100 anos

Hélio Schwartsman: O que a Folha me ensinou

Errando e acertando, é jornalismo o que a Folha procura fazer

A Folha faz nesta sexta (19) 100 anos de existência. Eu, dentro de um par de meses, farei 33 anos de Folha. Foi meu primeiro e único emprego, ao qual cheguei por acidente.

É verdade que desde pequeno eu lia o jornal. Meu pai assinava a Folha e o Estado, e foi sobre o diário da alameda Barão de Limeira que minha atenção naturalmente recaiu. A Folha era visivelmente menos sisuda que o Estado na segunda metade dos anos 70. Nunca, porém, imaginei que um dia trabalharia no jornal.

A guinada veio em 1988. Recém-formado, em busca de algo para fazer antes de me dedicar integralmente ao que seria uma tese sobre a verdade em Platão, respondi a um anúncio da Folha em que ela recrutava tradutores. Não era bem assim. A vaga, na realidade, era para uma posição de redator na editoria de Exterior. Fiz a prova, a entrevista, fui chamado, aceitei e estou no jornal até hoje. Jornalismo vicia. A tese nunca foi escrita.

Esses 33 anos me ensinaram duas lições ontológicas. A primeira é sobre o papel do acaso, muito maior do que estamos dispostos a admitir. Uma edição de jornal nada mais é do que o catálogo dos principais acontecimentos fortuitos do dia anterior, do sorteio da Mega-Sena aos terremotos e acidentes. Assim como o acaso foi decisivo para a minha carreira, o é para tudo.

A outra é sobre a verdade. Cada um tem a sua. Platão estava errado. Mas, mesmo admitindo que objetividade e imparcialidade sejam uma quimera, não precisamos necessariamente concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica.

Entre o dogmatismo com tons religiosos e o cinismo niilista, sobra bastante espaço para relatos que, sem a pretensão de verdade acabada, procuram honestamente estar tão perto dos fatos quanto possível.

Errando e acertando, é o que chamamos de jornalismo, e é o que a Folha procura fazer. Ao menos foi isso o que testemunhei ao longo de 1/3 dos 100 anos desta Folha.


Bruno Boghossian: Aos 100, Folha encara missão de expor investidas contra a democracia

Informação é pedra no sapato de autoridades que têm algo a esconder ou querem extinguir contestação

Quando um governante decide dar um passeio fora dos limites da democracia, alguns de seus primeiros alvos costumam ser os tribunais e a imprensa. O autocrata tenta intimidar as cortes porque sabe que juízes conseguem impor um freio imediato a medidas autoritárias. O jornalismo não tem esse poder nas mãos, mas é um obstáculo diante de candidatos a ditador.

Um público bem informado é uma pedra no sapato para autoridades que têm algo a esconder ou que precisam extinguir focos de contestação. Ditaduras não convivem bem com uma imprensa livre porque a circulação de informações estimula o país a discutir e decidir seus próprios rumos –algo que um tirano não consegue suportar.

É normal que um político fique incomodado com o que lê nos jornais. Pode reclamar da postura crítica de um veículo, de uma reportagem que teve um peso maior do que ele gostaria ou até de uma informação errada. Ainda que jornalistas possam ficar contrariados, esse debate faz parte das regras democráticas. O problema ocorre quando as autoridades preferem jogar outro jogo.

O mundo tem um punhado de populistas que se intitulam democratas, mas dizem que “o certo é tirar de circulação” jornais que os deixam aborrecidos. Fazem ataques virulentos à imprensa quase todos os dias e tentam classificar qualquer informação desconfortável como falsa.

Governantes dessa natureza usam a desinformação como arma política. De um lado, exploram o peso da máquina dos governos para torpedear a credibilidade do jornalismo profissional e reduzir o alcance de notícias verdadeiras. De outro, empunham o megafone de seus cargos para espalhar mentiras e convencer o país dos maiores absurdos ou apenas tumultuar o ambiente.

A imprensa livre ajuda a sustentar a democracia porque expõe investidas como essas e mostra que os fatos não se dobram aos desejos de qualquer autoridade do momento. Ao completar seu centenário, a Folha continua a encarar essa missão.


