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O Globo: ‘O discurso da nova política perdeu a força’, diz cientista político Jairo Nicolau

Ainda sem o resultado oficial do primeiro turno, especialista avalia que as urnas apontam para uma vitória dos grandes partidos e uma redução do impacto das redes sociais

Maiá Menezes, O Globo

Especialista nos meandros da política e autor do livro “O Brasil virou à direita”, publicado este ano, o cientista político Jairo Nicolau interpreta o resultado das urnas como um retorno ao que classifica como velha ordem, em uma eleição em que o espectro da “nova política”, que dominou 2018, se dispersou. Em entrevista ao GLOBO, ainda sem o resultado oficial das urnas, ele avalia o cenário pós-primeiro turno e o impacto desta eleição em 2022.

Na sua avaliação, o presidente Jair Bolsonaro demonstrou peso na transferência de voto?

O presidente Jair Bolsonaro não tem projeto de organizar um campo político, um partido, todo jogo dele é muito solitário. Nesses dois anos, ele perdeu lideranças que o apoiaram. Não conseguiu agregar nada coletivamente. Ele agiu, na eleição, no estilo que manteve no governo: dando apoios pessoais e ocasionais em lives. Não mirou um campo político. Apoiou candidatos diferentes entre si. Não transferiu votos para ninguém. E quem se elegeu com o poder de transferência que ele tinha em 2018 foi embora. No Rio, na reta final, ele no máximo deu quatro pontos ao (Marcelo) Crivella para chegar ao segundo turno — um candidato que tem a máquina da igreja (Universal) e da própria gestão.

O que as urnas marcaram neste 2020?

Ficou claro que o discurso da “nova política” perdeu a força. As redes sociais perderam a força, muitos candidatos que subiram com o Bolsonaro em 2018 não foram bem. O próprio Crivella tem 1/5 dos votos que teve em 2016. Vejo uma chance remotíssima de se reeleger.

O discurso da nova política então não prosperou?

Houve de fato um insucesso. A maior renovação de 2018 foi a renovação dos votos do PSL. (Em 2016) Houve uma frustração, que levou o Rio a defenestrar o candidato do ex-prefeito Eduardo Paes (o deputado federal Pedro Paulo). O (governador afastado do Rio) Wilson Witzel deu no que deu. Me parece que houve um reencontro com a política. Um entendimento de que ela deve ser feita por intermédio de lideranças. (Guilherme) Boulos (candidato do PSOL em São Paulo) é liderança política importante. Lideranças do DEM ressurgiram.

Que recado as urnas trouxeram?

A impressão é que estamos voltando a uma velha ordem. Depois de 2016 e 2018, retomamos os trilhos de 2014. Os que venceram foram os partidos maiores, mais tradicionais. É o DEM, o PSOL (que não é tão jovem). O mundo era assim. Até que veio a hecatombe de 2016, com os resultados de Rio, São Paulo e Minas reforçando um discurso antipolítica. Sem querer reforçar o clichê, tenho a sensação de que voltamos ao velho normal.

Como explicar a diferença de performance da esquerda no Rio e em São Paulo? A divisão parece ter ficado explícita no Rio.

No Rio, a gente sabe desde sempre que a esquerda sai divida. Novamente, cada um lançou um candidato. Não há garantia de que, sem a Benedita da Silva (candidata do PT, deputada federal), a Martha (Rocha, deputada estadual) teria fôlego para chegar ao segundo turno. Mas essa conta tinha que ter sido feita antes. É preciso lembrar que a esquerda, desde 1992, só concorreu duas vezes no segundo turno no Rio. O fato é que saíram maiores do que entraram.

Qual a repercussão deste resultado em 2022?

Sabemos que os vereadores serão cabos eleitorais. Mas o resultado de uma eleição municipal nem sempre espelha o de uma eleição geral. O fato é que, em 2018, havia uma expectativa de que Bolsonaro teria condições muito propícias para expandir seu poder, e um partido que concorreria com solidez. No entanto, Bolsonaro não tem nada para comemorar. Não tem partido. E seus nomes terem ido mal nas urnas é um mal sinal. Seriam os ativistas de 2022. Ficou clara a derrota de um campo que se dispersou nesta eleição.

A esquerda ganhou espaço. Mas como ficou o Lulismo?

O que aconteceu em São Paulo, com (Guilherme) Boulos foi um fenômeno eleitoral. Ele conseguiu entrar na periferia, foi criativo. Transcende a esquerda. Com um apoio explícito de Lula, talvez carregasse a rejeição ao PT. Ainda não sabemos como se dará essa influência no Nordeste (até o fim da noite, os dados ainda não indicavam o efeito da presença de Lula nas campanhas regionais).

A pandemia de Covid-19 de fato repercutiu na abstenção?

Tudo indica que esta vai ser a eleição que terá a maior taxa de abstenção do país. Algumas cidades como São Paulo ultrapassaram os 30%. Muito provavelmente a pandemia pautou isso. A abstenção já vinha subindo. Agora, certamente será muito mais alta. O aumento da rejeição à política não aumentou. O que ficou claro é que bairros onde majoritariamente moram idosos, como Copacabana, o medo do contágio falou mais alto.

Isso significa que o interesse pela eleição diminuiu?

Não. O medo da pandemia surgiu, mas o interessante é que o número de votos em branco ou nulo diminuiu. Na maioria, quem saiu, tinha candidato.


El País: Antipolítica sai de cena com centro-direita fortalecida e prefeitos pró-ciência reeleitos no 1º turno

Pandemia elevou abstenção, mas eleitores saíram de máscara para votar em 5.567 cidades brasileiras. Atraso na divulgação dos resultados alimenta teorias conspiratórias de fraudes

Carla Jiménez e Aiuri Rebello, El País

A direita foi deslocada em direção ao centro e a antipolítica perdeu adeptos. A esquerda ganhou fôlego importante em algumas capitais e nas Câmaras de Vereadores e os partidos do Centrão foram os grandes vencedores, através das legendas de sempre: MDB, PP, PSD e DEM. O resultado do primeiro turno das eleições nas capitais do Brasil neste ano ―marcado pelo atraso na divulgação e uma tentativa de ataque hacker no sistema do Tribunal Superior Eleitoral― mostra um refluxo na onda populista da direita que varreu o país em 2018 com a vitória de Jair Bolsonaro. Candidatos desse espectro político, que teve nomes fortes e votações expressivas nas eleições de 2016 e 2018, não tiveram sucesso e saíram derrotados do primeiro turno —como mostram os candidatos apoiados pelo presidente. Seu filho, Carlos Bolsonaro, conseguiu se reeleger como vereador no Rio de Janeiro, mas sua votação foi menor do que há quatro anos. Conquistou 70.000 votos, menos que os 136.000 de 2016, quando foi o vereador mais votado da cidade. Agora teve a segunda melhor votação, atrás de um psolista, Tarcísio Motta.

Na polarização do coronavírus, ganharam em primeiro turno ou passaram para segundo turno em importantes capitais os postulantes que apostaram na ciência, em contraponto ao presidente Bolsonaro. É o caso de Alexandre Kalil, do PSD, em Belo Horizonte, que foi reeleito com 63,3% dos votos, Bruno Reis (DEM), em Salvador, com 64,2% (vice de ACM Neto, que condicionou a volta do tradicional Carnaval se houver vacina contra a covid-19 em fevereiro) e Rafael Greca (DEM), em Curitiba, também reeleito com 59,74%. O atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), que foi diligente na gestão da pandemia na cidade, garantiu a liderança nas pesquisas e passou para o segundo turno, que será disputado com Guilherme Boulous, do PSOL.

Um total de 147,9 milhões de brasileiros estavam aptos a votar neste domingo em 5.567 cidades ―Macapá, capital do Amapá, teve o primeiro turno adiado devido ao apagão que atinge o Estado há semanas. A pandemia, porém, levou a uma abstenção de 23,14% segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Quatro anos atrás esse índice foi de 17,5%. Mas as ruas do Brasil ficaram cheias de eleitores de máscaras saindo de casa para votar num dos momentos mais emblemáticos do país, que ultrapassou 165.000 mortes por covid-19, e um presidente que reforça crises diariamente. Algo está diferente no Brasil de 2020 e, no dia 29 de novembro (data do segundo turno), vai ficar mais claro para onde os ventos políticos vão soprar.

Em São Paulo, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) concorreu à prefeitura seguindo a mesma receita de 2018, com um discurso liberal e antiesquerda, mas não vingou. Se em 2018 ela foi a deputada federal mais votada da história do Estado de São Paulo, ao alcançar um milhão de votos ―289.404 só da capital paulista— na disputa municipal ela ficou com 1,84% das cédulas, ou 98.239 votos. Seu rompimento com Bolsonaro poderia ser apontado como um fator que tenha influenciado esse resultado. Mas o deputado Celso Russomanno (Republicanos) fez o oposto e tampouco teve sucesso. Russomanno saiu de favorito ao cargo de prefeito no início da campanha, mas caiu para um minguado quarto lugar, logo depois de vincular seu nome ao de Bolsonaro. “Russomanno assumiu o padrinho e pagou o preço, como Jilmar Tatto também assumiu (Lula) e pagou também. Já Bruno Covas não assumiu [o governador] João Doria e não pagou o preço”, admitiu Elsinho Mouco, marqueteiro da campanha de Russomanno, em entrevista ao jornal O Globo.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez campanha para Tatto em São Paulo, mas o candidato petista obteve só 8,65% dos votos, ficando atrás até do deputado estadual Arthur Do Val (Patriotas), com 9,78%. Tatto, porém, saiu de 1% das pesquisas eleitorais, enquanto Russomanno chegou a ter 29% no início da campanha, e fechou a disputa com 10,5% ―derrotado, declarou apoio a Boulos no segundo turno. Covas foi ao segundo turno como favorito mantendo distância de Doria, que tem alta rejeição na capital. Logrou reforçar sua posição ao fechar uma aliança de centro direita entre diversas siglas.

No Rio, porém, o atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) que tenta a reeleição, conseguiu chegar ao segundo turno, depois de ter mostrado publicamente sua aliança com Bolsonaro. Crivella teve 21,9% dos votos, atrás do ex-prefeito da cidade Eduardo Paes (DEM), que alcançou 37,01% dos votos. O prefeito corria o risco de ficar em terceiro, numa disputa acirrada com a Delegada Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT). Mas conseguiu crescer na reta final. Terá de reverter uma rejeição de 60% na cidade para lograr a reeleição.

O pleito mostrou ainda jovens lideranças de partidos da esquerda ofuscando a hegemonia do Partido dos Trabalhadores (PT) e entraram na disputa pelo segundo turno em capitais importantes, com Boulos em São Paulo e Manuela D'Ávila (PCdoB) em Porto Alegre. As vitórias simbólicas no primeiro turno não chegam a representar tendência nacional. O pleito deste ano mostrou um eleitor refratário a surpresas e que preferiu apostar em nomes conhecidos da política tradicional. A figura de outsiders ou “gestores” que tiveram sucesso em 2016 não tiveram destaque no primeiro turno nos principais colégios eleitorais. Em compensação, candidaturas de mulheres transgênero garantiram sucesso para se eleger vereadoras, caso da professora Duda Salabert, a mais votada da história de Belo Horizonte. Em São Paulo, a Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL) se tornaram as primeiras trans eleitas para a Câmara de Vereadores.

No Nordeste, o PT não conquistou nenhuma capital, mas tem em Marília Arraes sua chance de garantir uma vitória em Recife, capital de Pernambuco. Ela enfrenta no segundo turno o primo, João Campos (PSDB), filho de Eduardo Campos —que morreu em plena campanha presidencial num acidente aéreo em 2014. O partido do ex-presidente Lula obteve 140 vitórias no primeiro turno, mas ficou fora por primeira vez, desde 1988, de um pleito em São Paulo.

No inicio da madrugada de segunda-feira (16), já com a maioria das urnas apuradas Brasil afora, o velho MDB celebrava 746 prefeituras conquistadas na eleição. Também o centrista Partido Social Democrático (PSD) era um dos grandes vencedores da eleição com 627 prefeituras nas cidades médias e pequenas. Essa capilaridade pelo território podem fazer destes partidos aliados importantes para as eleições presidenciais de 2022.

No sábado, o presidente Jair Bolsonaro publicou em suas redes sociais uma lista de candidaturas que apoiava Brasil afora. Nas capitais, além de Russomanno e Crivella, o presidente também indicou voto em Delegada Patrícia (Podemos) em Recife, Capitão Wagner (Pros) em Fortaleza, e Bruno Engler (PRTB) em Belo Horizonte. Apenas Wagner passou ao segundo turno das eleições. A postagem do presidente foi apagada na manhã deste domingo.

Na noite do primeiro turno, postagens questionando a regularidade do pleito e sugerindo fraude no sistema de apuração invadiram as redes de bolsonaristas derrotados, que emularam Donald Trump numa tentativa de desacreditar as eleições. O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, acabou levando a anticampanha na esportiva. “Evidentemente não tenho controle sobre o imaginário das pessoas. Mas objetivamente, foi preservada a segurança e a integridade do sistema, os dados são confiáveis e conferíveis pelos boletins das urnas”, disse ele, como relata o repórter em Brasília, Afonso Benites. Uma falha em um hardware do supercomputador que totaliza os votos atrasou a divulgação dos resultados em três horas, o que abriu brecha para as teorias conspiratórias.


Celso Rocha de Barros: A antipolítica matou a renovação política?

Será bom se o número de partidos cair, mas não é irrelevante saber quais sobreviverão

Na coluna passada, argumentei que o fortalecimento do centrão pode estar se dando em um momento decisivo para a democracia brasileira: a provável redução do número de partidos causada pela proibição de coligações em eleições proporcionais.

Os partidos fisiológicos podem estar mais fortes justamente no momento em que a sobrevivência de cada legenda deve depender mais de seu tamanho atual.

Matéria de João Pedro Pitombo e Guilherme Garcia publicada na Folha de sexta-feira mostrou que o risco disso acontecer é real.

Segundo a análise de Pitombo e Garcia, as migrações de vereadores eleitos em 2016 para outros partidos em 2020 mostram que os candidatos já estão fazendo escolhas na nova estrutura de incentivos. Isto é, escolheram candidatar-se por partidos maiores, com perspectivas melhores de sobreviverem à cláusula de barreira e conquistar fatias maiores do financiamento eleitoral.

Era exatamente isso que os cientistas políticos esperavam que acontecesse. As coligações partidárias em eleições proporcionais sempre foram vistas como uma das causas do grande número de partidos existente no Brasil. Partidos pequenos podiam se aproveitar da votação dos partidos maiores para eleger deputados.

As consequências disso podem ter sido importantes: imaginem o que teriam sido os governos do PSDB e do PT se suas bancadas fossem maiores e a necessidade de cooptar aliados fisiológicos fosse menor.

A reforma da legislação aprovada pelo Congresso foi portanto, inequivocamente, uma boa ideia.

Mas ela pode ter menos efeitos positivos, ou pode demorar mais do que se esperava para gerar efeitos positivos, porque as outras ideias que venceram na política brasileira nos últimos cinco anos foram todas muito ruins.

Nos últimos anos, a onda antipolítica causou grandes perdas para os partidos mais consistentes —que aceitam passar longos períodos na oposição, sem acesso à máquina pública— como o PT e o PSDB. Eles chegam nesse início de processo de consolidação fracos.

Nos dados da matéria da Folha, vê-se que o PT se manteve estável desde 2016, mas 2016 foi sua pior eleição em muitos anos. O PSDB perdeu 11% de seus vereadores desde as últimas eleições. A única exceção entre os grandes partidos é o DEM, que cresceu 52%, um número muito expressivo.

Mas alguns dos partidos que mais receberam novos candidatos a vereador foram, segundo a reportagem, os partidos de centro-direita que sempre venderam seu apoio a qualquer governo.

O PP cresceu 30%, o PSD de Kassab também cresceu, o MDB permaneceu estável mesmo depois do desempenho ridículo de 2018. É impossível, inclusive, descartar a hipótese de que o DEM tenha crescido, em parte, porque voltou a se aproximar do perfil centrão.

No geral, isso não era o que torcíamos que acontecesse quando o número de partidos caísse.

Queríamos que PT e PSDB não precisassem mais comprar o PP, ou que PT e PSDB fossem substituídos por partidos melhores. Não queríamos que o PP substituísse o PT ou o PSDB como grande legenda.

Será bom se o número de partidos cair. Mas não é irrelevante saber quais deles sobreviverão. Se a tendência atual persistir, restarão de pé justamente os que tiveram mais disposição para se vender. A antipolítica pode ter matado a renovação que a política tradicional poderia ter trazido.

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Alberto Aggio: A irrupção da antipolítica

A ‘não realização’ da democracia aos olhos, ouvidos e coração dos cidadãos é sua origem

Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolítica. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à política foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a política.

Da erosão do sistema de representação avançou-se celeremente para o rechaço integral à atividade política, considerada nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritário e por seus aliados, é considerada sua causa maior. Mas é necessário incluir aí o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.

No processo eleitoral recente, a antipolítica assumiu o papel de irmã gêmea do antipetismo, ampliando sua negatividade para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectualismo que levou de roldão intelectuais, artistas e jornalistas, especialmente aqueles que tiveram algum protagonismo na sociedade desde os anos da redemocratização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminados pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidários.

A antipolítica estabeleceu, independentemente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergável: a ideia de que sem mudar, já e radicalmente, não haveria alternativa para o País. E mudar significava deslocar a “velha classe política” e pôr em seu lugar “o novo”, o que quer que isso pudesse significar.

Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governadores de Estado que, aparentemente, sugiram do nada, selando a reviravolta. Em cinco anos se passou da consigna “sem partido” à sedução generalizada de seleção das novas elites governamentais em setores externos à política organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.

O casamento da antipolítica com o pensamento que sustentou regimes totalitários não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado “comunismo histórico”, expressou uma fragilidade intrínseca em relação à política, em especial à política democrática. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à política tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles “vivem dos problemas da política e não buscam resolvê-los”, não deixa dúvidas. Ambos exemplificam a temeridade incrustada em opções estratégicas sustentadas na antipolítica.

Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolítica na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitante ao avanço da globalização. Isso propagou uma onda negativa de questionamento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformou-se, então, numa crise da política. É aí que surgem os atores da antipolítica do nosso tempo, chamados de forma ligeira de “populistas”.

O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilidades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolítica é, na verdade, a “não realização” da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocqueville, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamente sem nenhum limite – essa a sua “promessa”. Contudo ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituições para mediar desejos, apetites e sentimentos para garantir seu funcionamento. Mas, no essencial, empurra os indivíduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivência daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em síntese, o espectro da antipolítica espreita permanentemente o percurso de construção da democracia moderna.

Mesmo numa conjuntura problemática, a democracia tem possibilitado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemocracia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperpluralismo (uma ampliação ilimitada de sensibilidades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La Democrazia del Narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcísica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individualismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacidade de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.

A repercussão disso na política é devastadora. O cidadão, o individuo democrático, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpretações e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramente determinada pelo filtro de uma perspectiva subjetiva não educada nem amadurecida pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à política.

A irrupção da antipolítica nas sociedades contemporâneas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao “fantasma do populismo” nem ao maniqueísmo do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a política como um desígnio moderno, sem polarizações estéreis, é o desafio do tempo presente.


Alberto Aggio: Do antipetismo à antipolítica e suas diversas facetas

Nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2015/16, havia de tudo. Dentre os diversos grupos que se manifestavam, havia um bastante ruidoso, com certo tom beligerante, agressivo, que advogava abertamente a intervenção militar, junto com alguns outros. Era o "Revoltados on-line". De lá para cá, o que os animava se desdobrou para além do impeachment: eles passaram a se apresentar como a redenção da sociedade "contra a política que está aí", entendida como integralmente manchada pela corrupção. Esse rechaço à política propugnava por uma ação “antipolítica”, identificando "todos os políticos" como corruptos. Para eles, esse era afetivamente o “mal do Brasil”. Aquilo que era latente na sociedade acabou sendo então promovido à uma estratégia política que se afirmava, sinteticamente, como uma visão da sociedade contra o Estado (políticos). No fundo, uma revolta da sociedade contra a política.

Esses grupos atuaram nas redes sociais como a oposição a tudo, semeando o ódio a tudo e a todos. Sua ação permanente extrapolou a oposição ao PT. Eles nasceram do antipetismo mas foram além disso. O resultado está aí na candidatura Bolsonaro. É ele quem mais expressa essa beligerância, identificando o ódio à política e à esquerda em geral, como se o petismo fosse a única esquerda existente. Política, esquerda, petismo, comunismo e até a socialdemocracia foram e são identificados como os males do Brasil que precisam ser extirpados.

Vindos daquele mesmo processo do impeachment, outros movimentos de 2015/16 também passaram a ocupar um lugar na política. Não é o caso aqui de discutir todos eles. Quero mencionar apenas o "Vem pra Rua", um movimento antipetista mas que, de outras maneiras se postou também como antipolítico por meio da ideia de que sem mudar já e radicalmente o sistema político, não iria haver alternativa para o país. E mudar já e radicalmente significava deslocar a “velha classe política” e colocar em seu lugar “o novo”. Ao lançarem-se à disputa eleitoral, será o Partido Novo quem melhor irá expressar essa disposição. O resultado é, até o momento, menos exitoso em termos eleitorais, se compararmos com o "Revoltados On-line". É uma adesão à antipolítica por outros termos e meios, mas curiosamente há coincidências entre ambos.

De fato, a antipolítica dos nossos tempos apresenta várias facetas. Uma delas é ter nas propostas neoliberais um grande aliado. Assim, em Bolsonaro e em Amoêdo, por exemplo, aparece a mais recente combinação desses dois campos: querem acabar com a escola pública e gratuita até o ensino médio, determinação presente na Constituição de 1988. Falam em ensino a distância e em "vouchers" a serem distribuídos aos pais para que estes escolham a escola que bem entenderem para colocarem seus filhos.

Além de ser uma proposta dificílima de ser aprovada no Congresso, é também um engodo: visa atrair o apoio da classe média com a fábula de que havendo menos serviços públicos prestados pelo Estado, menos imposto se pagará. Pior do que isso, como o mercado educacional não é elástico, seria jogar os filhos das classes populares fora da escola ou piorar mais ainda as condições das escolas públicas. No Chile pinochetista, que adotou modelo semelhante, houve mediações importantes depois da saída do ditador, que os candidatos não mencionam, por não saberem (o que é provável) ou por sonegarem essa informação. Vale dizer também que esse modelo está sendo revisto pelos últimos governos chilenos, sejam eles de centro-esquerda ou centro-direita.

No que se refere ao Brasil, convém atentar para o fato de que a política democrática da Constituição de 1988 é o referente não apenas do nosso Estado de Direito como também daquilo que ainda nos resta de Estado Social. Na visão dessas duas candidaturas da direita brasileira (distintas entre si, pois uma é abertamente antidemocrática e a outra mantêm-se nos marcos da democracia) não há mais (ou não deve haver) a relação entre Estado e Sociedade e sim entre Estado e indivíduos (contribuintes). O fundamento de ambos é estritamente neoliberal, destacando-se mais em Amoêdo do que em Bolsonaro.

Não é o caso aqui de nos empreendermos numa controvérsia estéril sobre direita e esquerda. E nem imaginarmos que no chamado campo democrático não existam diferenciações importantes. O Manifesto por um Polo Democrático e Reformista está seguramente bastante distante dessas propostas. Além do que, nessas eleições, a socialdemocracia tem candidato e defende outras iniciativas para a melhoria da educação e da vida social. Assim, é preciso estar atento para não cair no canto de sereia da antipolítica misturada com o neoliberalismo.

O nosso momento eleitoral é francamente favorável à antipolítica. O rechaço aos políticos e aos partidos está estabelecido em corações e mentes, com razões para isso ou não. Em algumas proposições o rechaço à política se confunde com rechaço à democracia, seja ela vista por qualquer viés que se queira.

A antipolítica leva a muitos caminhos, com maior ou menor êxito, e hoje, a "fortuna" parece lhe sorrir. Mas a história é pródiga em anotar que nada é tão simples assim. Girolamo Savonarola, na Firenze dos Medici, parecia um moralista invencível ao chegar ao poder, mas durou pouco, isolou-se e terminou na fogueira. Mussolini e Hitler quiseram reinventar tudo a partir da sua potência vital e primária, e sabemos no que deu. Mesmo derrotados, Maquiavel e Gramsci podem nos auxiliar com suas anotações críticas na hora presente. É preciso olhar para além dos discursos grandiloquentes e conseguir construir perspectivas realistas, isolando tanto as nostalgias do passado quanto aqueles que parecem ver uma única solução para a profunda crise que vivemos.