Ana Cristina Rosa

Ana Cristina Rosa: Os gritos do Sete de Setembro

Este já é um dos 7 de Setembro mais conturbados da história

Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo

Independentemente do que aconteça, este já é um dos 7 de Setembro mais conturbados da história. Houve momentos de tensão relacionados à data anteriormente, mas, segundo historiadores, geralmente tratava-se de episódios isolados, como na província da Bahia em 1839.

Na ocasião, um artigo publicado no jornal Gazeta da Bahia contendo críticas à Independência e afirmando que o país deveria ter continuado unido a Portugal foi censurado com base na legislação vigente. O ato causou tumulto e constrangimento num momento em que a Bahia recém havia saído da Sabinada, revolta contra o Império ocorrida entre 1837 e 1838.

Agora, pela primeira vez em quase 200 anos, a tensão política é generalizada. Há uma espécie de preocupação nacional pelo constante clima de ameaça à estabilidade institucional. Milhares de integrantes dos povos originários passaram as últimas semanas acampados em Brasília para defender seus territórios da tese do marco temporal.

O sistema eleitoral brasileiro vem sendo colocado sob suspeição sem que haja fundamentos. E o sistema de freios e contrapesos é colocado à prova quase o tempo todo. Para piorar, a população nunca esteve tão armada --literal e figurativamente.

Além dos percalços ainda causados pela pandemia, que há mais de um ano vem alterando e ceifando vidas, um clima de incerteza, tensão e medo paira no céu da República Federativa do Brasil neste Dia da Independência.

No lugar das habituais paradas militares e dos desfiles escolares ao som da cadência de bandas marciais, a previsão é que avenidas sejam tomadas por manifestantes dispostos a dar o que estão chamando de "último grito", em apoio ao governo federal e em oposição ao Grito dos Excluídos, tradicional manifestação popular, que neste ano reforça a ausência de direitos básicos numa pátria onde muitos estão passando fome.

Em 2021, mais do que nunca, o Dia da Independência do Brasil está cercado de incertezas quanto ao futuro.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/09/os-gritos-do-sete-de-setembro.shtml


Ana Cristina Rosa: No Brasil da injustiça social, terra também tem cor

O nexo entre a estrutura fundiária e a perpetuação da injustiça social não é novidade no país

Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo

Dados demográficos sobre o Brasil colonial apontam que pelos idos de 1798 a população era estimada em 3,25 milhões de pessoas. Quase metade (48,7%) era de escravizados e outros 12,5%, de negros e mulatos libertos. Os indígenas "pacificados" somavam 7,7%. Brancos, só 31,1%.

Os percentuais fazem lembrar do Atlas do Espaço Rural Brasileiro, publicação do IBGE do final de 2020, que identificou pela primeira vez a cor ou raça dos produtores dirigentes dos estabelecimentos rurais do país e cruzou esses dados com outras variáveis. O resultado é a exposição em números de uma realidade conhecida há séculos: no Brasil, a terra também tem cor.

A metodologia evidenciou que produtores rurais pretos, pardos e indígenas estão concentrados em pequenos estabelecimentos. À medida que aumenta a área de terras, cresce também o número de proprietários brancos, deixando clara a relação entre etnia e concentração fundiária.

A história mostra que o nexo entre a estrutura fundiária e a perpetuação da injustiça social não é novidade no país. Líder do movimento abolicionista no século 19, Joaquim Nabuco já defendia “uma democracia de pequenos proprietários rurais”.

Em discurso proferido em 1884, Nabuco chegou a afirmar que acabar com a escravidão não seria o bastante; era preciso destruir “a obra da escravidão”. E atrelou a emancipação dos escravizados à democratização do solo. Como se sabe, aconteceu exatamente o contrário.

O engenheiro negro André Rebouças, outro abolicionista, pregava a adoção de uma lei agrária que distribuísse a terra. A concentração fundiária exposta no Atlas é um dos frutos de uma sociedade que optou pelo extermínio de povos nativos, substituição da mão de obra escravizada pela de colonos europeus e marginalização dos negros.

A publicação do IBGE fornece uma “visão integrada” do espaço rural brasileiro e desenha por meio de mapas, gráficos e tabelas que também no campo as ações do passado moldaram as desigualdades do presente.

*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/terra-tambem-tem-cor.shtml


Ana Cristina Rosa: Racismo.br

O fator socioeconômico é relevante para a manutenção dessa prática odiosa que se instalou há séculos na sociedade

Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo

Como o racismo criou o Brasil. A sentença instigante aguçou a curiosidade e me fez assistir a palestra em forma de aula que o professor, escritor, doutor em sociologia e pós-doutor em psicanálise e filosofia Jessé Souza ministrou para lançar seu novo livro.

Entre as muitas reflexões, o palestrante, um homem branco, observou que o racismo assume máscaras que dificultam sua identificação. Para compreender a prática, é preciso considerar que ela está ancorada em estímulos morais que determinam o comportamento social em várias dimensões. “O racismo destrói as pessoas e continua vivo, se fingindo de morto”, disse.

A constatação é impactante e capaz de denotar o grau de complexidade do problema. Só quem já foi vítima desse crime sabe o quanto ele é corrosivo, podendo até ser incapacitante. Daí a necessidade de se contrapor de modo racional —o que, além de difícil, é doloroso.

Há tempos venho me fazendo uma indagação que ouvi durante a palestra: Como é possível perpetuar por tanto tempo um sistema que possibilita que um país tão rico como o Brasil reduza a maioria de sua população à pobreza, relegando grande parte das pessoas a viver o presente sem dignidade e a olhar para o futuro sem perspectiva de melhora?

Temos hoje cerca de 14,8 milhões de pessoas desempregadas, número recorde registrado pelo IBGE desde 2012. Com aproximadamente 30 milhões de brasileiros na informalidade, a precarização das relações de trabalho é flagrante. Além disso, uma multidão estimada em 19 milhões de pessoas está passando fome.

É uma realidade perturbadora e injusta. Coisa que extrapola a fronteira da temática racial —visto que, embora a maioria dos pobres brasileiros seja composta por pessoas negras, nem todo brasileiro pobre é negro—, mas tem tudo a ver com ela. Afinal, sendo o racismo uma forma de dominação e de opressão, o fator socioeconômico é relevante para a manutenção dessa prática odiosa que se instalou há séculos na sociedade.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/racimobr.shtml


O Brasil que vale ouro

Olimpíadas evidenciaram um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço

Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo

Acompanhei os resultados do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 com empolgação. Não só porque o país fez a melhor campanha olímpica de todos os tempos, com a conquista de 21 medalhas, mas especialmente pelo fato de boa parte dessas condecorações carregar enorme simbolismo.

O Brasil que vale ouro é um país de gente miscigenada, talentosa, simples, obstinada e resiliente, que dá duro para conquistar seu espaço. É diverso, criativo, cativante e não se cansa de perseguir a realização de sonhos —sejam eles tingidos de dourado, de prata ou de bronze.

O Brasil que vale ouro respeita as regras do jogo, aceita derrotas e insiste em contradizer a falácia da meritocracia porque sabe que mérito e oportunidade precisam andar juntos.

Nesse quesito, a ginasta Rebeca Andrade é inspiração. A jovem que caminhava duas horas para ir ao treino quando a mãe não tinha dinheiro para passagem emocionou e fez história.

Ao conquistar a primeira medalha do país na ginástica artística feminina em olimpíadas, com a prata no individual geral, e o primeiro ouro da modalidade, no salto, tornou-se também exemplo de que meninas negras podem ser o que quiserem, subvertendo a lógica perversa do racismo sistêmico.

Como lembrou com propriedade, em lágrimas, a ex-ginasta Daiane dos Santos após o ouro de Rebeca, “durante muito tempo, disseram que as pessoas negras não poderiam fazer alguns esportes.” O absurdo não poderia ter sido desmascarado de maneira mais primorosa, unindo técnica e graça.

Para um país que não investe na formação esportiva, os resultados da delegação brasileira foram excelentes. E até quem não conquistou medalha está de parabéns. Afinal, nenhum atleta de alto rendimento deveria ter de treinar num terreno baldio.

Se foi possível obter resultados positivos a partir de casos individuais de superação, do que o Brasil seria capaz se o esporte fosse incentivado e tratado como ferramenta de inclusão social no país.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/08/o-brasil-que-vale-ouro.shtml


Ana Cristina Rosa: Desafio monstruoso

Toda pessoa negra no Brasil tem ao menos uma história de racismo relacionado ao cabelo para contar

Toda pessoa negra no Brasil tem ao menos uma história de racismo relacionado ao cabelo para contar. Para a maioria de nós, negros, essa vivência começa na infância —em geral quando entramos na escola e passamos a frequentar um microcosmo que reproduz a malignidade do racismo impregnado na sociedade brasileira – e se manifesta pela vida afora.

Acontece com o negro pobre e com o endinheirado, com o desconhecido e o famoso. O episódio mais recente ocorreu no BBB 21, quando o cabelo afro de um dos participantes da edição foi comparado à peruca da fantasia do castigo do monstro. Em março, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, a atriz Taís Araújo contou a experiência da filha de seis anos com um coleguinha de colégio que zombou do cabelo da menina.

Mas o que soa realmente surpreendente é a naturalização desse tipo de situação, tratada como desentendimento, mal entendido ou brincadeira em pleno século 21. Assim os fatos vão sendo escamoteados como se fossem qualquer coisa menos o que realmente são: atitudes racistas.

“Brincadeiras” e comparações com o cabelo do negro são tão corriqueiras que, desde que me conheço por gente, dão azo a apelidos pejorativos e fica por isso mesmo. Como se não fossem uma forma de violência, não ferissem e não afetassem a autoestima de milhões de pessoas. Sinceramente, é muita subjetividade envolvida numa questão que parece bastante objetiva.[ x ]

Por mais que se exalte a beleza negra, persiste uma tensão em torno dos fios de cabelo crespos e cacheados, fruto do estrago causado por séculos de imposição de um padrão de beleza eurocêntrico, que desvaloriza e menospreza tudo o que se difere.

Como destacou Nilma Lino Gomes em sua tese de doutorado Sem Perder a Raiz –corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, “desde a escravidão, a mulher e o homem negro convivem com o desafio de desconstruir o olhar negativo sobre o seu corpo e o seu cabelo”. E o desafio é monstruoso.

*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.


Ana Cristina Rosa: Yes, we can'

Kamala Harris tem significado enorme em termos de representatividade

As Américas estão vivendo em 2020 um ano memorável para as mulheres na política. Depois das conquistas femininas na Bolívia e no Chile, pela primeira vez uma mulher, negra de ascendência asiática, chega à Vice-Presidência de um dos países mais influentes do planeta.

A vitória da chapa Biden-Harris é um marco dos mais significativos na luta pela igualdade de gênero e de raça não só nos Estados Unidos, mas também no mundo. Como vice-presidente, Kamala será também a pessoa que irá presidir o Senado.

O ineditismo da eleição de Kamala Harris para Vice-Presidência dos Estados Unidos tem significado enorme em termos de representatividade. Por representatividade, entenda-se permitir que as pessoas, sobretudo as que integram grupos que estão à margem das esferas de poder e de decisão, se reconheçam no outro.

E isso não diz respeito necessariamente a minorias quantitativas, mas também a grupos numerosos que são minorizados em termos de representação. É sentir-se capaz a partir da linha do exemplo, independentemente de rótulos e preconceitos.

A mensagem é clara por si, mas foi reforçada e explicitada por Kamala em seu primeiro discurso como vice-presidente eleita ao dirigir-se às crianças do país e recomendar que "sonhem com ambição, liderem com convicção e se vejam onde os outros podem não ver, simplesmente porque eles nunca viram antes".

Esta não é a primeira vez que Kamala Harris desbrava e conquista espaços, ajudando a abrir o caminho para as mulheres que seguramente virão depois. Como ela mesma afirmou, "serei a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, mas não serei a última". Ela foi a primeira pessoa negra a assumir a procuradoria-geral da Califórnia e uma cadeira no Senado por aquele estado.

A eleição de uma mulher negra para o segundo mais alto cargo eletivo da maior potência do mundo ocidental traz à memória o slogan de campanha do primeiro negro eleito presidente dos EUA: "Yes, we can".