Paulo Fábio Dantas Neto: Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS

Um debate promovido pela Globo News, na noite do último dia 02.05, mostrou que senta praça na discussão sobre as crises sanitária e política uma desconstrução da imagem positiva que a atuação do Ministério da Saúde contra a pandemia conquistou, junto à opinião pública mais informada e à população em geral, enquanto durou a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Um debate promovido pela Globo News, na noite do último dia 02.05, mostrou que senta praça na discussão sobre as crises sanitária e política uma desconstrução da imagem positiva que a atuação do Ministério da Saúde contra a pandemia conquistou, junto à opinião pública mais informada e à população em geral, enquanto durou a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta. Essa desconstrução política de uma experiência exitosa não é propriamente uma conspiração. Se repararmos nas vozes que a difundem, ou permitem, veremos que a coisa vai além do discurso bolsonarista. Aliás, parece que, para esse polo autoritário, o assunto é página virada, desde que o presidente exonerou o ministro, no qual farejava um concorrente eleitoral. Vozes que atualmente desqualificam, sempre de passagem, nunca frontalmente aquela experiência ocupam posições distintas, algumas até opostas entre si, como ficou claro no referido debate.

A desconstrução começa com uma pergunta de uma jornalista da emissora ao líder do governo na Câmara. Aqui não importa se foi politicamente intencionada ou se apenas superficial e desatenta. Muito menos a resposta dada pelo deputado. Importa reparar no raciocínio que levou à pergunta: o presidente – disse – exonerou o ministro Mandetta no meio da pandemia por discordar do isolamento social que o ministro defendia. O sucessor passaria a praticar outra política. Duas semanas depois, Nelson Teich reafirma que o MS defende o isolamento social. Então, se era para seguir a mesma política, por que Bolsonaro demitiu o ministro? Sem entender de política sanitária ou de gestão de saúde pública, como cidadão e na expectativa de que vozes mais abalizadas que a minha se debrucem sobre esse assunto, pergunto eu, agora:

Mesma política? A frase cínica de Teich revoga a realidade do contraste brutal entre o que era e o que passou a ser a política do ministério? Aonde foi parar aquela ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária diante dos fatos de não haver vacina e do vírus ser desconhecido? É a mesma coisa dizer que o isolamento é necessário, mas se calar diante da imprudência, ou mesmo flertar com ela, dizendo que ele deve ser compatibilizado, sob igual prioridade, com os requerimentos imediatos da economia? E por onde anda agora aquela articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores? E aquela articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas de combate direto e de mitigação dos efeitos sociais da pandemia? Coincidem com ela a atual lassidão federal face à velocidade da crise sanitária que deve enfrentar e a indiferença do ministro à dimensão política dessa crise? O que significa a secretaria executiva do ministério ter sido desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor? Nada nos diz o simbolismo do principal quadro responsável pela área técnica e todos os que falam pela política de saúde do MS serem obrigados a se despir do colete do SUS, para se sintonizarem com o novo ministro e o interventor? São só mudanças de estilo, ou decretam uma malévola tensão do governo com a gestão do sistema público de saúde e com os vínculos dessa gestão com a sociedade civil?

Pergunta ainda mais importante é: a informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, dispondo-se a responder perguntas, pode expressar a mesma política expressa na atitude que hoje se vê, pela qual a informação rareia ou é filtrada na forma de monólogos? Estamos fora da realidade ao vermos contraste também nos resultados? Nem falo do número de vítimas, pois não há como provar que provém diretamente da insensibilidade social da nova política. Falo do salve-se-quem-puder que começa a acontecer diante da inépcia da logística do ministério para amparar estados e municípios às voltas com o assoberbamento do sistema de saúde. Trata-se do contraste entre a sensação de segurança relativa em meio ao temor, que antes se experimentava e a impressão atual de que o governo desligou os motores do carro do MS para que desça na banguela a ladeira da pandemia. Atitude compatível com o descompromisso, vizinho da sabotagem, que a área econômica desse mesmo governo mostra ao dificultar a aprovação de medidas legislativas de socorro federativo.

Tudo isso em si já é trágico. Então é preciso não deixar que a desconstrução da imagem da política anterior do MS – sugerida pela insólita afirmação de que ela e a atual são a mesma – retire também dos brasileiros até o recurso à memória recente. A informação e as orientações que ela nos legou são uma relativa vacina (única à mão) para proteger pessoas do fatalismo e do desespero, dois filhos perversos do caos alimentado por uma política friamente descolada do drama social. Por isso é importante que a comunidade da saúde se manifeste de modo esclarecedor e não nos deixe pensar que há razões legítimas para desconsiderar o contraste.

