armas

Raul Jungmann: Viva La Muerte!

No dia 12 de outubro de 1936, o oficial franquista José Milan Astray, durante a cerimônia de abertura do ano letivo na Universidade de Salamanca, em resposta ao discurso contra o fascismo proferido pelo filósofo Miguel de Unamuno (1864/1936) reagiu, aos gritos, com uma série de impropérios, em nome da brutalidade fascista como valor absoluto.

Concluiu com a tristemente famosa frase, “Abajo la inteligência, viva la muerte!”.

Esse fato histórico me veio à mente ao ler os quatro decretos recentes da Presidência da República visando a desregulamentação e afrouxamento dos controles sobre as armas entre nós. Da sua exegese resta claro o malefício contra a vida e, reversamente, o benefício à violência, ao crime organizado e às milícias.

Armas e equipamentos, antes de uso limitado e sob o controle do Exército, são liberados. Amplia-se a munição disponível, idem armas de uso restrito. Afrouxam-se os controles sobre renovação de registros de atiradores, antes feitos pela Polícia Federal e agora afeito aos clubes de tiro.

Tudo isso na esteira de 30 outros decretos ou regulamentações diversas na mesma direção: liberar o acesso e promover a massificação das armas no país. Mas há outras questões – e graves.

Até aqui o debate sobre o armamento ou não da população, era travado no âmbito da segurança pública, da sua maior ou menor contribuição para a segurança individual – jamais pública! Ao afirmar que é preciso armar a população para que ela preserve sua liberdade, o Presidente politiza o debate e ataca frontalmente o papel constitucional das Forças Armadas.

Na constituição de uma nação, qualquer nação, o seu nascimento efetivo se dá quando o Estado passa a ter o monopólio da violência legal. E esta, em última instância, é exercida pelas instituições armadas, constituídas de cidadãos a quem é dado o mandato da defesa, da soberania e da integridade nacional.

Ao propor o armamento dos brasileiros, fere-se de morte, tanto o monopólio como o papel constitucional das Forças Armadas. E invoca-se, conscientemente ou não, o terrível fantasma de uma guerra civil, brasileiros contra brasileiros. Mais armas, a literatura mundial tem consolidado, mais mortes.

A autotutela da cidadania, via armas, desacredita o papel das políticas de segurança, corrói a democracia, e é uma ilusão que sai caro a toda sociedade. Além de adiar o enfrentamento da questão de como reformar o nosso sistema penal e as nossas polícias para a defesa da vida de todos.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Vera Magalhães: Entubados, mas armados

Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.

Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.

Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.

Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.

É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.

Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.

Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.

Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.

A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!

Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?

Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?

É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.


O Globo: Bancada evangélica resiste a decretos das armas - 'Contradição' com valores religiosos

Deputados e senadores argumentam que igrejas sempre foram contra o armamentismo

Paulo Cappelli e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA — Os novos quatro decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro sobre armas de fogo encontram resistência em uma das principais bases de sustentação do governo: o segmento evangélico. Lideranças religiosas do Senado e da Câmara criticaram o ato do chefe do Executivo que, sem o aval do Legislativo, flexibiliza regras para compras e uso de armas e munições. Na volta às atividades após o feriado do carnaval, parte dos parlamentares ligados às igrejas deve apoiar medidas para a derrubada dos decretos, enquanto outros defendem construir uma solução para que as medidas sejam discutidas no Congresso.

Leia: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro no Congresso

Ontem, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) apresentou quatro projetos para sustar os decretos de Bolsonaro. A parlamentar, que integra a bancada evangélica, classificou os decretos como “uma traição à democracia”, que não se justifica “nem por interesses econômicos legítimos nem por um suposto aumento da segurança dos cidadãos frente ao crime organizado ou comum”.

— Eu entendo que colocar armas nas mãos das pessoas, dessa forma, é produto de um instinto anti-humano, anticristão e a favor de mortes. É uma irresponsabilidade completa. Todo parlamentar e sobretudo os que defendem o princípio maior do Cristianismo, que é o amor, precisarão impedir que isso avance — disse a senadora, frequentadora da Assembleia de Deus

Contradição

No dia anterior, o vice-líder do Cidadania na Câmara, deputado Daniel Coelho (PE), já havia ingressado com uma proposta de decreto legislativo para derrubar o decreto 10.630, que ele julga ser o mais “amplo” dos quatro. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), também criticou os decretos e disse que Bolsonaro exacerbou suas competências.

Líder da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), ligado à Assembleia de Deus, diz que apoiar a pauta armamentista é contraditório para quem faz a defesa da vida feita pelos cristãos. Ele evitou opinar se o presidente extrapolou sua competência ao usar decretos para definir novas normas sobre armas.

— Nós que defendemos a vida, por mais que sejamos base do governo, não podemos compactuar no apoio ao armamento, porque pregamos a paz, não temos uma ideologia no Brasil de usar as armas — disse Cezinha. — Muitos acreditam que, como há uma discussão no STF (Supremo Tribunal Federal), teria que ser passar pelo Congresso um tema muito espinhoso, mas não acredito que houve irresponsabilidade do presidente — disse o líder.

Veja também:'A falta de fiscalização agora é institucionalizada', diz advogado sobre decretos que flexibilizam armas

Um dos representantes da bancada evangélica mais próximos de Bolsonaro, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), membro da Assembleia de Deus, defende que seja encontrado um “meio termo” entre a ampliação de armas defendida pelo presidente desde a época de campanha e o atual Estatuto do Desarmamento.

— Avalio que não temos uma cultura que permita armar a população como nos EUA, onde o acesso é muito fácil. Temos regiões do país com índice muito alto de brigas de trânsito, de violência doméstica. Imagina essas pessoas com armas? Por outro lado, não sou um desarmamentista. Sou contra, por exemplo, a discricionariedade da Polícia Federal para conceder ou não a posse de arma. Já falei para o Bolsonaro que temos que chegar a um meio termo — disse, pontuando que ainda não leu os quatro decretos.

— O governo foi vencedor na presidência da Câmara e do Senado e deveria fazer um debate franco e harmonioso. Essa imposição da extrema direita pode levar o presidente para um caminho sem volta. Pautas que mexem na vida da sociedade devem ser referendadas pelo Congresso — disse o deputado Fausto Pinato (PP-SP), frequentador da Congregação Cristã no Brasil.

— Não sou favorável a facilitar o acesso às armas, ainda mais por meio de um decreto. O tema deveria ser amplamente discutido no Congresso, ouvindo inclusive especialistas sobre o impacto que essas medidas podem acarretar — opinou o deputado Áureo Lídio (SD-RJ), frequentador da Igreja Metodista.

Entenda: As mudanças nos decretos de Bolsonaro sobre armas

Evangélico, o bolsonarista Otoni de Paula (PSC-RJ) é um dos mais ferrenhos defensores da facilitação do acesso de armas para civis. Para ele, o presidente “atendeu ao anseio das urnas e de seu eleitorado” ao publicar os decretos:

— Não acho que as medidas adotadas por Bolsonaro firam princípios cristãos. Se por um lado a igreja historicamente é contra o armamento, por outro tem defendido cada vez mais a autodefesa. Essa resistência ao armamento dentro da igreja tende a diminuir.


O Globo: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro

Parlamentares da oposição já se movimentam para derrubar medidas assinadas pelo presidente

Jussara Soares e Paulo Cappelli / O Globo

BRASÍLIA — Duas semanas após ajudar a eleger Arthur Lira (PP-AL) como novo presidente da Câmara negociando emendas e cargos com partidos políticos, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta o primeiro teste de fogo de sua aliança com o Centrão para sua agenda pessoal. Os quatro decretos editados na última sexta-feira para flexibilizar regras para compra e uso de armas no país sem passar pelo Congresso são questionados tanto por parlamentares de oposição como por deputados de siglas que compõem a nova base do governo.

A reação aos decretos das armas, segundo parlamentares ouvidos pelo GLOBO, vai dar a dimensão ao presidente de que, apesar de ter saído vitorioso na eleição no Congresso, não terá apoio irrestrito, mesmo do Centrão, em suas pautas. E sinaliza ao governo que a cada nova pauta a negociação deverá ser retomada do zero, principalmente nos projetos que tratam de costumes.

Lideranças de siglas como PL e PSD, duas das maiores do Centrão, e do MDB, já se manifestaram de forma contrária aos decretos. O Cidadania apresentou ontem um decreto legislativo para derrubar as novas normas, sob alegação de que o ato do presidente usurpa poderes do Congresso de legislar. Em sua primeira manifestação, Lira afirmou discordar dessa avaliação. Veja ao final desta reportagem os principais pontos dos decretos.

O posicionamento mais emblemático até o momento é o do vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), eleito na chapa de Lira com o apoio do Planalto. No Twitter, o parlamentar criticou o conteúdo dos decretos e afirmou que que Bolsonaro exacerbou sua competência.

“Mais grave que o conteúdo dos decretos (...) é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando um PL (projeto de lei) à Câmara”, escreveu. Em entrevista ao G1, Ramos disse que há “o uso da questão dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) para dissimular o desejo de armar a população”.

Vice-líder do Cidadania, o deputado Daniel Coelho (PE) ingressou, ontem, com uma proposta de decreto legislativo (PDC) para derrubar o decreto 10.630, que julga ser o mais “amplo” dos quatro. Se aprovada, a medida poderá suspender boa parte dos atos de Bolsonaro que tratam de cadastro, registro, porte e compra de armas e munição, além do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas. Para isso, Coelho precisará do apoio de três quintos dos votos.

O líder do PSDB na Câmara, deputado Rodrigo de Castro (MG), disse que o partido apoia a iniciativa do Cidadania e também estuda apresentar um PDC para derrubar os decretos do presidente Jair Bolsonaro.

— É um ato revestido de ilegalidade, um ato extemporâneo e é uma falta de noção muito grande por parte do governo, que não está olhando os pressupostos legais — disse o líder tucano na Câmara. — Somos radicalmente contra esse aumento (de armas), até porque ele é feio sem critérios.

O deputado Fábio Trad (PSD-MS) se posicionou contra os decretos e diz que no seu partido, embora tenha parlamentares armamentistas, não tem a ampla maioria apoiando a medida.

— O governo enfrentará resistência no Centrão. Eu, individualmente, sou contrário tanto por vício de iniciativa quanto pelo conteúdo, que me parece fora da prioridade do que o Brasil precisa. Não vejo coesão no Centrão hoje em relação a essas medidas — disse Trad.

Líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL) disse ser “totalmente inoportuno” o governo publicar decretos que ampliem o acesso a armas em meio à pandemia. A bancada do partido se reunirá na próxima terça-feira para tratar do assunto. A expectativa é que, salvo exceções, a maioria do MDB se manifeste contra os decretos publicados por Bolsonaro.

Outras lideranças aliadas de Bolsonaro no Congresso evitaram se posicionar diretamente e afirmam que ainda analisam os textos publicados na última sexta-feira. Aliado de Arthur Lira, o líder do DEM na Câmara, deputado Efraim Filho (PB), disse que o partido ainda fará uma reunião para consolidar uma posição majoritária sobre o tema. A bancada evangélica, grupo majoritamente contra ampliação da posse de armas, também ainda não se manifestou.

Bolsonaro já teve uma derrota semelhante no ano passado quando tentou, por decreto, flexibilizar as regras de posse e porte de armas. Um projeto de decreto legislativo (PDL) para derrubar a medida foi protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e aprovado por 47 votos a 28. O texto seguiria para a Câmara, mas, antes disso, Bolsonaro recuou e revogou o decreto.

O presidente da Câmara, em entrevista ao G1, defendeu as medidas de Bolsonaro e disse que o Executivo não ultrapassou sua competência:

— Ele não invadiu competência, não extrapolou limites já que, na minha visão, modificou decretos já existentes. É prerrogativa do presidente. Pode ter superlativado na questão das duas armas para porte, mas isso pode ser corrigido — disse Lira.

Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso liberou a continuidade do julgamento que analisará uma resolução do presidente Jair Bolsonaro que busca zerar a alíquota de importação de revólveres e pistolas. A medida entraria em vigor em janeiro, mas foi suspensa por liminar do ministro Edson Fachin após ação movida pelo PSB. O processo começou a ser discutido no plenário virtual da Corte no último dia 5, mas havia sido suspenso após Barroso pedir vista do processo. A expectativa é que, agora, o tema entre na pauta do plenário virtual desta sexta-feira ou da sexta da semana que vem.

Principais pontos dos decretos

Limite de armas

Agora o cidadão comum pode adquirir seis em vez de quatro armas, desde que preencha requisitos necessários. Esse limite sobe para oito no caso de policiais, agentes prisionais, membros do Ministério Público e de tribunais.

Porte de armas

Agora é permitido o porte simultâneo de duas armas, o que significa poder circular com elas.

Munição para CACs

Antes, caçadores, atiradores e colecionadores poderiam comprar, por ano, até mil munições para cada arma de uso restrito (submetidas a maior controle do Estado) e cinco mil para cada arma de uso permitido. Agora, poderão comprar também, por ano, insumos para recarga de até dois mil cartuchos nas armas de uso restrito e insumos para recarga de até cinco mil cartuchos nas de uso permitido.

Armas para CACs

Os caçadores, atiradores e colecionadores agora só precisarão da autorização do comando do Exército para comprar armas acima do limite estabelecido em decreto anterior: cinco unidades de cada modelo para colecionadores; 15 unidades para caçadores; 30 para atiradores. Essas quantidades valem tanto para as armas de uso restrito quanto para as de uso permitido.

Controle do Exército

Não serão produtos controlados pelo comando Exército itens como projéteis de munição para armas de porte ou portáteis, até o calibre máximo de 12,7mm — não vale para projéteis químicos, perfurantes, traçantes e incendiários; miras como as holográficas, reflexivas e telescópicas; armas de fogo obsoletas que tenha projeto anterior a 1900 e utilizem pólvora negra.


Juan Arias: A macabra e psiquiátrica paixão de Bolsonaro pela pólvora

Talvez o mais grave dessa loucura do presidente seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares

Se algo caracteriza a idiossincrasia de Bolsonaro é sua paixão pelas armas, por tudo o que cheira à pólvora. Além do tiro ao alvo ser um dos seus esportes preferidos, sua ânsia por armar até os dentes os brasileiros revela seguramente um distúrbio psiquiátrico que não sei se tem nome científico. Dizer que “o povo está vibrando” de felicidade por poder possuir tantas armas revela mais, talvez, sua obsessão macabra pela violência.

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Nos comentários à reportagem de Carla Jiménez e Regiane Oliveira sobre os novos decretos do Presidente que amplia de 4 a 6 o número de armas que uma pessoa pode possuir legalmente e os caçadores, até 40, foram muito significativos. “Menos armas e mais emprego”, “menos armas e mais educação”, “menos armas e mais vacinas”. Outros chegaram a fazer hipóteses que nessa pressa de Bolsonaro em armar a população pode significar que o que deseja é criar sua própria milícia para que o defenda no caso de tentarem retirá-lo do poder ou perca as próximas eleições, criando um clima violento no país de guerra civil.

É uma hipótese bem possível, mas acho que essa paixão desmedida por tudo o que cheira à pólvora e a tudo relacionado às armas de fogo pode fazer parte de sua personalidade de morte e destruição, de negacionismo e de mania de perseguição. E até de medo. Ele confessou que dorme com uma arma ao lado de sua cama, como se em sua residência presidencial não existisse segurança suficiente para defendê-lo. Esse amor pelas armas e pela violência pode explicar sua frieza às mortes da pandemia. Não sabemos como são os sonhos de Bolsonaro além de que dorme muito pouco porque sofre de insônia, mas certamente são povoados de armas e mortes.

Essa sua paixão desmedida por disparar armas de fogo fez com que em sua viagem oficial a Israel pedisse para realizar uma exibição de tiro ao alvo. E essa paixão pelas armas é evidente vendo suas fotografias imitando com as mãos o gesto de disparar. Três fotos são particularmente eloquentes e aterradoras a esse respeito: a dele e seus três filhos políticos juntos imitando disparar um fuzil e com os quatro sorrindo de orelha a orelha. A do hospital após a operação depois do atentado durante a campanha eleitoral ainda envolto em mistério. A foto o apresenta ainda se recuperando imitando com suas mãos o disparo de um fuzil. E a mais aterrorizante talvez seja a que o mostra com uma menina de cinco anos em seus braços enquanto a ensina a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãozinhas inocentes.

Bolsonaro querer agora que os brasileiros possam se tornar o país mais armado do mundo com até 600 armas para cada cem habitantes é uma aberração em um Brasil já martirizado com mais de 40.000 homicídios por ano. Não porque seja um país mais violento do que os outros e sim porque sofre uma carência crônica de segurança do Estado incapaz de defendê-lo.

Em um país em que as pessoas podem, se desejarem, ter até seis armas em sua casa é se esquecer que isso só é possível para os que podem se permitir esse luxo. Enquanto os de sempre ficarão mais expostos à violência, que costumam ser os negros, os jovens e as mulheres pobres assim como os habitantes das periferias que já são alvo a cada dia de cenas de morte e terror dos policiais e dos traficantes de drogas.

E talvez o mais grave dessa loucura do Presidente por sua paixão pelas armas e a violência seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares. O STF, o Congresso e o Senado ficarão de mãos cruzadas? Não vão parar esses instintos de morte e violência de um Presidente que pode contribuir para aumentar ainda mais o rio de sangue inocente que corre pelas ruas do país?

Há silêncios que podem acabar sendo mortais. E o silêncio, quando não a cumplicidade das instituições do Estado com os instintos de morte do Presidente, podem acabar em uma tragédia nacional.


El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

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Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.


Bruno Boghossian: Medo da violência aumenta poder sedutor do debate sobre armas

É melhor remover um lunático da arena política ou derrotá-lo nas urnas?

Donald Trump fez tantos estragos na política americana que foi preciso aprovar dois pedidos de impeachment contra ele na Câmara. O primeiro foi barrado no Senado, em 2020, e o segundo não deve ser votado antes do fim de seu mandato, mas o processo em curso pode abrir caminho para que ele seja proibido de disputar eleições.

Alguns congressistas republicanos apoiam a condenação de Trump. Além de gravar essa decisão na história, eles dizem que é preciso despoluir o partido e impedir que o atual presidente cause mais danos ao país no futuro. Outros parlamentares, porém, argumentam que expulsá-lo da vida pública vai alimentar animosidades e fortalecer seus devotos mais radicais.

É melhor remover um lunático da arena política à força ou é melhor derrotá-lo nas urnas? A resposta depende do apego a princípios democráticos, da força das instituições, do grau de ameaça do sujeito e, principalmente, da chance de sucesso de cada uma das alternativas.

Quem defende o acionamento do segundo botão sustenta que o confronto dentro das regras eleitorais reveste esse movimento com o condão da vontade popular e ajuda a reduzir os traumas da transição, mesmo após campanhas duras.

O problema é que essa solução tende a ser pouco eficaz contra populistas autoritários, que exploram teorias extremistas, posam como líderes perseguidos pelo sistema e se beneficiam do ressentimento de seus admiradores. Se os americanos escolherem esperar até 2024 para dizer um novo “não” a Trump, ele pode voltar à Casa Branca.

A exclusão pelos canais institucionais é um tiro mais certeiro, ainda que os efeitos colaterais sejam consideráveis. A ação depende de políticos que tenham coragem de tomar essa decisão e que abandonem a ilusão de que poderiam controlar o líder desvairado caso ele continuasse no jogo. Depois disso, é preciso ter instituições potentes para debelar focos secundários de extremismo e barrar a ascensão de seus filhotes.


Ricardo Noblat: Avança o plano de Bolsonaro de armar os brasileiros

O crime organizado e as milícias agradecem

No país dos mais de 200 mil mortos pelo vírus sem que o governo tenha feito grande coisa para evitar, quase 180 mil novas armas de fogo foram registradas na Polícia Federal no ano passado – um recorde em relação à série histórica que começou em 2009.

Foi um aumento de 91% em relação ao ano anterior, onde o registro de 96.064 armas representou uma alta de 84% em comparação com 2018, ano em que foi eleito presidente o ex-capitão Jair Bolsonaro, afastado do Exército por má conduta.

Dito de outra maneira: nos primeiros dois anos do mal militar que planejou explodir bombas em quartéis nos anos 80 do século passado, 273.935 novas armas foram registradas pela Polícia Federal, 183% a mais do que em 2018 e 2017. Taokey?

Não só mais armas, mas armas com maior potencial de fogo, um número maior delas compradas por cidadãos. E também mais munições para cada portador de arma. Bolsonaro chegou a zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas.

Sua decisão foi suspensa pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, mas isso não significa que não possa voltar a valer. Armas para todo mundo, armas para quem quiser é o projeto mais acalentado pelo presidente da República.

No final de abril último, na célebre reunião ministerial gravada em vídeo no Palácio do Planalto, ouviu-se Bolsonaro dizer que povo armado jamais será escravizado. Ele repetiu o que dissera em um quartel de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2018.

O crime organizado agradece por esse favor. As milícias armadas também. São eles e os clubes de tiro que mais ganham com isso. Mas ganha também no delírio dos Bolsonaro a milícia particular disposta a defendê-los contra uma eventual derrota em 2022.


Bernardo Mello Franco: Fachin confisca presente de Bolsonaro ao lobby das armas

O Supremo confiscou o presente de Natal de Jair Bolsonaro para o lobby das armas. Na semana passada, o presidente zerou a tarifa sobre a importação de revólveres e pistolas. Ontem o mimo foi vetado pelo ministro Edson Fachin.

No papel, a isenção de impostos foi concedida pela Câmara de Comércio Exterior. Na prática, o órgão só carimbou uma ordem de Bolsonaro. O presidente se apressou para faturar com a turma do bangue-bangue. Ao anunciar a medida, publicou uma foto em que aparece de trabuco em punho num estande de tiro.

O capitão é um velho aliado de quem lucra com a morte. No primeiro mês de governo, ele editou um decreto para afrouxar o Estatuto do Desarmamento. Em abril deste ano, mandou o Exército revogar portarias de rastreamento de armas e munições. As regras facilitavam a apuração de crimes, permitindo mapear o caminho entre a fábrica e o dedo que aperta o gatilho.

A equipe de Paulo Guedes já tentou acabar com a isenção de impostos sobre a cesta básica. Agora o presidente concede a regalia a importadores de armas. O caso ilustra a inversão de prioridades no Planalto. O bolsonarismo considera aceitável tributar o quilo de arroz, mas abre mão de arrecadar sobre a venda de pistolas 9mm americanas, que custam mais de R$ 10 mil no Brasil.

Na liminar, Fachin lembrou que o governo tem autonomia para definir sua política tributária, mas não pode ignorar os princípios da Constituição. A Carta garante o direito à vida e estabelece que a segurança pública é atribuição do Estado, não de indivíduos.

“Não há, por si só, um direito irrestrito ao acesso às armas, ainda que sob o manto de um direito à legítima defesa”, escreveu o ministro. Ele acrescentou que a alíquota zero resultaria num “aumento dramático” da circulação de armas. Era exatamente o objetivo do capitão.

Bolsonaro diz defender colecionadores e atiradores esportivos, mas age como Papai Noel para um lobby muito mais influente. Baratear a importação de armas interessa às empresas de segurança e às milícias, que mantêm laços notórios com o poder em Brasília. Graças ao Supremo, essa turma vai ficar sem presente de Natal.


Rolf Kuntz: Aleluia: Armas e tilápias no ‘finalzinho da pandemia’

Números não batem com as boas notícias trazidas pela cúpula da Ilha da Fantasia

Sobram boas notícias na Ilha da Fantasia. A melhor delas – o Brasil está vivendo um “finalzinho de pandemia” – foi anunciada em Porto Alegre pelo capitão-mor da terra abençoada, também conhecido como presidente Jair Bolsonaro. A segunda melhor novidade foi apurada no mesmo dia, quinta-feira, pelo Estadão. O governo estava preparando um plano de R$ 250 milhões para distribuir um “kit covid”. O kit contém, naturalmente, hidroxicloroquina e azitromicina, receitados como infalíveis, em outros tempos, pelo guru Donald Trump.

Enquanto o chefe proclama a vitória contra o vírus e ensina a receita salvadora, o provedor-mor, Paulo Guedes, continua festejando uma fabulosa recuperação em V, depois do tombo em março-abril, e a fartura de oportunidades para os trabalhadores. Essa fartura já havia sido celebrada em novembro, quando saiu o balanço de outubro do Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados.

“Nunca o Brasil criou tantos empregos”, comentou o ministro sobre os 394.989 contratos assinados em um mês. Ainda havia um saldo de 171.139 postos fechados, mas 2020 poderá terminar, disse ele na ocasião, sem perda de vagas formais. Essa expectativa tem sido reafirmada.

Marcas inconfundíveis distinguem os bons governos, e uma delas é a sabedoria na escolha de prioridades. Isso vale também para a ilha encantada. É preciso prolongar a recuperação e garantir maior crescimento em 2021. Por isso, o presidente continuou atento às questões mais importantes. Na mesma semana, assinou um decreto para zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas e anunciou a decisão de criar peixes, principalmente tilápias, em represas de 73 hidrelétricas.

Mas até na ilha encantada há pessoas prosaicas, dispostas a apontar aumento do contágio e das mortes, em vez de um “finalzinho da pandemia”. São parecidas com a famigerada ema do Palácio da Alvorada, conhecida pela feia reação quando o presidente se aproximou com uma caixa de cloroquina. Muitas dessas pessoas mexem com números e, curiosamente, são empregadas na administração da terra abençoada.

Essa disposição prosaica tem sido exemplificada em relatórios do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Segundo o pessoal desse instituto, o desemprego no Brasil aumentou de 13,3% para 14,6% da força de trabalho entre o segundo e o terceiro trimestres. Com isso, os desocupados chegaram a 14,1 milhões.

Foi um movimento contrário ao registrado na média dos 37 países da OCDE, a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento, onde o desemprego diminuiu de 8,6% no segundo trimestre para 7,7% no terceiro. Além de mostrar o País na contramão, com a desocupação em alta no começo da retomada, os números do IBGE continuaram mais feios. O emprego no Brasil já ia mal antes da pandemia, com 11% de desocupados no trimestre final de 2019 e 12,2% no primeiro de 2020. Na OCDE havia 5,4% de desemprego em janeiro-março deste ano.

No final do terceiro trimestre, em setembro, os desempregados no Brasil eram 14 milhões, 14,4% da força de trabalho. Diante disso, a hipótese de eliminação daquele saldo negativo de pouco mais de 171 mil postos formais, mencionada com aparente entusiasmo pelo ministro Guedes, parece pouco relevante. Como estarão no réveillon os milhões de desocupados, informais e formais, apontados pelo IBGE? Tomarão espumante nacional ou champanhe?

Mas os problemas no mercado de trabalho são piores que os indicados pela taxa formal de desemprego. Só os trabalhadores em busca de vaga são contados oficialmente como desempregados. Quando a esse grupo se acrescentam pessoas desalentadas, ocupadas por tempo insuficiente e aquelas fora da força de trabalho, mas capazes de entrar no jogo, o número dos subutilizados mais que dobra. No terceiro trimestre, chegou a 33,2 milhões.

A recuperação em V também fica menos impressionante quando se incluem no quadro alguns detalhes. O cenário mais bonito mostra crescimento econômico de 7,7% no terceiro trimestre, depois da perda de 9,6% no segundo. Foi um bom desempenho, embora insuficiente para o retorno ao nível anterior à crise. Mas essa comparação cria um cenário enganador, porque a economia já havia encolhido antes da pandemia: o produto interno bruto (PIB) do primeiro trimestre havia sido 1,5% menor que o dos três meses finais de 2019. A retomada no terceiro trimestre deste ano foi ainda mais insuficiente do que o governo tem admitido.

O clube dos prosaicos inclui a turma do Banco Central (BC). A incerteza sobre o crescimento no próximo ano “permanece acima da usual”, segundo nota distribuída depois da última reunião do Copom, o Comitê de Política Monetária do BC. Quando a nota saiu, na quarta-feira, o governo seguia sem orçamento para 2021 e o ministro da Saúde continuava sem plano de vacinação. Mas logo viria mais uma novidade positiva, um novo passo para a abertura de mercado, com o corte de imposto sobre a importação de armas. A pandemia está no fim, segundo o presidente, mas talvez se possa ganhar tempo matando vírus à bala.


Ruy Castro: Bolsonaro oficializou o faroeste

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar armado. Com tanta bala à solta ninguém está a salvo

Há anos fui abraçar um amigo, amado por muitos, e senti sob o casaco algo sólido na sua cintura. Uma arma, claro, e recolhi a mão. Ele não percebeu minha repulsa, mas fiquei triste. Por que alguém iria armado a um encontro de pessoas que se estimavam? Temia ser atacado, precisaria se defender e, talvez, reagir atirando? O que teria feito para isso? E só então o travo se dissipou. O objeto era um celular.

Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, deixou-se fotografar há dias com pai e irmãos no gabinete presidencial com um trabuco no cinto. O Planalto tem segurança própria, donde ninguém deveria sentir-se em perigo. Mas, conhecendo bem o governo de que faz parte, Eduardo Bolsonaro está atento. Com a quantidade de armas de fogo em mãos de particulares no Distrito Federal, nem o palácio é seguro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de armas no DF cresceu 539% em 2019, e um em cada 11 de seus cidadãos anda armado —sem contar o mercado ilegal.

Para sorte dos Bolsonaros, muitos dos brasileiros armados são seus amigos. Como a polícia acaba de descobrir, Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco e ex-vizinho do presidente num condomínio na Barra, comprava ferramentas pela internet para a montagem de fuzis de guerra. Imagino que, em seus churrascos, eles trocassem dicas sobre balas dum dum e silenciadores.

Bolsonaro oficializou o faroeste. Um decreto seu dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças.

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar prevenido.


El País: Registro de novas armas no Brasil explode em 2020 em meio à alta de homicídios

Alta na emissão de documentos pela PF para posse de novos armamentos foi de 205% no primeiro semestre, reflexo das novas regras sob Bolsonaro. No DF, aumento foi de mais de 1.400%

Gil Alessi, El País

Um empregado de uma fábrica de armas em São Leopoldo, RS.
Um empregado de uma fábrica de armas em São Leopoldo, RS.D. VARA / REUTERS

O número de registros de novas armas de fogo concedidos pela Polícia Federal explodiu em todo o país. A chamada posse de arma é um documento emitido pelas autoridades e permite que, caso cumpram alguns requisitos legais, as pessoas possam ter em suas casas pistolas e revólveres. Quando comparado o primeiro semestre de 2020 com o mesmo período do ano passado, houve um aumento de 205% no total de novos registros emitidos pela PF: foram 24.236 em 2019 ante 73.996 agora. Este crescimento se deve, de acordo com pesquisadores, às portarias e decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro, que tinha como uma de suas principais promessas de campanha flexibilizar o acesso às armas de fogo. Na prática o mandatário desfigurou o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

Junto com o aumento no número de registros, também ocorreu um aumento na violência letal. Os números preocupam: de acordo com levantamento do Monitor da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e com o portal G1, houve um aumento de 7% nos homicídios no país nos cinco primeiros meses do ano, puxada principalmente pelos Estados do Nordeste. A pesquisa sobre os homicídios, que utiliza dados oficiais das Secretarias de Segurança Estaduais e do DF, é a mais recente com abrangência nacional. As mortes violentas passaram de 18.120 para 19.382 no período de janeiro a maio. Chama a atenção o fato de que este aumento das mortes em 2020 ocorreu após queda histórica dos homicídios em 2019 (o menor número registrado desde 2007, quando o fórum começou a coletar os dados), que chegou a ser comemorada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro.

A relação entre aumento de armas e aumento da violência não é estranha para quem estuda segurança pública. “De um ponto de vista amplo, pesquisas apontam que a cada 1% a mais de armas na população temos um aumento de 2% dos homicídios, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada”, afirma Isabel Seixas de Figueiredo, consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Mas não é possível cravar nesse caso que existe uma relação entre o aumento no número de armas registradas e homicídios, porque é um fenômeno ainda recente, e o homicídio é um fenômeno multicausal”, diz. Ela alerta ainda para o fato de que estas armas compradas e registradas legalmente podem acabar indo para as mãos do crime organizado: “Entre 30% e 40% das armas apreendidas pela polícia com criminosos foram compradas originalmente por pessoas sem ligação com o crime, e que depois venderam este armamento ou foram roubadas”.

Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, concorda com Figueiredo. “Pesquisadores e a sociedade civil organizada sempre falaram que com a flexibilização do Estatuto havia potencial para o aumento de mortes violentas. Isso era dito baseado em dados. Essa relação entre armas e violência já era conhecida há muitos anos, antes das políticas públicas do Governo Bolsonaro para o setor”, afirma . Ele destaca, no entanto, que os dados são novos e ainda precisam ser analisados com mais profundidade. Mas segundo Sampaio, existe um “indicativo” de que o aumento dos homicídios no primeiro semestre de 2020 pode estar ligado ao maior acesso às armas.

O aumento vertiginoso no número de novas armas de fogo registradas em tão pouco tempo também acende um alerta amarelo. “A celeridade administrativa na concessão da posse de armas deixa dúvidas se a avaliação do perfil de quem pede o registro está sendo feita com o devido critério. Esse crescimento mostra ou que estão alocando muitos recursos humanos para analisar estes pedidos, ou então a análise não está sendo feita de forma criteriosa”, diz Sampaio. Antes das mudanças feitas pelo Governo, quem solicitava a posse de arma precisava comprovar a “efetiva necessidade” para tanto, e a decisão final sobre concessão ou não do registro cabia ao delegado da PF. O presidente sempre criticou este ponto, uma vez que no seu entendimento deixava a questão à critério da “subjetividade” da polícia. Este ponto foi alterado via decretos e portarias para facilitar a comprovação da necessidade sem grandes percalços.

Registro de armas cresce em todos os Estados

Todos os Estados brasileiros e o Distrito Federal registraram alta no número de registros de novas armas. No DF o crescimento foi o maior registrado: variação de 1.429% no número de documentos concedidos pelas autoridades. De 235 no primeiro semestre de 2019 para 3.595 no mesmo período deste ano. Apesar do grande aumento de armas, os homicídios tiveram queda no distrito que abriga Brasília. O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar no crescimento da concessão de posse de armas, com um aumento de 860%, de 653 para 6.275. O Estado também registrou redução dos homicídios no período. A Bahia vem logo atrás, com variação de 620% nos registros: de 835 para 6.015, e alta dos homicídios. O único Estado com crescimento de apenas um dígito foi a Paraíba: 9%. De 976 para 1.064.

O número de novos registros de armas de fogo, no entanto, pode ser ainda maior tendo em vista que existe uma categoria de posse específica para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (denominada CACs). A autorização para eles é concedida pelo Exército, e não entra nos dados da PF. “Isso é relevante, porque os CACs foram uma das categorias mais beneficiadas pelo Governo Bolsonaro com ampliação no número de armas permitidas por pessoa, bem como a ampliação dos calibres permitidos”, diz Felippe Angeli, gerente do Instituto Sou Paz. Sobre o aumento dos homicídios, ele faz coro com Sampaio e Figueiredo: “É um fenômeno multifatorial. Mas quando se fala de segurança pública, o que se vive hoje é o que você vê no retrovisor, e o que visualizamos é o começo do Governo Bolsonaro, com a desregulamentação do controle de armas”.

Além de afrouxar as regras para facilitar o acesso às armas, o Governo Bolsonaro também tem enfraquecido a regulamentação para rastrear a circulação de armas e munições. Em abril, Bolsonaro anunciou, via Twitter, a revogação de três portarias do Exército com regras para marcação, controle e rastreamento de armas e munições, outro passo amplamente criticado por especialistas. A oposição questionou o Supremo Tribunal Federal a respeito, e ainda espera um pronunciamento do tribunal. Em outro movimento que acendeu alarme, na semana passada, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, revogou trechos de uma portaria de sua pasta que obrigava que determinados armamentos de porte dos agentes da Força Nacional tivessem elementos de identificação sigilosa, um passo a mais para o rastreio, caso os dados mais básicos fossem violados.

A reportagem entrou em contato com o Planalto pedindo um comentário sobre o aumento no número dos homicídios e no número de novas armas registradas pela PF, mas não obteve resposta até o momento. A PF informou que “embora tenha havido um aumento na demanda de registros nos anos de 2019 e 2020, o efetivo da Polícia Federal tem conseguido atuar a contento nos processos relacionados ao controle de armas de fogo”. Quanto à declaração de “efetiva necessidade” por parte do solicitante, o órgão informou que cumpre o determinado na lei (alterada por Bolsonaro) onde consta que “presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade”.