi promove violências sem conta contra a minoria muçulmana, para só ficarmos neste exemplo. E a China, como ninguém ignora, além de manter intacta sua máquina de governo totalitária, não perde uma oportunidade de recorrer à chantagem comercial quando se sente incomodada pela liberdade de expressão do Ocidente.

Voltando ao Brasil, registremos, de saída, que os gastos (indispensáveis) com a pandemia liquidaram a perspectiva de contas públicas ajustadas nos próximos dez anos. Sabemos que tão cedo não lograremos o nível de investimento e de aumento da produtividade de que desesperadamente necessitamos. Milhões de famílias sentem o desemprego bater à sua porta e outras tantas retornam, humilhadas, da paradisíaca “classe média” para onde o governo Dilma levianamente as mandou.

Fato é que, mesmo vendo os riscos crescerem cada vez mais, nada faz crer que tenhamos alguma clareza quanto ao rumo a seguir. Não a tem o governo, não a têm as elites dos diferentes segmentos da sociedade e tampouco a tem aquela parcela irresponsável que se recusa a usar máscaras e manter o indispensável distanciamento.

  • Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Bolívar Lamounier: Os guizos falsos da alegria

Toda sociedade é continuamente corroída por conflitos individuais e coletivos. É por isso que o Estado, tendo como uma de suas missões fundamentais a manutenção da ordem, não se pode apoiar exclusivamente na força. Entre a estrutura social e o poder público sempre há uma “ponte”, quero dizer, um conjunto de ideias e símbolos mediante o qual a sociedade se vê e diz como quer ser num futuro não muito distante.

O conjunto de ideias a que acima me referi é o que os discípulos de Max Weber designam como “princípios de legitimidade” e os marxistas, como “ideologia”. A expressão “projeto nacional”, muito difundida no Brasil, sugere algo intelectualmente “trabalhado”, subestimando a contribuição anônima do povo para a formação de tais ideias – daí me agradar mais a expressão “filosofia pública”, cunhada pelo jornalista americano Walter Lippmann.

Neste momento em que o Brasil começa a se livrar de uma tralha ideológica acumulada ao longo de três décadas, penso ser útil pôr em relevo algumas etapas e aspectos de nossa “filosofia pública”, remontando aos anos 40.

Valendo-se de contribuições de vários escritores e artistas (que não necessariamente a apoiavam, ça va sans dire), a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) estimulou a difusão de uma imagem idílica de um país pacífico, que não fazia a menor questão de ser governado democraticamente. O que assegurava nosso aconchego tropical não era a igualdade de oportunidades, conceito próprio do liberalismo vigente nos países capitalistas avançados, sempre sujeitos a conflitos “artificiais”, mas a própria estrutura de oportunidades, notadamente nosso enorme estoque de terras, ou seja, o fato de que entre nós, “em se plantando, tudo dá”.

“Corrigindo” a figura do “homem cordial” proposta por Sérgio Buarque de Holanda, o poeta Cassiano Ricardo, diretor da Folha da Manhã, órgão oficial do regime estado-novista, escreveu que não se tratava propriamente de cordialidade, mas de “uma bondade por temor de Deus, por ausência de atritos econômicos, por mestiçamento conciliador de arestas psicológicas e raciais, por índole herdada do português, pela soma de tendências contrárias mas coincidentes na direção de certos objetivos, por euforia espacial, por sentimento de hospitalidade provindo do aborígine, por nenhuma filosofia sobre o destino”.

Nos anos 50, uma nova “filosofia pública” se delineia. Com a industrialização e a urbanização, nossa sociedade tornava-se conflituosa; as “arestas” começavam a machucar, mas não havia motivo para desesperança. Bem ao contrário, as dificuldades aumentavam porque havíamos de fato embarcado no milagroso trem do desenvolvimento econômico. Luís Costa Pinto, um dos principais sociólogos da época, escreveu: “O desenvolvimento cria problemas que só mais desenvolvimento pode resolver”. E não há que esquecer: vivíamos a democracia sorridente de Juscelino Kubitschek e de um sentimento nacional que se adensava graças à quantidade de talento que despontava na música, nas artes, no futebol…

Interrompida pela crise de 1961-1964, a democracia sorridente desembocou no golpe de 1964. Em seus estágios iniciais, o regime militar tratou de se legitimar invocando o combate “ao comunismo e à corrupção”, mas já a partir de 1967 a “filosofia” voltou a ser desenvolvimentista. A legitimidade do poder e a integração da sociedade passaram a depender estreitamente do crescimento econômico e de um nacionalismo vagamente redefinido como aspiração ao status de potência (o “Brasil Grande”). Como filosofia pública, era pouco, até porque o poder militar passou a ser questionado por violações dos direitos humanos e, de um modo geral, por seu caráter autoritário.

Uma terceira etapa se configura nos anos 80. A partir desse ponto, que ganhou corpo na Constituinte de 1987-1988, a nota dominante passou a ser redistributiva. Urgia reduzir a pobreza e as desigualdades. A nova imagem era a de uma sociedade profundamente desigual e, por isso, tensa e crescentemente violenta. Era, pois, imperativo promover uma enérgica ampliação de direitos, adequadamente lastreados em garantias constitucionais e judiciais.