Alberto Aggio: O comunismo histórico em perspectiva global

A propósito da efeméride dos 100 anos da Revolução Russa de outubro de 1917, livros foram publicados e reeditados, artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo e, no entanto, a discussão sobre o tema ainda continuará aberta por algum tempo. Seria um excesso imaginar que qualquer revisão daquele processo teria capacidade de (re)estabelecer a verdade dos fatos. Mas uma coisa é certa: nenhuma revisão consegue ter impacto nas orientações políticas hodiernas da esquerda mundial, como antes acontecia. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove a divisão ou a reorientação que antes promovia entre os simpatizantes das suas principais ideias.

Há alguns anos atrás a editora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, convidou especialistas, principalmente historiadores, e decidiu organizar uma publicação sobre a história do comunismo, tomando como referência principal o que foi estabelecido como comunismo histórico, depois de 1917. Os três volumes estão indicados em https://www.cambridge.org/core/series/cambridge-history-of-communism/0399F87881C31D61C89C961E62A2DDEC para serem eventualmente adquiridos e lidos. Dentre os especialistas convidados estão Lucien Bianco, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, Stephen A. Smith, da Universidade de Oxford e Silvio Pons, da Roma Tor Vergata, que já publicou entre nós “A Revolução Global - história do comunismo internacional (http://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=3036 ). Esta coleção de três volumes da Cambridge constituiu a base do seminário “Ripensare la storia del comunismo”, realizado em Roma, entre 26 e 27 de outubro, na Biblioteca do Senado italiano, cuja organização esteve a cargo da Fondazione Gramsci de Roma e dos grupos parlamentares do Partido Democrático (PD) da Câmara e do Senado.

Os historiadores presentes não tiveram dúvida em qualificar como fracassadas as duas revoluções que implantaram o comunismo na Rússia e na China, levando-se em conta os objetivos que nortearam suas ações ao longo do tempo, desde o momento da conquista do poder. Não há mais nenhuma perspectiva interpretativa que busque erros específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e diante de desafios e dilemas que constituem parte do processo histórico. É a história in acto que importa a estes historiadores e não uma discussão ideológica e justificativa.

O traço fundamental do seminário - distinto da publicação de Cambridge, uma vez que nem todos os temas e autores estiveram presentes - foi o de tratar o comunismo como um fenômeno global, que influenciou varios países do mundo e milhões de pessoas durante o século XX. De fato, a crença no poder dos comunistas que se impuseram na Rússia tornou o seu movimento uma força global. Claro que esse tratamento teve um desenvolvimento específico, onde se tratou do papel do internacionalismo e do transnacionalismo na história do comunismo russo, bem como da experiência do comunismo na Europa depois da Segunda Grande Guerra, o que importa sobremaneira para uma reflexão do fenômeno em relação à trajetória e aos desafios da esquerda europeia.

Mas, a questão fundamental, no que tange a essa visão geral, é a de se comparar o comunismo russo com o chinês. O problema não é apenas quando se instala ou quando termina o comunismo, pois o fim do comunismo na antiga URSS já é fato conhecido e na China é algo suposto em razão do processo no qual o PCC, atuando em regime ditatorial, instaura o capitalismo como modo de produção material. O problema é efetivamente o destino do “comunismo capitalista” chinês como um player mundial e que papel ele poderá jogar no mundo globalizado.

Realidades não europeias também foram contempladas, como aquelas que envolvem a dinâmica de transformações do Vietnã, similar à chinesa, os limites da estratégia nacionalista dos comunistas da África do Sul e Argélia, e, mais importante, as mudanças que se operaram nos países que compunham uma espécie de commonwealth comunista, como Lituânia, Estônia, Ucrânia, etc.

Mas, o que torna mais evidente a mudança de perspectiva investigativa é o fato de se incluir na análise do comunismo histórico o que os historiadores vêm chamando de “história do cotidiano”. Isso retira, definitivamente, a discussão da temática do poder revolucionário e do seu destino e a coloca na história dos homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo histórico. A historiadora Juliane Fürst, da Universidade de Bristol, Inglaterra, assumiu precisamente essa tarefa ao organizar uma pesquisa voltada para o “comunismo como experiência vivida”. Quem assistiu e se recorda do filme “Adeus, Lenin” se lembrará muito bem das questões cotidianas que envolviam a vida das pessoas na antiga Alemanha Oriental, mal qualificada como “democrática”. O ponto limite deste aspecto da história do comunismo se volta para a reflexão da sua incapacidade como inspirador de uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. No fundo, a revolução e o poder bolchevique não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria apenas e “hegemonia civil”) que pudesse lhe dar sustentação.

O fracasso do comunismo histórico deve ser visto na perspectiva que ele se assumiu, ou seja, como um movimento de caráter global. Não há como sustentar que sua perspectiva possa ainda fazer sentido aos homens e mulheres do século XXI. Ele não foi derrotado por forças superiores em termos materiais ou culturais. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Estamos, hoje, em uma nova fase da humanidade na qual o comunismo não é mais do que história.

 


Michel Zaidan Filho: Reflexões sobre a revolução russa no ano do seu centenário

Este artigo pretende discutir algumas questões relacionadas à experiência da maior revolução socialista da história da humanidade, a Revolução Russa, que completa neste ano 100 anos. Como se trata de um movimento revolucionário que inspirou, pela teoria e pela prática, milhões de ativistas e militantes sociais no mundo, escolhemos alguns pontos desse grande acontecimento histórico para analisar, em perspectiva das lições e aprendizados para a luta social do século XXI. Primeiro, a questão ocidente versus oriente. Segundo, a relação nacionalismo, luta anti-imperialista e revolução. Terceiro, o lugar da democracia liberal, no processo revolucionário. Quarto, a dialética entre o nacional e o internacional Quinto, a questão camponesa. Sexto, a relação entre democracia e socialismo. Sétimo, a questão da universalização do “modelo” da Revolução russa.

I
O primeiro ponto a se considerar sobre a Revolução Russa, numa retrospectiva de 100 anos, é se ela foi a última revolução europeia contra o capitalismo, do século XIX, ou se ela pode ser caracterizada como a primeira na periferia do mundo capitalista?

É de se lembrar de que a Revolução Francesa iniciou um ciclo revolucionário, na Europa (e no resto do mundo), que se fecha com a derrota da Comuna de Paris (1781). Até a Comuna, é possível vislumbrar um conjunto de influências revolucionárias tais como: o anarquismo, o blanquismo, o socialismo pré—marxista etc. Ou seja, onde é patente a presença de ideias europeias e de militantes sociais europeus naquele movimento, sendo a influência das ideias de Marx muito pequena ou quase nula. (Vejam-se, a propósito, as críticas de Marx aos “comunards” franceses, nos manuscritos guardados no Museu de História Social de Amsterdam, e as de Lenin, no ensaio “As duas táticas da socialdemocracia russa” à Comuna de Paris). Já a Revolução Russa trai a participação decisiva dos bolcheviques e a orientação marxista na condução do movimento revolucionário, sem desprezar o papel de anarquistas, dos camponeses, soldados e marinheiros. Sobre isso, há um longo debate entre revolucionários russos (não marxistas) e o próprio Marx sobre os caminhos disponíveis para a Revolução na Rússia, incluindo as possibilidades de uma passagem da antiga economia agrário-camponesa russa diretamente para o socialismo, muito ao contrário da ortodoxia engelesiana da necessidade de uma “revolução democrático-burguesa”. (Vejam-se as cartas de Marx a Vera Zazulitch, em comparação aos fragmentos publicados por Eric Hobsbawn, em “Formações econômicas pré-capitalistas”). Se for possível tomar a formulação leninista sobre o Imperialismo, e adotar a tese de que a Revolução se daria no “elo mais fraco” da cadeia imperialista, então temos de admitir que a Revolução Russa fosse a última grande revolução socialista europeia, já no século XX. É assim que se pode interpretar a análise de Gramsci sobre “a guerra de movimento”, em referência à revolução. E seu prognóstico de que as futuras revoluções no Ocidente seriam “guerras de posição”. (Veja-se Nota sobre Maquiavel, a Política e o Estado Moderno).

Independentemente da controvérsia sobre a ortodoxia revolucionária dos bolcheviques e a natureza de sua revolução, é indiscutível que Lenin se louvará nas obras de Marx para defender a Revolução Russa. Como se sabe, nenhuma revolução se faz de acordo com um manual; ocorre sempre dentro de circunstâncias bem determinadas. E a despeito do estatuto teórico duvidoso de muitas das posições leninistas, podemos aceitar o caráter socialista da revolução, num contexto de guerra e cerco das potencias imperialistas à Revolução de Outubro.

Nesse sentido, a Revolução Russa pode ser considerada a primeira Revolução Socialista (vitoriosa) da história contemporânea. E que teve um formidável efeito multiplicador das ideias revolucionárias no mundo inteiro: na Europa e fora dela.

II
Outro ponto importante tem a ver com a discussão sobre nacionalismo (ou luta anti-imperialista), democracia liberal e socialismo. Os que apontam na direção do “comunismo de guerra” dos primeiros anos, se dispõem a admitir que originalmente trata-se de uma revolução anti-imperialista, onde uma espécie de acumulação primitiva faz muitas concessões à propriedade agrária dos camponeses. Sendo, portanto, impossível caracterizar esse momento da luta revolucionária como uma construção socialista. É a etapa da chamada “Nova Política Econômica”, em que de fato abre-se um espaço para propriedade camponesa, a fim de que os camponeses apoiem a revolução, num momento crucial de sua existência. A defesa da Revolução é mais importante do que a socialização das terras, num contexto de uma pequena classe operária industrial e do oceano agrário que era a Rússia nesse então. Buscar uma base doutrinária em Marx, Engels, Kautsky ou Chayanov para justificar essas medidas é inútil e desnecessário. As medidas de Lenin se devem ao calor da hora e a urgência de garantir o apoio campesino á Revolução.

Poder-se-ia objetar que tais concessões levariam a um reforço à mentalidade de proprietário do pequeno camponês. E que num momento seguinte, seria necessária a expropriação da pequena propriedade. Mas a questão foi adiada e coube a Stalin resolvê-la, pela força, desorganizando até hoje a agricultura russa.

III
Mais complicado é, sem dúvida, a questão da democracia liberal. Num momento em que a Assembleia Constituinte estava funcionando e mantinha a pluralidade partidária, tanto quanto os Conselhos de Operários e Soldados, os bolcheviques decidiram fechar a ele órgão de representação política e os Conselhos, sob a alegação de conspiração ou oposição contrarrevolucionária à nova ordem instituída. O que teria levado Rosa Luxemburgo a dizer que a democracia e a liberdade de expressão só se colocam para quem diverge de nós, não para quem pensa igual à gente. Na verdade, a questão da democracia no âmbito da cultura marxista-leninista sempre foi encarada como um expediente tático. Nunca como estratégia revolucionária. Seria necessário aguardar o pensamento de Antônio Gramsci e seus intérpretes, para que fosse possível repensar “a hegemonia como contrato”, ou “rousseunizar” Gramsci, como diz o ensaísta brasileiro Carlos Nelson Coutinho. (“Marxismo e Teoria Política”). O núcleo duro da teoria política marxista vê o Estado como um instrumento político à serviço da classe dominante. Dessa forma, a democracia só pode ser vista como um expediente tático, para acumulação de forças, em direção à revolução socialista. Daí o caráter das alianças políticas da classe operária e seu partido.

IV
Outra questão relevante é a dialética entre o nacional e o internacional, que depois estaria no centro do movimento comunista internacional, envolvendo Stalin e Trotsky. A revolução socialista é mundial ou pode fazer, inicialmente, concessões a minorias nacionais? – Como se sabe, desde “o” Manifesto Comunista”, Marx admite que a emancipação do proletariado moderno não pode se dá, isoladamente, neste ou naquele país. Tem de ser um movimento internacional, sob pena da contrarrevolução triunfar. Como o próprio capitalismo ajuda a escrever uma história mundial, a revolução socialista tem ser, também, em escala mundial. Mas as circunstâncias históricas onde ocorreu a Revolução Russa (tanto internas, quanto externas) foram determinantes no recuo estratégico e a defesa da União Soviética, durante o “comunismo de guerra”. Antes mesmo de Stalin proclamar a doutrina do “socialismo em um só país”, o próprio Lenin já reconhecia que era preciso consolidar a revolução e para isso, seria necessário fazer certas concessões ora aos camponeses ora às nacionalidades ora a burocracia residual do velho regime. Rosa Luxemburgo foi a primeira a chamar a atenção do líder bolchevique de que tais concessões poderiam representar, no futuro, uma ameaça ou entrave para a constituição de uma verdadeira República Soviética. Mas naturalmente prevaleceu a opinião de Lenin, depois muito reforçada por Stalin no debate com Zinoviev e Trotsky. Difícil seria, como em outros casos, achar uma segura base doutrinária para essa tese, já que se tratava de um arranjo tático numa conjuntura política crucial para a sobrevivência da Revolução (a propósito, leia-se “Um passo adiante e dois para trás” e “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, ambos de Lenin)

Na verdade, quando se compara a possibilidade de uma revolução socialista na Europa com aquela que se deu na Ásia e depois, na América Latina e na África, é quanto se percebe o peso da questão nacional em relação ao internacionalismo proletário. A despeito, da Internacional Comunista ter sido pensada como “o estado maior da revolução mundial”, ela foi usada por Stalin em função das conveniências políticas (nacionais) da União Soviética. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com os comunistas na guerra civil espanhola.

V
Outro ponto muito discutido na experiência revolucionária russa (e fora da Rússia) é o do papel dos camponeses. É preciso dizer que Marx, diferentemente de Engels, Lenin ou Chayanov, nunca morreu de amores pelos camponeses e/ou a pequena propriedade rural. É conhecida a sua famosa expressão “um saco de batatas”, referindo-se ao campesinato francês, que sempre votava a favor dos Bonaparte. (Veja-se O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte). Seu companheiro Engels, e depois Lenin, é quem manifestaram uma maior acuidade política em relação à questão camponesa, na Europa e fora dela. O primeiro escreveu o conhecido artigo: “o problema camponês na França e na Alemanha”. E o segundo, sempre teve o maior cuidado de contemplar as reivindicações do pequeno campesinato no processo revolucionário, sobretudo na fase democrático-burguesa da revolução. A tendência do desenvolvimento do capitalismo no campo era a proletarização objetiva dos camponeses e sua transformação em operários. Mas, subjetivamente, as coisas não eram assim. Muitos alimentavam a ilusão da posse da terra, mesmo em condições de profundo endividamento. Não eram ideologicamente a favor da coletivização da terra. Se na Europa, ainda havia resquícios de uma mentalidade feudal ou camponesa entre os trabalhadores do campo, imagine na Rússia! Na verdade, a decisão de coletivizar (à força) a agricultura soviética foi de Stalin, numa espécie de acumulação primitiva do “socialismo em um só pais”. E essa decisão custou muito caro: desorganizou a agricultura soviética até hoje.

Agora, como transformar isso numa teoria revolucionária, contemplando a situação particular dos camponeses, esse é o problema teórico. Máxime, para os países de desenvolvimento capitalista tardio. A não ser que os pequeno-camponeses fossem encarados como “aliados táticos”, numa certa fase da revolução. Depois, seriam descartados se não aderissem ao socialismo. Pessoalmente, considero a questão agrária ou camponesa como uma espécie de “ponto dollens” da teoria revolucionária do socialismo, sobretudo quando levado para a periferia do capitalismo.

VI
Já a questão da relação entre Democracia e Socialismo divide os marxistas há muito tempo. Marx, que não morria de amores pela “democracia burguesa”, pareceu não dá muita importância a essa questão. Apesar da tese dos marxistas contemporâneos, apoiados em Gramsci, apontarem para um processo de ampliação do Estado nas sociedades ocidentais, em razão da constituição de uma sociedade civil robusta e complexa, acho difícil encontrar no pensamento de Marx abrigo para uma estratégia democrática radical para o advento do socialismo. Existe, é verdade, o testamento de Engels falando do avanço eleitoral da socialdemocracia alemã, no final do século, e da possibilidade de uma vitória eleitoral do proletariado naquele país. Entretanto, esse testamento tornou-se mais um problema – na história das disputas internas no pensamento socialista, do que uma solução. Foi preciso esperar os debates do pós-guerra, para ver a elaboração daquilo que veio a ser conhecido como “eurocomunismo” e de uma estratégia democrática (processual) para o advento do socialismo.

Nada disso havia no período anterior à duas grandes guerras. O debate entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” ainda não tinha se colocado com tanta força para os partidos socialistas do ocidente, como depois do refluxo da onda revolucionária. A questão parecia simples: Revolução Permanente, com a transmutação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista, sob a liderança da classe operária, ou as revoluções por etapa, respeitando-se o ritmo, o caráter específico e a direção dos processos revolucionários. Como ficou conhecido, a primeira tese foi defendida por Trotsky, em sua famosa obra “A revolução Permanente”, apoiando-se no voluntarismo de Marx no contexto da revolução de 1848-1851 na França. A segunda, por Stalin e seus seguidores, em vários escritos de ocasião.

