Almir Pazzianotto Pinto

Almir Pazzianotto Pinto: Velha e desacreditada

É inadiável a substituição, sem golpe de Estado, da atual Constituição

Para os padrões brasileiros, a Constituição de 1988 atingiu a velhice. Mais longevas, a Carta Imperial de 25 de março de 1824 e a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. A primeira durou 65 anos; a segunda, 40. Ambas foram emendadas uma só vez.

A Constituição de 16 de julho de 1934 foi abatida pelo golpe de 10 de novembro de 1937, aos três anos de vida. A Carta Constitucional editada no mesmo dia teve vida acidentada. Recebeu 21 emendas e sobreviveu até a queda de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945. A Constituição promulgada em 18 setembro de 1946 sofreu o impacto do Ato Institucional de 10 de abril de 1964, editado pelos comandantes-chefes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em nome do “movimento militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva do seu futuro”, como escreveram no manifesto à Nação. Seguidos atos institucionais e complementares, baixados pelo presidente Castelo Branco, impuseram-lhe a pena de morte e a substituição pela Constituição de 24 de janeiro de 1967, de brevíssima duração. Ferida pelo Ato Institucional n.º 5, de 13/12/1968, sucumbiu diante da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1968, nossa sétima Constituição e a segunda de origem discricionária.

Depositária dos anseios dos miseráveis esquecidos, da classe média empobrecida, dos desempregados, a Assembleia Nacional Constituinte eleita em 15 de outubro de 1986 foi instalada no em 1.º de fevereiro de 1987 sem pompa e circunstância, em sessão ruidosa e tumultuada. Deveria ser o primeiro passo na tarefa de erradicação de antigos problemas sociais, políticos, morais e econômicos. Passados mais de 30 anos, o exagerado otimismo foi desmentido pelos fatos.

Entre os 559 constituintes destacavam-se veteranos e escolados representantes da velha política, conhecidos como “raposas”. A maioria não tinha conhecimentos da história, de economia, da origem e do conteúdo das Constituições anteriores. Alguns poderiam ser qualificados como medíocres. Poucos juristas se confundiam entre deputados e senadores ávidos de poder e sob a pressão de lobistas. Para muitos a experiência parlamentar se reduziu a um único mandato. Nas eleições seguintes voltaram ao justo anonimato.

Construída ao sabor do acaso, sem arcabouço elaborado por especialistas imbuídos de espírito cívico, a oitava Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988 com 245 artigos, ao qual veio apensado o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), trazendo 70 regras de transição. O artigo 3. º do ADCT fixou período de carência de cinco anos a partir do qual seriam admitidas emendas de revisão. Em 6 de outubro de 1993 abriram-se largos portões aos remendos, iniciados com a promulgação da Emenda n.º 1, em 2 de março de 1994. Desde então foram introduzidas seis emendas de revisão e cem emendas constitucionais, às vésperas da 101.ª, que tratará da reforma administrativa, à qual se seguirão outras à espera de movimentação.

O prazo de validade da Lei Fundamental está vencido. Não serão emendas que vão reconstruí-la, para aproximá-la do ideal. Ao contrário, quanto mais emendada, maior e mais aberta a violações e perigosas interpretações.

Sendo assim, por que não cobrar dos partidos que apresentem, nas eleições de 2022, como plataforma de governo, o projeto de nova e breve Lei Orgânica Nacional, limitada a descrever a composição e as competências dos três Poderes e as relações entre eles e os cidadãos? O que não é constitucional ficará para a legislação ordinária, flexível, facilmente reformável. Assim ordenava o artigo 178 da Carta Imperial de 1824, inspirado no constitucionalismo inglês, apontado como chave de seu êxito e durabilidade.

A nona Constituição poderá ser presidencialista ou parlamentarista. Preservará, porém, a República federativa, a pluralidade partidária, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, o princípio da legalidade, o devido processo legal, o habeas corpus, a ordem econômica fundada na livre-iniciativa, a liberdade de imprensa, a função social da propriedade, a dignidade do trabalho, a busca do pleno emprego. Para assegurar-lhe estabilidade cláusula pétrea deverá defendê-la de alterações durante 20 anos.

Os candidatos se comprometerão a reduzir o tamanho do Estado, a robustecer o sistema federativo, a restabelecer o princípio do duplo grau de jurisdição, a extinguir o Fundo Partidário e o Fundo de Financiamento Eleitoral, a diminuir o número de deputados federais, estaduais e senadores, a reduzir a carga fiscal.