O problema foi, por um lado, que as demandas sociais subjacentes na sociedade haviam se intensificado enormemente e passado a contar com uma elite política, cultural, clerical, etc. capaz de as vocalizar com veemência; e, por outro, que, ao mesmo tempo, o precedente modelo de crescimento econômico, iniciado nos anos 50, entrara em colapso. Desde a virada dos anos 80 para os anos 90, o País vivia a crise da dívida externa e um quadro interno de estagflação e crescente desemprego.

Na primeira metade dos anos 90, o Plano Real estabilizou a economia, interrompendo a descomunal perversidade das inflações altas que se embutira no modelo de crescimento econômico desde o início dos anos 60. Abria-se, assim, a possibilidade do efetivo abandono de tal modelo, mantendo a ênfase redistributiva insculpida na Constituição de 1988, sem dúvida, mas em bases modernas e sustentáveis, devidamente ancorada em reformas estruturais.

Desgraçadamente, o que os treze anos e meio de Lula e Dilma Rousseff nos brindaram foi justamente com o oposto. A busca irrealista do crescimento acelerado resultou numa recessão sem precedentes. A redução da pobreza (mais de 50% da sociedade se alçara à classe média, lembram-se) hoje colide com o trágico quadro de 11 milhões de desempregados. A Petrobrás de joelhos e uma onda de corrupção quiçá sem paralelo no planeta vieram de lambuja. Como o morango da torta.

*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor do Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras, é autor do livro 'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20' (Companhia das Letras)


Bolívar Lamounier: A luta do nosso bravo Jair contra os moinhos de vento

Tão inútil quanto combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato

Na última terça-feira, 4/8, o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu sonho é livrar o Brasil da esquerda. Minha primeira reação foi tentar saber o que ele entende por esquerda.

Nas redes sociais, a resposta mais comum, quase única, foi a de que esquerdistas são os adeptos do marxismo. Ora, se é isso, o presidente não terá muito trabalho. Comecemos com uma distinção: os marxistas que pegaram em armas e os que vêm os escritos de Karl Marx como uma filosofia, uma teoria da História ou mesmo uma teoria econômica rigorosa. No Brasil, grupos comunistas pegaram em armas duas vezes, evidenciando em ambas uma patética fragilidade. Nos anos 1930, quando o Partido Comunista era dirigido por Luís Carlos Prestes, o levante que se tornou conhecido como a Intentona, anterior à implantação da ditadura getulista, facilmente desbaratado pelo governo da época. Depois de 1964, a luta armada encetada contra o regime militar por Lamarca e Marighella, principalmente. Teve consequências mais profundas, levando os militares a arrochar ainda mais o regime, notadamente no período que ficou conhecido como os “anos de chumbo”.

Atualmente, nada faz crer que existam grupos comunistas inclinados a pegar em armas. Lula e alguns satélites de seu PT, o melhor exemplo sendo João Pedro Stédile, recorreram ocasionalmente a uma retórica beligerante, apresentaram-se como admiradores do chavismo e do regime cubano, mas não foram além disso. Aliás, definir o lulismo não é tarefa para principiantes. Para mim, Lula é uma variante do nosso velho populismo, uma cepa de políticos que acreditam mais no gogó social, prometendo paraísos terrestres (e de vez em quando metendo a mão em algum, que ninguém é de ferro), do que em aprimorar a economia e a administração pública. Aprimorar a economia, nem pensar; o próprio Lula declarou diversas vezes (talvez invocando Noel Rosa) que bons governos nascem é do coração. Esse singelo aparato é suficiente para enganar os incautos – acenando-lhes com um “socialismo por construir” – que proliferam nas universidades, no clero e até certo ponto na imprensa e nos corpos legislativos.

Voltar um pouco no tempo pode tornar mais proveitosa esta nossa inquirição. Jair Bolsonaro estaria empenhado em “livrar o Brasil da esquerda” quando alguns dos maiores símbolos dela desfrutavam imenso prestígio nacional. Oscar Niemeyer, por exemplo, morreu aos 103 anos sem jamais abdicar de sua devoção ao tirano russo Joseph Stalin. Foi, como todos sabemos, o arquiteto de Brasília e quem lhe conferiu tal encargo foi o mineiríssimo e conservadoríssimo presidente Juscelino Kubitschek. Bolsonaro incluiria JK em sua lista dos que, ao ver dele, precisam ser afastados? E Jorge Amado, o grande escritor baiano, consagrado e cultuado em todo o mundo como um de nossos maiores romancistas?

Os casos citados devem ser suficientes para evidenciar que combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato, é uma atividade quase tão inútil quanto arremessar o bravo corcel do Estado contra algum moinho de vento. O enredo melhora bastante se, em vez de circunscrever o conceito de esquerda ao marxismo, fizermos dele uma base mais ampla para um reexame sério dos programas de crescimento econômico que pusemos em prática desde a 2.ª Guerra Mundial. Aqui estaremos falando do nacional-desenvolvimentismo, do horror à economia de mercado, da burocracia pública e da inflação como demiurgos do progresso, da resistência ao investimento estrangeiro, e por aí afora. Ou seja, estaremos nos referindo ao modelo que se tornou conhecido como ISI – de industrialização por substituição de importações –, que de fato acelerou o crescimento enquanto era fácil fazê-lo e depois nos legou a prolongada estagnação de que, salvo melhor juízo, tão cedo não nos conseguiremos livrar. Livrar o Brasil dessa linha de esquerda seria uma excelente ideia, mas salta aos olhos que o presidente Bolsonaro dificilmente conseguirá fazê-lo. Embora se tenha afastado do Exército no posto de capitão, Jair Bolsonaro deve ter ciência de que o modelo a que me refiro sempre contou com ampla simpatia no meio militar. No vídeo da reunião ministerial realizada no Planalto em 22 de abril, vimos o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, sugerindo um retorno ao nacional-estatismo, no que foi prontamente contestado pelo ministro da Fazenda, que parece ser no atual governo o único consciente da arapuca em que a ISI nos meteu.

