RPD | Lilia Lustosa: Sinfonia no céu

As trilhas mudaram a nossa percepção dos filmes e foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, com parcerias bem-sucedidas e duradouras como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, Sergio Leone e Ennio Morricone, além de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, avalia Lilia Lustosa.
Foto: Site pessoal
Foto: Site pessoal

As trilhas mudaram a nossa percepção dos filmes e foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, com parcerias bem-sucedidas e duradouras como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, Sergio Leone e Ennio Morricone, além de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, avalia Lilia Lustosa

Bem antes de o som invadir as telas do cinema com “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland, a música já funcionava como o melhor complemento para essa nova arte que conquistava pouco a pouco sua legitimação. Não tardou nada para que as imagens em movimento inauguradas pelos irmãos Lumière ganhassem logo acompanhamentos de piano, órgão e até de orquestras inteiras. Alguns músicos, vislumbrando o potencial da arte que surgia, começaram a compor diretamente para as tais “vistas” que tanto encantavam os olhos das plateias naquele começo de século 20. O alemão Gottfried Huppertz foi um deles, compondo para alguns dos filmes mais importantes de Fritz Lang – “Dr. Mabuse” (1922), “Os Nibelungos – A Morte de Siegfried” (1924) e “Metropolis” (1927) –, estabelecendo com o diretor uma parceria de sucesso, acabando por tornar-se o compositor mais requisitado do Expressionismo alemão.

A partir daí, as “trilhas sonoras” foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, vendo surgir de quando em quando outras parcerias bem-sucedidas e duradouras, como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, ou ainda a de Sergio Leone e Ennio Morricone, compositor italiano que nos deixou em julho último, aos 91 anos de idade.

Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone, seu colega de escola e figura emblemática do western spaghetti, gênero que nasceu na Itália e conquistou o mundo, lançando até mesmo um certo Clint Eastwood para o estrelato. O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta.

“Três Homens em Conflito” (1966), cuja trilha foi baseada no som dos coiotes do “velho oeste”, é um bom exemplo dessa mescla. Uma ousadia que se impôs e fez escola, com discípulos espalhados no mundo inteiro, além de espectadores-fãs transformados em cineastas, como Quentin Tarantino, que, depois de muito insistir, conseguiu que Morricone concordasse em compor a trilha de seu “Os Oito Odiados” (2015). Uma experiência que lhe rendeu um Oscar de melhor trilha sonora original, além do título de pessoa mais velha a receber a estatueta, aos 87 anos de idade.

“Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone. O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta”

Não se sabe ao certo quantas músicas Morricone compôs para o cinema – algo em torno de 500, segundo especialistas –, mas onde não pairam dúvidas é quanto à diversidade de gêneros em que atuava. Aliás, ele ficava incomodado com o fato de ser sempre associado ao western, quando, na verdade, transitou por tantos outros gêneros, vide “Era uma Vez na América” (1984), “Cinema Paradiso” (1988), “A Missão” (1986) e “Os Intocáveis” (1987). Para cada um, soube encontrar a melodia certa, fazendo da partitura não só um complemento, mas também um elemento intrínseco à mise-en-scène, tal como a iluminação, os movimentos de câmaras, a cenografia etc.

Do lado de cá do Atlântico, também tivemos grandes compositores que atuaram no cinema, como Heitor Villa-Lobos, que compôs uma série de suítes para o filme “Descobrimento do Brasil” (1937), de Humberto Mauro, e acabou virando o compositor-símbolo do Cinema Novo. Movimento cinematográfico que ainda revelou Sérgio Ricardo, grande parceiro de Glauber Rocha em seus filmes mais importantes – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) –, bem como diretor de “Menino da Calça Branca” (1962) e de “Esse Mundo é Meu” (1964), para os quais compôs ainda as trilhas.

Assim como Morricone, Sérgio Ricardo revolucionou a música cinematográfica, deixando de lado as músicas orquestrais e os números musicais em voga no cinema do Brasil de então, partindo para uma experiência mais antropofágica. No caso de “Deus e o Diabo”, musicou as letras escritas pelo próprio Glauber em forma de cordel, cantou-as acompanhadas por um violão tocado por ele mesmo e misturou-as às Bachianas já antropofagizadas de Villa-Lobos. Em “Terra em Transe”, ampliou ainda mais a mistura, alternando o mesmo Villa Lobos com Giuseppe Verdi, Carlos Gomes, jazz, bossa nova, cantos de candomblé, marchinhas de Carnaval e ainda tiros de metralhadora e sirenes de polícia. Uma verdadeira inspiração para o Tropicalismo que emergia em nosso país daquele fim de anos 60.

Foto: Ana Resende

Sérgio Ricardo, que se chamava João Lutfi de nascimento, partiu também neste julho, aos 88 anos de idade, apenas alguns dias depois do mestre Morricone, deixando emudecido o cinema brasileiro. Grande silêncio sentido na terra, festa sinfônica no céu.

*Lilia Lustosa é crítica de cinema

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