Amazônia

Bernardo Mello Franco: Delírios amazônicos

A placa descerrada na cerimônia anunciava o início de uma “arrancada histórica”. De terno e gravata na selva, o presidente Emilio Garrastazu Medici se empolgou ao testemunhar a derrubada de uma árvore de 50 metros de altura. A queda da castanheira foi “aplaudida entusiasticamente” pelo general, relatou o enviado especial do GLOBO.

Medici havia pousado em Altamira para inaugurar a construção da Transamazônica, que se estenderia por mais de cinco mil quilômetros, cortando sete estados. A visita completou 50 anos na sexta-feira, mas a rodovia nunca ficou pronta. Alguns trechos foram engolidos pela floresta, outros jamais saíram do papel.

A obra faraônica fazia parte do Programa de Integração Nacional, lançado em 1970. A ditadura embalou o plano com o lema “Integrar para não entregar”. Nas palavras de Medici, era preciso “colonizar” a região para combater o “interesse estrangeiro”. O general prometia tirar o “relógio amazônico” do passado. Sua visão de futuro se resumia a fumaça, asfalto e motosserra.

A pretexto de povoar a Amazônia, os militares promoveram a exploração predatória da floresta. A ditadura estimulou a derrubada da mata para a criação de gado e o cultivo de soja. Garimpeiros e madeireiros também receberam subsídio para desmatar. Tudo em nome da “soberania nacional”.

Meio século depois, as teorias conspiratórias voltaram a ser úteis ao governo. Jair Bolsonaro e seus aliados apelam ao velho nacionalismo para rebater as críticas pelas queimadas. “Usam argumentos falsos, números fabricados e acusações infundadas para prejudicar o Brasil”, vitimizou-se o general Augusto Heleno, em audiência recente no Supremo.
No último dia 30, Bolsonaro aproveitou uma reunião das Nações Unidas para retomar os ataques ao movimento ambientalista. Em mais um discurso delirante, ele acusou ONGs de incentivarem a devastação para desestabilizar seu governo. “Rechaço, de forma veemente, a cobiça internacional sobre a nossa Amazônia”, afirmou.
A hostilidade aos povos indígenas também une a ditadura ao bolsonarismo. Na campanha, o capitão avisou que não demarcaria “um centímetro quadrado a mais”. Entre a eleição e a posse, ele ameaçou rever a Raposa Serra do Sol, a pretexto de permitir a exploração de riquezas minerais.
Os delírios amazônicos se parecem, mas há diferenças. No diálogo com Al Gore reproduzido pelo documentário “O Fórum”, o capitão é explícito: “Temos muita riqueza na Amazônia, e eu adoraria explorar essa riqueza com os Estados Unidos”. Os generais ainda se preocupavam com as aparências.

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Nas eleições do Rio, nada se cria. Na estreia do horário eleitoral, a candidata do PSOL, Renata Souza, lançou o slogan “O Rio vai voltar a sorrir”. Cópia do jingle de Leonel Brizola na disputa de 2004. A pedetista Martha Rocha se apresentou como candidata da coligação “Unidos pelo Rio”. É o mesmo nome das alianças de Luiz Paulo Conde, em 2000, e Eduardo Paes, em 2008.


Cristovam Buarque: Todas as florestas

Governo federal comete uma loucura irresponsável na Amazônia

Faz 20 anos, O GLOBO publicou o artigo “Um mundo para todos”. Nele, transcrevi a resposta à pergunta de um estudante durante palestra na cidade de Nova York, em setembro de 2000. O jovem perguntou: “O que pensa de internacionalizar a Amazônia?”. Antes que eu começasse a dizer “sou contra”, ele completou: “Quero opinião de humanista, não de brasileiro”.

Respondi que defenderia a internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados os museus, as armas, o petróleo, os patrimônios históricos, rios e florestas do mundo inteiro. Depois de uma longa lista do que julgava que deveria ser internacionalizado, concluí: “Quando a humanidade internacionalizar tudo isso, aceito debater a ideia de internacionalizar a Amazônia. Até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa!”.

Graças ao artigo, a resposta foi traduzida em diversos idiomas e entrou na coletânea de “Cem discursos históricos brasileiros”, elaborada por Carlos Figueiredo. Anos depois, o fotógrafo Sebastião Salgado me disse que não gostava da última frase.

Ele estava certo. O discurso deveria concluir com uma frase adicional: “Mas, se não soubermos proteger a Amazônia, não merecemos, nem conseguiremos tê-la para sempre”.

A resposta ainda não tinha dimensão humanista, porque tratava a Amazônia como propriedade brasileira, sem perceber que ela é também patrimônio da humanidade, parte do Condomínio Terra. Tal qual os móveis de um apartamento, cujo dono não tem o direito de incendiá-los dentro de casa. O que está acontecendo com nossas florestas é a demonstração de insensatez nacional e irresponsabilidade com a Humanidade. Um patriotismo anti-humanista e suicida.

Ao negar a realidade visível da destruição de nossas florestas, o governo federal comete uma loucura irresponsável com o país e insensível com a Humanidade, levando a população mundial a tratar o Brasil como país perigoso para o futuro da vida no planeta, um país que pratica ecoterrorismo.

No lugar da mentirosa defensiva do presidente e de seu ministro do Meio Ambiente, deveríamos reconhecer nossos descuidos históricos, apresentar correções no cuidado de nossa biodiversidade e assumir posição ativa, propondo uma Conferência Internacional pela Preservação e Recuperação de Todas as Florestas do Mundo — nossas, africanas, europeias, russas, asiáticas e norte-americanas, cuidadas como propriedade do país e patrimônio da Humanidade.

Em vez de incendiários, poderíamos ser os promotores do respeito às florestas da Terra. É isso o que faríamos se ainda tivéssemos no comando do Itamaraty diplomatas do porte daqueles que articularam a Rio-92 e a Rio+20. No Ministério do Meio Ambiente, pessoas com a competência e o prestígio de José Goldemberg, Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira.

Tudo indica que, em vez de tentar salvar o mundo, vamos continuar perdidos na incompetência e na insensibilidade, e o mundo perdendo a chance de sermos atores decisivos na proteção de todas as florestas do mundo.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Fernando Gabeira: De costas para o gol

Há quem não veja o futuro e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis

Desde o célebre livro de Stefan Zweig, e mesmo antes dele, o Brasil é reconhecido como o país do futuro. Às vezes, parece que o futuro chegou, e revistas estampam na capa um Cristo Redentor em forma de foguete subindo aos céus. Às vezes, a ideia toma a forma de um gigante que desperta e caminha com decisão. Para onde, José?

Apesar de toda essa fantasia, sinceramente não conheço um momento da história em que a possibilidade real de encontro com o futuro seja tão concreta.

A base dessa presunção é o fato de que a teoria econômica evoluiu no planeta. Não se acredita mais que o progresso é indissociável da destruição ambiental. A própria natureza deixou de ser vista como uma externalidade, um elemento passivo, um simples insumo. Agora, é vista como o centro da produção.

Nesse contexto, o Brasil não só emerge como uma potência ambiental, mas como o território onde mais se produz vida no planeta. As concepções mudam, e nada parece mais fora do lugar hoje do que a tese de que a conservação da natureza é um entrave ao progresso econômico.

Acaba de ser publicado o livro “Brasil, paraíso restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Caldeira não é um idealista alheio às engrenagens reais da economia. Escreveu o livro “Mauá: empresário do Império” e também uma “História da riqueza no Brasil”, ampla e inteligentemente pesquisada.

O livro sobre o Brasil como potência ambiental é amparado em gráficos e mapas destinados a mostrar que a natureza preservada é o centro de criação do valor econômico.

Um dos capítulos do livro tem este título: “Queimar florestas é queimar dinheiro”. Nele é possível saber que os créditos de carbono no mundo hoje superam o volume das exportações brasileiras. Os créditos são dinheiro disponível para manter florestas em pé, retendo o carbono no subsolo.

Isso sem contar com produções sustentáveis, como as de açaí e castanha, e as incontáveis potencialidades das plantas.

É essa nova visão que faz com que empresas e fundos de pensão se interessem pela defesa do meio ambiente. De um modo geral, supõe-se que esse interesse é para agradar a consumidores, uma operação de marketing. Pode até ser isso também, mas hoje esse aspecto já se torna secundário.

O grande obstáculo para o Brasil ocupar esse espaço no mundo é o governo, que ainda associa progresso com destruição ambiental. A ideia de passar uma boiada sobre as normas de proteção é um eufemismo. Na verdade, querem passar bandos de javalis que devoram tudo pela frente.

No governo militar houve um encanto com esse tipo de progresso. Campanhas do tipo “bem-vinda poluição” circularam pelo mundo tentando atrair capitais já em declínio no Norte.

A destruição da Floresta Amazônica era vista como um triunfo da ação humana sobre a natureza. A mata era vista como um mito a derrubar para que se pudesse faturar.

Mas isso foi há meio século. É compreensível que a cabeça de Bolsonaro tenha se congelado na década dos 70, e ele sonhe com uma, duas, três, muitas Cancúns.

Mas os militares leem, viajam, frequentam cursos, seminários. Não poderiam respaldar essa política destrutiva, na esperança de nos tornarmos um país como os outros do século passado.

Não é só pelo processo destrutivo. Mas pelas evidências de um caminho econômico mais fértil, pela imensa possibilidade de o Brasil, finalmente, encontrar um futuro que não seja um efêmero foguete de capa de revista ou um sonolento gigante se pondo em marcha.

Desta vez, não seria um voo de galinha, mas sim a consciência de ser o país mais rico do mundo, em vida e energia, uma potência ambiental que explora racionalmente suas vantagens e reduz suas deformações como a disparidade de renda.

O futuro finalmente chegou. Há quem não o veja e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis.

O Brasil talvez seja o único país hoje presente na agenda da eleição presidencial americana. Seria uma conspiração para derrubar nossas matas, esgotar nossos minérios e celebrar uma volta ao século XX? Ou um novo pacto para o futuro?


Merval Pereira: Meio-Ambiente verde (oliva?)

A militarização da Amazônia parece ser a saída que o governo de Bolsonaro projeta para garantir nossa soberania na região, como se ela estivesse realmente ameaçada. Desde que o candidato à presidência dos democratas nos Estados Unidos, ex-vice-presidente Joe Biden, disse no debate com Trump, referindo-se às queimadas no Brasil, que vai procurar outros países para criar um fundo de preservação da Amazônia de U$ 20 bilhões, e que, se o desmatamento continuar, haverá "consequências econômicas significativas", o presidente Bolsonaro vem acirrando os ânimos nacionalistas dos militares.

Responde que “não estamos à venda” em sua live do Facebook, e considera a fala de Biden uma demonstração de que há interesses espúrios de outros países na Amazônia. Bolsonaro joga toda sua política externa na reeleição de Trump, vê nossa relação diplomática com os Estados Unidos como “plena”, e lamenta que Biden, que pode vir a ser eleito presidente dos Estados Unidos, “parece estar querendo romper o relacionamento com o Brasil por causa da Amazônia”.

Consequentemente, diz que o Brasil precisa de Forças Armadas "preparadas" para proteger a Amazônia caso algum país resolva fazer "uma besteira" contra o Brasil. “E nós temos que fazer o que? Dissuadi-los disso. E como você faz a dissuasão disso? Ter Forças Armadas preparadas. Mas nossas Forças Armadas foram sucateadas ao longo dos últimos 20 anos”, lamentou.

O estranho é que no Fórum Econômico Mundial, ao encontrar-se com o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, Bolsonaro disse que gostaria de “explorar a Amazônia com os Estados Unidos”. Mesmo que seja apenas uma bravata, essa convocação à defesa da Amazônia entusiasma os militares, e boa parte dos seguidores bolsonaristas mais radicais.

A idéia de juntar o ICMBio ao Ibama, por exemplo, está sendo vista pelos ambientalistas como uma tentativa de militarizar a preservação do meio-ambiente, que já está dominada por militares no Ibama. Há também pressões vindas dos setores produtivos para a mudança da política ambiental do governo, pois a ação do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles está se tornando tóxica para os exportadores.

O agronegócio já está sofrendo as conseqüências de uma política ambiental que desafia o mundo ocidental, e pode provocar prejuízos à marca Brasil, que sempre teve um peso importante no mercado mundial. Os agricultores estão gastando mais dinheiro do próprio bolso para fazer o rastreamento dos seus produtos, para poder provar que não são oriundos de áreas desmatadas.

A nomeação do vice-presidente Hamilton Mourão para presidir o Conselho da Amazônia foi um primeiro passo para dar mais credibilidade às ações do governo na região, mas, embora tenha mais bom senso que Salles, o vice-presidente precisa ter sob sua jurisdição órgãos que hoje estão no ministério do Meio-Ambiente.

Por isso voltou a ser cogitada a fusão do ministério do Meio-Ambiente com a Agricultura, uma idéia que o presidente Bolsonaro teve no início de seu governo, ao montar o novo ministério. Na ocasião, e com razão, pareceu ser uma manobra para rebaixar o Meio-Ambiente em favor do agronegócio. Agora, ao contrário, seria uma ação para proteger o agronegócio das críticas internacionais à política ambiental do governo Bolsonaro.

A proposta é que o vice-presidente Hamilton Mourão assuma toda a coordenação da política ambiental, e que a Agricultura absorva funções burocráticas do Meio-Ambiente. Mourão teria assim sob sua orientação o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que ele já criticou, a ponto de apoiar um movimento do Ministério da Defesa para comprar um satélite que faria a mesma função de monitoramento de queimadas e desmatamentos que o sistema do Inpe já faz.

A idéia foi abandonada, mas Mourão, assumindo a política ambiental, terá o sistema de satélites já existente à sua disposição. Tudo isso pode ser feito, e melhorará a imagem do país no exterior, se demonstrarmos que estamos realmente combatendo as queimadas e o desmatamento, e não apenas entregando aos militares uma hipotética defesa da região, sem alterar o negacionismo do governo.

Um meio-ambiente verde, e não verde-oliva.


Raul Jungmann: Qual o projeto nacional para a Amazônia?

No primeiro debate nacional com o Presidente Trump, o candidato democrata Joe Biden disse que amealharia 20 bilhões de dólares para em conjunto com outros países “resolver” (sic) o problema do desmatamento da Amazônia. Falou bobagem, naquele que foi um dos piores debates televisivos já vistos.

A soberania do Brasil sobre o seu território é intocável, inegociável e não está em discussão ou aberta a quaisquer negociações. Desde o início do fim do neo-colonialismo, após a 1ª guerra mundial, o direito internacional não admite o mandato de outros países sobre nações e territórios soberanos – caso do Brasil.

Já após a II Grande Guerra, alguns temas e questões ganharam status de direito internacional positivo, como é o caso do fundo dos oceanos, espaço, o Ártico e Antártida, refugiados e direitos humanos, em graus variados de extensão e adimplência.

Mesmo o direito internacional que sustenta a imposição da paz e/ou a estabilidade das nações pela ONU, não incide sobre a tutela do território das nações em conflito ou em guerra civil. Entretanto, é inequívoco, o direito internacional tem evoluído, sobretudo numa era de globalização acelerada, para a mitigação, compartilhamento e/ou responsabilização da soberania das nações, em temas como, por exemplo, o direito das gentes e o meio ambiente.

Em especial nesse último caso, e no que toca as mudanças climáticas, a internacionalização do direito e as responsabilidades comuns, ainda que assimétricas, têm sido progressivas e inexoráveis.

A forma que temos de harmonizar essa tendência global com a nossa soberania é assumirmos, integralmente, nossa responsabilidade pela preservação da Amazônia, que é impossível de ser assegurada sem um projeto de desenvolvimento sustentável integral. O que é o mesmo que dizer, sem desenvolvimento sustentável não há como preservar a Amazônia.

A questão de fundo é que, entre nós, não há consenso sobre que projeto, que desenvolvimento sustentável será esse. O que existe são projetos em disputa, sem que haja uma estratégia nacional, um rumo definido para a região. Enquanto não definirmos o que queremos para a Amazônia, é preciso e urgente conter e reprimir a sua devastação.

Toda ajuda e apoio externos, desde que por nós definidos em razão dos nossos interesses e soberania, devem ser bem-vindos. Igualmente, é inequívoco que a exploração desenfreada de reservas indígenas e/ou ambientais e o desmatamento em curso desservem à nossa soberania e aos interesses do Brasil.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Luiz Carlos Azedo: Chauvinismo e xenofobia

Além do preconceito étnico, há um viés de intolerância religiosa muito forte na fala de Bolsonaro, porque o caboclo é uma “entidade” do sincretismo religioso entre africanos e índios

Nicolas Chauvin foi um soldado francês condecorado por Napoleão Bonaparte por sobreviver a vários combates, severamente mutilado, depois de ser ferido 17 vezes. Tornou-se uma lenda para os franceses, até que as comédias escrachadas de vaudeville começaram a ridicularizar sua ingenuidade e fanatismo, dando origem ao termo que hoje é muito utilizado para caracterizar o sentimento ultranacionalista que leva os indivíduos a odiar as minorias e perseguir os estrangeiros. Na década de 1970, as feministas dos Womens`s Lib deram uma conotação mais abrangente ao termo, ao chamar os machistas de “porcos chauvinistas”.

Por causa de seu discurso de ontem na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro entrou para o rol dos líderes políticos chauvinistas da atualidade, o que não é bom para nenhum chefe de Estado nem para o Brasil, em particular. Seu discurso nacionalista não chegou a ser histriônico, mas fugiu à verdade e ignorou a realidade, sendo muito contestado interna e externamente. Além do chauvinismo, Bolsonaro revelou certa xenofobia, ao culpar os caboclos e índios pelos incêndios na Amazônia e Pantanal.

Xenofobia é outra palavra muito feia. Refere-se ao sentimento de hostilidade e ódio manifestado contra pessoas por elas serem estrangeiras ou serem enxergadas como estrangeiras. Trata-se de um preconceito social muito comum no mundo por causa do fluxo de migrações. Árabes e muçulmanos sofrem com isso na Europa, mexicanos e latinos nos Estados Unidos. Geralmente, a xenofobia está associada ao racismo. A forma como Bolsonaro trata os índios no Brasil sempre teve essa conotação xenófoba; a novidade é o preconceito que revelou na ONU em relação aos caboclos brasileiros.

Certos fenômenos da vida brasileira não se explicam pela sociologia ou pela ciência política, somente podem ser compreendidos quando nos socorremos da antropologia. A eleição de Bolsonaro, por exemplo, sua capacidade de se amalgamar aos evangélicos e capturar o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal nas camadas mais pobres da população, ameaçada pelas dificuldades econômicas e as mudanças de costumes. Em contrapartida, Bolsonaro não consegue entender o nosso sincretismo religioso e o peso da miscigenação na formação da identidade brasileira. Se entendesse, não trataria com tanto preconceito os indígenas e os caboclos da Amazônia.

Miscigenação e sincretismo
O caboclo tem uma cultura de selva adquirida dos índios. Porém, manteve a língua, a religiosidade e certos costumes dos portugueses, ao longo de secular abandono. É um comportamento semelhante ao do moçambicano branco, mas muito diferente do bôer sul-africano, que renegou as origens, inventou uma nova língua e se considera a grande tribo branca da África. Todos ficaram insulados após a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Explico: quando os holandeses chegaram ao Recife, em 1630, para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e produzir açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. Saíram do Recife em 1641 para atacar Angola e dominar o tráfico negreiro para o Brasil. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco para expulsá-los, Salvador de Sá organizou uma expedição do Rio de Janeiro para expulsar os holandeses de Angola, em 1648. Cerca de 2 mil portugueses, porém, ficaram largados na Amazônia, para onde haviam sido enviados em 1637, para explorar o cacau e a castanha, produtos de grande valor comercial.

Apesar dos esforços portugueses para manter o controle da região, notadamente do Marquês de Pombal, após o Tratado de Madri (1750), por meio da fortificação de suas fronteiras — Belém, Gurupá, Manaus, Santarém, Almeirim, Óbidos, Tabatinga, São Gabriel da Cachoeira, Guaporé, Macapá e outros —, a integração à economia nacional somente veio a ocorrer no século XIX, com o Ciclo da Borracha (1870-1912), quando aproximadamente 300 mil nordestinos migraram para seus seringais. Mas a cultura amazônida do caboclo já estava dada.

Além do preconceito étnico, há um viés de intolerância religiosa muito forte na fala de Bolsonaro, porque o caboclo é uma “entidade” do sincretismo religioso entre africanos e índios. Nas religiões ou seitas afro-brasileiras, é a designação genérica dos espíritos de ancestrais indígenas brasileiros que supostamente surgem nas cerimônias rituais e que foram idealizados, já no século XX, segundo os modelos de orixás da teogonia jeje-nagô e do indianismo literário romântico. Na Umbanda, são guerreiros enérgicos, procurados pelos conselhos sensatos e passes poderosos. Bolsonaro mexeu com Ubirajara, Tupiara, Cobra Coral, Pena Branca, Sete Flechas, Águia Dourada, Sete Espadas, Espada Flamejante, Sete Lanças, Tabajara, Tamoio, Sete Ondas, Sete Matas, Caboclo Pantera Negra, Tupuruplata, Rompe-Mato, Caboclo Apeiara, Araribóia, Rompe-Ferro, Pena Vermelha, Beira Mar, Caiçara e Sete Caminhos.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/na-entrelinhas-chauvinismo-e-xenofobia/

Celso Rocha de Barros: Fogo no Pantanal e na Amazônia mostra a verdadeira política econômica de Bolsonaro

Visão do crescimento do presidente é extensiva: para ele, o Brasil vai ser mais rico se tiver mais minas e mais pastos

Graças a Jair Bolsonaro, a pandemia de Covid-19 já matou duas vezes, e talvez mate três vezes, o número de brasileiros que morreram na Guerra do Paraguai. Além disso, diga-se o que quiser do ditador paraguaio Solano López, embora ele tenha ocupado parte do território de Mato Grosso, não lhe ocorreu incendiá-lo, o que só ocorreu como consequência do desmonte da política ambiental brasileira por Jair Bolsonaro.

A matança de brasileiros não custou votos a Bolsonaro. Pelo contrário: ajudado pelo auxílio emergencial criado pelo Congresso, o presidente da República ganhou popularidade nos últimos meses.

Agora descobriremos se queimar onça viva custa votos. O mais provável é que não. Bolsonaro deixou claro na campanha que seu governo destruiria o meio ambiente. Ninguém se importou.

Da mesma forma, ninguém quer falar de moral, de meio ambiente, de padrões elementares de decência, de preservar o mundo para nossos descendentes, certo? Se nos importássemos com isso, eu estaria escrevendo sobre outro presidente.

Vamos falar de dinheiro, então.

Pois bem, o que a destruição do Pantanal e da Amazônia prova é que, se você acreditou que Paulo Guedes faria diferença, você é um otário.

Porque isso aí, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, destruição de floresta, é o verdadeiro programa econômico de Jair Bolsonaro. É assim, inclusive, que ele pensava em ficar rico quando estava no Exército. É nisso que ele acredita. Sua visão do crescimento é extensiva: para ele, o Brasil vai ser mais rico se tiver mais minas e mais pastos. A visão de Bolsonaro para o Brasil é Serra Pelada sob administração do Major Curió.

Nada contra minas e pastos, mas é impressionante que não passe pela cabeça do presidente que nossa prioridade deva ser aumentar a produtividade, não só das minas e pastos, mas também das fábricas, dos restaurantes, das faculdades, dos canais de YouTube e das lojas já existentes.

Capital humano? Meu amigo, o ministro da Educação era o Weintraub, uma hipoteca subprime de capital humano. Instituições? Jair nunca encontrou uma instituição em que não tenha tentado colocar bomba, a começar pelo Exército. Privatização? A única privatização que mereceu discursos de aprovação do deputado Jair Bolsonaro foi a da polícia da zona oeste carioca.

Já há setores da elite percebendo o problema. Uma coalizão de ONGs ambientais e associações do agronegócio entregaram a Bolsonaro um documento pedindo que a política ambiental deixe de ser apenas o Salles com um fósforo. O agronegócio, afinal, precisa do acordo com a União Europeia, que não deve sair sem salvaguardas ambientais.

No fundo, mesmo se você só pensar em dinheiro, fica a dica: meça o grau de compromisso dos seus candidatos a presidente com a eficiência econômica pelo seu programa ambiental. Um programa de proteção ambiental responsável quer dizer que ele não vai ter a alternativa de crescer extensivamente, e vai ter que começar a trabalhar pela produtividade.

Mas não deveríamos pensar apenas em dinheiro, deveríamos? A expectativa era que em 2020 já fôssemos melhores. Brasileiros morrendo sem ar ou onças queimadas vivas não deviam custar votos só quando também custam dinheiro.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


José Roberto Mendonça de Barros: Agronegócio, Amazônia e desenvolvimento

Conceito de governança se ampliou e agora inclui também a qualidade do relacionamento com a comunidade, a sociedade e o meio ambiente.

A pandemia está sendo uma experiência única por ter detonado a maior crise global em décadas. Não sabemos ainda como ela vai terminar e nem todas suas implicações. Entretanto, parece seguro imaginar que as pessoas tenderão a valorizar uma vida mais simples e prezar mais a sociabilidade (família e amigos) e a natureza. O desejo que já existe de consumir produtos mais naturais vai se ampliar, o que vai valorizar certos atributos (orgânicos etc.) e, especialmente, exigir o conhecimento de onde e como foi produzido. A percepção da ameaça do aquecimento global é cada vez mais visível no mundo inteiro, o que favorece a transição energética e a descarbonização.

Também as empresas estão sendo fortemente pressionadas a mudar. É muito intensa a percepção de que seu desenvolvimento recente foi quase exclusivamente voltado para o curto prazo e ao retorno do acionista, com resultados para lá de questionáveis: expressiva concentração de renda e poder, redução da competição, limitado avanço da produtividade e agravamento das questões ambientais.

O conceito de governança se ampliou e agora inclui também a qualidade do relacionamento com a comunidade, a sociedade (solidariedade) e o meio ambiente. A covid-19 acelerou drasticamente essas tendências já existentes. Passamos o ano vendo companhias de todos os portes, setores e regiões, incluindo instituições financeiras e fundos de investimento, punindo países e regiões que não se posicionam na luta contra o aquecimento global.

Apenas gente muito distraída não percebeu a seriedade e a perenidade destes movimentos. Assim, tendo em vista a ampliação das exigências referentes ao meio ambiente, à sustentabilidade e à descarbonização, não dá mais para admitir a destruição da floresta amazônica por grileiros e garimpeiros agindo de forma totalmente ilegal.

O documento entregue na semana passada pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura retrata bem a importância do momento atual e apresenta linhas de ação para enfrentar a questão de forma construtiva.

Transformar os estímulos para a preservação da floresta em pé, via bioeconomia, é triplamente importante: pelo impacto na região em si e na população lá residente; pela remoção do que se transformou num obstáculo aos investimentos no Brasil; e, de forma especial, pelo afastamento de uma ameaça mortal ao único setor da economia brasileira que vem atravessando o período recessivo que se iniciou em 2015, crescendo todos os anos sem parar.

Essa disparidade de desempenhos setoriais é realmente impressionante: em relação a 2014 e usando nossas projeções para 2020 (queda de 4,8% no PIB), teremos no final do ano uma queda acumulada de 32% na construção, 15% na indústria de transformação, 6% nos serviços e uma expansão de 17% na agropecuária!!

Uma implicação lógica desses resultados é que deve ter se ampliado a importância do agronegócio no PIB brasileiro, estimado tradicionalmente em algo como 23%.

Apenas um novo censo pode gerar as informações necessárias para balizar novos cálculos, mas chamo a atenção para o crescimento significativo do valor adicionado em muitos outros produtos fora dos carros-chefe soja, milho, carnes, cana, leite e café. São exemplos frutas (tratadas aqui no jornal pelo ministro Roberto Rodrigues no domingo passado), peixes criados em cativeiro (cuja produção se faz no Brasil inteiro e já se aproxima de um milhão de toneladas), hortícolas, outros grãos, mel, produtos especiais e com certificado de origem (queijos, vinhos, embutidos, azeite de oliva), produtos certificados com certos atributos (especialmente orgânicos) e outros. O consumidor paga com satisfação um adicional para obter o que preza cada vez mais.

Enfrentada a questão amazônica, o agronegócio está pronto para um novo salto. Os 300 milhões de toneladas de grãos estão logo aí adiante. Nossa agenda de avanços tecnológicos já está dada, e dela trataremos no próximo artigo. A coalizão em torno do agronegócio poderá ser o primeiro puxador de crescimento em nosso País no pós-pandemia. Temos muito trabalho, mas um trabalho fascinante: a um só tempo, teremos de ter um adequado tratamento dos recursos naturais, abraçar em definitivo a agenda da sustentabilidade, continuar criando novas tecnologias e novos produtos, integrando indústria e serviços com grau crescente de sofisticação num ambiente de modernidade e respeito aos trabalhadores e aos consumidores. Seria muita burrice – para não dizer um crime – deixar esse futuro se perder nas chamas.

*Economista e sócio da MB Associados.


Janio de Freitas: Governo Bolsonaro deve ser principal processado por política de devastação no Pantanal

Da decisão do presidente vieram cortes de verbas, redução dos quadros técnicos e científicos e nomeações de dirigentes inabilitados O governo Bolsonaro deve ser o primeiro e principal processado pelo crime de devastação incendiária do Pantanal. As leis de proteção ambiental e numerosos acordos internacionais de que o Brasil é signatário, assim como a própria Constituição, foram e continuam transgredidos na meticulosa desmontagem do sistema de vigilância, prevenção e combate às agressões ao patrimônio natural. Esta é, notoriamente, uma rara política de governo em um governo sem políticas.

É notória, aqui e no mundo, a responsabilidade pessoal e direta de Bolsonaro. Da sua decisão vieram os cortes de verbas, a redução dos quadros técnicos e científicos, e as nomeações de dirigentes inabilitados em setores como Ibama, Funai, ICMBio, INPE, e os outros de importância vital para a Amazônia, o Pantanal e os povos indígenas.

“Amazônia tem 2º pior agosto de desmate, atrás só de 2019” (já governo Bolsonaro). “Em 14 dias, Amazônia queimou mais que em setembro de 2019.” Títulos como estes recentes, da Folha, sucederam-se desde a posse de Bolsonaro. E, por consequência, a do executor do projeto de desmonte da proteção ambiental, Ricardo Salles —já condenado por improbidade na secretaria do Meio Ambiente de um governo paulista de Geraldo Alckmin.

A indiferença de Bolsonaro ao clamor interno e internacional, a cada pesquisa de desmatamento e queimadas, só não foi completa por suas provocações e represálias administrativas. Entre elas, a demissão escandalosa do cientista Ricardo Galvão, conceituado presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que divulgou, como de hábito e do seu dever, o crescimento alarmante da devastação amazônica no então novo governo.

Constatado que o fogo no Pantanal tornava-se incontrolável, a explicação foi imediata: não era tanto pelo fogo, mas pela falta de equipes habilitadas para combatê-lo. Explicação complementar: a verba deste ano para combatentes a queimadas, em comparação com a de 2019, foi cortada em mais de metade. A dimensão da tragédia pantaneira não estava prevista, mas o fogaréu na Amazônia já exigia maior investimento, e não perda de verba.

Acima das necessidades está a política contra a Amazônia e a riqueza ambiental. Com mais provas oferecidas pelo próprio governo. O Orçamento para 2021 mandado por Bolsonaro ao Congresso, por exemplo, corta ainda mais os recursos dos setores de monitoramento, defesa e pesquisa visados pela destruição programada.

Essa política transgride a legislação. É criminosa. Proporciona a apropriação de terras do patrimônio da União, o desmatamento e o contrabando de madeira valiosa. Protege o garimpo ilegal e se incorpora a toda essa criminalidade. Bolsonaro e seu governo são passíveis de processo criminal — e o merecem.

VOZ SÉRIA
A esquerda brasileira está chamada a refletir sobre o apoio incondicional a Nicolás Maduro e ao regime venezuelano. O mais recente relatório a pedir “investigações imediatas” do governo Maduro, sobre torturas e execuções extrajudiciais, saiu sob a responsabilidade de Michelle Bachelet. Alta comissária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a ex-presidente do Chile não se confunde com instrumentos da guerra de propaganda e outras guerras dos Estados Unidos contra o governo Maduro.

Conquistas proporcionadas à maioria desde sempre desvalida, mantidas ou mesmo ampliadas por Maduro, não se confundem com criminalidade política.

EM CENA
Durante alguns dias, as notícias foram inflando: a equipe econômica quer congelar aposentadoria por dois anos, governo quer cortar R$ 10 bilhões do auxílio a idosos e pobres com deficiências, senador bolsonarista (Márcio Bittar, MDB-AC) quer congelar salário mínimo. Então Bolsonaro saca a espada e salva os ameaçados. Com a TV devidamente preparada para o ato. Quem de nada desconfiou tem, ainda, uma chance. O que Abraham Weintraub fez para receber cargo precioso, quando deveria ser excluído do governo pelos insultos vagabundos ao Supremo e seus ministros? Nada. A menos que alguém lhe devesse uma compensação, por se dar mal em um gesto, como diziam, a pedidos.


Luiz Carlos Azedo: Senhor da guerra

Mike Pompeo, o secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente da Venezuela, Nicolas Maduro

A inusitada visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a um campo de acolhimento de venezuelanos refugiados em Boa Vista (RR) foi uma evidente provocação política, cujo objetivo é escalar as tensões entre a Venezuela e seus vizinhos. E, com isso, dar uma mãozinha para a campanha eleitoral do presidente Donald Trump, que está perdendo a reeleição para o candidato do Partido Democrata, Joe Biden. O Brasil armou o circo porque interessa ao presidente Jair Bolsonaro a vitória de seu amigo republicano. A eleição de um democrata provocaria o colapso da política externa desenvolvida pelo chanceler Ernesto Araújo, considerada um desastre por seus colegas mais experientes do Itamaraty.

O que o Brasil ganhará em troca? Em princípio, 30 moedas, ou seja, US$ 30 milhões para auxiliar a assistência social aos imigrantes. Não chega nem perto do que estamos perdendo em investimentos em razão da política ambiental de Bolsonaro, embora o presidente da República diga que é a melhor do mundo. Só no Fundo da Amazônia, Noruega e Alemanha, que suspenderam seus investimentos, foram responsáveis por 99% dos R$ 3,3 bilhões destinados à proteção da Amazônia. Voltemos à visita de Pompeo. O secretário de Estado norte-americano não deixou dúvida de que sua visita teve como objetivo trabalhar pela derrubada do presidente Nicolas Maduro. Todo presidente dos Estados Unidos que está perdendo as eleições gosta de exibir seus músculos na política externa.

Do Brasil, Pompeo viajou para a Colômbia, cuja fronteira com a Venezuela é o ponto mais quente das tensões na América do Sul. O presidente Ivan Duque é outro aliado incondicional de Trump, que mantém assessores e aviões norte-americanos em território colombiano. Antes, Pompeu havia estado no Suriname e na Guiana, que também vive um estresse com a Venezuela, com o agravante de que sua fronteira nunca foi reconhecida pelos venezuelanos. Na Guiana, Pompeo voltou a criticar Maduro: “Sabemos que o regime de Maduro dizimou o povo da Venezuela e que o próprio Maduro é um traficante de drogas acusado. Isso significa que ele tem que partir”, afirmou. Para a situação política no país vizinho, a provocação só teria consequência prática se houvesse uma intervenção. Afora isso, fortalece a unidade das Forças Armadas venezuelanas e endossa a narrativa de Maduro para reprimir a oposição.

Operação Amazônia
Entretanto, vejam bem, a declaração que Pompeo deu em Boa Vista (RO) foi enigmática quanto ao que os Estados Unidos pretendem realmente fazer. Questionado sobre quando o ditador Nicolás Maduro deixará o poder, respondeu que em casos como a Alemanha Oriental, Romênia e União Soviética, todo mundo fazia a mesma pergunta. “Quando esse dia vai chegar? Ninguém imaginava, mas aconteceu”. Pompeo é ex-diretor da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, que se especializou em fomentar conflitos entre países vizinhos e guerras civis.

Republicano, Pompeo é um político reacionário do Kansas, que se destacou no Congresso norte-americano por combater o movimento LGBTQIA+. Também foi um dos proponentes de um projeto de lei que proibiria o financiamento federal de qualquer grupo que realizasse abortos, e outro que incluiria nascituros entre os categorizados como “cidadãos” pela 14ª Emenda. Ele também votou a favor da proibição de informações sobre o aborto em centros de saúde escolares e pela proibição de financiamento federal à Planned Parenthood e ao Fundo de População das Nações Unidas.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em razão das declarações de Pompeo, emitiu uma nota com duras críticas à visita do secretário de Estado. Deve saber de mais coisas sobre a conversa entre secretário norte-americano e o chanceler brasileiro. A visita também coincide com a mobilização de tropas, equipamentos e armamentos para a Operação Amazônia, que faz parte do Programa de Adestramento Avançado de Grande Comando (PAA G Cmdo), envolvendo mais de 3.000 militares, de cinco comandos diferentes. A operação será realizada nas proximidades de Manaus, até 23 de dezembro, portanto, bem longe da fronteira com a Venezuela.

O Ministério da Defesa e os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica nunca foram favoráveis à escalada de tensões com a Venezuela, embora tenhamos mais homens, tanques, embarcações e aviões do que o país vizinho. As vantagens venezuelanas são os 24 caças SU-30, os helicópteros Mi-17, os tanques T-92 e os mísseis S-300, capazes de atingir com precisão alvos a 250km, todos de fabricação russa e entre os melhores do mundo. Mas, o grande trunfo de Maduro é o apoio ostensivo do presidente Vladimir Putin, da Rússia, que adora jogar uma boia para ditadores que estão se afogando, e a discreta, mas robusta, ajuda econômica da China. Na proposta de atualização da Política Nacional de Defesa, enviada pelo governo ao Congresso, pela primeira vez, desde a Guerra Malvinas, o Brasil admite a possibilidade de um confronto militar com um país vizinho.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-senhor-da-guerra/

Demétrio Magnoli: Labaredas no Pantanal e na Amazônia indicam ação criminosa e coordenada

O crime compensa quando o governo simula não vê-lo

O fogo devasta as florestas do oeste dos EUA e, em outro hemisfério e outras latitudes, extensas áreas da Amazônia e do Pantanal. As mudanças climáticas aproximam os incêndios deles dos nossos. Mas são fogos diferentes. Aqui, as labaredas indicam ação criminosa, coordenada em larga escala.

Nos EUA, Trump revela uma vez mais sua aversão à ciência quando nega o papel decisivo das mudanças climáticas. Contudo, tem razão ao mencionar o diagnóstico de técnicos florestais que acusam o ambientalismo fundamentalista pelo agravamento da crise.

Florestas temperadas de clima subúmido exigem permanente manejo para evitar o adensamento excessivo da vegetação. Nas últimas décadas, porém, sob pressão de grupos preservacionistas extremados, reduziu-se tanto a exploração madeireira sustentável como a boa prática de incêndios controlados.

Na sua vastidão, os incêndios florestais nos EUA relacionam-se primariamente com o aquecimento global, mas é difícil negar a contribuição do acúmulo de matéria orgânica, viva e morta, nos estratos inferiores.

Os sistemas ecológicos tropicais da Amazônia e do Pantanal funcionam de forma diversa. O fogo é um componente deles, durante as estações secas, mas o intrincado tecido de superfícies líquidas opera como fator limitante.

Normalmente, focos amplos de incêndio acabam contidos pelos rios, furos, igarapés, corixos e lagoas de vazante. Incêndios tão extensos como os que estão em curso só podem ser explicados por ações humanas persistentes e deliberadas.

O aquecimento global está na base dos incêndios, mas há fogos e fogos. Queimadas comuns para a limpeza de pastos não se confundem com as labaredas ateadas depois da derrubada criminosa de áreas de reserva legal com a finalidade de substituí-las por pastagens. O segundo fenômeno origina inúmeros dos incêndios amazônicos e pantaneiros. É que o crime compensa, quando o governo simula não vê-lo.

Desta vez, entretanto, a escala do desastre solicita um crime maior. Nos sistemas ecológicos do trópico úmido, incêndios que saltam incontáveis barreiras líquidas só podem nascer de fogos ateados simultaneamente ao longo de arcos de centenas de quilômetros.

Imagens de satélite indicam uma origem coordenada desses incêndios. A PF dispõe de meios para chegar aos organizadores de um crime ambiental aterrador. O obstáculo não é técnico, mas político: os criminosos agem à sombra do poder.

O Ministério do Meio Ambiente é parte do problema, não da solução. Seu titular, Ricardo Salles, não é um fanfarrão ideológico, um adorador de mestres místicos, um Weintraub qualquer, mas um operador profissional que serve aos interesses da devastação ambiental. Sua missão oficiosa consiste em desmontar os aparatos de fiscalização do Ibama e do ICMBio.

Restaria a esperança na ação dos militares, sob o comando de Hamilton Mourão. O vice-presidente fala, para alguns públicos, na proteção da floresta e ensaia a formação de uma “força tática da Amazônia”. Mas vale a pena apostar na figura que, em parceria com Salles, postou o célebre vídeo negacionista do mico-leão-dourado?

“Nós temos que fazer a contrapropaganda. Isso faz parte do negócio”, justificou-se Mourão, confundindo o dever institucional de dizer a verdade com a “guerrilha da informação” típica do bolsonarismo de redes sociais.

O declínio de um vice que chegou a funcionar como contraponto civilizado de Bolsonaro mancha, inevitavelmente, a imagem das Forças Armadas.

Os militares são um símbolo perene da soberania nacional na Amazônia. A história os colocou na linha de frente da preservação do patrimônio ambiental constituído pelas florestas.

Hoje, porém, em nome de lealdades políticas circunstanciais ou de privilégios corporativos que se acumulam, eles curvam a espinha diante do crime ambiental. Isso não “faz parte do negócio” —e não será esquecido.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Ricardo Noblat: Como cobra, o general troca de pele para melhor servir ao capitão

Mourão quer ser vice outra vez. Pegou gosto

Procura-se alguém do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que prioriza a divulgação de dados negativos sobre as queimadas que devastam a Amazônia e o Pantanal. Só nos últimos 14 dias, o número de focos de incêndios na Amazônia superou o total de focos registrados nos 30 dias de setembro do ano passado.

Que alguém é esse que tanto se procura? Vice-presidente da República e comandante do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão não faz ideia de quem seja. Ou se faz não quer dizer. Foi ele que falou do alguém que prioriza a divulgação de dados negativos. Mas não apresentou provas de que ele exista.

O provável é que o general tenha posto a circular mais uma teoria conspiratória tão ao gosto do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos. Porque não é preciso que nenhum alguém divulgue dados negativos ou positivos sobre o meio ambiente. Os dados do instituto, com base em imagens de satélites, estão na internet.

Na semana passada, Mourão confessou que está em campanha para continuar vice de Bolsonaro caso ele se reeleja. Mourão troca de pele como as cobras. Na campanha de 2018, comportou-se como o general linha dura que foi. Eleito, pôs a máscara de liberal e passou a fazer contraponto a Bolsonaro. Carlos não gostou.

Então, aos poucos, Mourão foi mudando de postura. Trocou a máscara de liberal pela de tradutor condescendente de Bolsonaro, atenuando suas declarações mais explosivas. E, agora, vestiu a máscara de aliado incondicional do seu chefe e ex-companheiro de armas. Ambos já foram punidos quando serviram ao Exército.

O capitão acompanha a metamorfose do general. Por enquanto, ela o satisfaz.