A visão do futuro brasileiro corporificada no nacional-desenvolvimentismo remonta, como sabemos, ao debate de 1944 entre o economista Eugênio Gudin, favorável a uma economia balanceada, com maior atenção à agricultura, e o historiador Roberto Simonsen, adepto da industrialização a qualquer preço. Decorridos três quartos de século, o panorama é meridianamente claro: temos uma agricultura moderna, pujante, internacionalmente competitiva, e um setor industrial em escombros, não obstante todas as “bondades” de que se beneficiou durante quase todo esse período.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier : Anatomia de um fiasco

O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável

“Não se pode julgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”
Sófocles, pela boca de Creonte, rei de Tebas

Decorrido um ano e meio de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro já “ditou” muitas leis, mas não deu mostras de haver compreendido os enormes desafios que o Brasil enfrentará no curto e no médio prazos.

A pandemia que nos atingiu em cheio explica somente uma parte dos desacertos a que temos assistido. O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável. Ele começou mal, abraçando uma agenda megalomaníaca - acabar com a “velha política”, mudar profundamente os valores e comportamentos da sociedade, e por aí afora. E não parece ter consciência dos graves problemas que teremos de enfrentar na pós-pandemia; a julgar pelo cenário de hoje, chegaremos ao fim desta crise estrategicamente enfraquecidos e despreparados para o que virá depois.

Mesmo no que concerne à pandemia, o fato é que Jair Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o esforço dos Estados e municípios no combate à doença. O artigo 30, inciso VII, da Constituição de 1988 determina, cristalinamente, que compete aos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviços de atendimento à saúde da população”. Será que, para o presidente, “cooperação técnica” significa tentar induzir os agentes de saúde e uma parcela importante da sociedade a se defender da covid-19 com remédios comprovadamente ineficazes? Ou debochar do uso da máscara, não observar o distanciamento social, abraçar correligionários (e até bebês) e fomentar aglomerações? Qualquer pessoa capaz de interpretar o citado inciso VII concluirá que tais condutas são formas de sabotar, não de prestar assistência técnica. Por sorte, a missão dos agentes de saúde convocados a enfrentar a doença vem sendo cumprida a contento.

O preenchimento de altos postos da administração pública também evidencia - com as exceções de praxe - o despreparo de Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa e, pior que isso, sua tendência a se deixar pautar por orientações ideológicas, no mínimo, patéticas. Os estragos já feitos pelos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores tão cedo não serão sanados. Somados às idiossincrasias do próprio presidente, Ricardo Salles e Ernesto Araújo são diretamente responsáveis pelo isolamento do Brasil e pela vertiginosa queda de nosso país no exterior. O elevado número de militares no governo também preocupa, não tanto como uma premonição autoritária, mas pelo risco de debilitação das Forças Armadas como organização nacional.

Descabe completamente, e ainda mais nos limites de um artigo, tentar prever o que vai acontecer com a economia mundial e, dentro dela, nossas chances de recuperação. Há quem acredite numa recuperação rápida e quem, com fundamentos igualmente sólidos, descarte inteiramente tal hipótese. Num ponto, porém, não podemos escorregar. Instigados pelo tombo que a economia vai levar, os nacional-estatistas já começam a se manifestar de forma audível. A inutilidade da discussão liberalismo versus antiliberalismo em abstrato já deveria estar mais que clara, mas já há quem apregoe as vantagens e até mesmo nosso “inexorável retorno” ao modelo estatizante que praticamos durante a maior parte do século 20. Isso como se em algum momento tivéssemos de fato implementado uma reforma liberal!

Salta aos olhos que, ainda se fosse desejável, ressuscitar a esta altura um modelo de forte predomínio do setor público na economia equivale a ignorar a realidade imediata com que nos deparamos. Antes da pandemia, fechar o Orçamento federal já exigia do governo um contorcionismo patético. Sabíamos - e sabemos - todos que um ajuste rigoroso das contas públicas e uma expressiva atração de investimentos estrangeiros eram - e são - condições essenciais para uma retomada saudável do crescimento. E sabemos, agora, que a pandemia destruiu um montante colossal de riqueza. Centenas e centenas de empresas faliram, muitas delas sem chance de recuperação. O impacto de tudo isso na arrecadação será medonho. Como, então, ressuscitar nosso antigo modelo de crescimento, torcendo mais uma vez o nariz para o capital privado?

Sobre a educação, não há muito a acrescentar. Nosso sistema de ensino, como ninguém ignora, é pior que ruim: é péssimo, calamitoso.

Algo em torno de 70% dos indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos não atingem o nível internacionalmente tido como aceitável em Matemática, 60% não atingem tal nível em Ciências e 50% ficam aquém dele em Português. Nessa área, o atual governo já está no terceiro ministro, tendo os dois primeiros - como diria um crítico de ópera - “passado pela cena sem dizer palavra”. Importante, direi mesmo histórica, foi a aprovação do Fundeb, emenda constitucional que destina mais recursos para a educação básica, obra muito mais do Congresso que do Executivo.

  • Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Bolívar Lamounier: Pensando o impensável

Resultado mais provável da ruptura da ordem parece-me ser um longo período de anarquia

Um momento histórico que eu gostaria de ter presenciado aconteceu no dia 1.º de novembro de 1944: um breve encontro entre o ministro da Justiça, Marcondes Filho, e o general Eurico Dutra. O relato está no ótimo livro de Paulo Brandi Vargas: da Vida para a História (Zahar, 1985, pág. 178).

Desde a entrada do Brasil na guerra contra o fascismo, Getúlio pressentia que não conseguiria manter sua ditadura. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros desafiou a censura e escancarou o debate sobre a redemocratização. A presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, com apoio dos Estados Unidos, apontava para um ponto sem retorno. Nos meses seguintes, a pressão contra Getúlio alastrou-se rapidamente nas Forças Armadas. No final de outubro os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra procuraram-no para insistirem na convocação de eleições. Getúlio aquiescia sem aquiescer. Cogitava de transitar para um regime híbrido, cujo comando permanecesse em suas mãos. Foi nessa altura que se deu o encontro de Marcondes Filho com o general Eurico Dutra.

O ministro havia rascunhado um projeto de lei eleitoral de teor corporativista, ou seja, baseado na representação por categorias profissionais, formato característico da tradição fascista. Foi quando, respondendo a Marcondes Filho, Eurico Dutra disse-lhe, curto e grosso: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo…”.

O referido momento parece-me assinalar com clareza a opção das Forças Armadas por uma identidade propriamente de Estado, impessoal, baseada na hierarquia e na disciplina, com a consequente rejeição do modelo de uma guarda pretoriana, ou seja, de uma milícia a serviço de um caudilho qualquer.

Mas tal modelo não era isento de problemas. Nos anos 30, sob a decisiva influência do general Góes Monteiro, ganhou corpo o modelo de uma organização tutelar, destinada não somente à defesa externa do País, mas legitimada para também atuar sponte sua no plano interno.

Os apontamentos acima ajudam a compreender o artigo 142 da Constituição de 1988, que alguns juristas chegam a interpretar até mesmo como uma autorização para as Forças Armadas atuarem como um Poder Moderador, dirimindo impasses entre os três Poderes. Não chego a tanto, mas, de certa forma, vou além, pois, no trecho a seguir, tal artigo me parece virtualmente ininterpretável: “…(as Forças Armadas) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O trecho grifado admite a esdrúxula hipótese de as Forças Armadas – no tocante à manutenção da lei e da ordem no plano interno – serem convocadas por dois ou até pelos três Poderes ao mesmo tempo. Considerando, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, instância última, portanto, da legitimidade política, cabe a ele esclarecer quando e em que termos as Forças podem ser convocadas – uma rima que em nada melhora o soneto.

A questão acima suscitada parece-me assumir contornos graves no presente momento, visto que agora não se trata de um imbróglio constitucional em abstrato, mas de uma conjuntura que muitos têm descrito como uma “tempestade perfeita”: em meio a uma terrível epidemia e a uma crise econômica sem precedentes, temos tido frequentes atritos entre os Poderes e um presidente da República pouco propenso a observar os limites e a liturgia do cargo que ocupa. Como se não bastasse, as Forças Armadas assumiram uma presença excessiva no Executivo, emprestando-lhe, por conseguinte, uma legitimidade que cedo ou tarde reduzirá a estima em que são tidas pela sociedade brasileira.

Acrescente-se que o protagonismo apaziguador do Legislativo esbarra em severos limites no presente momento, uma vez que a composição do Congresso Nacional ainda deixa a desejar, não obstante as reformas que se tem tentado fazer.

Por último, mas não menos importante, é preciso levar em conta o clima de radicalização, acentuado a partir das eleições de 2018, e os frequentes apelos que certos setores têm feito no sentido não só de tumultuar, mas efetivamente de solapar o regime democrático, exigindo alguma forma de intervenção militar. Um ponto fundamental que tais setores não parecem compreender é que o Brasil de 2020 é muito diferente do de 1964. Naquele ano, bastou às Forças Armadas prender umas poucas centenas de pessoas para assumirem o controle do País. Hoje a população brasileira é muito maior, está concentrada em grandes cidades e é muito mais diversificada, politizada e atenta. Mercê dos meios eletrônicos de comunicação, consegue se mobilizar com extrema facilidade. Tais mudanças não necessariamente conferem vantagem a algum dos grupos que se digladiem num hipotético confronto, até porque o resultado mais provável de qualquer ruptura da ordem parece-me ser um prolongado período de anarquia, ao fim da qual tudo estará mais ou menos na mesma, só que muito pior.

  • Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultores e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Bolívar Lamounier: Um cabo de guerra na longa noite da pandemia

Ao dificultar a ação dos Estados e municípios Bolsonaro comete crime de responsabilidade

Para bem compreender o que está acontecendo no Brasil creio ser útil começar pelo dicionário. Cabo de guerra, por exemplo. O Aurélio ensina que essa velha expressão designa “um jogo ou competição em que dois grupos de contendores puxam em direções opostas as pontas de uma corda grossa, vencendo a que conseguir arrastar a outra”.

Transpondo a ideia do cabo de guerra para o plano da política, logo percebemos uma grave implicação. Se a capacidade física dos contendores for aproximadamente igual, o resultado pode ser um prolongado empate. Ora, o essencial da política pública é a escolha entre alternativas e a implementação das ações de governo que dela decorre. Vigente o empate no cabo de guerra, as duas forças se neutralizam e tais ações perdem eficácia, como temos visto no combate à pandemia do coronavírus. Esse empate pode tornar nossa situação muito mais perigosa do que a existente em outros países. A persistir tal empate, nós, cidadãos comuns, pagaremos o pato.

Em nosso cabo de guerra temos, de um lado, os governadores e prefeitos fazendo o que podem, com recursos insuficientes e enfrentando a propagação do coronavírus, um inimigo onipresente e assombrosamente ágil. Do outro, Jair Bolsonaro, um presidente que não se notabiliza por elevado senso de responsabilidade, fomentando aglomerações, forçando a barra para que o desejável relaxamento da quarentena se transforme num estouro da boiada e, não menos importante, insistindo num remédio, a cloroquina, cuja eficácia no tratamento da covid-19 não parece superior à de um licor de jenipapo.

Tem saída isso? Tem, mas para bem compreendê-la precisamos primeiro esclarecer um aspecto da nossa cultura política, em especial certas noções referentes ao sistema de governo presidencialista de governo. Não tendo escoimado de uma vez por todas o ranço caudilhista e populista que nele se incrustou desde os primórdios da República, temos inconscientemente sustentado a equivocada noção de que o presidente da República é a instância última da legitimidade política.

Fato é, no entanto, se formos um pouco além do pensamento estritamente jurídico, que a legitimidade em última instância não reside na Presidência da República, e sim no Supremo Tribunal Federal (STF). Se assim não fosse, como iríamos entender sua função arbitral de última instância? Sendo ele a cúpula do Judiciário, a ele cabe dirimir todos os impasses, incluídos aqueles que se constituem no embate entre os outros dois Poderes, entre os partidos políticos e entre os demais agentes políticos. A proposição que venho de enunciar não é fruto de especulação, pois está constitucionalmente especificada em institutos como a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de constitucionalidade (Adin) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), entre outras.

Voltemos, então, ao cabo de guerra que estamos presenciando no combate ao coronavírus. Dando prioridade ao princípio federativo e ao que a Constituição expressamente determina, o STF, atribuiu aos Estados e municípios a responsabilidade primária pela missão de organizar o vírus. Não se trata, como é óbvio, de uma atribuição privativa do município, e sim concorrente com a dos Estados e da União. Essa determinação do STF implicou uma clara dilatação do papel desses dois entes federados, que se vem manifestando na aquisição de equipamentos de proteção, na imposição de restrições ao direito de ir e vir e à atividade econômica, além, é claro, da função precípua de manter os sistemas de saúde e funerários. Uma eloquente ilustração da dilatação a que me refiro é o inusitado empenho que os Estados tiveram de assumir na importação de equipamentos de proteção para o pessoal médico, tendo mesmo se deparado com dificuldades bizarras, num momento em que o comércio internacional parece ter retornado a práticas simplesmente selvagens.

Não preciso deter-me no destaque dado pela Constituição aos municípios (CF88VII). Comentando esse ponto, o professor Antônio Sérgio P. Mercier acertadamente escreve: a cooperação entre o município, o Estado e a União diz respeito, entre outras finalidades, à “prevenção ou debelação dos perigos que dizem respeito à saúde da população, como endemias, epidemias e a possibilidade do aparecimento de moléstias transmissíveis” (Costa Machado e Anna Cândida da Cunha Ferraz, organizadores, A Constituição Federal Interpretada, Editora Manole).

O que acabo de expor deve ser suficiente para ilustrar o enorme risco com que a saúde dos brasileiros se vai deparar enquanto persistir o cabo de guerra entre o presidente Jair Bolsonaro, puxando uma ponta da corda, e os Estados e municípios puxando a outra. Do exposto deve-se, pois, inferir que Jair Bolsonaro, ao dificultar a ação dos Estados e municípios durante uma emergência gravíssima, reiteradamente comete crimes de responsabilidade, configurando-se, pois, claramente, a conveniência da abertura do processo de impeachment.

*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Parece loucura, mas tem método

O bolsonarismo é uma força política perigosa, agressiva e hostil à ordem democrática

É lógico que uma democracia representativa digna do nome não tem condições de se firmar onde a ética da impessoalidade do Estado não se desenvolva; e tal ética, por sua vez, não se consolida se as Forças Armadas se mantiverem no universo do populismo ou do caudilhismo. Em qualquer país, a inexistência de harmonia entre essas esferas institucionais cedo ou tarde dará ensejo a retrocessos e, no limite, ao próprio rompimento da ordem constitucional. No Brasil, tal situação ficou claramente exemplificada nos episódios da renúncia de Jânio Quadros (1961) e do desgoverno de João Goulart (1961-1964).

Em 1945, logo ao regressar da guerra na Itália, o marechal Mascarenhas de Moraes deu o cartão vermelho para o ditador de plantão, o Sr. Getúlio Vargas, e exigiu a realização de eleições e a convocação da Assembleia Constituinte, como viria a ocorrer em 1946. Mesmo nos 21 anos (1964-1985) em que exerceram autoritariamente o poder, os militares não permitiram a personalização do poder, como era tradicional na América Latina.