Concordando-se ou não com o ponto de vista de Trotsky, é necessário convir que sua tese estivesse mais próxima da de Marx do que a de Stalin ou mesmo das concessões táticas do gênio de Lenin. De toda maneira, a sorte da questão democrática no interior da dialética revolucionária russa, é semelhante à da questão camponesa. Nunca se achou um fundamento estratégico sólido ora para o etapismo ora para a revolução permanente. O que há são escritos políticos de ocasião, com exceção naturalmente do livro de Trotsky. Mas isso dividiu o movimento revolucionário entre aqueles que acham ser a revolução um processo mundial, sem etapas rumo ao socialismo, e outros que defendiam uma sequência necessária entre uma etapa democrático-burguesa e a revolução socialista propriamente dita. Infelizmente, como as outras questões, esse debate produziu consequências políticas sérias para a revolução nos países onde os Partidos Comunistas tinham que atuar, incluindo o caso do Brasil, da China, do México etc. Mas essa é outra história que não cabe ser tratada aqui.

A tese veiculada no 6º Congresso da internacional Comunista falava, por exemplo, de uma revolução democrático-burguesa anti-imperialista que devia realizar tarefas expropriatórias e políticas preparatórias para a revolução socialista. Esta tese hegemônica, inspirada na Revolução Chinesa, se chocava com as elaborações nacionais de outros PCs que acentuavam a necessidade de uma revolução democrático pequeno-burguesa, bem mais limitada do que aquela. Mas prevaleceu a tese da IC e os partidos comunistas se alhearam dos processos revolucionários reais, dirigidos pela chamada “pequena-burguesia”. E os responsáveis pelas elaborações nacionais foram punidos e afastados dos PCs.

VII
Finalmente, chegamos à questão crucial: pode a revolução russa servir de modelo para a revolução socialista no mundo inteiro ou para aqueles países chamados de “coloniais” ou “neocoloniais” ou “dependentes”, como diziam as teses do 6º Congresso da IC?

Faço minhas as palavras da grande revolucionária Rosa Luxemburgo, em seu opúsculo “A Revolução Russa”: não se pode transformar a necessidade em virtude, ou seja, é impossível a universalização de um tipo de revolução, que se deu em circunstâncias históricas e políticas muito particulares, a despeito da formulação leniniana do “elo mais fraco da corrente” numa época de dominação imperialista. Eram louváveis e necessários os esforços da socialdemocracia alemã e russa de analisar a especificidade do “capital monopolista” ou do “capital financeiro”, no final do século 19. E houve várias tentativas: “O Imperialismo – Etapa superior do capitalismo”, “O capital financeiro”, “Acumulação de Capital” e outros. Mas nada disso explicaria ou anteciparia as condições dramáticas em que ocorreu a revolução. Deve-se à enorme frente de militantes (anarquistas, social-revolucionários, bolcheviques) e ao gênio político de Vladimir Lênin todas as concessões táticas e estratégicas necessárias para o triunfo da onda vermelha, da defesa da Revolução e a própria constituição da URSS. Mas a leitura atenta de toda obra de Lenin, acrescida da de Trotsky e Stalin, não nos autoriza a construir um modelo universal de Revolução Socialista calcado nas vicissitudes da experiência soviética. Tanto os problemas que se apresentaram na construção socialista russa, como os advindos da mera transposição de táticas e estratégias do movimento comunista internacional para os movimentos socialistas ou de libertação nacional nos países da periferia do capitalismo foram resultantes de uma racionalização política equivocada e que trouxe mais prejuízos à causa da revolução mundial do que benefícios. De certo modo, a “queda do muro de Berlim” – tomada como uma expressão metafórica para falar da crise do socialismo realmente existente – é produto dessas contradições, ambiguidades e problemas mal resolvidos, que foram simplesmente transformados em solução.

Cabe aos revolucionários do século XXI colher as preciosas lições de grande (e única) revolução socialista para repensar a sua prática revolucionária. A rica experiência da Revolução de outubro oferece um catálogo completo dos desafios e das possibilidades de se construir um mundo mais justo, mais humano e digno para toda a humanidade.

*Michel Zaidan Filho é professor-titular do Centro de Filosofia e Ciências Humanas-UFPE