A pergunta da jornalista não foi, contudo, o único indicio de desconstrução política que se pode notar no debate da Globo News. Ciro Gomes e João Amoedo, candidatos derrotados nas eleições de 2018, pelo PDT e pelo Novo, discordaram em inúmeras coisas, como convém numa controvérsia entre esquerda e direita, quando travada por personalidades um tanto outsiders, ou instáveis, empenhadas em provar coerência ideológica aos eleitorados dos campos em que querem se situar. Tudo bem, até aí nada a estranhar. São efeitos colaterais da democracia, jogo do qual não queremos abrir mão. Mas esses políticos antípodas uniram-se em idêntica crítica ao que chamaram de isolamento tímido, adotado “desde o começo”, pela política federal de Saúde. Tal como engenheiros de obras prontas receitaram, no futuro do pretérito, o isolamento “radical”, que, segundo eles, deveria ter sido adotado tão logo chegaram ao Brasil as primeiras evidências do vírus. Gomes chegou a citar, como paradigma, a conduta da Nova Zelândia.

Estamos apenas diante de opiniões voluntariosas e diletantes ou de declarações politicamente interessadas em desqualificar a política anterior do ministério? Nessa segunda hipótese, o alvo é mais genérico (o governo federal), ou mais específico, no caso o ex-ministro Mandetta? Mais uma vez, não quero discutir intenções. Discuto implicações objetivas de uma visão como essa. Que ela desconsidera as abissais diferenças de dimensão territorial, de perfil social e cultural que há entre países como Brasil e Nova Zelândia é apenas a parte mais óbvia do equívoco. Espanta, especialmente em Ciro Gomes, um político experimentado e bem informado, a desconsideração do caráter eminentemente federativo da dinâmica de funcionamento do SUS.

Como pretender que ela pudesse se adaptar a tempo a uma política que pressuporia uma incontrastável autoridade do poder central para determinar a estratégia? E ainda que isso fosse possível, como fazer que o fosse instantaneamente, ao estalar de dedos de uma vontade política iluminada? O bom senso indica que teria que se fazer uma escolha entre adotar essa instantaneidade e essa disciplina radicais, à revelia do SUS e/ou atropelando a sua gestão, OU centrar o foco no SUS e na comunidade técnico-científica para traçar a estratégia, o que exige um tempo diverso daquele que o voluntarismo político imagina. Felizmente para o País, adotou-se o segundo caminho, que não se mostrou incompatível com um sentido de urgência.

Foi efetiva e febril a mobilização para aproveitar o isolamento e ampliar o sistema público de saúde, ainda que essa ampliação tenha ficado distante da necessidade, como é óbvio que ficaria. A essa mobilização o país deve as chances, que ainda conserva, de não submergir na tragédia.

Mais: como pretender isolamento instantâneo e radical, que travasse completamente a circulação num país imenso, sem condená-lo previamente a uma crise de abastecimento sobreposta à crise de contaminação? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a política anterior do seu governo na área da saúde não descuidava de variáveis econômicas, apenas não as passava na frente da prioridade sanitária. O que os engenheiros de obras prontas propõem agora (sem mais os riscos inerentes à colocação da proposição em prática) é que o MS tivesse preferido o confronto absoluto com a linha do presidente, em vez da atitude firme com que Mandetta sustentou, contra ele, a sua política incremental. Mostra-se aqui como a desqualificação retrospectiva de uma política moderada contrapõe o voluntarismo à prudência e atiça um ambiente político avesso à cooperação e ao entendimento. A emissão de opiniões despreza o exame de resultados objetivos da visão diferente adotada. O debate reduz-se a uma disputa pela verdade. Nisso estamos há alguns anos no Brasil. Talvez por isso a experiência recente, havida no MS, pareça um ponto fora da curva.

Por fim, o debate da Globo News trouxe-nos um terceiro indicio de que, entre o desafio da curva e o cavalo selado que passava para se montar e dobrá-la, prefere-se ficar maldizendo a curva e procurando responsáveis por ela. O ex-candidato do PT na mesma eleição de 2018 perdeu uma excelente ocasião para ter uma atitude diferenciada. Essa esperança se justificava, de alguma maneira, pelos históricos vínculos que aquele partido foi construindo, ao longo do tempo, com o sistema único de Saúde. Embora esse tenha sido concebido, há quase quarenta anos, durante a transição democrática, por um movimento social (o da reforma sanitária), que se moveu sob influência maior de um outro tipo de esquerda, o PT somou-se, historicamente, a essa construção e certamente tem para com ela um real compromisso político.

No debate da Globo News, Fernando Haddad não deixou de declarar esse compromisso, como também fez Ciro Gomes. Sem dúvida, é uma reiteração importante, nesse momento. Mas ele perdeu a chance de usar o palanque que lhe foi franqueado agora – quando a emissora aceita o conflito com o presidente e aposta no seu acirramento – para dar consequência política à sua declaração de princípios. Era preciso defender o SUS pela pedagogia do exemplo. Isso passava por enfatizar o papel fundamental que esse sistema está exercendo, concretamente, na defesa da saúde pública e por mostrar o desastre a que estamos arriscados agora, por ele ter deixado de ser o centro de uma política pública federal. Mas em vez de realçar o contraste entre a política de um e de outro momento do atual governo, Haddad optou por minimizá-lo. Em tom morno e fulanizado, limitou-se a registrar diferença entre o ministro atual, que nada entenderia de SUS e de saúde pública, e o ministro anterior que, pelo menos, teria alguma coisa a ver com o SUS. É pouco, muito pouco mesmo.

Haddad sequer precisaria dar-se ao esforço republicano de elogiar o ex-ministro. Bastaria enfatizar, em vez de diluir, o contraste entre uma política centrada no SUS, como foi a de Mandetta (que vestiu literalmente essa camisa, para muito além de ter “algo a ver” com ela) e a que hoje dispensa o cérebro, ataca o coração e amarra os braços do SUS. Ao contrário de Ciro e Amoedo, ele não criticou a política anterior. Mas deve-se cobrar de um quadro do PT que faça mais do que Pilatos nessa hora. Que se concentre em mostrar à sociedade o que ela perdeu com a mudança da política do MS. Ao deixar de fazê-lo, por motivos que aqui também não vou discutir, ele contribui, objetivamente, para que a desqualificação prossiga e, com ela, a desconstrução de uma imagem que é de interesse público.

A desconstrução do contraste pedagógico entre os dois momentos transcorre não apenas no debate aqui comentado. Jornalista respeitado e respeitável usou sua coluna, no último domingo, para discutir o cada vez mais presente problema de como gerir, eticamente, no sistema de saúde, situações limite em que escassez de leitos e respiradores impõe a médicos escolher quais vidas salvar. Defendeu a fila única com argumentos legítimos e denunciou a resistência das corporações da medicina privada em colocar a utilização dos seus leitos sob regulação pública. Criticou o que seria silêncio conivente do ministério da Saúde para com essa resistência e, de passagem, afirmou ter sido idêntica a postura do ministro anterior. Mas a memória de primórdios da campanha de combate à Covid 19 registra a atuação pessoal do então ministro junto ao Congresso para aprovar a Lei 13979, de 16 de fevereiro de 2020. Ela prevê, explicitamente, em seu artigo 3º, que “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas”. O inciso VII do mesmo artigo inclui, entre as medidas previstas, “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

A lei não permite expropriação de leitos de UTI de hospitais privados, por interesse público e prevê indenização posterior, em bases a discutir depois. Mas decerto permite que o ministério apoie requisições administrativas feitas por autoridades sanitárias estaduais e locais e coordene uma regulação nacional que incorpore esses leitos para viabilizar a fila única. Como está claro que é preciso e justo fazer isso, se não o fizer, é justíssima a crítica do articulista. Mas não sua extensão ao antecessor que, além de não ter sido colocado objetivamente diante de tal situação, sinalizou qual seria sua conduta diante dela, empenhando-se na aprovação dessa lei. Ignoro se a moderação do texto final foi do seu agrado. Sendo ou não, ele explicava, naquelas entrevistas diárias, que a lei foi uma medida proposta pelo MS para garantir, entre outras coisas, a regulação do acesso universal ao sistema de saúde na hora mais crítica, à qual estamos chegando agora. Como no caso da profissional da Globo News, não discuto a intenção da crítica do idôneo jornalista. Registro ser injusto imputar silêncio a quem se conduziu de modo oposto.

Penso que os exemplos comentados não são bastantes para afirmar que há uma coalizão de veto à memória daquele processo benigno, ceifado em botão. Mas localizar afinidades argumentativas entre fontes de opinião tão diversas aconselha ligar o alerta. A desconstrução da memória, por intenção, omissão, ou desatenção, é nociva à saúde pública e à política.

Pode ser que alguém interprete esse texto como só um reconhecimento ao papel de Mandetta, ou mesmo como sua defesa política. Nada me custaria fazê-lo. Mas aqui o foco é outro. Quem tem mais a perder com essa desconstrução é o SUS. No lance seguinte desse jogo midiático-político, ele poderá ser responsabilizado pela tragédia com que seus inimigos flertam.

*Cientista político e professor da UFBA.

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