No período recente, o populismo e a corrupção dos oito anos de Lula, aos quais se seguiram a incompetência e o voluntarismo econômico de Dilma Rousseff abortaram a retomada do crescimento econômico, mas o desarranjo institucional não chegou a se configurar plenamente, graças, é certo, ao penoso processo do impeachment de Dilma, Mas comparado ao ciclo Lula-Dilma, o momento atual suscita preocupações bem maiores.

A partir da eleição de 2018, a reação às sandices e tensões cultivadas pelo PT e o esvaziamento dos partidos de centro deixaram o espaço aberto para o surgimento de uma força política — o bolsonarismo — perigosa tanto na base quanto na cúpula. Na base, devido ao vazio de ideias, à hostilidade contra a ordem institucional e à agressividade dos adeptos de Jair Bolsonaro. Na cúpula, o presidente em vez de apaziguar os ânimos, fomenta os antagonismos; em vez de observar a liturgia do cargo que ocupa, não perde uma chance de desmoralizá-lo. Será tal comportamento uma simples emanação de idiossincrasias ou peças de uma estratégia que parece ser loucura, mas pode ter método. ´

Fato é que, alternando ameaças e gaiatices, Jair Bolsonaro parece empenhado em esticar a corda, em testar limites e em debilitar os anticorpos ainda existentes no Congresso, no STF e nas Forças Armadas. É um filme que já vimos muitas vezes, mas nunca tendo no papel principal um personagem tão manifestamente descerebrado.


Bolívar Lamounier: A democracia na era pós-pandêmica

Pela primeira vez teremos uma ótima chance de liquidar o patrimonialismo

No século 19, a democracia liberal apenas engatinhava, mas sua morte já era dada como iminente. Um caso de mortalidade infantil.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal (ou representativa) só começa a se configurar no século 19. Cento e cinquenta anos atrás, com a parcial exceção do Reino Unido e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários e em embriões de democracia. Estes últimos existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político se limitava a pequenos grupos de elite – proprietários e “notáveis” –, a uma minúscula parcela da população habilitada a votar e a uma vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. Tomando a nuvem por Juno, os críticos do liberalismo julgavam estar vendo um cemitério, quando, na verdade, se tratava do início de uma construção cheia de opções e possibilidades.

Nas primeiras décadas do século 20, na esteira da Revolução Russa e da ascensão do fascismo, passou-se a entender que a causa mortis da democracia seria sua congênita debilidade. Anêmica, ela não teria como resistir à maré montante dos embates entre capital e trabalho. A 2.ª Guerra Mundial liquidou o fascismo como forma de organização política, mas fortaleceu o comunismo soviético, dando ensejo a um terceiro prognóstico para o fim da democracia. A radicalização ideológica entre direita e esquerda, engendrada internamente em cada país e turbinada de fora para dentro pela guerra fria entre Estados Unidos e URSS, seria a nova causa mortis. Esse prognóstico tinha mais substância, basta lembrar as tragédias a que sucumbimos, Brasil, Argentina e Chile, aqui mesmo, no Cone Sul latino-americano. Fato é, no entanto, que a democracia representativa, bem ou mal, ressuscitou. Atualmente, os piores casos de antiliberalismo político devem-se muito mais à propensão tirânica de certos líderes – Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela; Viktor Orbán, na Hungria; Recep Erdogan, na Turquia – do que a causas supostamente universais.

No presente momento, com o mundo engolfado na monstruosa pandemia de covid-19, ninguém se surpreenderá com o reaparecimento dessa antiga discussão. Agora, já mais que centenária, é plausível considerar que a democracia liberal integra um grupo de altíssimo risco. Não poucos autores já quebram a cabeça em busca de um título, esfalfando-se para não recair no consagrado Crônica de uma Morte Anunciada. O mais invocado é uma reversão da interdependência mundial, cada país se ensimesmando, cuidando mais de seus problemas internos e alterando o papel do Estado na economia. Em recente entrevista ao Washington Post, Henry Kissinger insistiu na perda de hegemonia dos Estados Unidos, vale dizer, na redução do poder relativo de seu país em relação às outras grandes potências – em relação à China, notadamente –, uma vez que isso significaria a debilitação do ideário liberal perante o regime ferreamente totalitário de Xi Jinping.

Parece-me fora de dúvida que o mundo pós-pandêmico passará por grandes transformações, mas não necessariamente desafios que ponham em xeque a própria sobrevivência da ordem liberal-democrática. Os autores que cogitam de uma forte presença do Estado e certa ressurreição do nacionalismo precisam se lembrar de que nenhuma democracia e nenhum sistema político jamais se configurou como um embate entre massas “equipotentes”, iguais em peso e massa, como bolas numa mesa de bilhar. Entre o tosco clientelismo da política local (quem nomeia a professora rural, o agente dos correios, etc.) e o topo, no qual grandes organizações públicas e privadas fixam prioridades e executam as medidas necessárias à acumulação de capital, a distância é imensa. No Brasil, por exemplo, minha intuição é de que tal estrutura permanecerá, mas pela primeira vez teremos uma ótima chance de liquidar o patrimonialismo (o sistema dos “amigos do rei”) e alterar decisivamente a estrutura do investimento público. Em vez de desperdiçar recursos de maneira criminosa – na construção de estádios, por exemplo –, haveremos de entender que nossas prioridades “acumulativas” terão que ver com ciência e tecnologia, biotecnologia, saneamento básico, ampliação dos serviços de saúde e, naturalmente, educação básica. Chance, também, de levarmos a sério o imperativo da reforma política. No quadro dessa reorientação, a transparência e as divergências próprias da democracia serão uma grande alavanca, e não um obstáculo, como cinicamente afirmam os pregoeiros do autoritarismo.