Imprimindo caráter plebiscitário às eleições de 2022, os partidos deverão apresentar como alternativas: 1) revisão integral da Constituição de 1988, destinada a enxugá-la de maneira definitiva, ou 2) convocação de Assembleia Constituinte exclusiva, destinada a referendar Lei Fundamental projetada por equipe de constitucionalistas de ilibada reputação e reconhecido saber jurídico, referendada em consulta nacional.

O defeito da Constituição de 1988 reside no texto minucioso, extenso, impreciso. Vêm à lembrança palavras de Pablo Lucas Verdú: “A prolixidade de uma Constituição se paga ao preço da dificuldade de interpretação. A dificuldade de interpretação, com o fracasso da aplicação” (Curso de Direito Político, Ed. Tecnos, Madri, 1986, vol. II, pág. 440). Transbordante de boas intenções, a Constituição foi elaborada com desprezo à realidade. Os resultados são conhecidos. Podem ser aferidos na radicalização do cenário político, na insegurança jurídica, na crise econômica, no aumento da litigiosidade, na corrupção, na expansão da miséria.

“Fazer um Estado que seja verdadeiro quer dizer fazer uma Constituição que seja verdadeira”, disse Charles de Gaulle e registrou André Malraux em Antimemórias. É inadiável a substituição, sem golpe de Estado, da Constituição. Não se incorrendo, porém, nos excessos da Assembleia Nacional Constituinte.

*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Delatores, delatados, direito de defesa

Apoiado nos melhores professores, sustento que a última palavra pertence, sim, ao réu
O princípio da legalidade está inscrito no artigo 5.º, II, da Constituição de 1988, cujo texto diz: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O dispositivo se entrelaça com os incisos LIII, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo”; LV, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”; LVI, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”; e LVII, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O Código de Processo Penal (CPP) obedece aos princípios da igualdade e da legalidade, sem distinções de qualquer natureza entre brasileiros e estrangeiros residentes no País. Pouco importam a gravidade do delito e a posição econômica, social ou política do acusado. Não haverá diferença de tratamento entre investigados e réus, pois para a lei é indiferente se foram presidente da República, ministro de Estado, industrial, operário, favelado ou corrupto. Conforme escreveu o ministro da Justiça Francisco Campos, na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, o projeto foi elaborado “no sentido de obter equilíbrio entre o interesse social e a defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e segurança de sua liberdade”.

As sábias diretrizes aplicam-se à Lei n.º 12.850, de 2/8/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre meios de obtenção de prova, entre os quais se destaca a colaboração premiada. A colaboração ou delação consiste na oferta de informações privilegiadas em troca do perdão judicial, da redução da pena ou de medida alternativa, em benefício de quem “tenha colaborado efetiva e voluntariamente (sic) com a investigação criminal, desde que dessa colaboração advenham resultados positivos” (artigos 4.º, 5.º e 6.º).
A velha legislação processual penal admite como meios de prova o exame do corpo de delito e as perícias em geral, o interrogatório do acusado, a confissão, o depoimento do ofendido e de testemunhas, o reconhecimento de pessoas e coisas, a acareação entre acusados, além de documentos, indícios, busca e apreensão (artigos 155/250). Desconhece a delação, a interceptação de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos, a ação controlada, a infiltração de policiais em atividades de investigação.
Quem delata não o faz espontaneamente. Torna-se delator depois de recolhido à prisão ou após ser condenado, sempre com o objetivo de obter vantagem, como a redução “em até 2/3 (dois terços) da pena privativa da liberdade”, ou pela metade, “se a colaboração for posterior à sentença” (artigo 4.º, parágrafo 5.º). Ao participar da acusação, o delator adquire dupla personalidade processual: além de réu, alvo de persecução do Ministério Público, passa a acusador interessado em colher os benefícios previstos pela nova legislação. Não delata com valente e nobre propósito de colaborar com a Justiça.
Negocia a liberdade de quem foi cúmplice em troca do perdão, da atenuação da pena, do cárcere na penitenciária pela prestação de serviços comunitários. Deixará de ser unicamente réu para se converter numa espécie aberrante de assistente do Ministério Público, de alguém que afirma ter conhecimento direto dos fatos relatados na denúncia, interessado em alcançar os benefícios concedidos pela legislação.
Delator e delatado não se encontram em plano de igualdade nos autos do processo. Quem voluntariamente assume a posição de colaborador, com o objetivo de ser premiado, muda de lado ao celebrar pacto de aliança com delegado de polícia ou membro do Ministério Público. A consistência da imputação, que será recusada se desatender aos requisitos legais ou não se adequar ao caso concreto, e cuja eficácia será avaliada pela sentença (artigo 4.º, parágrafos 9.º e 11.º), tem por alvo a liberdade própria ao preço da condenação do incriminado. O combate à corrupção e às organizações criminosas exigiu a criação de novos instrumentos de investigação. A delação é um dos recursos oferecidos pela Lei n.º 12.850/2013. E o mais controvertido.
O Ministério Público é o titular da ação. Como tal, “luta e porfia para o triunfo final da pretensão punitiva, que será proclamado pelo juiz contra o acusado” (Basileu Garcia). O réu é “sujeito passivo da pretensão punitiva”. Tem o direito de falar por último, para rechaçar a acusação. Para fazê-lo necessita de conhecê-la em todos os detalhes.
Assim sucede no tribunal do júri e diante de juiz singular. Determina, nesse sentido, o artigo 500 do Código de Processo Penal que, encerrada a instrução, “será aberta vista dos autos, para alegações finais, sucessivamente por 3 (três) dias: I – ao Ministério Público ou ao querelante; II – ao assistente, se tiver sido constituído; III – ao defensor do réu”.
A velhice do processo penal teria contribuído para caírem no esquecimento dispositivos relativos ao direito de defesa, anormalidade que me parece evidente em alguns casos da Operação Lava Jato. Ao Supremo Tribunal Federal (STF) compete, todavia, “precipuamente a guarda da Constituição”. Logo, tem o dever de velar pelo respeito ao devido processo legal e ao amplo direito de defesa.
A experiência acumulada na esfera jurídica me ensinou que processos mal conduzidos correm sério perigo de anulação. Compete ao juiz instrutor proceder com cautela, para que tal não aconteça.
Não procuro justificar decisões do Supremo Tribunal. Sustento, porém, apoiado nos melhores professores, pertencer ao réu a última palavra.
* Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

Almir Pazzianotto Pinto: Reflexões sobre o desemprego

Real, cruel e diário, esse pesadelo exige providências enérgicas, objetivas, imediatas

Domenico de Masi, sociólogo italiano, teria adotado como leme de vida a frase “o homem que trabalha perde tempo precioso” (O Ócio Criativo, Ed. Sextante, RJ, 2000). Trabalhar seria apenas “um vício recente”, escreveu em O Futuro do Trabalho (Ed. UnB, Brasília, DF, 1999). Temos, portanto, quase 13 milhões de viciados na ociosidade e à procura de inexistente emprego. Computados diaristas, ambulantes, desalentados e desocupados o número dos sem emprego atinge algo em torno de 25 milhões.

Diferente do que apregoa Domenico de Masi, trabalhar é essencial para o ser humano. Não é vício, mas virtude. É com o trabalho diário e o suor do rosto que homens e mulheres adquirem dignidade, conquistam respeito, conseguem meios lícitos de subsistência e dão conta das obrigações com a sociedade. Trata-se de dever social. A laborfobia, ou vadiagem, é contravenção penal e moléstia contagiosa, caracterizada pela dedicação ao ócio, condenando o doente ao desprezo das pessoas de bem.

Quais as razões do desemprego? Sem diagnóstico correto é impossível prescrever a boa medicação. Nas décadas de 1940 e 1950 o mercado interno se expandiu, acelerado por elevadas taxas anuais de crescimento econômico. A implantação da indústria automobilística, nos anos de 1960, libertou-o de quase completa dependência da agricultura, do setor de fiação e tecelagem e da construção civil.

Tornou-se intensa a procura por torneiros mecânicos, funileiros, ferramenteiros, ajustadores, desenhistas industriais, eletricistas, pedreiros, auxiliares de serviços gerais, afiadores de ferramentas, soldadores, projetistas, pintores, inspetores de esmaltação. A revista Veja, em reportagem publicada na edição de 19/12/1973, sob o título Onde está a mão-de-obra?, alude “à discreta guerra entre empregadores com o objetivo de preencher cargos vagos”. “Em matéria de emprego, a situação está boa para o trabalhador”, declarava Rubens Teodoro de Arruda, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, responsável pela “bolsa de emprego”.

Com o mercado em expansão, aumentava o poder aquisitivo das classes trabalhadoras. Vendas a prestações e reajustamentos salariais que acompanhavam os índices de aumento do custo de vida estimulavam o crescimento de próspero comércio varejista. São Paulo tornou-se a cidade que não parava de crescer. Novos polos industriais surgiam em localidades como Campinas, Jundiaí, Guarulhos, Osasco, Limeira, Diadema. O dinheiro girava em alta velocidade e uma nova classe média ambicionava adquirir casa ou apartamento, geladeira, fogão a gás, máquina de lavar roupa, automóvel. O período de euforia começou a dar demonstração de desaquecimento nos primeiros anos da década de 1980. A derrubada das grades do Palácio dos Bandeirantes, em abril de 1983, foi obra de milhares de desempregados da zona sul de São Paulo que exigiam do governador Franco Montoro a criação de empregos inexistentes.

A globalização, definida pelo professor Ernesto Lozardo como “a oferta global de bens, serviços e capital financeiro e a demanda social global ao acesso a essa oferta existente” (Globalização, Ed. do Autor, 2007, pág. 37), chegou e nos invadiu sem pedir permissão. Trouxe consigo a informatização, a robotização e automação e penetrou na economia com resultados devastadores para o mercado de trabalho. São fenômenos que independem da nossa vontade e fora do nosso controle. Indústrias ineficientes, deficitárias, e ultrapassados ofícios e profissões desapareceram, comprovando a ineficácia da Constituição, da legislação trabalhista, da jurisprudência tutelar como ferramentas de proteção contra o desemprego. Impotentes diante de fatores externos, as esperanças repousam na capacidade de tomar medidas internas capazes de atraírem investimentos para setores de intensa utilização de mão de obra.

Ninguém arrisca dinheiro senão com o objetivo de realizar lucro. Se for bem-sucedido, o emprego provavelmente virá, mas como efeito colateral. Para havê-los em número suficiente, além da estabilidade do tripé econômico, composto por inflação controlada, superávit primário e taxa de câmbio flexível, é fundamental que se estabeleça um clima de segurança jurídica nas relações entre patrões e empregados. As cláusulas do contrato de trabalho, celebrado na forma da lei por pessoas capazes, com objeto lícito, devem ser sagradas para ambas as partes.

A contínua judicialização das relações de emprego impulsiona a substituição de mulheres e homens por ferramentas inteligentes. “O progresso de um país, seja ele pobre ou rico, não se constrói numa ilha de fantasias idealizada por economistas e filósofos”, escreveu Ernesto Lozardo. O Estado de bem-estar social, projetado pela Constituição, integra o espaço da fantasia. O desemprego, porém, é real, cruel e diário. Está presente, como pesadelo, na consciência do desempregado. Humilhado pela incapacidade de encontrar trabalho remunerador, o homem honrado transmite a frustração, o sofrimento e o desespero à família desamparada.

Desemprego rejeita medidas de longo prazo. Exige providências enérgicas, objetivas, imediatas. A reforma trabalhista não surtiu os efeitos previstos. Ficou na promessa. A reforma da Previdência cumprirá longa etapa de maturação até trazer os primeiros resultados. A anunciada reforma tributária, como de hábito, aumentará a carga que sobrecarrega o lombo do contribuinte.

O capitão Jair Bolsonaro foi eleito como garantia de mudanças. Prometeu ser diferente dos governos anteriores. Não haveria fisiologia, nepotismo, o “toma lá dá cá”. Gastos sete meses de mandato, nuvens carregadas surgem no horizonte. Impossível prever se trarão chuvas criadeiras ou se anunciam funestos temporais.

* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, autor de ‘30 anos de crise 1988-1918’, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Novas esperanças, velhos desafios

Reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo

A posse do presidente da República, Jair Bolsonaro, deve ser encarada como o anúncio de nova era de liberdade, segurança e desenvolvimento. O discurso perante o Congresso Nacional, logo após o solene juramento de “manter, defender e cumprir a Constituição”, não se harmoniza, porém, com a promessa de “promover o bem-estar do povo”, mediante a realização de “reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas, transformando o cenário econômico e abrindo novas oportunidades”.

O Congresso eleito em 1986, com as prerrogativas de Assembleia Nacional Constituinte, deveria limitar-se ao restabelecimento do regime democrático, protegê-lo contra tendências ao autoritarismo, demarcar as áreas de competência dos três Poderes da União e garantir os direitos fundamentais. Não foi o que aconteceu. Emendada uma centena de vezes, a Lei Fundamental continua à espera de alterações destinadas a torná-la objetiva, fácil de ser lida e entendida, isenta de promessas inalcançáveis, flexível e adaptável às exigências da Nação.

Entre as reformas constitucionais, a da Previdência Social “terá de puxar a fila”, por ser o atual sistema responsável pelo déficit “que cresce no ritmo de R$ 50 bilhões ao ano”, segundo a visão dos economistas Gustavo Franco e Elena Landau. “Reformar a Previdência não é mais uma escolha. Os números falam alto e o País terá de tomar uma decisão o quanto antes”, declarou Marcelo Caetano, então secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda (Estado, 30/12, B4).

Anote-se que as disposições constitucionais relativas à Previdência Social resultam de alterações introduzidas pelas Emendas n.º 20, de 1998; n.º 41, de 2003; e n.º 47, de 2005. O estado pré-falimentar do sistema previdenciário público e privado era conhecido e alvo de discussões desde 1995, quando teve início a série histórica de progressivos déficits anuais.

Melhor proveito haveria se voltássemos aos textos das Constituições de 1946 ou de 1967, deixando-se a regulamentação por conta de legislação ordinária. A primeira incluía, entre as garantias essenciais para os trabalhadores, no artigo 157, inciso XVI, “previdência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte”. O inciso seguinte determinava “obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador, contra os acidentes do trabalho”. A Constituição de 1967 prescrevia, no artigo 165, XVI, “previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprego, seguro contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado”.

O artigo 195 da Constituição atual, de 1988, determina que a seguridade social, que garante os direitos à saúde, à previdência e à assistência social, “será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de contribuições do empregador, da empresa, de entidade a ela equiparada, incidentes sobre a folha dos salários, receita e faturamento, lucro”, etc.

Tanta complicação não impediu alarmantes déficits. O problema não está nas fontes, mas nas despesas, na sonegação, na fraude, no envelhecimento da população, na redução da atividade econômica, no desemprego, na informalidade prevalecente no mercado de trabalho.

Sobre a necessidade da reforma todos se põem de acordo. O problema reside no conteúdo. Será apenas mais uma, destinada à contemporização, ou o presidente Jair Bolsonaro se valerá da autoridade inquestionável de que dispõe para resolver enigma que levará o Tesouro Nacional à insolvência?

Julgo impossível aumentar as exigências que recaem sobre os trabalhadores, seja no que se refere à idade, seja no que diz respeito a benefícios. Vá lá que se aceite a eliminação da aposentadoria por tempo de serviço. Com 35 anos de contribuição para o homem e 30 para a mulher, conforme reza o artigo 201, I, da Constituição de 88, quem consegue demonstrar que começou a trabalhar aos 14 anos pode se aposentar aos 49 ou 44, mesmo em excelentes condições de saúde.

A reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo. Dela dependerá para abrir caminho às reformas reestruturantes. Como ensinam consagrados cabos de guerra, é vital o emprego do máximo de força para a conquista do estratégico objetivo. Além da mobilização dos aliados na Câmara dos Deputados e no Senado, será indispensável cuidar da comunicação. Nesse quesito o presidente Michel Temer foi malsucedido. Embora fragmentada, a oposição permanece viva. Não é impossível para os partidos de esquerda fazerem da questão previdenciária o centro de gravidade de que necessitam para se aliarem contra governo que alardeia ser de direita.

No embalo das reformas, o presidente Jair Bolsonaro poderá encaminhar emenda destinada a corrigir o artigo 7.º, IV, que define salário mínimo. Trata-se de direito imaginário, de impossível realização. Em país nenhum há piso salarial capaz de atender às necessidades do trabalhador e sua família, “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuários, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. É um dos mitos constitucionais, que devem ser suprimidos.

Para encerrar, creio ser arriscado ampliar afoitamente o leque de reformas. Extinguir a Justiça do Trabalho é inimaginável. “Só se destrói o que se substitui”, escreveu Auguste Comte, o filósofo positivista. Para onde iriam milhões de processos em tramitação?

É a pergunta que deixo para o presidente.

* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho