BOLÍVAR LAMOUNIER

Bolívar Lamounier: Que devemos esperar do governo Bolsonaro?

A grande agenda, a dos problemas que vamos ter de enfrentar, não deu o ar da sua graça

A boa notícia é que a eleição acabou, desanuviando um pouco a poluição raivosa que pairava no ar e impedindo o prosseguimento das nefastas políticas e práticas protagonizadas pelo PT durante quatro mandatos consecutivos. A notícia ruim – ou mais ou menos ruim – é que as prioridades do governo Bolsonaro só agora começaram a ser de fato definidas.

Durante a campanha, como não podia deixar de ser, a única coisa séria levada aos ouvidos dos eleitores foi o imperativo do ajuste fiscal e, consequentemente, da reforma da Previdência. Falou-se também do indispensável combate ao crime, mas quanto a essa questão há um óbvio descasamento entre os quatro anos do mandato presidencial e os 20 anos ou mais de que necessitaremos para chegar a soluções sólidas e abrangentes. É, pois, perfeitamente razoável afirmar que a grande agenda do País – os grandes problemas que teremos de enfrentar no médio prazo – não deu o ar de sua graça.

O relativo otimismo que podemos sustentar está, pois, ancorado nos dramatis personae, quero dizer, na nomeação de Sergio Moro para um Ministério da Justiça expandido para incluir a magna questão da segurança pública e na equipe econômica, comandada por Paulo Guedes. Sobre Moro nada há a acrescentar; não fora sua firme atuação na Lava Jato, ainda teríamos apenas uma pálida ideia da dimensão da corrupção no Brasil. Paulo Guedes, diplomado por Chicago, pertence ao primeiro time dos economistas brasileiros e vem há muitos anos clamando por uma reforma liberal, o que no momento significa prioridade para o ajuste fiscal e alguma indicação clara no tocante à privatização.

No lado negativo da balança, penso que alguns membros do novo governo estão se precipitando sobre questões que no momento não requerem nenhum movimento de nossa parte, e que podem nos custar caro. O caso óbvio é a mudança de nossa embaixada em Israel para Jerusalém. Refletindo um pouco mais, o próprio presidente Jair Bolsonaro e o futuro ministro do Exterior concordarão que não devemos comprar brigas que não nos dizem respeito. O mesmo se deve dizer sobre um “alinhamento” mais estreito com os Estados Unidos na arena internacional. Salta aos olhos que a vocação brasileira é a de um global player, um protagonista global, papel para o qual contamos com todos os recursos necessários, desde logo uma base econômica diversificada e potencialmente robusta.

A área para a qual desejava chamar a atenção é, porém, a da educação, que avulta por larga margem sobre quase todas as outras. Ao ministro nomeado, Ricardo Vélez Rodríguez, por certo não faltam credenciais. É um sociólogo competente e um respeitado professor universitário. Não me consta que tenha em algum momento se concentrado sobre os problemas do sistema educacional brasileiro. Alguém poderá redarguir que nossas mazelas nessa área são óbvias, perceptíveis a olho nu. Eis aí uma noção equivocada. As mazelas – quero dizer os maus resultados do sistema – são de fato evidentes, mas a trama das causas e dos mecanismos que os engendram não o são. A vantagem, no caso, é que o dr. Vélez Rodríguez, com sua extensa experiência acadêmica, irá não só se debruçar sobre a matéria, mas ouvir muito e, por sorte, o Brasil dispõe de pelo menos uma dezena de especialistas de grande renome internacional. Se o ministro e meus eventuais leitores me permitem um palpite, direi que o fundamental é compreender a dimensão e a urgência da reforma necessária. Atrevo-me até a afirmar que “reforma” não é a palavra adequada. Na educação, precisamos é de uma verdadeira revolução, que abranja e chacoalhe de alto a baixo o atual o sistema em seus aspectos organizacionais e pedagógicos.

Em artigo publicado na semana passada neste jornal, intitulado O teatro principal, William Waack tocou num ponto sumamente importante: a necessidade de o novo governo não dispersar esforços. Concordo em número, gênero e grau. À parte a educação, à qual me referi no parágrafo anterior, o desafio a enfrentar é o ajuste fiscal, aí incluída a indispensável reforma da Previdência. Mas não vejo como concluir meu argumento sem me referir à questão política propriamente dita e, portanto, à reforma política que cedo ou tarde teremos de fazer. O quatriênio Bolsonaro terá de ser uma freada de arrumação, a reorganização da casa que o tsunami Dilma Rousseff tornou imperativa. Mas tenho a mais plena convicção de que o Brasil não atingirá a velocidade de que necessita no que tange ao crescimento econômico e à redistribuição da renda com o sistema político vigente.

Antigamente, quando a esquerda lia, pelo menos Marx ela lia, o que não deixava de ser uma base razoável. Dessa leitura ela extraía duas convicções passavelmente racionais. Primeiro, que a infraestrutura (ou seja, a base econômica) determinava a superestrutura (ou seja, as ideologias, as regras jurídicas, etc.). Segundo, a de que, de tempos em tempos, a infraestrutura (também chamada de “forças produtivas”) começava a ser tolhida, impedida de se expandir, pela superestrutura (também chamada de “relações de produção”). Enquanto tal restrição perdurasse, a sociedade acumularia tensões cada vez mais graves, que a certa altura resultariam num período de revolução social. Nessa visão, o sistema político da sociedade era de certa forma passivo, um espectador idiota que cedo ou tarde seria levado de roldão pela explosão das forças produtivas.

Qualquer que seja o mérito da tese de Marx em escala mundial, ao Brasil ela me parece decididamente inaplicável. Nossas forças produtivas estão há muito tolhidas por um sistema político sustentado por uma das piores combinações que a História inventou: o Estado patrimonialista, o famigerado “presidencialismo de coalizão” e o voraz corporativismo que permeia de alto a baixo a organização do poder nacional.

*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)


Bolívar Lamounier: Elogio do comedimento

Os fundamentos éticos do regime democrático impõem restrições quanto a fins e meios

A eleição presidencial deste ano só não provocará um retrocesso econômico e político se até o início do ano os cães morderem menos do que têm ladrado. O termo cães é aqui uma metáfora inofensiva que compreende os principais candidatos e seus seguidores, principalmente os que entulharam as redes sociais com insultos e xingamentos durante esta lamentável campanha.

Os decibéis de setembro foram um reflexo fiel da crise que temos vivido, da raiva indiscriminada contra os políticos e partidos e, naturalmente, do matiz autoritário das duas principais candidaturas em confronto. Mas tento ser otimista, adotar a atitude oposta equivale a dar como inevitável o prolongamento do desastre iniciado no governo da sra. Dilma Rousseff.

Penso que o comedimento pode ser reencontrado por diversos caminhos, desde logo pela introspecção pessoal e por uma reflexão mais densa sobre a política. O governo, seja qual for, precisará de apoio no Congresso e os congressistas precisarão de acesso ao governo.

Parlamentos, como bem sabemos, firmaram-se ao longo do tempo como uma força civilizatória.

Uma tendência evolutiva no sentido da moderação pode também ser observada em outros campos de atividade – até no esporte. No futebol, por exemplo, de 20 ou 30 anos para cá, certas “entradas” que antes não eram consideradas faltosas no sentido estrito do termo passaram a ser punidas por envolverem “força desproporcional”. Passou-se a entender que o atleta infrator tentou realizar algo que poderia ter sido realizado por outros meios, ou que ele nem deveria ter tentado, pois não o poderia realizar sem pôr em risco a integridade física do adversário. Por singelo que pareça, esse exemplo indica o interesse comum num convívio mais respeitoso e fraterno, sem embargo do caráter competitivo da atividade.

De fato, os principais pensadores políticos do século 20 ressaltaram a moderação como um traço constitutivo da política, com a condição, é claro, de que por política entendamos uma atividade balizada por instituições, e não a mera brutalidade pretoriana. Max Weber ressaltou o “sentimento de proporção”, Michael Oakeshott caracterizou-a como uma atividade com fins limitados, Hannah Arendt destrinchou a malignidade inerente a todo totalitarismo.

O conceito weberiano de “proporção” e o oakeshottiano de “fins limitados” têm em comum uma recomendação de cautela, de bem ponderar meios e fins, uma vez que, em última análise, toda política digna do nome colima o bem da sociedade pelo ajustamento sempre precário de interesses conflitantes, de fins que colidem.

O bem da sociedade brasileira no próximo quatriênio presidencial passa inevitavelmente pelo ajuste fiscal e pela restauração da confiança dos agentes econômicos em nosso país e em nosso governo; não entender isso, falhar nessa missão, ou pô-la a perder por incapacidade de morder menos implicará um longo período de empobrecimento, conflito crescente e miséria.

A visão da política que venho de alinhavar é em parte fundada em juízos de valor, mas em parte também em juízos factuais, ou seja, em processos constitutivos da vida social de escolhas que se impõem inexoravelmente a todo governante. Como juízo de valor, estamos falando de uma esfera pública regida por uma aspiração de paz e civilidade.

Ver a política como uma atividade limitada, ou que se autolimita, sob pena de deixar de ser tal, num mundo angustiado por grandes urgências e temores? Num mundo que anseia por erradicar a pobreza e a corrupção, por uma proteção mais efetiva do meio ambiente, pela redução da insegurança e do potencial de conflito derivados de antagonismos geopolíticos? Realmente, a “autolimitação” não é uma ideia simples, não por acaso as ideologias passam ao largo dela.

Reiteremos, pois, que Weber e Oakeshott não afirmam apenas que a política deve ser limitada, eles dizem que ela é limitada por uma enorme variedade de fatores factuais.

Ignorar tais fatores leva inevitavelmente aos desnorteios populistas que tanto têm infelicitado a América Latina e a outras formas estúpidas de destruir capital humano e material, que inutilmente enrijecem malquerenças e debilitam nossos Estados e nações. Sim, grandes demonstrações de “vontade política” ocasionalmente dão certo.

De Gaulle encerrou a guerra na Argélia e normalizou a vida política da França na virada dos anos 50 para os 60. Na Alemanha, no segundo pós-guerra, os partidos Democrata-Cristão e Social-Democrata chegaram a um acordo histórico para erigir um sistema político admirável sobre os escombros do nazi-fascismo. Mas para cada experimento bem-sucedido é possível encontrar dezenas malsucedidos, impasses e mesmo desastres decorrentes de alguma inação invencível. Caberá aqui uma referência à inacreditável decadência da Argentina durante todo o transcurso do século 20?

Reiteremos, pois, que Weber e Oakeshott não afirmam apenas que a política deve ser limitada, eles dizem que ela é limitada por uma enorme variedade de fatores factuais. Toda ação política é limitada ou restringida pela resistência “natural” da sociedade, expressão que compreende, desde logo, a existência do “outro”, da oposição, dos que discordam de nós. Sem esquecer que o poder não é um jogo de soma zero: a limitação é uma forma de aumentar o poder agregado da sociedade.

O fato de que nenhuma decisão consegue alterar uma proporção muito grande do status quo social; o fato de que os recursos mobilizáveis são sempre uma pequena parcela do necessário para produzir mudanças em larga escala; a China reinveste anualmente cerca de 40% de seu PIB, mas ainda abriga centenas de milhões de miseráveis. Por último, chovendo no molhado, sabemos todos que os fundamentos éticos do regime democrático impõem restrições quanto a fins e meios.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências; é diretor do 'Ciclo de Estudos de Política, Economia e História'


Bolívar Lamounier: Estará a democracia acabando — novamente?

Não sou ingênuo. Sei que nem todos os habitantes do Congresso e do STF morrem de amores pelos avanços em curso. Mas, vistos em conjunto, creio que tais avanços são irreversíveis

Os principais jornais e revistas do Primeiro Mundo andam meio obcecados com o tema do “fim da democracia”. Entra dia, sai dia, algum deles sentencia que o princípio da representação política parece esgotado. Mas, claro, esquiva-se de explicar qual será a alternativa.

Dediquei algumas páginas a esse tema no capítulo 2 de meu livro “Liberais e antiliberais” (Companhia das Letras, 2016). Mostrei que essa linha de argumentação aparece já bem configurada nas primeiras décadas do século 20, e reaparece de forma cíclica, praticamente nos mesmos termos.

No momento atual, não se requer muito esforço para perceber que, de fato, existe um mal estar mundial. A tecla da morte da democracia é martelada por toda parte, e os adeptos dessa tese geralmente nem se dão ao trabalho de ressaltar que o mal estar é geral, mas suas causas não são idênticas de um país a outro. Como também não são idênticos os setores ideológicos e partidos que propagam tal ideia.

Na edição anterior de Istoé, foi a vez do sociólogo Manuel Castells, professor da Universidade da Califórnia, Berkeley. Castells é um analista fino, que maneja muito bem os dados da realidade, e por isso merece ser lido com atenção. Esquematicamente, o que ele diz é que as democracias estão se autodestruindo por causa da corrupção. Não sei se o que o levou a explorar esse tema foi principalmente a atual situação brasileira, mas pergunto: a corrupção está acabando com a democracia brasileira? Pode ser que sim, pode ser que não.

A afirmação contrária me soa igualmente plausível. Podemos perfeitamente sustentar que, nesse aspecto, a democracia nunca mostrou tamanho vigor em nosso País. Um de nossos maiores empresários passou dois anos na cadeia, um ex-presidente, já condenado em segunda instância, está recluso há mais de cem dias, e os demais que se encontram na mesma condição representam quase todo o espectro partidário.

Pela primeira vez em nossa história, podemos dizer que o regime democrático já não se resume à realização de eleições periódicas. Está chegando àquele estágio em que transparência e accountability (a devida responsabilização penal dos infratores) entram efetivamente na equação. Não sou ingênuo. Sei que nem todos os habitantes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal morrem de amores pelos avanços em curso. Mas, vistos em conjunto, creio que tais avanços são irreversíveis.


Foto: Beto Barata\PR

Bolívar Lamounier: O belo Antônio e Frankenstein

Pensando o impensável: o futuro com presidencialismo e patrimonialismo

Nossa renda anual por habitante está estacionada em torno de US$ 11 mil e por enquanto nada sugere que consigamos aumentá-la a um ritmo superior a 3% ao ano. Nessa toada, levaremos 23 anos para duplicá-la, alcançando o padrão atualmente vigente nos países mais pobres da Europa meridional. Não é preciso um grande esforço de imaginação para compreender que isso será um desastre, acarretando uma elevação intolerável do nível de conflito social, instabilidade política crônica e, no limite, riscos para a própria unidade nacional.

O quadro acima esboçado agravou-se terrivelmente nos últimos anos em decorrência de fatores que ninguém desconhece. O Estado, em tese federativo, é altamente centralizado, sujeito a constantes apertos fiscais e pateticamente ineficiente na condução das políticas públicas. Apesar da centralização, a disputa que lavra entre os grupos corporativos, quase todos incapazes de enxergar um palmo além do nariz, debilita visivelmente a capacidade política do poder central. Ensandecidos na defesa de suas prerrogativas e corroídos internamente pela corrupção, os três Poderes não dão sinais de recuperação. Subjacente a esse quadro lamentável, ou pairando sobre ele, impávido e colosso, temos o demônio histórico do patrimonialismo - o governo orientado pelos e para os “amigos do rei” -, como ficou evidente na facilidade com que o cartel da construção levou todo o sistema à beira da desagregação. Duas questões se impõem, portanto, de maneira inevitável. Como chegamos a tal situação? Que saídas têm sido ou podem ser cogitadas?

A primeira questão pode ser esquematicamente abordada através de um retrospecto da relação entre liberalismo econômico (capitalismo) e político (democracia representativa). Numa ponta, os casos clássicos da Inglaterra e dos Estados Unidos, liberais em ambos os sentidos. Na outra, a URSS e os demais países comunistas, antiliberais em ambos os aspectos, eis que baseados na planificação central, no partido único, na ideologia totalitária e na onipresente polícia secreta. China e Vietnã, para ficarmos nesses dois, inventaram um novo modelo: totalitarismo político e desregulamentação econômica. E onde fica, nessa história, a combinação de liberalismo político sem liberalismo econômico, ou seja, com um mercado distorcido, atrofiado e sujeito a uma sucessão, ao que parece, interminável de intervenções arbitrárias? Fica aqui mesmo, claro: no Brasil.

A diferença fundamental entre o Brasil e a China é que lá a concentração do poder político ainda se dá por meio de um partido ferreamente organizado e orientado por uma ideologia totalitária, enquanto aqui o que temos é um onipresente patrimonialismo, operado por uma classe política e uma burocracia arcaicas. Pelo “Estado cartorial”, como o designava Hélio Jaguaribe, ou o “sistemão”, como concisamente o descrevia Oliveiros Ferreira. Ao contrário do que singelamente pensam alguns, o patrimonialismo não é uma “sobrevivência”, um resto moribundo do colonialismo português, fadado a desaparecer graças apenas à passagem do tempo. A verdade é que ele foi relançado e fortalecido pela ditadura Vargas (1937-1945) e, no pós-guerra, pela tentativa de industrialização acelerada inspirada no nacional-desenvolvimentismo. Hoje, confrontado com um poder central em perceptível debilitação e ao mesmo tempo hostil a uma reforma efetivamente voltada para a descentralização federativa. De um lado, o arcabouço de que se servem os “amigos do rei”; do outro, o poder eunuco, o belo Antônio a que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”. Um Frankenstein tributariamente escorchante que não sabe o que fazer com a fatia do PIB que mantém sob seu controle. Considerado esse conjunto de fatores, não é exagero avaliar que o sistema vigente é uma ameaça à própria democracia.

Isso tem conserto?

Descartemos, por óbvio, o modelo chinês. Se não temos tutano para efetivar as raquíticas reformas que estamos discutindo há anos, é óbvio que o verticalismo e a onipresença do PC chinês não é uma alternativa que mereça ser considerada. E que tal a “democracia direta”? Essa, como sabemos, é a nova mania das grandes publicações internacionais. Vários jornais europeus e mesmo publicações de grande prestígio como Foreign Affairs e The Economist não se cansam de flertar com essa hipótese. Observam, corretamente, que as novas tecnologias permitem aos cidadãos se comunicar maciçamente e em alta velocidade entre si e com os governos. Ou seja, transportar a informação tornou-se um problema banal. Mas a operação de governar vai muito além de tomar conhecimento das demandas sociais; seu cerne é a tomada de decisões imperativas que de algum modo as equilibre ou equacione. E quanto a isso a teoria da democracia direta tem muito pouco a dizer.

Suponhamos, porém, tendo em vista o caso brasileiro, que por via de tais teorias cheguemos a formas concretas de “empoderar” (argh!) um grande número de grupos sociais. Estes, evidentemente, não usariam seu poder apenas para tecer loas aos governantes de plantão, mas para pressioná-los, confrontá-los com suas demandas, multiplicando-as até o infinito. Se em sua forma atual, claramente oligárquica, nosso Estado é cronicamente deficitário, como iria ele manejar esse aumento exponencial de exigências e reivindicações?

Concluindo, direi, pois, que a saída, se existe, começa por cortar a cabeça do Estado-camarão, privatizando seus penduricalhos empresariais e concentrando suas energias nas áreas sociais. Instaurar, efetivamente, a Federação. E substituir o “presidencialismo de coalizão” por um parlamentarismo racionalizado, como o adotado no segundo pós-guerra pela Alemanha, a fim de impedir a petrificação de impasses que acabou por paralisar a economia brasileira.

* Sócio-diretor da Consultoria Augurium, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. É autor do livro ‘Liberais e antiliberais: o confronto ideológico de nossa época’ (Companhia das letras, 2016)


Bolívar Lamounier: Um bico de pena para corações fortes

O resultado da eleição afetará a recuperação econômica, podendo até mesmo revertê-la

Para mim, a quantidade de sandices, disparates e aberrações que vemos e ouvimos diariamente sobre a vida pública brasileira só tem uma explicação: a maioria das pessoas não consegue imaginar o quanto a situação atual pode piorar.

Quando digo “as pessoas” não me refiro a toda a sociedade e certamente não às camadas de menor renda e escolaridade. Estas padecem de severas limitações no tocante à compreensão das informações que recebem. Desse ponto de vista, não existe e nunca existiu uma sociedade homogênea e é por isso que as camadas médias e altas têm de arcar com uma parcela maior de responsabilidade no que diz respeito à manutenção de padrões razoáveis de racionalidade social. Afirmar o contrário, como diuturnamente fazem aqueles que se arvoram em críticos do “elitismo”, é mera demagogia. Mesmo os cidadãos mais informados e lúcidos às vezes se esquecem de que a destruição do que acabamos de construir pode ser rápida, mormente quando causada por erros palmares na condução da economia e dos negócios do Estado, como ocorreu no período de governo da sra. Dilma Rousseff.

Nas ciências humanas, uma constatação central na evolução do conhecimento histórico durante o século 20 foi a de que qualquer país, mesmo os mais adiantados, pode sucumbir a retrocessos gravíssimos (preciso lembrar o caso alemão?). Nos países que ainda se debatem com o desafio de criar condições aceitáveis de renda para a maioria da população, essa constatação assumiu um sentido simétrico: nada garante que progrediremos de forma natural e indefinida. Não chegaremos ao patamar social que almejamos nem mediante um sistema de planificação macroeconômico nem por obra e graça de uma mão invisível infinitamente benigna. Não há um bom porto previamente construído, pronto para nos dar as boas-vindas; haverá, talvez, se o soubermos construir, passo a passo, ou seja, operando para que a sociedade em que vivemos não se afaste demasiadamente de um padrão médio de racionalidade. Para nos convencermos disso, como antecipei, precisamos não só aspirar a um futuro melhor, mas também a aprender a temê-lo, quando começamos a perder até os elementos básicos da comunicação social, a linguagem da política, e todo senso de realidade.

Nosso poeta maior, Carlos Drummond, escreveu que no meio do caminho havia uma pedra. O Brasil não tem uma, tem muitas pedras, e pelo menos três delas deveriam estar bem nítidas em nosso radar coletivo: o impacto da corrupção no sistema político e os consequentes embates entre a Lava Jato e o STF; a natureza do PT e do lulismo como entidades políticas, responsáveis principais pelo rancor que vem corroendo até os fundamentos linguísticos do debate público; e, não menos importante, os ventos malignos que a caixa de Pandora da eleição presidencial tem o potencial de liberar.

Além de sua escala espantosa, a teia de corrupção desvendada nos últimos anos evidenciou, acima de qualquer dúvida, dois aspectos de nossa estrutura institucional que percebíamos, mas talvez não quiséssemos identificar em toda a sua crueza. De um lado, a desagregação praticamente total da organização partidária, que a esta altura não cumpre papel algum, nem mesmo o de prover ao público uma elementar sinalização das posições que se manifestarão na eleição de outubro. Há pesquisas indicando que metade do eleitorado não se dispõe a votar e a outra metade votará muito mais com os pés que com a cabeça, procurando o candidato ou candidata que melhor expresse sua cólera sobre tudo o que tem acontecido. E dado que a política abomina o vácuo, a “judicialização da política” atingiu níveis virtualmente impensáveis. Não só pela debilidade dos partidos e do Legislativo, claro, também pelo impacto da Lava Jato; mas como desgraça pouca é bobagem, o que estamos a presenciar diariamente é um STF ao mesmo tempo intervencionista e causticamente dividido internamente. Quatro ou cinco ministros parecem menos interessados em colocar a instituição na altitude arbitral que a Constituição lhe atribui do que em bloquear os avanços logrados no combate à corrupção.

O segundo ponto a considerar é a natureza do PT e do lulismo dentro de nossa história democrática e de nossa presente engrenagem institucional. Não se requer mais que um simples retrospecto dos 37 anos de existência do partido para concluir que ele se alimenta de uma ambiguidade constitutiva em relação à democracia representativa. Põe um pé dentro dela e outro fora, trocando-os conforme suas táticas e conveniências. Carece por completo de uma fundamentação doutrinária inteligível: tanto podemos qualificá-lo de marxista como de anarcossindicalista (segundo as Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel), como de uma agremiação que cultiva a política na forma dual recomendada pelo teórico pré-nazista Carl Schmitt: o “nós” contra “eles”, ou o amigo contra o inimigo. Esses traços já seriam graves, mas é preciso acrescentar que a inspiração soreliana implica uma paixão incontível pela ação direta, pelo desrespeito às instituições, na contestação das normas constitucionais vigentes, como temos visto seguidamente nos bloqueios de vias públicas e estradas e num persistente esforço de erosão das normas do convívio social.

Por último, mas não menos importante, a eleição de outubro, cujos contornos se apresentam nebulosos. O resultado, qualquer que seja o presidente escolhido, afetará profundamente o processo de recuperação econômica, podendo mesmo (queira Deus que não!) revertê-lo. Os melhores prognósticos que os economistas têm aventado para o quatriênio indicam um crescimento anual medíocre do PIB (2% talvez) e a dívida bruta do setor público chegando a 90% do PIB em 2021. E esse, entendamo-nos, é o mínimo necessário para podermos pensar num desempenho aceitável a partir daquela data.

* Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciência.


Bolívar Lamounier: Dois importantes pronunciamentos

O do primeiro-ministro chinês Xi Jinping e o do deputado federal brasileiro Tiririca

Na semana passada e na anterior tivemos dois importantes pronunciamentos: o de Xi Jinping, primeiro-ministro chinês, e o de Tiririca, deputado federal brasileiro. A importância do primeiro decorreu mais do peso econômico e político da China no mundo que de seu conteúdo. Afirmo isso porque a substância do pronunciamento é bem conhecida.

Em sua fala de três horas e meia, o mandatário chinês reafirmou que a China é hoje uma superpotência econômica e política e fadada a um importante protagonismo no cenário mundial. E não precisou bater no peito para indicar que ele, como líder do Partido Comunista, está próximo de atingir uma estatura política comparável à de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.

Mantidas as devidas proporções, Tiririca também disse uma coisa relevantíssima, embora desconhecida da maioria dos brasileiros. Anunciando que não pretende se recandidatar no ano que vem, ele afirmou: “Vim para cá pensando em aprovar projetos, mas a coisa aqui é muito complicada”. Para bom entendedor, pingo é letra.

A referência principal de sua curta sentença é, sem dúvida, o poder absurdo que as Mesas do Senado e da Câmara detêm. Nenhum senador ou deputado consegue aprovar projeto algum se elas não quiserem, só com uma paciência de Jó e puxando bastante o saco dos respectivos presidentes.

Esse mecanismo explica um dos maiores paradoxos do Legislativo, dois traços perversos que qualquer cidadão percebe a olho nu: de um lado, o governismo sem-vergonha que reduz as duas Casas a uma quase total impotência, fraudando a estipulação constitucional do equilíbrio de Poderes e desestimulando carreiras políticas sérias; do outro, revoltas inesperadas, surtos de rebeldia, notadamente no chamado “baixo clero”, cujo objetivo é invariavelmente aumentar o custo do apoio às Mesas e, por via de consequência, ao Executivo. Há quem singelamente acredite que a debilidade e a mediocridade do Legislativo sejam como uma danse sur place, um ponto de equilíbrio muito ruim, mas estático. Ledo engano.

O que se passa no Brasil, mercê do equivocado conjunto de engrenagens que compõe nosso sistema político, é um paulatino deslocamento para um equilíbrio cada vez pior. Uma das faces mais visíveis desse processo é a incapacidade do Legislativo, evidente já há muitos anos, de recrutar bons candidatos. Por que cargas d’água uma pessoa apta a desempenhar cá fora um papel de relevo vai se meter numa máquina de moer carne como aquela?

Tiririca disse que não vai se recandidatar, e eu acredito nele. Tem toda a razão: entre ser figurativo ou de verdade, é melhor sê-lo de verdade, cá fora. Circo por circo, os de cá são mais engraçados.

Claro, o deslocamento do equilíbrio para pior deve-se à operação de outros mecanismos, não só ao poder das Mesas. A proliferação desordenada de partidos carentes de identidade é um deles. É mais ou menos assim que a coisa se passa: um aventureiro ou um grupelho qualquer funda um partido e obtém no Tribunal Superior Eleitoral o devido reconhecimento. Só com esse passo ele (aventureiro ou grupelho) já se habilita a participar dos recursos do Fundo Partidário. Se conseguir eleger um punhado de deputados ou senadores, habilitar-se-á a vantagens não menos suculentas: entrará no universo conhecido como “presidencialismo de coalizão”, usando seus votinhos como poder de chantagem para integrar a maioria governista, que cedo ou tarde, no limite, vai precisar deles. A contrapartida do Executivo pode ser em cargos nos ministérios ou nas estatais, mas, em caso de necessidade, há quem a aceite em moeda sonante, como ocorreu abundantemente no “mensalão” arquitetado pelo ex-presidente Lula.

Claro, a proliferação de agremiações acirra a disputa na arena eleitoral. Em cada Estado, um número cada vez maior de pretendentes começa a dar cotoveladas, a azeitar o caixa 2 e a clamar por “chances” proporcionais à contribuição que haverão de prestar à jovem democracia brasileira. Foi assim que, pela Constituição de 1988, deixamos para trás aquele saudável teto de 400 e poucos deputados e passamos aos 513 que integram atualmente uma Câmara proporcionalmente muito maior que a dos Estados Unidos!

Sejamos francos: para que tantos deputados e senadores? Por que não estabelecemos um mínimo de seis (em vez de oito) deputados e dois (em vez de três) senadores por Estado?

Mas seria ainda o caso de rir, e não de chorar, se nossos parlamentares fossem totalmente cínicos, defendendo tais disparates tão somente como uma engrenagem apta a acomodar seus interesses. O problema é que muitos não são cínicos. Muitos há para os quais esses mecanismos são o alfa e o ômega da sabedoria política, a estrada real que levará nosso país ao que chamam de “verdadeira democracia”. Para esses, quanto mais assentos no Legislativo e quanto mais partidos, melhor. Ora, se assim é, por que não uma Câmara com cinco ou dez mil parlamentares, cada um com seu próprio partido? Os que assim pensam não percebem que um corpo superdimensionado é uma forma de debilitar, não de fortalecer o Legislativo, uma forma de desnaturá-lo e castrá-lo, transformando-o num apêndice (é certo que barulhento!) do Executivo.

No Paper Federalista n.º 51, um dos estudos que elaborou como contribuição à Constituição americana, James Madison escreveu: “Se a assembleia de Atenas tivesse dez mil membros, com certeza deveríamos vê-la como uma horda de arruaceiros, não como um corpo deliberativo sério”. Eu só faria um pequeno acréscimo: uma horda formada por um baixo clero de uns nove mil e novecentos, precariamente controlados por uma elite de talvez cem.

 

 

 


Bolívar Lamounier: O povo semissoberano 

Nas democracias atuais, jazem moribundos em covas rasas os antigos argumentos antiliberais

Durante quase dois séculos diferentes escolas de pensamento tentaram explicar as imperfeições e rupturas dos regimes democrático-representativos. O esforço clássico – e mais antigo – foi o de Jean-Jacques Rousseau, que contestou a própria ideia de representação. Em sua linha de raciocínio, o indivíduo iludia-se com o efêmero status que o processo eleitoral lhe proporcionava: cidadão por um dia, mas no dia seguinte retornava ao estado de imemorial submissão em que se encontrava desde priscas eras. Não chegaria jamais ao status de membro pleno da coletividade enquanto se concebesse como um simples indivíduo, e não como uma parte indissociável daquela entidade mística e homogênea, o todo permanente reunido em assembleia.

A segunda linha de crítica, muito mais potente, remonta a meados do século 19 e parte de um ponto de vista exatamente oposto. O problema não era o individualismo excessivo, mas o fato de a maioria da sociedade não ter acesso a uma condição de verdadeira autonomia individual. Por toda parte, o que vemos são maiorias supostamente aptas a legitimar (por meio do voto individual e igual de cada um) minúsculas oligarquias, mas na prática o que ocorre é o oposto: tais maiorias são clientelas facilmente controláveis e manipuláveis pelas minorias governantes. O clientelismo rural, por exemplo, afetando a maior parte da população, era um poderoso impedimento à igualdade substantiva e, consequentemente, da verdadeira democracia. Incapazes de se “atomizarem”, ou seja, de se tornarem indivíduos realmente autônomos, as maiorias não correspondem nem ao modelo da cidadania mobilizada concebido por Rousseau nem à sociedade individualizada do liberalismo; são como uma grande ameba, uma massa amorfa incapaz de qualquer protagonismo.

Nos limites de um artigo é impossível destrinchar a teia de juízos de valor e de equívocos factuais subjacente a essa longa história, mas é imperativo sublinhar alguns estágios dela se quisermos compreender a contraditória percepção do mundo atual acerca da democracia. Em 1942, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia, o economista Joseph Schumpeter detonou a antiga suposição de que as grandes massas eleitorais do mundo moderno têm de ser constituídas por indivíduos igualmente autônomos, bem informados e aptos a exercer cargos no governo, se convocados a tal. Schumpeter escreveu que a função do eleitor se reduz a dar seu voto a um dentre os grupos contendores, que são eminentemente grupos técnicos, especializados na gestão do Estado. Em 1961, não se permitindo o cinismo implícito no argumento schumpeteriano, Elmo E. Schattschneider, no livro The Semisovereign People, armou uma equação mais interessante. A função do eleitor é de fato irrelevante, ou quase isso, onde não há partidos políticos dignos do nome; onde eles existem, o eleitor de fato não governa diretamente, mas pode exercer uma influência substancial, não raro determinando os rumos da política pública. Mas um “verdadeiro” partido, o que é? Simplificando ao máximo, a resposta dele foi: uma organização não só especializada na disputa política, mas que a pratica sem jamais se deixar absorver ou subjugar por grupos de interesse, sejam estes econômicos, religiosos ou de qualquer outra natureza. A função do partido é transcender e agregar tais interesses num nível mais geral; e um que se deixe incrustar e controlar por meia dúzia de empreiteiras, por certo, não merece ser chamado de partido.

Penso que a realidade atual, e não só a brasileira, está a exigir uma reflexão mais abrangente. Nas democracias atuais, com seus grandes eleitorados e técnicas apropriadas de votação, os antigos argumentos antiliberais jazem moribundos em covas rasas, aguardando o sepultamento a que fazem jus. Mas a questão permanece: vamos bem ou vamos mal? O modo democrático de viver está se robustecendo ou, ao contrário, correndo riscos onipresentes, cuja dimensão ainda não conseguimos avaliar? A visão pessimista pode invocar argumentos poderosos, muito mais sérios que os tradicionalmente associados ao controle clientelista do eleitorado e até mesmo aqueles derivados das desigualdades sociais. Outro dia o professor Benício Schmidt, da UnB, postou no Facebook uma especulação sinistra. Na Colômbia, agora que as Farc se transformam em partido, teremos o narcotráfico controlado por uma organização ou disperso entre várias organizações beligerantes e bem armadas? Hipóteses desse tipo podem ser multiplicadas ad infinitum.

Mas a hipótese otimista também merece respeito. Os avanços no combate à corrupção talvez representem não apenas um aumento na higidez dos regimes democráticos, mas um passo decisivo no sentido de tornar realidade um de seus pressupostos essenciais. Democracia, como o termo é hoje entendido pelos cientistas políticos, é um regime no qual indivíduos privados ascendem a posições de autoridade mediante eleições periódicas, limpas e livres, das quais a maioria da população adulta participa. Admitamos, porém, por um minuto, o antigo sarcasmo dos antiliberais: como pode ser soberano um corpo eleitoral que desconhece os elementos mais importantes da gestão do Estado? Suponhamos, no caso brasileiro: qual é a real importância dos votos de 145 milhões de eleitores que até pouco tempo atrás desconheciam por completo o modo de agir de um BNDES, de uma Petrobrás, de uma Eletrobrás?

Salta aos olhos que, sem um enorme avanço na transparência, no acesso a informações do tipo mencionado e numa drástica redução da impunidade, o pressuposto democrático da soberania popular permanecerá, realmente, vulnerável ao escárnio.

* Bolívar Lamounier é cientista político, é sócio diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

 

 

 

 


Bolívar Lamounier: Reforma política, muito barulho por quase nada

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas de eleição e de governo?

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas de eleição e de governo?

Confio em que Shakespeare não se amofinará por eu plagiar o título de sua celebrada comédia (Much ado about nothing). Creio, mesmo, que o bardo me concederá um duplo perdão, pois eu bem preferiria relembrar as peripécias dos amantes de Messina a discorrer sobre as frustrações que temos colhido, ano após ano, toda vez que o Congresso Nacional discute a chamada reforma política.

Para não parecer birrento, faço duas ressalvas iniciais. De um lado, minha eterna frustração se deve à timidez das propostas, ao chamado “fatiamento”, à falta de uma visão mais abrangente. Sabemos todos que o futuro econômico e social do Brasil está profundamente comprometido pela ruindade de nosso político. Quando vamos encarar a sério as deficiências de nossos sistemas eleitoral e de governo, o gigantismo paralisante do Congresso Nacional (três senadores por Estado!), as desproporções entre bancadas e populações estaduais e talvez, sobretudo, a necessidade de cortar a cabeça do nosso Estado-camarão, descentralizando e instituindo uma Federação viável e funcional?

Em segundo lugar, ressalvo – como é justo – a importância de uma das alterações cogitadas: o fim das coligações entre partidos nas eleições proporcionais (deputados federais e estaduais e vereadores). Devia ser um gênio o sujeito que pela primeira vez concordou com esse tipo de coligação, nele condensando uma notável coleção de falcatruas. Na quase totalidade dos casos, os partidos que recorrem a esse mecanismo o fazem apenas para somar seus votos com o intuito de atingir o chamado cociente eleitoral (a divisão do total de votos válidos pelo número de cadeiras a preencher em cada Estado). Como em todos os sistemas baseados na representação proporcional, só os partidos que atingem tal cociente (ou seja, que elegem pelo menos um parlamentar) participam das divisões sucessivas mediante as quais se dá a alocação de suas respectivas “sobras” de votos. E aí é que se dá o pulo do gato. Para o fim a que acabo de me referir, uma coligação é equiparada a um partido, por díspares que sejam suas ideologias, seus programas e objetivos políticos. Nada garante que se mantenham unidos após a eleição.

Outra falcatrua, à qual meus leitores talvez não tenham dado a devida atenção, é que os sistemas de representação proporcional foram inventados para permitir certo grau de diferenciação entre partidos, ou seja, a formação de identidades propriamente partidárias, ao contrário do que tende a ocorrer no chamado voto distrital puro, que personaliza muito mais a eleição, uma vez que a grande circunscrição nacional ou estadual é subdividida em circunscrições menores, cada uma elegendo apenas um candidato. Ciente da balbúrdia em que se transformou a nossa organização partidária, o leitor pode ficar com uma pulga atrás da orelha, pois já se acostumou a entendê-la como uma decorrência direta do método proporcional.

A pulga, quero dizer, a dúvida é compreensível, mas em termos históricos e teóricos o fato é indiscutível: a tendência mais partidária da representação proporcional contrapõe-se à mais individual do voto distrital (representação majoritária uninominal). Louvem-se, portanto, o fim das coligações e a adoção do salutar princípio do “cresça, depois apareça”: ou seja, a exigência de um lastro mais sólido dos partidos que se fazem presentes nos Legislativos, nos três níveis da Federação.

Não acolho com o mesmo entusiasmo as outras alterações propostas. Como registrei neste espaço poucos dias atrás, todo ano, quando nos pomos a discutir a reforma política, nosso Congresso permite entrever uma estranha inclinação a primeiro tentar agir, deixando para pensar depois. Esquiva-se, invariavelmente, de primeiro responder às questões-chave: reformar o quê, como, para quê? Em relação ao sistema eleitoral, por exemplo, em vez de responder a essas singelas indagações, a Câmara dos Deputados pôs sobre a mesa a esdrúxula ideia do “distritão”, como se substituir o vigente modelo de representação proporcional por uma fórmula plurimajoritária fosse a coisa mais simples do mundo. Graças aos céus, os nobres integrantes da Comissão da Reforma Política detonaram tal proposta com a mesma ligeireza que evidenciaram ao colocá-la em discussão.

Em seguida, quando se concentraram na chamada cláusula de barreira, deixei-me momentaneamente levar por um equivocado júbilo, querendo crer que os parlamentares se haviam finalmente convencido da necessidade de frear drasticamente a proliferação de siglas, simplificando e estabilizando a estrutura partidária, a exemplo do que fez a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, onde um partido só tem acesso ao Bundestag se obtiver 5% da votação nacional (ou, desde 1957, três mandatos pessoais diretos, nos distritos uninominais). Começa que os nossos congressistas, a fim de tornarem o assunto mais simpático, evitaram a aspereza germânica de Sperr, que deve ser traduzido como barreira, mecanismo de exclusão, e rebatizaram o referido mínimo de votos como cláusula de desempenho. Mais importante, entretanto, é que a ideia de excluir nem lhes passou pela cabeça. Na verdade, o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282 é outro. É estabelecer que alguns partidos são mais iguais que outros. Teremos, de um lado, os partidos que, ao atingir a “barreira”, tornam-se membros plenos da Câmara, com direito ao funcionamento parlamentar e aos recursos financeiros do Fundo Partidário; e, do outro, aqueles que, não a tendo atingido, ficam com o direito de “funcionar”, mas sem acesso ao financiamento público e demais benesses. É fácil de prever a enxurrada de ações que vai inundar o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade dessa cláusula.

* BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA E MEMBRO DAS ACADEMIAS BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E PAULISTA DE LETRAS