Muitas vezes o barato sai caro. Atentando apenas para os ínfimos custos de produção chineses, o mundo deixou a cargo daquele país praticamente toda a produção de insumos médicos. Se os governantes dos países democráticos tiverem alguma coisa entre as duas orelhas, tratarão de alterar o quanto antes esse modelo.

* Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)


Bolívar Lamounier: Pandemia e pandemônio

Regime totalitário da China e desacertos de Trump e Bolsonaro agravaram a situação

Sobre a pandemia que o mundo está vivenciando dúvidas não faltam, mas podemos tranquilamente afirmar que a dimensão que ela alcançou se deve a uma combinação de fatores epidemiológicos e políticos.

Embora pouco protocolar, fez bem o embaixador chinês em Brasília em repreender um parlamentar que se referira ao coronavírus como o “vírus chinês”. De fato, a expressão do referido parlamentar foi infeliz e poderia alimentar a absurda teoria de que a China propositalmente criara e facilitara a propagação do vírus. É, porém, inegável que a China não alertou o mundo no devido tempo. Em meados de novembro do ano passado, a situação na cidade de Wuhan (situada na província de Hubei) já era crítica e o governo central chinês não se empenhou em prestar esclarecimentos ao mundo, de forma solene e oficial, como conviria a um país com as responsabilidades internacionais da China. Com certeza informou à Organização Mundial da Saúde (OMS), em data que desconheço.

Há quem pense que os chineses demoraram a prestar informações à comunidade internacional porque, nas primeiras semanas, nada sabiam, portanto, nada tinham para informar. Começaram a procurar uma vacina, mas tardaram a entender que o vírus sofrera uma mutação, era, portanto, algo novo, e então passaram a interagir com cientistas e médicos de outros países, facilitando o acesso deles aos dados que possuíam.

Os analistas que se apoiam nessa linha de raciocínio geralmente destacam que Beijing pediu cautela a seus especialistas a fim de evitar um alarme perigoso, que poderia até mesmo provocar uma convulsão social. Suponhamos que essa teoria tenha fundamento e que as informações indispensáveis seriam proporcionadas a outros países para que se preparassem no devido tempo. O fato, no entanto, é que o poder central chinês em nenhum momento se pronunciou sobre a matéria de forma ponderada, mas solene e oficial. Organizando medidas preventivas em tempo hábil, milhares de vidas poderiam ter sido poupadas e a aberrante atitude de alguns chefes de Estado que insistiram em minimizar o risco da epidemia durante cerca de três meses poderia ter sido contestada.

O fato, portanto, é que o todo-poderoso Xi Jinping reduziu o problema às esferas provincial e municipal, mesmo após saber que a disseminação do vírus seria extremamente ampla e após a OMS apontar seu caráter pandêmico. Na prática, o trágico aviso foi dado pela Itália, e em seguida pela Espanha, que não se prepararam adequadamente para o gigantesco impacto que receberam.

O caso mais difícil de compreender, um emaranhado que bem merece ser designado como um pandemônio político, é o dos Estados Unidos.

É sabido que o presidente Donald Trump foi alertado com bastante antecedência pelos serviços de espionagem, em particular pela Central Intelligence Agency (CIA), mas recusou-se a tomar providências preventivas, seja por interesse eleitoral ou por acreditar, em seu tosco entendimento, que a pandemia, na realidade, não passava de uma “gripezinha”, ou pela combinação dessas duas razões.

Fato é que o despreparo dos Estados Unidos para efetuar testes era espantoso. Em fevereiro, autoridades médicas federais falavam em testar 1 milhão e meio de pessoas, mas a revista The Atlantic entrou em contato com os secretários de Saúde dos 50 Estados e do District of Columbia (Washington, DC) e mostrou que a capacidade real do país para efetuar tais testes não passava de 2 mil por dia.

Nem testes, nem isolamento social. Se a propagação do vírus se dá por contatos entre pessoas, é óbvio que a medida mais importante, a ser tomada de imediato, é reduzir drasticamente tais contatos. Isso, como já se notou, Trump não faria. Foi só em meados de março que ele relutantemente aceitou a necessidade de quarentenas.

Comparado aos EUA, o Brasil (leia-se: o ministro Mandetta e as entidades e os profissionais de saúde) estão relativamente bem na foto. É, porém, meridianamente claro que não podemos subestimar os desníveis sociais, as diferenças de qualidade dos serviços médicos entre Estados e regiões, a compreensível preocupação dos que temem um efeito arrasador na economia, nem, e mais importante, as contínuas e desastradas intervenções do presidente Bolsonaro, adepto da mesma tosca teoria da “gripezinha” e, ao que tudo faz crer, incapaz de compreender os requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito. Se dependesse só dele, decerto não teríamos implantado e não estaríamos mantendo razoavelmente bem a disciplina do isolamento social.

