Blog Democracia Política e novo Reformismo

Paulo Fábio Dantas: Atos democráticos contrastam com os mil crimes de cada dia

Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fake news voltaram a operar intensamente

Paulo Baía / Democracia e Novo Reformismo

Ainda não há número razoável de pesquisas para captar com segurança algum virtual efeito sobre a avaliação de imagem e sobre o nível de rejeição de Jair Bolsonaro que possa ter havido a partir de 9 de setembro, o dia da carta em que recuou da escalada golpista que culminara nos atos do dia 7. Seguiu-se uma distensão na sua atitude, o que levou parte dos analistas a supor que ele chamaria de volta à cena o Bolsonaro 2, mais contido e razoável. Afinal, era a conduta racional óbvia a seguir, diante da queda livre nos seus índices de popularidade e do isolamento político em que se metera. Amigos de fato (se é que os tem) devem ter lhe dito que valia, ao menos, testar a inflexão, para tentar reverter o desastre.

Parece que não haverá tempo para captar coisa alguma. A tal distensão logo se converteu em campanha eleitoral aberta (que em si mesma já é um delito), cenário propício para Bolsonaro voltar a ser o Bolsonaro de quase sempre. Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fakenews voltaram a operar intensamente, elegendo alvos habituais de combate.  Comunismo, homossexuais, a China e - é claro - Lula e o PT voltaram a ser temas privilegiados de suas taras retóricas, que são a base “conceitual” das fakenews.

Poupo os leitores de previsões sobre efeitos dessa recaída em índices de pesquisa. É preciso notar, por outro lado que, pela enésima vez, se revela o lugar que eleições ocupam na escala de prioridades de Bolsonaro. Lugar complexo, que é de prioridade no seu texto, mas no subtexto a prioridade é o movimento contra elas, para esterilizá-las, se possível ensanguentá-las e, no limite, cancelá-las. A cada dia é menos crível que tenha sucesso, mas ele segue nessa toada, como é da sua natureza. Se sucumbir, apesar de sua vontade indômita, ou por causa dela, quer levar muitos consigo, se possível a humanidade toda.

Trata-se do exercício pleno de um direito de natureza superficialmente hobbesiano (direito a fazer tudo que seu apetite quiser, por meios que seu cálculo indicar). Em sua versão bolsonarista, esse suposto direito não conhece limite de qualquer lei, nem mesmo da primeira lei de natureza que Hobbes sugere como uma lei racional de autopreservação. Ela indicaria ao apetitoso celebrar alguma paz, por ver também nos demais o potencial egoístico e destrutivo que reconhece em si. Esse cálculo racional seguinte ao movimento (também “natural”) de fazer a guerra, faria, do” homem lobo do homem”, um sujeito racional, com senso de perigo, ainda que dotado de razão limitada, guiada por instinto. O lobo que nos sequestra, tosco, temerário e criminoso, ofende a complexidade do homem hobbesiano e segue, na ignorância de si e do mundo, instando um país a pular com ele na vertical do precipício, endereço oposto ao que pode nos levar a política, sua maior inimiga. 

É compreensível que uma sociedade assim sequestrada, como a do Brasil atual - onde vigora uma república democrática altamente inclusiva do ponto de vista eleitoral e governada num sistema presidencialista - resista institucionalmente, como corpo social e nacional (sociedade política e sociedade civil) e, ao mesmo tempo, busque, ao se constituir em eleitorado, sua salvação em quem encarne a ideia de política, na sua comunicação concreta com o cotidiano das pessoas comuns.  Felizmente os dois movimentos estão ocorrendo e mostram que o país não está inerte, apesar da dor. Da reação institucional e civil resultam o relativo isolamento político e a contundente rejeição popular a Bolsonaro. Sua tradução pré-eleitoral é, no momento, a confortável liderança de Lula nas pesquisas. Engana-se quem tiver a visão toldada por certas idiossincrasias de cunho partidário. Os dois fenômenos são complementares. São, respectivamente, as faces republicana e democrática de um só movimento de autopreservação do país. A face republicana (a reação institucional e politicamente unitária em defesa da democracia) é perene, conservadora, como um firmamento e é bom que assim seja. A face democrática (liderança de Lula nas pesquisas) é, por definição, mais dinâmica e, como as nuvens no firmamento, está sujeita a deslocamentos visíveis, sem comprometer o sentido geral do movimento.

Proponho que se analise, sob essa moldura, as manifestações contra Bolsonaro, marcadas para este sábado. Escrevo antes que tenham ocorrido, logo, evitarei previsões imprudentes sobre seu nível de sucesso ou insucesso, em termos de afluência de público e, também, ilações prévias sobre como os atores políticos diversos as interpretarão a partir da noite de hoje. Sobre o que é esperado (ao menos do ponto de vista lógico, que, como sabemos, não é o único ponto de vista válido numa conjuntura como essa) pode-se dizer apenas que quem está contente com Bolsonaro deve torcer para que fracassem e recepcionará de modo simpático qualquer versão, real ou fake, que constate o fracasso. Inversamente, quem está descontente com o que se vive no Brasil engrossará a manifestação e/ou torcerá por elas. Aqui também se deve reparar em textos e subtextos.

Há visível e meritório esforço para divulgar esses atos de modo amplo, digo mesmo plural, evitando-se sua apropriação prévia por esse ou aquele partido. Do mesmo modo evita-se realçar os aspectos eleitorais que, objetivamente, estão envolvidos no ambiente político em que se dá a iniciativa. Há um evidente contraste entre esse tom moderado e precavido e a despudorada apelação eleitoral da insólita “celebração” bolsonarista dos seus mil dias de catarse, respectivos aos mil dias que já dura o infortúnio, para a maioria da nação. Um Henrique VIII de fancaria, que já cercado de varões de sangue, não pode, contudo, obrigar o povo a aceitar essa herança. Por isso insiste em sacrificar eleições e tudo o mais que há de feminino ao nosso redor, em busca de entregar o futuro do país a milícias de machos toscos e sanguinários, que hoje formam um séquito para ele e seus rebentos numerados.

Haverá quem diga que nas aventuras golpistas e machas de Bolsonaro sobra autenticidade, quem sabe até sinceridade, enquanto em atos políticos liberal-democráticos a dissimulação é a marca. Sociedades sofrem muito até compreenderem que a política é dissimulação benfazeja, se vista sob o prisma da representação. É ela, a representação, que permite (e obriga) ao político agir na direção de algo mais, além do seu interesse particular. Ao se dirigir a um ato público perante cidadãos mobilizados, ou ao falar com o eleitor que se dirige à urna, o político democrático procura, seja por convicção ou por sobrevivência (e uma coisa não anula a outra), prestar atenção nas aspirações e interesses desse público e colocar seus próprios interesses e expectativas em interação com eles. Por isso, um potencial candidato contém sua “sinceridade” ao perceber que as pessoas comuns ainda não estão se preocupando centralmente com a eleição e sim com coisas que afligem mais objetivamente o seu cotidiano e que podem fazê-las protestar contra Bolsonaro. Mais adiante votarão em alguém, mas atrapalha quem quiser fazê-las decidir seu voto agora.

O mesmo político que tem esse senso de limites e sabe calibrar seus desejos na dose e proporção corretas em que possam ser compartilhados por quem, afinal, é o senhor do seu futuro político, também sabe que não está na mesma posição objetiva do cidadão comum e eleitor. Se confunde realmente a sua posição de representante com a dos representados, ele é um descompreendido que deveria estar em outro lugar diferente da política. Se não confunde e faz de conta que confunde essa não é uma dissimulação benigna porque deseduca. Ele dissimula e adia a exposição de suas motivações não em respeito à prioridade das motivações do eleitor, mas no intuito de confundi-lo, tentando ocultar sua condição de parte da elite política, ou de aspirante a essa condição. Uma das coisas mais importantes para a maturidade de uma república democrática é a compreensão realista, por parte dos cidadãos e cidadãs, de que ela não é o governo do povo, mas sim o governo de governantes escolhidos pelo povo e exercido através de mandatos e partidos.  Quem esconde isso dos seus eleitores pode se considerar democrata ou até sê-lo, em certo sentido. Mas será, principalmente, um demagogo.

Então que seja bem-vinda, no presente momento, a dissimulação das motivações eleitorais de políticos e partidos que apoiarem ou aparecerem nas manifestações de hoje. O país agradecerá por essa prioridade concedida à sua necessidade de protestar contra o que aí está. Mas isso não isenta o analista da conjuntura política de interpretar os movimentos dos vários atores políticos, pois eles, apesar de contidos pelas circunstâncias e limites da sua missão representativa, não podem e não devem deixar de agir estrategicamente. É exigência básica do ofício, que a sociedade deve fazer à elite política para que seja eficaz

Foi feliz a senadora Simone Tebet, ao se manifestar no modesto, mas significativo ato da Avenida Paulista, em 12 de setembro último.  Disse ela que ali estavam reunidos o centro e a direita democráticos, que em outubro seria a vez da esquerda e que ela acreditava ser possível, em novembro, todos estarem reunidos num ato só. A sabedoria da fala consiste em, ao mesmo tempo, pregar a unidade e reconhecer, de modo realista, a diversidade que faz a sua construção ser complexa e por isso exige um tempo político para ser veraz.

Pois bem, chegou o dia da esquerda se submeter ao teste das ruas. Por mais que ela tenha dividido, estrategicamente, a convocação dos atos com outras forças, essa sabedoria prática (política) não revoga o fato de que é ela, a oposição de esquerda, a mola propulsora da mobilização de hoje. Políticos de centro e de direita nada perderão se reconhecerem isso. Assim como não perderão se admitirem o que salta aos olhos, isto é, que a esquerda tem uma capacidade de mobilizar muito maior. Ir além do óbvio é dever de quem pensa. Tentar negá-lo é erro crasso de quem age. Ademais, qualquer iniciante em política sabe que isso não é predição de necessário sucesso eleitoral. Há vários exemplos de situações políticas em que mobilizações da esquerda nas ruas abriram caminho a soluções políticas de centro pelas urnas. São exemplos de sinergia positiva entre esquerda e centro. Outros exemplos, agora de sinergia negativa, ocorreram quando manifestações volumosas da esquerda (como a do “elle não”, a uma semana do segundo turno de 2018) ajudaram à agregação do eleitorado conservador em torno de um proto-fascista como Bolsonaro. Em parte, isso depende do tom e sentido da mensagem política emitida por um ato público. Na maioria das vezes dá em desastre dizer em público o que se diz sob o teto da sua cozinha.

Penso que os atos desse sábado estão distantes desse erro. As cozinhas mais importantes estão fechadas em público e se pretende que o ato transcorra no salão principal, onde a moderação é a regra. Mas principalmente os políticos de centro ou de centro-direita que a ele comparecerem não podem se iludir ou fazerem de conta que não sabem quem é o sujeito oculto das festas que se farão Brasil afora, mesmo se o anfitrião real, sabiamente, se fizer representar por terceiros e, no caso de São Paulo - o salão principal - pelo terceiro que o representou até na urna, mas que agora, ao que tudo indica, terá sua missão limitada ao eventos preliminares, ou eventos-teste, como esse de hoje. Treino é treino, jogo é jogo. A folha seca não precisa vir agora e a rigor não se sabe de quem ela partirá, na hora devida.

Se Lula está, ao que parece, se contendo em limites convenientes ao que pode vir a ser uma candidatura ampla, de envergadura maior que sua própria trajetória como personagem do campo da esquerda (ainda que tenha um dia dito não ser de esquerda, hoje isso poderia ser um sincericídio, mas pode deixar novamente de ser, daqui a pouco), a contenção que se espera de quem pode vir a ser seu parceiro conflitivo num eventual futuro palanque é a de quem sabe o terreno em que pisará hoje e por isso pisará devagarinho. São todos convidados a uma festa que tem dono, por mais que venha a ser uma festa ampla e aparentemente gratuita, com direito a assinaturas colegiadas no convite formal.

Há dois tipos de visitas indesejáveis e incômodas em qualquer festa, mesmo as feitas oficialmente para apenas protestar: o puxa-saco e o bicão. O primeiro quer mimetizar os anfitriões, ostentar afinidades e sintonias artificiais e com isso enche o saco e granjeia desprezo. O segundo disputa protagonismo, é capaz de querer fazer as honras da casa aos desavisados, aparecer como parceiro nos bem-feitos e/ou crítico dos malfeitos da família. Para esse aí o primeiro remédio – “dar gelo”, que pode funcionar melhor com puxa-sacos – pode não bastar e aí os anfitriões podem tratá-lo como penetra e chamar a segurança. 

Os que perseguem (no bom sentido) a terceira via não precisam proferir a palavra maldita. Cão que late não morde. Cabe ser educado na casa alheia, comportar-se como visita sensata, mas altiva, mesmo se convidada a se sentir em casa. E seguir trabalhando seu campo político para que chegue ao grau de agregação política e densidade eleitoral ao qual a esquerda chegou, não importa por quais caminhos ou com qual discurso ou programa. Importará sim, e muito, na hora de se dirigir ao eleitor, se o golpista que ocupa o governo já não oferecer perigo, nem de reeleição, nem de promover caos. Mas não nesse momento de ato unitário contra ele, quando o primeiro perigo saiu do horizonte, mas o segundo não.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Blog Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-gestos.html


A maior onda de protestos em Cuba nos últimos 30 anos

O governo de Cuba enfrenta os maiores protestos populares em 30 anos. O presidente Miguel Díaz-Canel alega que a crise é consequência do embargo econômico promovido pelos Estados Unidos. A falta de vacinas contra a Covid e a escassez de comida e remédios tornam a situação ainda mais complicada na Ilha caribenha.

Para analisar a situação do país e as conquistas históricas da revolução cubana, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira conversa com Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e novo Reformismo. Nascido em 5 de dezembro de 1935, em Limoeiro, Pernambuco, Gilvan foi dirigente estudantil na década de 1950 e estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais, em Moscou. Com o golpe militar de 1964, esteve preso, em Recife, e ficou exilado por anos no Chile e em Cuba.

Ouça o podcast!

https://open.spotify.com/episode/5fNoMxnQIAQJKYZXTfmvVS

As conquistas da revolução – principalmente nas áreas de educação e saúde – e o papel dos partidos e movimentos mais à esquerda do mundo em relação à Cuba estão entre temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, canção Patria y Vida, DW Español e do canal Band Jornalismo, no Youtube.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.




Paulo Fábio Dantas Neto: Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS

Um debate promovido pela Globo News, na noite do último dia 02.05, mostrou que senta praça na discussão sobre as crises sanitária e política uma desconstrução da imagem positiva que a atuação do Ministério da Saúde contra a pandemia conquistou, junto à opinião pública mais informada e à população em geral, enquanto durou a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta. Essa desconstrução política de uma experiência exitosa não é propriamente uma conspiração. Se repararmos nas vozes que a difundem, ou permitem, veremos que a coisa vai além do discurso bolsonarista. Aliás, parece que, para esse polo autoritário, o assunto é página virada, desde que o presidente exonerou o ministro, no qual farejava um concorrente eleitoral. Vozes que atualmente desqualificam, sempre de passagem, nunca frontalmente aquela experiência ocupam posições distintas, algumas até opostas entre si, como ficou claro no referido debate.

A desconstrução começa com uma pergunta de uma jornalista da emissora ao líder do governo na Câmara. Aqui não importa se foi politicamente intencionada ou se apenas superficial e desatenta. Muito menos a resposta dada pelo deputado. Importa reparar no raciocínio que levou à pergunta: o presidente - disse - exonerou o ministro Mandetta no meio da pandemia por discordar do isolamento social que o ministro defendia. O sucessor passaria a praticar outra política. Duas semanas depois, Nelson Teich reafirma que o MS defende o isolamento social. Então, se era para seguir a mesma política, por que Bolsonaro demitiu o ministro? Sem entender de política sanitária ou de gestão de saúde pública, como cidadão e na expectativa de que vozes mais abalizadas que a minha se debrucem sobre esse assunto, pergunto eu, agora:

Mesma política? A frase cínica de Teich revoga a realidade do contraste brutal entre o que era e o que passou a ser a política do ministério? Aonde foi parar aquela ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária diante dos fatos de não haver vacina e do vírus ser desconhecido? É a mesma coisa dizer que o isolamento é necessário, mas se calar diante da imprudência, ou mesmo flertar com ela, dizendo que ele deve ser compatibilizado, sob igual prioridade, com os requerimentos imediatos da economia? E por onde anda agora aquela articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores? E aquela articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas de combate direto e de mitigação dos efeitos sociais da pandemia? Coincidem com ela a atual lassidão federal face à velocidade da crise sanitária que deve enfrentar e a indiferença do ministro à dimensão política dessa crise? O que significa a secretaria executiva do ministério ter sido desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor? Nada nos diz o simbolismo do principal quadro responsável pela área técnica e todos os que falam pela política de saúde do MS serem obrigados a se despir do colete do SUS, para se sintonizarem com o novo ministro e o interventor? São só mudanças de estilo, ou decretam uma malévola tensão do governo com a gestão do sistema público de saúde e com os vínculos dessa gestão com a sociedade civil?

Pergunta ainda mais importante é: a informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, dispondo-se a responder perguntas, pode expressar a mesma política expressa na atitude que hoje se vê, pela qual a informação rareia ou é filtrada na forma de monólogos? Estamos fora da realidade ao vermos contraste também nos resultados? Nem falo do número de vítimas, pois não há como provar que provém diretamente da insensibilidade social da nova política. Falo do salve-se-quem-puder que começa a acontecer diante da inépcia da logística do ministério para amparar estados e municípios às voltas com o assoberbamento do sistema de saúde. Trata-se do contraste entre a sensação de segurança relativa em meio ao temor, que antes se experimentava e a impressão atual de que o governo desligou os motores do carro do MS para que desça na banguela a ladeira da pandemia. Atitude compatível com o descompromisso, vizinho da sabotagem, que a área econômica desse mesmo governo mostra ao dificultar a aprovação de medidas legislativas de socorro federativo.

Tudo isso em si já é trágico. Então é preciso não deixar que a desconstrução da imagem da política anterior do MS - sugerida pela insólita afirmação de que ela e a atual são a mesma - retire também dos brasileiros até o recurso à memória recente. A informação e as orientações que ela nos legou são uma relativa vacina (única à mão) para proteger pessoas do fatalismo e do desespero, dois filhos perversos do caos alimentado por uma política friamente descolada do drama social. Por isso é importante que a comunidade da saúde se manifeste de modo esclarecedor e não nos deixe pensar que há razões legítimas para desconsiderar o contraste.

A pergunta da jornalista não foi, contudo, o único indicio de desconstrução política que se pode notar no debate da Globo News. Ciro Gomes e João Amoedo, candidatos derrotados nas eleições de 2018, pelo PDT e pelo Novo, discordaram em inúmeras coisas, como convém numa controvérsia entre esquerda e direita, quando travada por personalidades um tanto outsiders, ou instáveis, empenhadas em provar coerência ideológica aos eleitorados dos campos em que querem se situar. Tudo bem, até aí nada a estranhar. São efeitos colaterais da democracia, jogo do qual não queremos abrir mão. Mas esses políticos antípodas uniram-se em idêntica crítica ao que chamaram de isolamento tímido, adotado “desde o começo”, pela política federal de Saúde. Tal como engenheiros de obras prontas receitaram, no futuro do pretérito, o isolamento “radical”, que, segundo eles, deveria ter sido adotado tão logo chegaram ao Brasil as primeiras evidências do vírus. Gomes chegou a citar, como paradigma, a conduta da Nova Zelândia.

Estamos apenas diante de opiniões voluntariosas e diletantes ou de declarações politicamente interessadas em desqualificar a política anterior do ministério? Nessa segunda hipótese, o alvo é mais genérico (o governo federal), ou mais específico, no caso o ex-ministro Mandetta? Mais uma vez, não quero discutir intenções. Discuto implicações objetivas de uma visão como essa. Que ela desconsidera as abissais diferenças de dimensão territorial, de perfil social e cultural que há entre países como Brasil e Nova Zelândia é apenas a parte mais óbvia do equívoco. Espanta, especialmente em Ciro Gomes, um político experimentado e bem informado, a desconsideração do caráter eminentemente federativo da dinâmica de funcionamento do SUS.

Como pretender que ela pudesse se adaptar a tempo a uma política que pressuporia uma incontrastável autoridade do poder central para determinar a estratégia? E ainda que isso fosse possível, como fazer que o fosse instantaneamente, ao estalar de dedos de uma vontade política iluminada? O bom senso indica que teria que se fazer uma escolha entre adotar essa instantaneidade e essa disciplina radicais, à revelia do SUS e/ou atropelando a sua gestão, OU centrar o foco no SUS e na comunidade técnico-científica para traçar a estratégia, o que exige um tempo diverso daquele que o voluntarismo político imagina. Felizmente para o País, adotou-se o segundo caminho, que não se mostrou incompatível com um sentido de urgência.

Foi efetiva e febril a mobilização para aproveitar o isolamento e ampliar o sistema público de saúde, ainda que essa ampliação tenha ficado distante da necessidade, como é óbvio que ficaria. A essa mobilização o país deve as chances, que ainda conserva, de não submergir na tragédia.

Mais: como pretender isolamento instantâneo e radical, que travasse completamente a circulação num país imenso, sem condená-lo previamente a uma crise de abastecimento sobreposta à crise de contaminação? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a política anterior do seu governo na área da saúde não descuidava de variáveis econômicas, apenas não as passava na frente da prioridade sanitária. O que os engenheiros de obras prontas propõem agora (sem mais os riscos inerentes à colocação da proposição em prática) é que o MS tivesse preferido o confronto absoluto com a linha do presidente, em vez da atitude firme com que Mandetta sustentou, contra ele, a sua política incremental. Mostra-se aqui como a desqualificação retrospectiva de uma política moderada contrapõe o voluntarismo à prudência e atiça um ambiente político avesso à cooperação e ao entendimento. A emissão de opiniões despreza o exame de resultados objetivos da visão diferente adotada. O debate reduz-se a uma disputa pela verdade. Nisso estamos há alguns anos no Brasil. Talvez por isso a experiência recente, havida no MS, pareça um ponto fora da curva.

Por fim, o debate da Globo News trouxe-nos um terceiro indicio de que, entre o desafio da curva e o cavalo selado que passava para se montar e dobrá-la, prefere-se ficar maldizendo a curva e procurando responsáveis por ela. O ex-candidato do PT na mesma eleição de 2018 perdeu uma excelente ocasião para ter uma atitude diferenciada. Essa esperança se justificava, de alguma maneira, pelos históricos vínculos que aquele partido foi construindo, ao longo do tempo, com o sistema único de Saúde. Embora esse tenha sido concebido, há quase quarenta anos, durante a transição democrática, por um movimento social (o da reforma sanitária), que se moveu sob influência maior de um outro tipo de esquerda, o PT somou-se, historicamente, a essa construção e certamente tem para com ela um real compromisso político.

No debate da Globo News, Fernando Haddad não deixou de declarar esse compromisso, como também fez Ciro Gomes. Sem dúvida, é uma reiteração importante, nesse momento. Mas ele perdeu a chance de usar o palanque que lhe foi franqueado agora - quando a emissora aceita o conflito com o presidente e aposta no seu acirramento - para dar consequência política à sua declaração de princípios. Era preciso defender o SUS pela pedagogia do exemplo. Isso passava por enfatizar o papel fundamental que esse sistema está exercendo, concretamente, na defesa da saúde pública e por mostrar o desastre a que estamos arriscados agora, por ele ter deixado de ser o centro de uma política pública federal. Mas em vez de realçar o contraste entre a política de um e de outro momento do atual governo, Haddad optou por minimizá-lo. Em tom morno e fulanizado, limitou-se a registrar diferença entre o ministro atual, que nada entenderia de SUS e de saúde pública, e o ministro anterior que, pelo menos, teria alguma coisa a ver com o SUS. É pouco, muito pouco mesmo.

Haddad sequer precisaria dar-se ao esforço republicano de elogiar o ex-ministro. Bastaria enfatizar, em vez de diluir, o contraste entre uma política centrada no SUS, como foi a de Mandetta (que vestiu literalmente essa camisa, para muito além de ter “algo a ver” com ela) e a que hoje dispensa o cérebro, ataca o coração e amarra os braços do SUS. Ao contrário de Ciro e Amoedo, ele não criticou a política anterior. Mas deve-se cobrar de um quadro do PT que faça mais do que Pilatos nessa hora. Que se concentre em mostrar à sociedade o que ela perdeu com a mudança da política do MS. Ao deixar de fazê-lo, por motivos que aqui também não vou discutir, ele contribui, objetivamente, para que a desqualificação prossiga e, com ela, a desconstrução de uma imagem que é de interesse público.

A desconstrução do contraste pedagógico entre os dois momentos transcorre não apenas no debate aqui comentado. Jornalista respeitado e respeitável usou sua coluna, no último domingo, para discutir o cada vez mais presente problema de como gerir, eticamente, no sistema de saúde, situações limite em que escassez de leitos e respiradores impõe a médicos escolher quais vidas salvar. Defendeu a fila única com argumentos legítimos e denunciou a resistência das corporações da medicina privada em colocar a utilização dos seus leitos sob regulação pública. Criticou o que seria silêncio conivente do ministério da Saúde para com essa resistência e, de passagem, afirmou ter sido idêntica a postura do ministro anterior. Mas a memória de primórdios da campanha de combate à Covid 19 registra a atuação pessoal do então ministro junto ao Congresso para aprovar a Lei 13979, de 16 de fevereiro de 2020. Ela prevê, explicitamente, em seu artigo 3º, que “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas”. O inciso VII do mesmo artigo inclui, entre as medidas previstas, “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

A lei não permite expropriação de leitos de UTI de hospitais privados, por interesse público e prevê indenização posterior, em bases a discutir depois. Mas decerto permite que o ministério apoie requisições administrativas feitas por autoridades sanitárias estaduais e locais e coordene uma regulação nacional que incorpore esses leitos para viabilizar a fila única. Como está claro que é preciso e justo fazer isso, se não o fizer, é justíssima a crítica do articulista. Mas não sua extensão ao antecessor que, além de não ter sido colocado objetivamente diante de tal situação, sinalizou qual seria sua conduta diante dela, empenhando-se na aprovação dessa lei. Ignoro se a moderação do texto final foi do seu agrado. Sendo ou não, ele explicava, naquelas entrevistas diárias, que a lei foi uma medida proposta pelo MS para garantir, entre outras coisas, a regulação do acesso universal ao sistema de saúde na hora mais crítica, à qual estamos chegando agora. Como no caso da profissional da Globo News, não discuto a intenção da crítica do idôneo jornalista. Registro ser injusto imputar silêncio a quem se conduziu de modo oposto.

Penso que os exemplos comentados não são bastantes para afirmar que há uma coalizão de veto à memória daquele processo benigno, ceifado em botão. Mas localizar afinidades argumentativas entre fontes de opinião tão diversas aconselha ligar o alerta. A desconstrução da memória, por intenção, omissão, ou desatenção, é nociva à saúde pública e à política.

Pode ser que alguém interprete esse texto como só um reconhecimento ao papel de Mandetta, ou mesmo como sua defesa política. Nada me custaria fazê-lo. Mas aqui o foco é outro. Quem tem mais a perder com essa desconstrução é o SUS. No lance seguinte desse jogo midiático-político, ele poderá ser responsabilizado pela tragédia com que seus inimigos flertam.

*Cientista político e professor da UFBA.


Cláudio de Oliveira: Sem reformar o sistema político-partidário, a Lava Jato continuará a enxugar gelo

O caso de uso de laranjas pelo PSL estourou não só em Minas Gerais, onde o partido é presidido pelo atual ministro do Turismo, Álvaro Antônio. Pelo que se sabe, houve também esquema semelhante em Pernambuco, terra do presidente nacional do partido, Luciano Bivar.

Os desvios do fundo eleitoral aconteceu na eleição de 2018, em pleno auge das investigações da Operação Lava Jato, depois da prisão de vários políticos e do repúdio da sociedade brasileira contra a corrupção.

Indignação que vem desde o julgamento do Mensalão em 2012, quando o ministro do STF Joaquim Barbosa condenou a cúpula de vários partidos à prisão.

Nas manifestações de junho de 2013, a frase mais ouvida era o “eles não nos representam”.

Entre o julgamento do Mensalão e o escândalo do Petrolão, em pleno período das manifestações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, enquanto se desenrolava o processo do Tríplex que levou Lula à prisão e da entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa para a eleição de 2016, eis que mais um esquema se realizava.

De janeiro de 2016 a janeiro de 2017, Fabrício José Carlos Queiroz, policial militar e então assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro, filho do Presidente Jair Bolsonaro, realizava movimentações suspeitas no valor de R$1.236.838,00, conforme revelou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). (1)

E agora o presidente e seus filhos pretendem criar um novo partido, depois da disputa do grupo pelo controle dos fundos partidário e eleitoral do PSL, como muito bem lembrou o cientista político Marco Aurélio Nogueira. (2) É mais um partido para aumentar a fragmentação partidária e a desmoralização do sistema político-partidário.

Aumentar a cláusula de barreira e adotar o voto distrital misto
Seria bom que se aumentasse a cláusula de barreira dos atuais 1,5% neste eleição e de 2% a partir de 2022 para 5%, como na Alemanha. Somente partidos que atingirem 5% dos votos, ou seja, que elegerem 25 deputados no mínimo, terão direito a ser representados no Congresso e a acessar os fundos públicos.

Como também fosse adotado o voto distrital misto com o objetivo de baratear os custos das campanha e aumentar o controle dos eleitores sobre seus representantes, conforme a proposta enviada à Câmara pelo ministro do STF e do TSE Luis Roberto Barroso, em julho de 2019. (3)

Há políticos que se elegeram como paladinos do combate à corrupção. É preciso sair da retórica e do discurso eleitoral para medidas concretas. Os cidadãos devem se mobilizar e pressionar, como ocorreu com a aprovação da Lei da Ficha Limpa, um projeto de lei de iniciativa popular apresentado por entidades da sociedade civil, capitaneadas pela CNBB, e que recolheu milhões de assinaturas. (4)

* Cláudio de Oliveira é jornalista e chargista

Notas
(1) Caso Queiroz
https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Queiroz

(2) Um partido para chamar de seu
https://tinyurl.com/y4uo6al6

(3) TSE envia documento ao Congresso propondo voto distrital misto já em 2020
https://tinyurl.com/yyou7d4m

(4) Lei da Ficha Limpa
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_da_Ficha_Limpa