Almir Pazzianotto Pinto

Almir Pazzianotto Pinto: O presidente e a reeleição

À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar

É inevitável a antecipação da campanha para as eleições presidenciais de 2022. O presidente Jair Bolsonaro lançou-se candidato à reeleição ao iniciar o governo. Renegou compromisso de campanha quando declarou que não tentaria reeleger-se. Seria honesto, mas tolo ou fracassado, se deixasse de fazê-lo. Ninguém abdica do poder, escreveu Maquiavel.

Ademais, promessa de candidato só compromete quem ouve. A frase, cujo autor ignoro, corresponde ao que há de mais mesquinho na política brasileira. Como os partidos não passam de legendas sem ideologia, promessas e programas de governo são redigidos para dar ao povo crédulo a sensação de que serão executados. Prometer algo que não se vai cumprir é estelionato eleitoral. Fosse punido, a maioria da classe política estaria na cadeia.

Jair Bolsonaro será candidato em 2022. Por qual partido ou coligação partidária não interessa. Será candidato graças ao instituto da reeleição, enxertado no Direito Constitucional brasileiro pela Emenda n.º 16, de 5 de junho de 1996, promulgada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não subestimem o capitão. Apesar de autoritário e rústico é esperto. Em seus planos deve estar o de filiação a legenda inexpressiva. Precisará apenas da legenda. Recursos e adesões serão obtidos pelo exercício abusivo do poder. Terá o apoio da ultradireita conservadora. Em cada quartel, clube de tiro e loja de armas encontrará aguerrido comitê eleitoral.

Quem busca a reeleição disputa uma corrida de obstáculos, com larga vantagem sobre os demais competidores. Ao ser dada a partida, terá a favor parcela apática do eleitorado. O elevado número de candidatos provoca, entretanto, dispersão dos votos e torna inevitável a segunda rodada de votação. No primeiro turno, os eleitores votam no candidato preferido. No segundo as possibilidades se igualam, pois a escolha é determinada pela rejeição.

São vários os nomes em circulação na bolsa de valores eleitorais. A quase certeza da derrota não evitará que partidos nanicos disputem com candidatura própria, ou em coligação.

Entre os grandes, no PSDB se apresenta o governador João Doria, mas depende da direção nacional, pois corre por fora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O insistente Ciro Gomes tentará pelo PDT. Fernando Haddad deve ser o preferido do PT, salvo se Lula resolver o problema da inelegibilidade. Guilherme Boulos virá pelo PSOL ou como vice do PT. O outrora poderoso MDB terá dificuldade para encontrar alguém apto a participar da prova. O melhor nome, deputado Baleia Rossi, é jovem e foi derrotado como candidato à presidência da Câmara dos Deputados.

Sergio Moro e Luciano Huck produzem ruído, mas falta-lhes cacife para jogar o pôquer eleitoral. Com os espaços congestionados, não será fácil para eles encontrar legenda, salvo se concordarem em concorrer à Vice-Presidência ou ao Senado.

Sob que panorama econômico e social serão disputadas as eleições de 2022? Essa é a questão. A vacinação em massa, boicotada por Jair Bolsonaro, será decisiva para o controle da pandemia. Não bastará, porém, para resolver os problemas da desindustrialização, do desemprego, da expansão da informalidade, do empobrecimento da classe média e da crescente miséria.

É possível e desejável que até o segundo semestre do próximo ano a pandemia tenha sido debelada. Dela, porém, ficarão terríveis marcas da morte de centenas de milhares de infectados. O tempo e o esquecimento cobrirão de silêncio a destrambelhada política do negacionista defensor das aglomerações e da cloroquina? Creio que não.

A política suicida do presidente Jair Bolsonaro, exposta pela maneira como conduziu o Ministério da Saúde, ao nomear para dirigi-lo general intendente do Exército, será relembrada por familiares dos mortos, infectados e precariamente tratados por falta de vacinas, de oxigênio, de vagas hospitalares.

Quanto à economia, dizem os pesquisadores ser provável que haja deterioração ainda maior neste e no próximo ano. A responsabilidade, na opinião de especialistas, cabe à falta de foco do governo e à incapacidade de avançar com agenda econômica liberal destinada a destravar os obstáculos enfrentados pelo País.

Como a oposição lidará com o problema e se organizará em frente única, é difícil saber. Afinal, os adversários do presidente Jair Bolsonaro revelaram, nos dois primeiros anos de mandato, total incapacidade de comunicação com a opinião pública. Não se ouviu na Câmara dos Deputados e no Senado um só discurso viril contra a criminosa maneira de o governo se conduzir diante da pandemia.

Há em curso projeto de permanência no poder a qualquer preço. À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar, desta vez com segunda eleição. Fica a advertência.

Com as vantagens asseguradas pelo exercício do cargo, controle do Tesouro Nacional e pacto com o “Centrão”, não será impossível nova emenda ao artigo 14, parágrafo 5.º, da Constituição.

*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Golpe de Estado

É necessária e urgente a mobilização nacional em defesa do Estado Democrático de Direito

Golpe de Estado é o ato de violência praticado por governante ou seu opositor contra governo eleito de conformidade com as normas constitucionais, para manter ou tomar o poder. Ler a respeito o livro Técnica do Golpe de Estado, de Curzio Malaparte (1898-1957), sobre o assalto ao poder na Rússia, pelos bolchevistas, em 1917.

O verbete golpe de estado no Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino (Ed. UnB, Brasília, DF, 1994) contém análise assinada por Carlo Barbi, do qual transcrevo o seguinte trecho: “Tomando como objeto de pesquisa os anos recentes, achamo-nos frente a uma verdadeira proliferação de golpes, embora com características bem diferentes. Na verdade, no início dos anos 70, mais da metade dos países do mundo tinha governos saídos de golpes de Estado e o golpe de Estado, por conseguinte, tornou-se mais habitual como método de sucessão governamental do que as eleições e a sucessão monárquica. Mas os atores do golpe de Estado mudaram. Na maioria dos casos, quem toma o poder político por golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chave da burocracia estatal: os chefes militares” (vol. 1, pág. 545).

Em 1930 não houve golpe de Estado, mas revolução articulada pela Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas. O objetivo era depor o presidente Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, presidente do Estado de São Paulo no período 1927-1930, eleito presidente da República pelo Partido Republicano Paulista (PRP) nas eleições de 1.º de outubro de 1930.

Vargas assumiu o governo provisório, em 10 de novembro, com o objetivo de permanecer. Protelou enquanto lhe foi possível a convocação da Assembleia Constituinte, medida tomada por decreto em abril de 1933. Promulgada a Constituição em 16 de julho de 1934, elegeu-se presidente pelo Congresso Nacional, para encerrar o mandato em 3 de maio de 1938.

Em 10 de novembro de 1937 deu o golpe que o pôs na chefia do Estado Novo. Permaneceu até 29 de outubro de 1945, quando foi deposto pelos mesmos militares que o apoiaram na implantação da ditadura. A Carta de 1937, redigida por Francisco Campos, justificava o golpe como resposta às “legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários”. E atribuía a responsabilidade “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista”.

As gerações de hoje pouco sabem sobre o Estado Novo. Alguma coisa, porém, devem conhecer a respeito do regime militar instalado em 31 de março de 1964. O preâmbulo do ato institucional baixado em 9 de abril pelo Comando Supremo da Revolução, integrado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, advertia estar o País diante de revolução vitoriosa, que “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte (...). Essa é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte”.

Durante 20 anos o País viveu sob regime de exceção. Para presidir a República era requisito ser general de Exército. As feridas abertas, de ambos os lados, estão mal cicatrizadas. A volta à democracia, com a eleição de Tancredo Neves em 1985 e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988 não nos garantem contra eventual golpe de Estado. A ameaça do fechamento do Supremo Tribunal Federal por um cabo e dois soldados, o clima de belicosidade com governadores, o negacionismo imbecil, a infame guerra à vacina, a hostilidade contra o Butantan, a militarização do governo, a proposta de criação do generalato nas Polícias Militares, a aversão à liberdade de imprensa, o estimulo à idolatria, o ataque ao voto eletrônico, a declaração “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as Forças Armadas” são reveladores de que alguém está à procura de pretexto para a ruptura da ordem institucional.

A mobilização nacional em defesa do Estado de Direito Democrático é necessária e urgente. Os partidos estão debilitados. As oposições, divididas. É difícil identificar alguém, entre os possíveis candidatos, capaz de galvanizar a opinião pública. A pandemia afeta a economia, provoca o fechamento de empresas, agrava o desemprego e a miséria.

Revela a História que cenário como esse poderá propiciar o aparecimento de demagogo com pretensões a salvador. Assim aconteceu na Alemanha após a 1.ª Grande Guerra, dando ensejo à tomada do poder por Adolf Hitler, e na Itália, por Benito Mussolini. A derrota do Exército russo em 1917 diante dos alemães abriu as portas à ditadura do Partido Comunista. Lenin tomou o poder à força de discursos, como mostra John Reed no livro Dez Dias que Abalaram o Mundo.

A democracia é planta frágil entre os subdesenvolvidos. A indisposição à disputa democrática e a dificuldade para se reeleger poderão espicaçar a ambição sem limites de Jair Bolsonaro. Avisto no horizonte sinais de fumaça.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Constituição – realidade e ficção

Demagogia em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986

É impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.

Exceto raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado. Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia.

Poderoso argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Afinal, o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).

Poderia ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do Estado”.

As definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à esfera da legislação ordinária. Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”. A Constituição republicana de 1891 foi a que mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.

Para ser verdadeira e não descambar para o enganoso terreno da utopia, a Lei Fundamental deve refletir a realidade e não oferecer mais do que a infraestrutura econômica consegue proporcionar. Como diria Oliveira Vianna, o traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho como exemplos de ilusionismo o elenco dos direitos sociais, a definição do salário mínimo, a proteção contra a automação na forma da lei, as garantias relativas à saúde, à educação, à segurança, ao emprego, ao trabalho (artigos 6.º e 7.º, IV e XXVII, 144, 170, 196, 205).

Os direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São 14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4 milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos constituintes de 1988.

Direitos fundamentais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis são a igualdade perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania, a pluralidade política, o voto universal e secreto, o acesso ao trabalho e à livre-iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e encadernados. A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 Estados, tem sete artigos, emendados 20 vezes. Não faz referência a direitos sociais, que só se concretizam quando o Estado é democrático e a economia, vigorosa, funciona bem.

Para que a admiremos a Constituição deve ser conhecida e manter vínculos de fidelidade com o povo. Eruditos comentários redigidos por acadêmicos e professores estão fora do alcance do grosso da população. São ótimos para a venda de livros que dissertam sobre mundo irreal. O Idealismo da Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que analisou o fracasso da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a Constituição de 1988 falhou por instituir relações conflitantes entre idealismo, utopia e realidade nacional.

Fonte do direito positivo ordinário é a vontade revelada pelo Estado. Fonte do direito constitucional, entretanto, é a vontade revelada pelo povo por meio dos seus representantes, salvo quando não dimana, como em 1964, da ruptura da ordem jurídica provocada por golpe militar. Fazer da demagogia, em conluio com forte dose de utopia, fonte do Direito Fundamental foi o erro em que incidiram deputados e senadores eleitos em 1986, investidos erroneamente de poder constitucional.

Estamos a caminho da nona Constituição. Se não encontrarmos a fórmula política consensual para redigi-la e promulgá-la, a letal combinação entre crise econômica e crise social poderá deflagrar crise institucional cujo desfecho virá, como em 1964, pela violência das armas.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Liberdade para trabalhar

Regulamentação pode destruir avançada e liberal forma de trabalho assalariado

O trabalhador, tal como o conhecemos hoje, é fruto da primeira Revolução Industrial. Sua existência como classe data do final do século 18. Surge com a invenção das primeiras máquinas de fiar e de tecer na Inglaterra. Até então esse trabalho era executado em casa, com a utilização de equipamentos toscos, de reduzida capacidade produtiva.

A esse respeito escreveu Jurgen Kuczynski: “Antes de la introducción de las máquinas, el hilado y tejido de materias primas se hacía em la casa del trabajador. Su mujer y su hija hilaban el hilo que el marido tejía; o bien lo vendían cuando el padre de família no lo trabajaba en persona. (…) De esta manera vegetaban los trabajadores en una existencia tranquila, llevando una vida pacífica y ordenada llenos de piedad y dignidade. Su bienestar material era mucho mejor que el de sus sucessores” (Evolución de la Classe Obrera, Ed. Guadarrama, Madri).

A Revolução Industrial provocou o aparecimento de grandes unidades industriais construídas pela iniciativa privada. Karl Marx sintetiza de forma magistral a passagem da economia rudimentar para o processo de produção industrial. Leia-se o que escreveu no Manifesto do Partido Comunista, cuja primeira edição inglesa data de 1850: “A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica industrial capitalista. Massas de operários, amontoados nas fábricas, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo”.

Ignoro o nome do inventor do relógio de ponto. Creio ter sido alguém informado pelo desejo de impor disciplina ao processo de fabricação, para obter da força de trabalho os melhores resultados. Alguém – como Frederick W. Taylor, pai da gestão científica (Scientific Management), ou Henry Ford, criador da linha de montagem – empenhado em garantir à livre-iniciativa “prodigioso desenvolvimento da produtividade por meio do desenvolvimento da tecnologia”, como registrou Louis Althusser em prefácio para o livro primeiro de O Capital.

No Brasil a sujeição do empregado comum à rigidez do horário e à assiduidade é disciplinada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na Lei do Repouso Semanal Remunerado. Qualquer que seja a forma de remuneração, nunca se pode atrasar ou deixar a oficina antes de se encerrar a jornada. O tempo destinado ao repouso ou à alimentação e o intervalo entre jornadas são delimitados. A lei o obriga a registrar o ponto quatro vezes por dia. O custo da mão de obra é um dos principais componentes do custo final. É natural que o empregador procure conseguir o máximo rendimento dos assalariados.

A Constituição da República e a CLT traçam limites à duração diária e semanal da jornada, determinam que horas extras não ultrapassem o limite de duas e que sejam pagas com o acréscimo mínimo de 50%. Férias e repouso semanal são calculados proporcionalmente às faltas não justificadas. Nos estabelecimentos com mais de dez empregados a anotação da hora de entrada e saída deve ser feita “em registro manual, mecânico ou eletrônico” (artigo 74).

O isolamento determinado pela pandemia de covid-19 acelerou a expansão do teletrabalho. Na residência o empregado iniciará a jornada sem os atropelos habituais. Economizará os gastos com transporte individual ou coletivo. Se quiser, terá alguns minutos para atividades físicas, tomará o café da manhã ouvindo ou vendo as últimas notícias, irá ao computador adquirido de acordo com o modelo escolhido e executará as tarefas do dia ou antecipará as do dia seguinte. Não haverá horário rígido para a refeição feita em casa ou encomendada no delivery. Se necessário, interromperá o trabalho para ajudar a esposa, correr ao supermercado e dar atenção aos filhos. Desde que execute a tempo os serviços sob sua responsabilidade, organizará com liberdade a jornada de acordo com sua melhor conveniência.

A libertação do ponto é uma das vantagens do teletrabalhador. Esgarça o regime de subordinação inerente ao contrato. Sobre a nova e revolucionária modalidade de trabalho pesa, contudo, ameaça de regulamentação detalhada, com o perigo de causar prejuízos a ambas as partes, destruindo avançada e liberal forma de trabalho assalariado. Infelizmente, trouxemos de Portugal a prolixidade barroca das Ordenações Afonsinas (século 15), Manuelinas e Filipinas (século 16/17).

A Lei n.º 13.467/2017 reformou a CLT. Antecipou-se à pandemia ao lhe acrescentar cinco dispositivos sobre teletrabalho (artigos 75-A, B, C, D, E). Bastará interpretá-los de forma racional e aplicá-los com boa-fé e inteligência para que esse veículo de modernização não se perca.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)


Almir Pazzianotto Pinto: Breve história do STF

Supremo deve aplicar a Constituição quando provocado e defendê-la quando exigido

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem raízes profundas na Casa da Suplicação do Brasil, criada por dom João VI após a chegada da Casa Real portuguesa, em 1808. Proclamada a Independência, a Constituição Imperial de 1824, outorgada por dom Pedro I, instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, “composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades”, os quais eram “condecorados com o título de Conselheiros” (artigo 163). Relações era o nome dado a tribunais existentes nas províncias, destinados ao julgamento em segunda e última instância, “para a comodidade dos povos” (artigo 158).

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, criou o Supremo Tribunal Federal (artigo 55). Na Constituição de 1934 a denominação passou a ser Corte Suprema (artigo 73). O nome Supremo Tribunal Federal foi restabelecido pela Carta Constitucional de 1937 e preservado nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988.

Na frase ácida e definitiva de João Mangabeira, encontrada no livro Rui o Estadista da República, “o órgão que, desde 92 até 937, mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal (…). O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada…” (Ed. Livraria Martins, SP, 3.ª ed., páginas 69/70).

A vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, anunciada para 13 deste mês, não é de fácil preenchimento, diante das qualidades intelectuais e morais do ilustre magistrado. Concede, porém, ao presidente Jair Bolsonaro o direito de lhe indicar o sucessor. Quais os requisitos impostos pela Constituição para a indicação de magistrado dos tribunais superiores e do Supremo? São quatro. Dois de natureza objetiva: ser cidadão, ter mais de 35 e menos de 60 anos de idade. E dois de caráter subjetivo: notável saber jurídico e reputação ilibada. Os primeiros se provam com mera exibição de documentos, os segundos dependem da interpretação do presidente da República. A Lei Fundamental não cobra amizade com o chefe do Poder Executivo ou crença religiosa.

Apesar das palavras duras de João Mangabeira, o Supremo Tribunal Federal tem sido o último baluarte na defesa do regime democrático. Vem à lembrança a manifestação do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente no biênio 1964-1965, diante de impertinente e autoritária proposta de emenda constitucional enviada pelo presidente Castelo Branco. Reagindo ao ato presidencial, declarou Ribeiro da Costa: “Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres, os sargentos, instigados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que, sob sagrado compromisso, juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição”.

Em 192 anos de vida o STF conheceu ministros das mais diversas personalidades. É de justiça relembrar alguns deles. Começo por Pisa e Almeida (19/11/1842), natural de Capivari, “cujo nome se imortalizou, como símbolo de resistência e honra, em meio à dobrez e à covardia”, como escreveu João Mangabeira; e do também capivariano e emérito processualista Moacyr do Amaral Santos (25/7/1902-16/10/1983). Alguns sobressaem na memória do STF pela cultura ou como símbolos de oposição ao totalitarismo. Além de Piza e Almeida, destaco o nome de Amaro Cavalcanti, de Carlos Maximiliano, de Epitácio Pessoa, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Vítor Nunes Leal, Ribeiro da Costa, Lafayette de Andrade, Gonçalves de Oliveira e de Moreira Alves,

O desembargador Kassio Marques, integrante do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, é desconhecido além das esferas do seu tribunal. Sabe-se que é do Piauí e foi promovido a desembargador pela presidente Dilma Rousseff. Ao indicá-lo, o presidente Jair Bolsonaro destacou ser seu amigo, com quem tomou tubaína e espera tomar cerveja nos fins de semana. Parece-me insuficiente para justificar a nomeação para o Supremo Tribunal, composto por 11 ministros, onde o desempenho não se dilui, como em geral acontece nos tribunais integrados por elevado número de magistrados.

A pauta do STF é carregada de processos que examinam matérias de alta indagação jurídica e política. A transmissão em tempo real das sessões de interesse nacional expõe à opinião pública o perfil de cada ministro. Revela se é dotado de reputação ilibada e notável saber jurídico ou se não passa de trapezista guindado à alta Corte pelas boas graças de um presidente da República e pela proverbial leniência do Senado.

Compete à Corte Suprema “precipuamente a guarda da Constituição” (artigo 102). Estamos na oitava, seis abatidas por golpes de Estado. Para não ser acusado de falhar à República o Supremo deve aplicá-la quando provocado e defendê-la quando exigido. É o que a Nação espera de seus 11 magistrados.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: O trabalhador e a covid-19

Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei, menos ainda por meio de mera portaria

Aspecto de relevante importância do contrato de trabalho diz respeito à garantia do emprego. O artigo 7.º, I, da Constituição de 1988 protege-o “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de legislação complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.

Por motivos que aqui não cabe examinar, a lei complementar permanece à espera de projeto. Enquanto não for aprovada, a proteção referida no inciso I do artigo 7º se limita “ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6.º, caput e § 1.º, da Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966” – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), artigo 10, I.

Após o advento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço são raros os casos de estabilidade. Não é possível demitir arbitrariamente e sem justa causa dirigente sindical; empregado eleito para cargo de direção de comissão interna de prevenção de acidente (Cipa); gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A Lei n.º 8.213/1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, garante a permanência no emprego pelo período de 12 meses do empregado vítima de acidente de trabalho, de doença profissional ou doença do trabalho, constantes de portaria do Ministério do Trabalho.

Há poucos dias o setor empresarial foi surpreendido pela Portaria 2.309, de 28/8, baixada pelo então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. S. Exa. incluiu o coronavírus Sars-CoV-2 na Lista das Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDTT), instituída pelo Ministério da Saúde, para assegurar 12 meses de estabilidade a empregado infectado.

As estatísticas referentes a mortos e infectados pela pandemia evoluem dia após dia. No Brasil o número de vítimas de morte ultrapassa os 135 mil. Nos países desenvolvidos, cientistas das melhores universidades travam intensa batalha na busca de vacina infalível e confiável. Os avanços são animadores, mas é impossível prever quando estará ao alcance da população.

A covid-19 não se encaixa nas definições legais de doença profissional ou do trabalho. Segundo a referida lei, doença profissional é “a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade”. Doença do trabalho é “a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais é realizado e com ele se relacione diretamente” (artigo 20, I e II).

Disseminada pelo mundo, a pandemia não revela preferência por determinada camada social, profissão, nível intelectual, conhecimento científico. Ignora limites e fronteiras. O grau de risco é aquilatado pela idade ou condição de saúde: quanto mais idosa e frágil a pessoa, maior o perigo de contaminação. Pouco importa se é médico, enfermeiro, comerciário, bancário, operário, motorista, desempregado ou aposentado. A Consolidação das Leis do Trabalho exige de todo empregador a adoção de medidas coletivas de segurança e de proteção à saúde dos empregados; e do empregado, que cuide da higiene pessoal e faça uso de equipamento de proteção individual. São providências gerais e obrigatórias que nada têm que ver com eventual epidemia de gripe, sarampo ou covid-19.

A segunda matéria submetida ao leitor diz respeito à natureza de portaria ministerial e à competência funcional de ministro de Estado. Portaria é simples instrução interna destinada à “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência”. Destina-se a “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (Constituição, artigo 87). Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei. Deve obedecer-lhe e exigir dos subordinados que obedeçam a ela.

No âmbito do extinto Ministério do Trabalho encontraremos portarias com pretensões de ser geradoras de direitos e obrigações. As origens remontam ao regime militar, época em que era comum desconhecer o princípio da legalidade.

Conceder estabilidade depende de lei específica. Não basta mera portaria interna, em que a inclusão ou exclusão de determinada doença depende de decisão aleatória, tomada no recesso do gabinete por ministro de Estado, seja da Saúde, da Economia ou do Trabalho.

Em 8/9 o Estado publicou editorial com o título Portaria desumana. Ali está escrito que para se manifestar contra dispositivos do Código Penal o presidente Jair Bolsonaro, mediante portaria baixada pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, “criou uma aberração jurídica”. Outras aberrações com formato de portaria existem às dezenas no âmbito do Ministério da Economia sob o título de Normas Regulamentadoras relativas à Segurança e Medicina do Trabalho.

A Portaria 2.308 foi revogada com a rapidez da aprovação. Menos mal. Espera-se que outras, tão aberrantes quanto ela e a Portaria n.º 2.208, a que se refere o editorial do Estado, tenham idêntico destino, para preservação do princípio da legalidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.

*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, É autor de ‘A falsa República’


Almir Pazzianotto Pinto: O mercado de trabalho e a pandemia

Este ano já é perdido. O governo deve cuidar para a crise não pôr a perder a próxima década

Recebo frequentes convites para participar de reuniões virtuais com o propósito de prever como serão as relações de trabalho em 2021. Prever é profetizar. Profeta, na acepção da palavra, é “alguém por meio de quem se dá a conhecer a vontade e o propósito divinos” (Luc 1:70; At 3:18-21). O Velho Testamento foi revelado a profetas como Moisés, Samuel, Zacarias, Jeremias, Ezequiel. Para os islamitas, Maomé foi o profeta a quem Alá, o único Deus, incumbiu de escrever e difundir o Corão.

A pandemia do coronavírus não foi profetizada. Não tivemos um Moisés a quem Jeová incumbisse de nos alertar sobre a praga destinada a ficar. É impossível dimensionar o tamanho do prejuízo. Sabemos apenas que o número de mortos e de infectados supera as piores estimativas e que a quantidade de empresas quebradas, de empresários falidos, de desempregados, de desocupados e desalentados tende a aumentar.

O mundo ficou mais pobre e o Brasil retrocedeu.

Somos mais de 210 milhões de habitantes de um continente chamado Brasil. O coronavírus cumpriu duplo papel: revelar a verdade oculta por falsas estatísticas e aprofundar a crise cujos primeiros sinais foram emitidos nos anos 1980.

Como ficará o mercado de trabalho após a pandemia? A pergunta exige respostas objetivas e convincentes. Antes que se instalasse já se sabia que a carência de emprego é um dos piores flagelos da humanidade Há mais de 20 anos os dados da Organização Internacional do Trabalho já o denunciavam. Farta literatura europeia examinava o tema em tom pessimista. Não se tratava apenas de problemas de desindustrialização ou de pobreza. Países ricos acusavam elevadas taxas de desemprego atribuídas à globalização, à informatização, à robotização e, mais recentemente, à inteligência artificial.

Como poderemos reencontrar o caminho do desenvolvimento? Como gerar milhões de empregos para jovens, adultos e idosos, brancos, negros e pardos, qualificados ou não qualificados? O primeiro obstáculo é a insegurança jurídica. Não há como ignorar. O temor ao passivo oculto aterroriza o empregador brasileiro. No terreno dos industrializados não estamos entre os exportadores porque os custos finais nos impedem o acesso ao mercado externo.

Ouço falar de avalanche de reclamações ajuizadas por empregados que se sentem lesados por medidas provisórias destinadas a preservar empregos e empresas. Se a ameaça não for de pronto afastada, o projeto de recuperação econômica nascerá morto ou aleijado. Gerar empregos não é mero ato de vontade. Exige planejamento correto e elevados investimentos. Alguém já se perguntou quanto custa criar e sustentar postos de trabalho? Quem desejar saber indague ao pequeno empresário.

O esforço de reconstrução econômica exigirá esforços a que não estamos habituados. Serão indispensáveis espírito de solidariedade, disposição para o sacrifício, boa-fé nos contratos, investir e enfrentar os pesados riscos do negócio.

O economista americano James Tobin, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, escreveu: “Nossa população aspira a um padrão de vida cada vez melhor, geração após geração. Para satisfazermos essas aspirações precisamos de contínuo crescimento da produtividade e, em consequência, precisamos de mais poupança, mais investimentos, mais pesquisas e desenvolvimento, mais tecnologia nova e melhor sistema educacional”. Em síntese, tudo o que nunca tivemos.

Os profetas da Bíblia não eram economistas. Não dispunham de consultores, bibliotecas, estatísticas. Revelavam o futuro como porta-vozes de Deus. O que profetizaram continua a ser lido e respeitado, independentemente dos resultados colhidos ao longo da História da humanidade. No mundo contemporâneo não temos profetas. Foram substituídos por sociólogos, economistas, cientistas políticos, institutos de pesquisas, calculadoras, computadores e jornalistas. Ainda assim, profetizar na política e na economia quase sempre traz maus resultados.

O ano de 2020 já é perdido. Não se trata de profecia, mas da constatação da realidade. O governo deve cuidar para que a crise não ponha a perder a próxima década. Com 15 milhões de desempregados, outros tantos desocupados, 65 milhões de dependentes do auxílio emergencial, a indústria, o comércio e o turismo quase paralisados, como serão as festas do Natal e de passagem de ano? Haverá dinheiro para férias, pagamento do 13.º, presentes, reuniões familiares, almoços e reuniões de confraternização?

Algumas boas experiências, porém, ficarão. Reaprendemos como é agradável ficar com a família e ter tempo para ler. Desenvolvemos o sentido da solidariedade. Adquirimos o hábito da compra pela internet, sem idas e vindas ao shopping ou ao supermercado. Dominamos a técnica das reuniões por videoconferência. O trabalho à distância mostrou-se produtivo. Veio para ficar. Economiza espaço, dinheiro, estimula a criatividade, valoriza a independência, cria oportunidades, oferece conforto e permite minutos de lazer.

Como se diz na França, à quelque chose malheur est bon (há males que vêm por bem).

*Advogado, foi ministro do trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: O sofisma do Poder Moderador

Conferir seu exercício às Forças Armadas significa abrir largas portas ao arbítrio

Na ausência de motivos para levarem a efeito a ideia do golpe, as hostes bolsonaristas recorrem à figura do Poder Moderador. Invocam a aplicação forçada e torta do artigo 42 da Constituição de 1988.

Poder Moderador existiu, mas na Carta Imperial de 1824, outorgada por Sua Majestade o imperador dom Pedro I. Dizia o artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”.

Para a regime monárquico era aceitável que ao imperador coubesse a prerrogativa de velar, ou seja, de fiscalizar a preservação do equilíbrio e da harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Afinal, a ele pertencia a chave da organização política. Registre-se, ademais, que Sua Majestade era pessoa inviolável e sagrada, não se encontrando sujeita “a responsabilidade alguma”, conforme prescrevia o artigo 99.

Proclamada a República, as coisas deixaram de ser assim. O presidente da República, chefe do Poder Executivo, não é inviolável ou sagrado. Responderá, se for o caso, pela prática de crimes de responsabilidade e comuns, conforme determinam os artigos 85 e 86 da Lei Fundamental.

Há algum tempo registrei que a Constituição de 1988 é a única, entre oito, que não resultou de golpe militar. Sucedeu à Constituição de 17/10/1969, conhecida como Emenda n.º 1, editada pelos ministros Augusto Hamann Rademaker Grünewald, da Marinha, Aurélio de Lira Tavares, do Exército, e Márcio de Souza Melo, da Aeronáutica. Haviam assumido a chefia do governo com a doença do presidente Costa e Silva. Para fazê-lo afastarem o vice-presidente Pedro Aleixo, seu sucessor natural de conformidade com o artigo 79 da Constituição de 1967. A História aí está para não nos esquecermos.

O dr. Tancredo Neves foi eleito em 5/1/1985, pela pressão popular. O colégio eleitoral apenas ratificou a vontade do povo, cansado de duas décadas de autoritarismo. Unida em torno dos partidos de oposição, a Nação reivindicava, em grandes manifestações públicas e pacíficas, o restabelecimento das eleições diretas e a restauração do Estado Democrático de Direito.

A doença que vitimou o dr. Tancredo quase pôs tudo a perder. Na noite de 14 de março, ao ser divulgada a notícia da internação no Hospital de Base começaram a circular em Brasília boatos de intervenção militar para impedir a posse de José Sarney. A rápida interferência do general Leônidas Pires Gonçalves, futuro ministro do Exército, teria assegurado ao vice-presidente o exercício interino da Presidência até a morte de Tancredo, em 21 de abril.

A Constituição de 1988 não é produto de crise ou de golpe militar. Resultou de Assembleia Nacional Constituinte, convocada e eleita como compromisso da campanha pela redemocratização. Tem defeitos. O maior, talvez, decorrente de irrefreável prolixidade.

Contém, entretanto, os instrumentos necessários à defesa do regime democrático. Às Forças Armadas – constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na disciplina e na hierarquia, sob a autoridade suprema do presidente da República – incumbe a defesa da Pátria, a garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, a defesa da lei e da ordem. A Constituição não as investe do Poder Moderador. Não são elas “a chave de toda a organização política”. Tampouco lhes compete velar pela manutenção da independência, do equilíbrio e da harmonia dos demais Poderes políticos, prerrogativa dos imperadores.

Para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional, ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza, o presidente da República pode se valer da decretação do estado de defesa. Nos casos de comoção nacional ou de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, tem ao seu dispor o estado de sítio. No primeiro caso, o decreto deverá ser submetido de imediato ao Congresso Nacional, para validá-lo ou não. No segundo, o Congresso deverá ser consultado antes (artigos 136/141 da Constituição).

Em ambas as situações, para preservação do Estado Democrático de Direito o Congresso Nacional permanecerá em atividade, sendo assegurada a divulgação dos pronunciamentos dos parlamentares nas correspondentes Casas Legislativas, desde que liberados pelas respectivas Mesas Diretoras. Pelas mesmas razões, o estado de defesa e o estado de sítio não impedirão o acesso à tutela do Poder Judiciário.

Conferir às Forças Armadas o exercício de Poder Moderador, instituto estranho ao arcabouço constitucional, significa abrir largas portas ao arbítrio.

*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘A falsa República’


Almir Pazzianotto Pinto: A reconstrução

As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível

A pandemia de covid-19 surgiu na China em dezembro. Fez as primeiras vítimas em janeiro. Espalhou-se pelo mundo e chegou ao Brasil entre fevereiro e março. Quando aqui aportou encontrou o País em crise, com milhões de desempregados.

Há esperanças de deixarmos o isolamento até o início de junho. Hipóteses otimistas acenam com a possibilidade de refluxo no segundo semestre. O colapso das atividades econômicas só não é mais assustador do que o número de mortos e infectados. Milhares de empresas quebraram. Outras sobrevivem com graves dificuldades. A economia interna retrocederá uma década. O produto interno bruto cairá fortemente, na pior recessão em mais de cem anos. O desemprego poderá alcançar 20 milhões até dezembro.

É tempo de planejar a reconstrução. Joaquim Levy, ex-presidente do BNDES e ex-ministro da Fazenda, entrevistado pelo Estadão (15/4), advertiu sobre a necessidade de se organizar a “saída ordenada da crise”. Alertou, porém, que “tentar reconstruir a economia como era não vai funcionar”.

A reconstrução será possível, porém sobre novos fundamentos. O “custo Brasil” é o primeiro obstáculo que exige demolição. Para o nosso tamanho, é pífia a participação no cenário econômico internacional. Produtos industriais, de tecidos a automóveis, devem se tornar competitivos além do Mercosul, graças à qualidade e ao preço. Além de reduzir a burocracia e a carga tributária, as relações entre capital e trabalho deverão desenvolver-se em ambiente pautado pela busca do entendimento. Em vez do conflito crônico, o diálogo e a negociação.

A história do movimento sindical brasileiro oscila da servil promiscuidade com o governo, como à época do Estado Novo e boa parte do regime militar, ao grevismo irresponsável, tal e qual durante o governo Sarney. Com o fim da contribuição sindical obrigatória, a estrutura desabou. Da debacle salvaram-se entidades de servidores públicos e alguns sindicatos de estatais, de sociedades de economia mista e de multinacionais do setor automotivo. De qualquer forma, a classe trabalhadora não deve ser esquecida, mas prestigiada e integrada ao esforço de reconstrução.

Resisto à ideia do pacto social, à semelhança do que se conseguiu na Espanha no final de 1977, e não se alcançou no governo José Sarney após o malogro do Plano Cruzado. Os interlocutores e as circunstâncias são outros. Garantir a manutenção dos níveis de emprego durante determinado período deverá funcionar como valiosa moeda de troca para empregadores. Dos trabalhadores se espera o compromisso da redução dos litígios. Será indispensável criar ambiente de segurança jurídica, preservando-se a validade dos acordos ajustados segundo as regras das Medidas Provisórias 927 e 936. O temor do “passivo oculto” inibe contratações.

O Brasil fechou-se ao mundo pela incapacidade de enfrentar políticas econômicas pragmáticas, como são as norte-americanas, chinesas, japonesas, alemãs e sul-coreanas. Erguemos barreiras alfandegárias como instrumento de proteção da ineficiência. A tecnologia é importada e atrasada, incapaz de se ombrear com o mundo informatizado. Somos pobres em pesquisas. A mão de obra se ressente da baixa produtividade.

O balanço final da pandemia revelará que raros países vão sobreviver ilesos. A China interromperá 20 anos de desenvolvimento. Para 2021 são previstas perdas econômicas de 6,8%. As dificuldades dos Estados Unidos não serão menores. A Europa empobreceu. Vejam-se Itália, Inglaterra, Espanha, França. A proposta de Plano Marshall é além de idiota. Pedir dinheiro ao exterior é ato criminoso, escreveu Napoleão Bonaparte (Máximas e Pensamentos, Ed. Topbooks). Não será com dinheiro vertido de fora que o Brasil se reconstruirá, mas graças ao esforço planejado e incansável de trabalhadores e empresários, unidos pelo desejo de reerguer o País. O descontrolado endividamento causou-nos imensos prejuízos e demandou anos de sacrifícios para ser pago.

As perspectivas são desfavoráveis, mas a missão não é impossível. Dependerá de quem assumir a liderança. O êxito não resultará de medidas de força, mas da inteligência, perseverança, visão e capacidade de coordenar esforços dos responsáveis pela reconstrução. Na exoneração do ministro Sergio Moro, após a demissão do dr. Luiz Henrique Mandetta, comprovou-se o que já se imaginava: o Poder Executivo federal tem à frente imprevisível e impulsivo comandante. O que esperar de alguém dotado de personalidade autoritária, praticante do monólogo e avesso ao diálogo? De alguém incapaz de compreender que o dissenso é próprio da democracia e que o consenso nasce do entendimento, não resulta de imposição da caneta?

O presidente Jair Bolsonaro desperdiça a credibilidade adquirida na campanha eleitoral. Despreza opiniões que não venham de seus apoiadores. A promessa de implantação de novo modelo político é desmentida pelos fatos. Não lhe será fácil recuperá-la.

*Ex-ministro do trabalho, fundador da Academia Paulista de Direito do Trabalho (APDT), presidiu o Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Um certo capitão Bolsonaro

Que fazer, prosseguir com atividades não essenciais ou preservar vidas?

Longe estou de pretender traçar paralelo entre o capitão Jair Bolsonaro com o galante capitão Rodrigo Cambará, nascido da imaginação de Érico Veríssimo na trilogia O Tempo e o Vento. Tratarei do presidente da República que derrotou Fernando Haddad em duelo incruento e democrático, após terçarem armas e vencerem no primeiro turno políticos experientes como Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e outros de menor projeção que me dispenso de nomear.

A História mostra como são difíceis e imprevisíveis as disputas eleitorais. Recordo-me da surpreendente derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para o general Eurico Dutra, em 1945, e do retorno de Getúlio Vargas, em 1950. A vitória de Fernando Collor, em 1989, foi inesperada. O mesmo aconteceu na primeira eleição de Lula. Não nos esqueçamos das condições políticas reinantes em janeiro de 1985, quando, em pleno regime militar, Tancredo Neves impôs dura derrota a Paulo Maluf no colégio eleitoral.

Em maio de 2018 Jair Bolsonaro era tido, no jargão turfístico, como azarão, destinado a ficar em quarto ou quinto lugar. Despontava como favorito Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira. A seguir viria Ciro Gomes. Mais atrás, Marina Silva e Álvaro Dias. Correndo por fora, o empresário João Amoêdo, do Partido Novo.

Não repisarei o que já se disse sobre o triunfo de Jair Bolsonaro. Aconteceu e basta. Foi eleito para exercer mandato de quatro anos, conforme prescreve a Constituição. Poderá candidatar-se à reeleição. Ao tomar posse prestou compromisso “de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Promessa idêntica fizeram os presidentes anteriores. A fórmula encerra o óbvio. Sabemos, entretanto, que jamais foi respeitada. O juramento de defesa da Constituição tem sido pro forma. Não evita que a Lei Fundamental seja alvo de emendas retalhadoras. A de 1988 exibe mais de cem cicatrizes e, em nome de reformas, aguarda por muitas outras. A todo momento se ouve falar em nova Assembleia Constituinte ou em emenda parlamentarista.

Quanto ao bem geral do povo brasileiro, abstenho-me de comentar. Somos pobres e subdesenvolvidos. Se alguém alimentasse dúvida, a pandemia do coronavírus bastaria para eliminá-la. Com falta de recursos materiais e humanos, a assistência à população se sustenta graças à dedicação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dos auxiliares imediatos e mediatos, dos secretários da Saúde e médicos dos Estados, de grandes e pequenos municípios, da solidariedade de empresários e trabalhadores.

Quando votamos em Jair Bolsonaro – e me incluo entre os eleitores –, sabíamos o que estávamos fazendo. Conhecíamos os riscos de conduzir à chefia do Poder Executivo alguém que não se encontrava habilitado por completo para o cargo. Como paraquedista treinado para o combate corpo a corpo, afeito ao uso de armas brancas e de fogo, S. Exa. se revela incapacitado para conservar alianças que exijam tolerância e serenidade. Não sabe dialogar, ignora a arte oriental do silêncio e não tem a humildade beneditina para ouvir antes de argumentar.

O perfil paradoxal do presidente Bolsonaro mais se evidencia quando declara guerra ao ministro Mandetta pela exemplar correção no exercício do cargo. Devotado aos princípios da hierarquia e da disciplina, inerentes à organização das Forças Armadas, S. Exa. não compreende serem eles incompatíveis com a vida civil. Compete ao presidente da República, segundo a Constituição, a prerrogativa de nomear e exonerar ministros de Estado. Nunca, porém, de forma abusiva, como simples demonstração de autoridade. Afinal, a ele também se aplicam as exigências do artigo 37, cabendo-lhe observar, no interesse da República, os princípios de impessoalidade, moralidade e eficiência.

À falta de vacina, os países que melhores resultados colhem no combate à pandemia são os que adotam severa política de isolamento, ressalvados os serviços indispensáveis à satisfação das necessidades permanentes da sociedade. É impossível combinar a proteção à saúde, para garantir a sobrevivência do maior número possível de pessoas, com a plena continuidade do transporte, da comunicação, do turismo, da diversão, dos esportes, da grande e pequena indústria, do comércio atacadista, varejista e ambulante. Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos.

Estamos cientes de que a pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo. Empresas estão sendo fechadas e numerosos trabalhadores têm o contrato de trabalho suspenso ou são demitidos. O que fazer em tais circunstâncias? Privilegiar o prosseguimento de atividades não essenciais ou preservar vidas? A palavra é do leitor que se mantém enclausurado.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: A era da mediocridade

Por sua causa somos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde e educação...

“Sempre há medíocres. São perenes. O que varia é seu prestígio e sua influência”
José Ingenieros

A mediocridade é ardilosa. Não ataca repentinamente. Avança sem pressa, como insidioso câncer. Apodera-se dos partidos, espraia-se pela economia, invade a mídia, explora as redes sociais. Ao nos darmos conta, os espaços públicos e privados já foram ocupados. Sobreviverão ilhas de inteligência e de caráter, habitadas por mulheres e homens capazes, cuja inferioridade numérica lhes dificulta a reação. Derradeiras esperanças são depositadas no aparecimento de alguém disposto a arregimentar o povo para campanha comprometida com a recuperação ética, cultural e econômica da Nação.

José Ingenieros (1877-1925) escreveu: “A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São rotineiros, honestos e mansos; pensam com a cabeça dos demais, compartilham a alheia hipocrisia moral e ajustam seu caráter às domesticidades convencionais (...). Não vivem para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se borra como um traço de carvão sob o esfuminho, até desaparecer”. Registra Ingenieros que, ao se associarem, tornam-se perigosos, pois “a força do número supre a debilidade individual: juntam-se aos milhares para oprimir quantos desdenham encadear sua mente com os grilhões da rotina” (O Homem Medíocre, Ed. Ícone, SP, 2006).

Como definir o medíocre? Eça de Queiroz traçou-lhe o perfil na figura do talentoso Pacheco, José Joaquim Alves Pacheco. Em resposta à imaginária carta enviada pelo sr. E. Mollinet, interessado em saber quem é esse compatriota “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal”, escreveu Eça de Queiroz: “Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundezas de Pacheco” (A Correspondência de Fradique Mendes).

O macunaíma medíocre não é reservado ou discreto. Além de inútil, é ambicioso e pedante. Alardeia a solução de problemas objetivos com frases feitas e ideias extravagantes. Analisa o povo como massa anônima e submissa. Conserva-se alheio ao mundo real, que lhe é indiferente e desconhecido. É por sua causa que continuamos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde, sem educação, apesar de escorchante carga tributária. “O Brasil só não é subdesenvolvido na pretensão”, escreveu o jornalista Carlito Maia (1924-2002).

Analisemos o currículo dos membros da Assembleia Nacional Constituinte, escolhidos nas urnas após 20 anos de autoritarismo. Quando se esperava que o eleitorado atribuísse o ônus de representá-lo à elite ética, jurídica e intelectual, o que se observou foi o oposto. A preferência recaiu sobre maioria tacanha e despreparada. Depois de três décadas – tempo suficiente para a atrasada China se transformar em potência mundial – os resultados são constrangedores. O que esperar das eleições municipais de outubro? Políticos envelhecidos, ultrapassados, desacreditados espanarão a poeira do esquecimento para ressurgirem crentes na falta de memória, de interesse ou de vergonha do eleitorado. Aspirantes à vereança e às prefeituras disputarão o primeiro mandato investindo na fama conquistada como astros do palco e da televisão.

O progresso econômico deve-se a audazes pioneiros que acreditaram no agronegócio. Na indústria, breves lapsos de crescimento são acompanhados de anos de estagnação. O império da mediocridade pode ser avaliado no aumento da pobreza, nas filas do INSS, no desemprego de 12 milhões, na crescente violência, na desilusão dos jovens que buscam fazer a vida no exterior, na falência (para os pobres) dos sistemas de saúde e educação, no declínio da classe média. Escreveu Ingenieros que sob o governo da mediocridade “a política se degrada, converte-se em profissão”; “políticos sem vergonha existiram em todos os tempos e sob todos os regimes, mas encontram melhor clima nas burguesias sem ideais”.

O presidente Jair Bolsonaro derrotou o Partido dos Trabalhadores com o programa de combate à corrupção. Consumiu o primeiro ano do mandato na busca do equilíbrio fiscal e com a reforma da Previdência. Como se conduzirá em 2020? Governará para todos os brasileiros ou se dedicará à tarefa irrelevante de fundar legenda submissa, organizada à sua imagem e semelhança?

Dez meses nos separam de eleições destinadas à reconstrução da base da pirâmide política. Triunfará o desejo nacional de renovação, ou prevalecerá o domínio da mediocridade? É o desafio que pela enésima vez os eleitores serão chamados a decifrar.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Almir Pazzianotto Pinto: Utopia versus realidade

Creio que os defensores da Constituição a conhecem pela rama, como diria Eça

Foi o dr. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, que, num arroubo de entusiasmo, redigiu de uma penada a breve introdução encontrada na primeira edição do Senado. Eu o vejo cheio de esperanças, diante do texto promulgado em 5 de outubro de 1988, a escrever. “O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã.”

Foram passageiros os aplausos tributados à Lei Fundamental, nascida “do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade”, como afirmou o dr. Ulysses. A velhice e a decadência vieram céleres e cruéis. Podem ser aquilatadas nas emendas já realizadas pelo Poder Legislativo e na incorporação do espírito constituinte pelo Supremo Tribunal Federal.

Vários argumentos são invocados para impedir a busca de nova Constituição. Dois exigem mais atenção: o receio da volta ao autoritarismo e o medo da perda de direitos sociais. Só insanos e boquirrotos defenderiam a ditadura e o uso de atos institucionais. Tratarei, portanto, apenas dos direitos sociais, que compreendem, de acordo com o artigo 6.º, “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Consultei as Constituições dos Estados Unidos, da Alemanha, da Finlândia, países desenvolvidos, civilizados, cujos índices de desenvolvimento humano (IDH) são invejáveis. Em nenhuma encontrei garantias minuciosas, utópicas, extravagantes como as nossas. O ranking mundial aponta a Alemanha na 5.ª posição (0,936); na 13.ª, os Estados Unidos (0,924); na 15.ª, a Finlândia (0,920). O Brasil amarga o 79.º lugar (0,759), abaixo de Bósnia-Herzegovina, Sri Lanka, Granada, México, Cuba, Portugal e Albânia, o país mais atrasado da Europa.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, proclama o artigo 196. Com semelhante exagero o artigo 205 garante o direito universal à educação gratuita. Sobre o meio ambiente diz o artigo 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O parágrafo 4.º do dispositivo vai além e afirma: “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Também transcrevo o inciso IV do artigo 7.º, relativo aos direitos sociais, garantindo a trabalhadores urbanos e rurais, “além de outros que visem a melhoria da sua condição social”, “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. Observe-se, afinal, o que diz o artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Em que nível de alucinação se achavam os membros da Assembleia Nacional Constituinte, ao imaginarem ser possível proporcionar o Estado de bem-estar à Nação sem trabalho, suor, perseverança, ética e disciplina? Mesmo quem mal conhece a real situação do País percebe que a Lei das Leis é filha da empolgação e da fantasia. Nenhum direito baixaria das nuvens, qual chuva-criadeira, para aflorar como realidade.

A Constituição tem defensores. Não os censuro. Creio, porém, que a conhecem pela rama, como diria Eça de Queiroz. Não se deram conta dos prejuízos causados pela mitomania jurídica. Afinal, para que serve a Lei Superior? Segundo Ferdinand Lassalle, “uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum”. Para ser firme deveria ser verdadeira, o que a Constituição de 1988 não é. A culpa não lhe cabe, mas aos demagogos que a redigiram e promulgaram motivados por veleidades populistas.

Substituir a Constituição não é simples. Poderá ser fruto benéfico do consenso, ou nascer de golpe de Estado. Nada impede, contudo, que algum partido político apresente como programa de governo, nas eleições de 2022, esboço de Constituição enxuta, clara, objetiva, democrática e liberal. Para tê-lo à mão, por que não recorrer ao auxílio de instituição idônea, ligada ao mundo jurídico? O Instituto dos Advogados de São Paulo, onde se concentram a nata da advocacia paulista e constitucionalistas de escol, poderia assumir voluntariamente a tarefa e converter o saber acadêmico em obra concreta de interesse nacional.

O Brasil deve decidir se fica com uma Constituição prolixa e utópica ou encara a dura realidade.

*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘30 anos de crise - 1988-2018’