Há quem afirme, principalmente no tocante à Europa, que a ineficácia das medidas adotadas se deveu em grande parte a informações erradas recebidas da China até meados de janeiro, incluída a de que o vírus não seria transmissível entre humanos. Seja como for, parece-me fora de dúvida que fatores políticos agravaram enormemente a gravidade da pandemia: o regime totalitário de Beijing e desacertos infantis cometidos pelos presidentes dos EUA e do Brasil.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Brasileira de Ciências e Paulista de Letras


Bolívar Lamounier: Um governo bifronte

Verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de dar lugar a fala formal, impessoal e comedida

A verdade é que temos dois governos. Um no rumo certo, sério e competente, personificado pelos ministros da Economia e da Saúde, principalmente. Outro, populista e irresponsável, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, vez por outra coadjuvado pelos ministros da Educação e das Relações Exteriores.

De fato, 15 meses não foram suficientes para Jair Bolsonaro nos tranquilizar quanto à sua compreensão dos requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito e da crítica situação que estamos vivendo. Sua subestimação da seriedade da pandemia de covid-19 volta e meia nos traz à memória um fato de dez anos atrás: a hilária referência de Lula à crise financeira que se avizinhava. Da subestimação decorreu a convocação de manifestações de apoio à sua pessoa e de pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Há quem afirme que ele não fez tal convocação, que elas teriam sido espontâneas, ou, então, que ele as convocou e depois desconvocou. Acontece que em política é possível dizer algo sem dizer nada, ou até dizendo o contrário do que se pretende. Para mim, ele as convocou na base do “bem me quer, mal me quer”, deixando espaço para recuar quando isso lhe parecesse taticamente conveniente.

Mas isso é o de menos. Fato é que, sendo ele o presidente da República, a atitude correta seria alertar a sociedade para o risco de aglomerações, alerta feito por seu ministro da Saúde; e fazê-lo, não em frases soltas ao vento, mas com solenidade e firmeza, em cadeia nacional de rádio e televisão. Alertar também, no que toca ao Legislativo e ao Judiciário, que a Constituição veda expressamente quaisquer ações que dificultem o adequado funcionamento dos Poderes do Estado. Não menos importante, afirmar, em alto e bom senso, como supremo magistrado, que ele não compactua com a grita de setores “sinceros, mas radicais” que exigem a derrubada das instituições representativas, qualquer que seja a avaliação de cada um sobre o presente desempenho delas.

Acrescente-se – e este é o ponto mais grave, que não deixa dúvida sobre as diferentes interpretações que se têm dado aos fatos acima mencionados – que Jair Bolsonaro não se contentou em saber pela imprensa ou pela internet que uma parcela da sociedade parecia (ou parece) aderir ao seu não convocado “queremismo”. Não. Cedendo ao cerne populista que informa seu modo de sentir a política, ele desceu a rampa a fim de cumprimentar um grupo de manifestantes, trocar apertos de mão e tirar algumas selfies, descumprindo de modo flagrante as recomendações de todas as organizações nacionais e internacionais e de seu próprio ministro da Saúde, que ora, angustiadamente, se empenham no combate ao coronavírus.

A bem da justiça devo repetir que a outra metade de seu governo tem demonstrado seriedade e competência, mas em relação a ele, Jair Bolsonaro, sou forçado a reiterar o que afirmei no início: até o momento, ele tem se comportado como um político populista e irresponsável. E a reiterar também minha dúvida sobre sua compreensão dos requisitos básicos da posição que ocupa e dos dramáticos desafios que ora ameaçam nossa existência como povo.

Não voltarei ao coronavírus, voltarei à estúpida polarização que se configurou desde a eleição de 2018. O famigerado recurso ao “nós contra eles” cultivado por Lula e pelo PT metamorfoseou-se em coisa pior: o bolsonarismo acima de tudo e contra todos os outros. Ou seja, uma divisão vertical sem precedentes no País, como se fôssemos dois povos, contrapostos e antagônicos. Cada um com seus slogans, sua raiva e seus panelaços. Quem não apoia o “mito” é comunista, é de esquerda, é tucano, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou coisa pior. É liberal, outro grave xingamento, não obstante o ministro da Economia se identificar como tal e estar tentando implementar reformas sabidamente indispensáveis, e inequivocamente liberais. Orientado, ao que tudo indica, pelo sábio da Virgínia, o clã Bolsonaro vê-se como um Dom Quixote de lança em punho, pronto para extirpar uma imaginária hegemonia de esquerda que se teria instalado entre nós desde a Contrarreforma e no bojo do patrimonialismo português, perdurando e se fortalecendo mesmo durante os 21 anos de governos militares.

Tivesse ele uma compreensão mais adequada de sua posição como supremo magistrado, Jair Bolsonaro já teria entendido que não foi eleito por uma seita, mas pela maioria do eleitorado; e que a função presidencial não se restringe a um grupo de seguidores, a um partido ou seita eleitoral, mas à totalidade do povo brasileiro. O palanque teve seu momento, mas não foi e não pode ser levado para dentro do Palácio do Planalto. O verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de ceder lugar a uma fala formal, impessoal e comedida. O que temos visto, infelizmente, é o oposto. Jair Bolsonaro parece entender que seu papel é o de dividir ainda mais o País, nem que o preço seja se misturar infantilmente com a multidão, pondo em risco um número não desprezível de cidadãos.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Aprendendo com o mundo animal

Os ouvidos brasilienses são como os da naja, ou da mamba-negra: incuravelmente surdos

Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.

Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.

O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar.

Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.

Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.

Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.

O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...

Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.

* Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências