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El País: Planos de Bolsonaro elevam risco de expansão de milícias e grupos de extermínio

Presidente eleito e filhos têm discursos ambíguos sobre tema. Estudiosos avaliam que estímulo à violência de PMs e ao armamento da população tem potencial para provocar descontrole nas corporações policiais

Por Felipe Betim, do El País

Violência no Rio de Janeiro é quase sempre sinônimo de traficantes de drogas armados com fuzis, mas são as milícias que, mais do que medo, impõem silêncio. Para quem convive com elas, falar sobre esse fenômeno requer uma série de cuidados e, principalmente, sigilo. Sentada em um bar do centro da capital, P. F. está afastada de qualquer perigo iminente, mas ainda assim fala baixo. “Não confio nem no tráfico nem na milícia, mas enquanto no primeiro estão meninos da comunidade, as milícias são algo institucionalizado... São o próprio Estado”, afirma ela, que tem casa e parentes em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio sob influência de milicianos —grupos armados formados principalmente por agentes públicos, como policiais e bombeiros, da ativa ou reformados, que extorquem, aterrorizam e assassinam sob a justificativa de que estão fazendo a segurança do local.

“Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, disse Bolsonaro em fevereiro deste ano, quando já era pré-candidato, durante entrevista ao programa Pânico, da Jovem Pan, quando questionado como combateria as milícias. A frase forma parte de um conjunto de posicionamentos considerados ambíguos sobre o tema. Seu filho, o senador eleito Flavio Bolsonaro, votou contra a instalação de uma CPI das milícias da Assembleia do Rio, em 2007, e o próprio presidente eleito taxou milicianos como "defensores da ordem" no plenário da Câmara, em 2008. Questionado pelo jornal O Globo em julho deste ano, disse: "Hoje em dia ninguém apoia milícia mais não. Mas não me interessa mais discutir isso."

Mudanças profundas são incertas porque dependem do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos Governos Estaduais. Contudo, o discurso linha-dura e permissivo —em entrevista no Jornal Nacional, Bolsonaro chegou a defender a condecoração dos agentes que mais matem— pode por si só estimular a ação desses grupos de extermínio, avaliam os especialistas. Até agora, serviu para mobilizar o eleitorado. "Agora chegou a hora de vocês! Tem que matar esses bandidos! Quem rouba merece morrer!", bradou uma mulher que passava por um grupo de policiais militares fortemente armados na noite de 28 de outubro. Eles acompanhavam o ato de algumas centenas de pessoas que celebravam a vitória do ultradireitista em frente ao seu condomínio, na praia da Barra da Tijuca. O que mais fizeram naquele dia foi tirar fotos com manifestantes, que chegavam a fazer filas. "Eu acho que a violência vai aumentar, sim, mas para os bandidos. Para o cidadão de bem vai melhorar", explicou um homem.

“Se existe uma área em que sinalização é fundamental é a de segurança. Um aperto de mão ou uma palavra podem significar várias mortes e tragédias", explica Daniel Cerqueira, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e conselheiro do Fórum de Segurança Pública. Um menor controle social do uso da violência deixaria os policiais livres para subornar ou se unir a grupos de extermínio ou milicianos, argumenta. "Quando falam que a polícia vai matar sem controle, estão pregando uma ação criminosa, que não sigam o Estado Democrático de Direito. Vamos sentir saudades de quando só traficantes eram o problema", acrescenta.

Nessa mesma linha opina Ignacio Cano, sociólogo da Universidade do Estado de Rio de Janeiro (UERJ). “Se incentivamos a polícia a matar ainda mais e as pessoas a ter armas, apelando para a violência e o ódio, estamos criando um terreno fértil para que esses grupos se expandam”, argumenta. “Os policiais brasileiros reconhecem que matam mais de 5.000 pessoas por ano, sem contar as execuções sumárias. Quando Bolsonaro diz que não serão processados, isso tende a aumentar. Policiais já quase nunca são processados", destaca. Ele lembra que o ultradireitista visitou o BOPE ((Batalhão de Operações Especiais) antes do segundo turno e disse era hora de os capitães mandarem no país. E que o governador eleito do Rio, Wilson Witzel, pretende dissolver a Secretaria de Segurança e "devolver o poder aos policiais". Para Cano, tudo isso "manda mensagem de descontrole e autonomia totalmente contrária a lógica militar tradicional". Ele afirma: "Talvez nem precise de grupo de extermínio. No Rio, a polícia já faz esse trabalho".

Para Jaqueline Muniz, antropóloga e cientista política da Universidade Federal Fluminense (UFF), o fenômeno das milícias "tem a ver com um processo de autonomização predatória da polícia", tornando-a ingovernável. "Não podemos falar em estado policial, mas sim em governo policial, algo que já temos. É a espada chantageando o político e multiplicando ameaças e medos na população. Aconteceu também em Nova York, em Chicago...", explica a especialista, para quem esse processo significa desprofissionalizar as corporações policiais, empurrando-as para a clandestinidade e informalidade. Os efeitos disso, argumenta, são perversos. "Toda espada autonomizada corta a língua do verbo da política e rasga a letra da lei. Porque não é a espada que define o seu alcance e a profundidade de seu corte, quem decide é a sociedade. Quem segura a espada é a mão civil".

Expansão do modelo milícia

No Rio, as milícias dominam bairros inteiros da zona oeste da capital e, nos últimos anos, se expandiram para São Gonçalo e municípios da Baixada Fluminense. Um levantamento do portal G1 indica que 2 milhões pessoas da região metropolitana vivem em áreas sob influência dessas facções. Quando surgiram, há pouco mais de 20 anos, prometiam levar segurança para áreas dominadas pelo tráfico. "Nem sempre ostentam armas como o tráfico", conta P. F., "mas o morador tem que fazer o que mandam". O poder econômico não vem com a venda de drogas, mas sim com o controle de serviços como o de gás, água e Internet, além de comércios. "Se uma pessoa compra determinando produto, precisa mostrar que comprou no lugar certo, controlado por eles, se não é punido". Tortura e homicídios fazem parte do cardápio de terror. No campo político, as milícias também financiam candidaturas e até elegem seus membros para o parlamento local.

Violência policial "sempre vem acompanhada com a corrupção", o que significa que se o agente "tem autorização para matar, também tem para extorquir, porque ele troca segurança por dinheiro", explica a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. Assim surgiu esse modelo tão aperfeiçoado de controle de território e extorsão. Contudo, a atuação de grupos extermínio é antiga e conhecida em todo o Brasil. Nos anos 60 e 70, ganharam poder nas ruas do Rio e de São Paulo os chamados esquadrões da morte, grupos de policiais formados dentro das delegacias e secretarias de segurança com um viés moralista —intensificado durante o regime militar— e carta branca para matar. Um dos mais conhecidos foi chefiado por Sergio Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo e conhecido torturador da ditadura.

Execuções extrajudiciais e ações de vingança estão disseminadas em todo o país ainda hoje, independentemente da existência formal de grupos paramilitares. Os alvos podem ser quaisquer pessoas: em 2015, nove policiais militares foram acusados em Salvador de assassinar 12 jovens, um episódio que ficou conhecido como Chacina de Cabula; naquele mesmo ano ocorreu também a chacina de Osasco, na qual ao menos 19 pessoas foram assassinadas por policiais militares e guardas civis metropolitanos, que agiram por vingança em razão da morte de dois agentes, segundo o Ministério Público; em março deste ano, a favela da Rocinha, no Rio, viu pelo menos seis de seus moradores morrem, um deles o dançarino Matheus da Silva Duarte Oliveira, como reação a morte de um policial três dias antes.

"No Norte e no Nordeste o que predomina são os acertos de conta. Os grupos matam mais à noite, no carro preto e sem farda. No Rio eles têm também interesses comerciais. Esse é o modelo milícia, que pode se generalizar no Brasil", opina Ramos. Cerqueira, do IPEA, também acredita na disseminação desse modelo consolidado no Rio, um Estado que é "vitrine" para o resto do Brasil. "Historicamente, o que acontece aqui vai varrendo o resto do país. Na década de 70 começou o Comando Vermelho e hoje temos 81 facções que nascem dentro dos presídios. Se você não tem controle sobre as polícias, a tendência é uma capilarização das milícias", argumenta.

"Zumbis de policiamento" e tensão com Sérgio Moro

Se por um lado a licença para matar desqualifica o trabalho policial e fortalece as milícias, por outro também resultará em mais agentes mortos, avalia Muniz. "Se todo encontro com a polícia vai ser violento, sem a possibilidade de rendição, então vou levar o outro comigo. Pode ser a polícia ou a vítima", argumenta. "Isso já acontece, mas veremos isso de uma maneira ainda mais perversa. Policiais vão virar zumbis de policiamento, mortos-vivos". Os planos de Bolsonaro também não tem o endosso completo de seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro. "Não pode construir uma política criminal, mesmo de enfrentamento ao crime organizado, baseado em confronto e tiroteio. O risco de danos colaterais é muito grande. Não só de danos colaterais, mas risco para o policial", disse Moro em entrevista ao programa Fantástico, no domingo. O juiz da Operação Lava Jato já havia feito ressalvas em entrevista na semana passada e uma das questões é como essas divergências vão se acomodar no exercício do poder.

Soma-se isso a intenção do presidente eleito de flexibilizar o porte de armas, com potencial de transformar pequenos conflitos entre vizinhos, parentes e conhecidos em tragédias. "É o Estado dando uma banana para o cidadão. Vamos viver num regime da esculachocracia, onde todo mundo esculacha todo mundo. Os indivíduos já se veem empoderados em suas próprias razões, porque as autoridades em cima estão deseducando. Já estamos vendo patrulhas morais, pessoas sendo agredidas, perseguidas...", lamenta Muniz, que ainda adverte: "O fraco armado vai seguir sendo fraco diante do forte armado. Por isso que existe polícia e Estado. Além disso, o dedo nervoso, a cabeça quente e o coração aflito impedem que o cidadão tenha vantagem em qualquer situação em que esteja exposto".

COMPLACÊNCIA DAS AUTORIDADES

Apesar de atuarem ilegalmente, grupos de extermínio e milícias já contaram, em diferentes períodos, com a complacência e até apoio explícito de políticos e autoridades — até uma CPI mostrar, em 2008, as barbaridades da milícias do Rio, elas chegaram a ser vistas como solução para o tráfico de drogas. Em agosto de 2003, em discurso na Câmara, o próprio Bolsonaro expressou sue apoio a um grupo da Bahia que cobrava 50 reais para matar jovens da periferia: "Quero dizer aos companheiros da Bahia que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro", discursou.

Na época da CPI das milícias no Rio, voltou a falar a na tribuna da Casa sobre o tema: “Nenhum deputado estadual faz campanha para buscar, realmente, diminuir o poder de fogo dos traficantes, diminuir a venda de drogas no nosso Estado. Não. Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes", discursou. "Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet [serviço irregular de TV por assinatura] e com venda de gás. Como ele ganha 850 reais por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet, venda de gás ou transporte alternativo. Então, senhor presidente, não podemos generalizar”.


Dorrit Harazim: Adeus às armas?

Controle mais severo da legislação que rege a posse de armas tende a corresponder uma diminuição no número de mortes

E de repente ouviu-se um imenso silêncio. Ele foi acachapante, estranho, sinistro. Cobriu campos e vales, trincheiras e povoados, e teve hora cronometrada. Foi num 11 de novembro de exatos cem anos atrás — na 11ª hora do 11º dia daquele 11º mês de 1918. Com o armistício assinado horas antes por Aliados e a Alemanha derrotada num vagão em Compiègne (França), todas as armas se calaram. E a Primeira Guerra Mundial — que durara quatro anos, também chamada de a “guerra de todas as guerras” — pôde começar a olhar para a devastação à sua volta. O britânico Guy Cuthbertson, professor de Literatura em Liverpool, acaba de publicar “Peace at Last: A Portrait of Armistice Day”, um retrato dos minutos finais dessa guerra e do silêncio que se seguiu.

A reconstituição é minuciosa. A ordem de cessar-fogo fora respeitada com pontualidade militar, ora com ceticismo, ora com fé. Mesmo faltando menos de cinco minutos para a hora H, um batalhão britânico exaurido ainda arriscou avançar sobre Lessines, uma localidade belga. Vai que a guerra não acaba... Outras trovoadas de artilharia de última hora tiveram motivação mais prático-otimista: aliviar o volume de material bélico a ser transportado de volta para casa. Vai que a guerra acaba... Um sortudo operador de rádio americano começara a ler o comunicado “São 11 horas e a guerra ... ”, quando uma bomba alemã disparada segundos antes arrombou seu bunker. Não terminou a frase, mas sobreviveu.

Cuthbertson conta que até o ar pareceu ficar imóvel quando o ponteiro dos segundos emparelhou no alto do mostrador. “Foi como se todos tivessem ensurdecido de repente”, escreveu. Em nenhuma trincheira houve comemoração, apenas alívio. “A sensação foi de cair num vazio... De escutar o que não existia”, relembra outro veterano. A chegada da paz foi definida pela ausência — a ausência dos sons que matam.

Todos os anos, no dia 11 de novembro — ou no domingo mais próximo a esta data —, Europa, Estados Unidos e parte do planeta comemoram o armistício desta guerra que causou a morte de mais de 20 milhões de pessoas (entre combatentes e civis), e gerou 30 milhões ou mais de mortes indiretas (vítimas de epidemias, doenças e genocídios paralelos). Em alguns países como a Inglaterra, a França e a África do Sul, tudo para, todos param, a vida vira estátua durante dois minutos de silêncio a partir das 11h (hora local); no primeiro homenageiam-se os mortos; no segundo, os que ficaram para chorá-los.

É uma comunhão surpreendente, considerando tratar-se de um conflito ocorrido quatro gerações atrás.

Houve um tempo em que o mundo acreditou que a lição foi aprendida, que o horror não se repetiria. Mas a geração nascida dos escombros de 1918 mal tinha completado 21 anos quando o mesmo mundo voltou às armas. Nunca mais as largou — Segunda Guerra, Vietnã , o Afeganistão que já dura 17 anos, para citar só algumas. A diferença em relação a cem anos atrás é que ninguém mais parece acreditar num mundo menos armado.

Tome-se o episódio desta semana na cidade californiana de Thousand Oaks. Um ex-fuzileiro naval, empunhando uma pistola calibre 45 turbinada e comprada legalmente, adentra o bar onde uma maioria de jovens se embalava ao som de música country. Em poucos minutos, mata 12 pessoas e se suicida. Em novembro de 2017, também durante um festival de música country de Las Vegas, outro atirador entrincheirado num quarto de hotel com 12 fuzis semiautomáticos mata 58 pessoas, fere outras 515 e tira a própria vida. Sem falar na recente matança de 11 fiéis numa sinagoga de Pittsburgh, em crime antissemita cometido por um atirador armado com um fuzil AR-15 e três pistolas Glock. A listagem completa das chacinas ocorridas nos Estados Unidos nos últimos anos ocuparia um jornal inteiro.

O ponto de inflexão na complexa relação da sociedade americana com o porte de armas talvez tenha ocorrido em 2012, quando 20 crianças foram metralhadas em suas salas de aula em Sandy Hook, estado de Connecticut. Como nada mudou no país desde então, o debate sobre controle do uso de armas também foi ficou ali enterrado.

Em levantamento mundial publicado no ano passado, o “New York Times” teve o mérito de dissociar chacinas cometidas por atiradores individuais da violência e criminalidade genéricas de um país. No primeiro quesito apenas o Iêmen supera os Estados Unidos. No segundo, os EUA também claudicam: seis vezes mais homicídios por arma de fogo do que no Canadá, 30 vezes acima do índice na Grã-Bretanha, segundo dados de 2009. Ainda assim, menos propensos à criminalidade do que vários outros países desenvolvidos.

Embora constituam apenas 4,4% da população mundial, guardam em casa, legal ou ilegalmente, 42% das armas privadas do planeta. São 270 milhões de unidades. Mas nem a história constitucional do país, nem divisões raciais ou índice de distúrbios mentais dos perpetradores explicam, sozinhos, o alto índice de chacinas. A única variável capaz de explicar a matança é o número astronômico de armas em mãos do cidadão.

Espremendo as análises de 130 estudos sobre violência em dez países, o “Times” concluiu o que para muitos parece intuitivamente óbvio: que à posse de armas corresponde um aumento de homicídios. E que a um controle mais severo da legislação que rege o tema tende a corresponder uma diminuição no número de mortes. Isso vale tanto para os Estados Unidos, onde o cidadão já nasce imbuído do direito de ter uma arma, como para o resto do mundo, que vê o acesso a armas como um direito que precisa ser conquistado.

No Brasil, Jair Bolsonaro acaba de eleger-se presidente com a promessa de ampliar o acesso a armas para autodefesa. O apoio da opinião pública à lei federal de 2003 que as proíbe vem diminuindo ano a ano — em 2013 eram 68%, hoje são 55%. Está nas mãos do Congresso e da pressão da sociedade decidir o tamanho que se quer dar à nossa guerra cotidiana.


El País: Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragem

Antes do Estatuto do Desarmamento taxas de homicídio cresciam de forma alarmante. Parlamentares tentam mudar a lei para permitir acesso facilitado à compra de armas

Imagine um país onde qualquer pessoa com mais de 21 anos pudesse andar armada na rua, dentro do carro, nos bares, festas, parques e shoppings centers. Em um passado não muito distante, esse país era o Brasil. Até 2003, aqui era possível, sem muita burocracia, comprar uma pistola automática ou um revólver em lojas de artigos esportivos, onde as armas ficavam em prateleiras na seção de artigos de caça, ao lado de varas de pesca e anzóis. Grandes magazines, como os hoje finados Mesbla e Sears, ofereciam aos clientes registro grátis e pagamento parcelado em três vezes sem juros. Anúncios de página inteira nas principais revistas e jornais anunciavam promoções na compra de armas, apelando para o já existente sentimento de insegurança da população: “Eu não teria medo se possuísse um legítimo revólver da marca Smith & Wesson”, dizia um deles, com a imagem de uma mulher assustada dentro de casa. Outra propaganda, da empresa brasileira Taurus, dizia “passe as férias com segurança”.

E as coisas foram assim por décadas. As empresas fabricantes de armas e munições, assim como ocorre nos Estados Unidos, financiavam campanhas de políticos com doações milionárias. A prática não se perdeu, entretanto. Até as eleições de 2014 ainda era possível encontrar no site do Tribunal Superior Eleitoral registros destes aportes feitos por indústrias bélicas, que ajudaram a fortalecer a bancada da bala do Congresso. O porte de armas era tão comum que em alguns Estados os locais públicos eram obrigados a oferecer uma chapelaria exclusiva para guardar os revólveres ou pistolas dos clientes. Uma lei de 2001, aprovada no Rio de Janeiro, por exemplo, estipulava que “casas noturnas, boates, cinemas, teatros, estádios escola de samba e outros estabelecimentos do tipo possuam, em suas instalações, guarda-volumes apropriados para o depósito de armas”. Nestes lugares era proibido o acesso portando armamentos.

Mas, de acordo com os indicadores da época, os anos em que a população podia se armar para teoricamente “fazer frente à bandidagem” não foram de paz absoluta, mas de crescente violência, segundo dados do Ministério da Saúde e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. De 1980 até 2003, as taxas de homicídios subiram em ritmo alarmante, com alta de aproximadamente 8% ao ano. A situação era tão crítica que, em 1996, o bairro Jardim Ângela, em São Paulo, foi considerado pela ONU como o mais violento do mundo, superando em violência até mesmo a guerra civil da antiga Iugoslávia, que à época estava a todo o vapor. Em 1983 o Brasil tinha 14 homicídios por 100.000 habitantes. Vinte anos depois este número mais do que dobrou: alcançando 36,1 assassinatos para cada 100.000. Para conter o avanço das mortes foi sancionado, em 2003, o Estatuto do Desarmamento, que restringiu drasticamente a posse e o acesso a armas no país e salvou mais de 160.000 vidas, segundo estudos.  Atualmente a taxa está em 29, o que pressupõe que o desarmamento não reduziu drasticamente os homicídios mas estancou seu crescimento.

Anúncio loja de departamentos em revista nos anos de 1980.
Anúncio loja de departamentos em revista nos anos de 1980.

O tema é sensível, uma vez que um grupo de deputados e senadores quer voltar para os velhos tempos, quando era possível comprar armas com facilidade. O tema ganha eco também em alguns setores da sociedade que enxergam no direito de se armar – e a reagir à violência — uma possibilidade de “salvar vidas”.

Daniel Cerqueira, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, explica que uma grave crise econômica ocorrida durante a década de 1980 ampliou a desigualdade social e foi um dos fatores responsáveis pelo aumentos das taxas de homicídio. “O que observamos é que a partir dessa que ficou conhecida como a década perdida, há uma falência do sistema de Justiça e Segurança Pública, e as pessoas, no meio desse processo, começaram a comprar mais armas”, explica. Isso fez, segundo Cerqueira, com que o ciclo de violência se autoalimentasse. “Quanto mais medo as pessoas sentem e mais homicídios ocorrem, mais elas se armam. Quanto mais se armam, mais mortes teremos”, afirma. Ele destaca que ao contrário do que frequentemente se diz, a maior parte dos crimes com morte não são praticados pelo "criminoso contumaz", e sim "pelo cidadão de bem, que em um momento de ira perde a cabeça".

Nem todos concordam com Cerqueira. “As pessoas se sentiam mais seguras naquela época”, afirma Benê Barbosa, um dos mais antigos militantes pró-armas do Brasil. Fundador do Movimento Viva Brasil e pioneiro em fazer frente ao Estatuto do Desarmamento e à “restrição do direito” de porte, ele afirma que o crime que mais preocupava era "o furto". "Na década de 1970 eu morava no litoral de São Paulo, na Praia Grande, em um bairro de ruas de terra. No verão todo mundo colocava as cadeiras na calçada e ficava conversando, ninguém tinha medo de fazer isso” relembra. De acordo com Barbosa, nos anos de 1990 deveria haver “aproximadamente meio milhão de pessoas armadas em São Paulo, e você não tinha bangue-bangue nas ruas”. Para ele, o Estatuto do Desarmamento “elitizou” a posse de armas, ao instituir a cobrança de taxas proibitivas. “Antigamente era comum pessoas de baixa renda comprarem armas. Hoje só em exames e papelada você gasta mais de 2.000 reais, dependendo do Estado”, diz.

Anúncio de armas nos anos de 1980.
Anúncio de armas nos anos de 1980.

Barbosa relembra ainda que em alguns Estados, como Minas Gerais, era possível comprar munições de baixo calibre e pólvora em lojas de ferragens e elétrica. Até 1997, o porte ilegal de arma de fogo era enquadrado apenas como uma contravenção penal, uma ofensa menor (assim como o jogo do bicho), com pena de 15 dias a seis meses de prisão ou multa – prevalecendo na maioria dos casos a segunda opção. Naquele ano foi aprovada uma lei que criminalizou o porte sem autorização devida – mas mesmo assim ainda era relativamente fácil comprar um revólver um revolver.

Acessórios fashion também tinham um tratamento especial para receber as armas. Era comum que as bolsas (principalmente masculinas), valises e maletas executivas viessem com um coldre em seu interior, um local específico para guardar a arma. E alguns fabricantes de veículos tinham modelos que já saiam de fábrica com um compartimento no forro da porta ou no porta-luvas para acomodar a pistola do motorista.

Uma das categorias profissionais que mais investia em armas como forma de proteção eram os taxistas. À época não era aceito pagamento com cartões, e os aplicativos de celular ainda eram um sonho distante. Assim, o dinheiro vivo corria solto. Natalício Bezerra Silva, 81 anos, na profissão desde os 22, lembra com pesar os muitos amigos “de praça” [ponto de táxi] que perdeu em tentativas de reação a assaltos. “Um deles foi morto com a própria arma. O ladrão estava no banco de trás, anunciou o assalto, e ele tentou pegar o revólver. O assaltante tomou dele e o matou”, recorda. Além disso, o taxista também lembra o fascínio que as armas exerciam sobre os colegas: “O sujeito ficava mostrando o revólver pra todo mundo na praça”. Atualmente Natalício é presidente do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo. “Às vezes o cara matava alguém por uma besteira. Se estiver sem arma e com paciência, esfria a cabeça e já era”.

A falta de controle e de cultura de auto-defesa, porém, é algo que também jogaria contra. O caso do adolescente de Goiás que matou dois colegas de classe há dez dias, após carregar a arma dos pais policiais para a escola sem o conhecimento deles, mostra que a facilidade do acesso abre outros perigos. Neste final de semana, na cidade de Niterói, na Grande Rio de Janeiro, o assunto também ganhou força. O prefeito Rodrigo Neves (PV) decidiu perguntar à população, por meio de um plebiscito, se a guarda municipal deveria andar armada para ampliar a segurança nas ruas.  A ideia do prefeito era encontrar apoio para a medida, num momento de forte violência na capital do Estado. Mas o resultado da votação frustrou Neves. Dos quase 19.000 eleitores que compareceram às urnas, 70% foi contra o armamento da guarda municipal, contra 28,9% que votaram a favor da proposta. A eleição era facultativa, e contou com 5,1% das pessoas que poderiam votar no pleito.

 

 


Fernando Gabeira: Armas e guitarras 

A semana começou pesada com o massacre em Las Vegas. O número de mortos e feridos só crescia. De novo, pensei, virão à tona as discussões de sempre: controle de armas e as causas que levam uma pessoa a esses crimes tenebrosos. Cheguei a pensar um pouco sobre Stephen Paddock. Ele foi a uma loja em Mesquite chamada Guns and Guitars. Suponho que venda armas e guitarras. Se fizesse a escolha certa, no máximo incomodaria o vizinho. D epois, veio a questão do pai, assaltante de bancos, fugitivo da prisão. Será que há alguma coisa genética nisso e, se houver, é possível demonstrá-la cientificamente? Não ouso avançar nesse difícil caminho de entender o ódio pela Humanidade. Os do amor ferido são mais transparentes.

Digo isso pelo jovem que se jogou da ponte RioNiterói e antes gravou uma sofrida mensagem para a noiva. Ele soube que ela transava com outros e antes de se jogar disse que estava fazendo isto para puni-la. A única coisa que poderia fazer contra ela era o suicídio.

Mas, quanto menos entendemos, é preciso mais cautela. Esse debate que surgiu no Brasil com a exposição em Porto Alegre e, agora, no MAM, com a performance de um ator nu, poderia ser mais tranquilo.

O ponto de partida é aceitar duas premissas: a liberdade da arte e as classificações dos espetáculos. Esses dois componentes se completam. Não é preciso gostar da classificação por idade, mas é o arcabouço legal. Dizer que houve pedofilia e essas coisas é um exagero que acaba enfraquecendo um argumento que poderia ter uma grande aceitação: a necessidade de se observar a classificação por idade.

A discussão sobre o nu e arte é muito antiga. Seria preciso muitas manhãs de domingo para resenhá-la. Nos últimos anos na Europa, observei uma tendência a tirá-la do universo estético e torná-la uma espécie de expressão política. Em Londres, cheguei a fotografar alguns cartazes chamando para manifestações de gente nua. Aqui e ali apareciam de fato ciclistas e figuras solitárias nuas.

A crise econômica, a presença maciça de refugiados, tudo isso tornou isso pesou no clima social europeu. E além do mais, em breve começa o inverno.

Antônio Callado participou de uma expedição que buscava o corpo do Coronel Fawcett, o célebre aventureiro inglês que desapareceu no Brasil. No livro sobre a viagem, Callado conta que, depois de sete horas de avião, eles se viram no mato entre índios nus. Conclusão de Callado: a inocência pega. Meia hora depois, já não havia surpresa, embora os índios não entendessem por que tanta roupa. O máximo que achavam útil era a camisa, para proteger dos mosquitos.

Ouvi o debate na Câmara sobre o episódio no MAM. Nada edificante, como sempre. A violência e pornografia brotavam nas próprias acusações mútuas.

Na mesma semana, outro comportamento humano desafiava nossa compreensão. Uma família do Piauí deixou o filho de 12 anos num presídio para buscá-lo dia seguinte. O menino foi encontrado debaixo da cama de um homem condenado por estupro. Pouco se fala dele.
O que se passou na cabeça desses pais, o que se passou na cabeça de Stephen Paddock? Talvez não saibamos nunca. O certo é que vivemos num mundo complicado, num país arruinado pela corrupção, radicalizado nos anos petistas do “nós contra eles” e, ainda por cima, entrando numa fase pré eleitoral.

Os protestos em nome da moral e da família são uma forma de colocar o tema na agenda e fortalecer candidaturas para o ano que vem.

É legítimo que os grupos escolham agendas e queiram que suas posições sejam aceitas. No entanto, existem tarefas comuns de reconstrução do país, tarefas que precisam unir pessoas com diferentes estilos de vida. Isso não significa suprimir o debate sobre costumes. Apenas colocá-lo nos seus trilhos, desdramatizá-lo para que uma unidade maior possa cuidar da reconstrução.

Utopia? Não creio. A esperança é de que, entre a arma e a guitarra, a maioria faça a escolha certa. Isto é, que a maioria prefira uma discussão racional sobre esses problemas, não se deixe levar pelas paixões reais ou encenadas.

Um jovem empresário de Niterói, Luiz Gabriel Tiago, foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho no projeto Ponto de Luz, que ajuda centenas de pessoas.

O próprio Trump percebeu no seu discurso que o que une os Estados Unidos é a imensa solidariedade, e não o ódio. O que une o Brasil são milhares de pontos de luz que às vezes nem são vistos no noticiário. É com eles, e não com as trevas, que vamos dar a volta por cima.

A curtíssimo prazo, sonho com uma segunda-feira mais tranquila. A semana que passou, de certa forma, foi um novo abalo na própria noção de humanidade.