Day: agosto 14, 2020

Gargalos da educação e covid-19 entre indígenas são destaques da Política Democrática Online

Edição do mês de agosto também analisa governo Bolsonaro e aproximação dele com Joe Biden

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Prejuízos da mistura de ideologia e gestão educacional no Brasil, efeito devastador da covid-19 nos povos indígenas, apelo contra omissão do Congresso na definição do papel das Forças Armadas e possível aproximação do presidente Jair Bolsonaro com o americano Joe Biden são destaques da revista Política Democrática Online de agosto. A nova edição da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, foi lançada nesta sexta-feira (14) e tem acesso totalmente gratuito no site da entidade.

Clique aqui e acesse aqui a revista Política Democrática Online de agosto!

No editorial, a revista observa que completa-se mais um mês o novo figurino adotado por Bolsonaro. “Não mais confrontos com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; não mais ameaças, veladas ou não, ao funcionamento regular das instituições”, diz um trecho. “Aparentemente, o bloco parlamentar apelidado de ‘centrão’ teria logrado surpreendente e rápido sucesso, tanto na tarefa na de convencer o presidente a transitar pelos meandros da ordem democrática, como na de guiá-lo nesse percurso”, afirma.

Na entrevista especial concedida à nova edição da revista Política Democrática Online, o professor Arnaldo Niskie, membro da Academia Brasileira de Letras e ex-membro do Conselho Nacional de Educação, avalia que o país sofre sem um plano nacional de educação e com o principal órgão – o Ministério da Educação – minado por uma gestão precária que mistura ideologia com gestão escolar. "Essa mistura não é saudável. Prejudica os beneficiários do processo – os estudantes", avalia.

A reportagem exclusiva desta edição faz ecoar o grito de socorro dos povos indígenas no Brasil, que, cada vez mais, tornam-se vítimas da Covid-19. A doença já matou mais de 600 indígenas no país, como é o caso do líder do Alto Xingu Alto Xingu, Aritana Yawalapiti. Mais de 23 mil indígenas já foram infectados pelo coronavírus. “Entre os povos indígenas, os efeitos da doença são ainda muito maiores, já que a falta de atenção à saúde e proteção deles os deixam ainda mais vulneráveis à destruição de vidas, mitos, línguas e tradições milenares”, diz um trecho.

Em seu artigo, o ex-ministro da Defesa ex-ministro Extraordinário da Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann faz um apelo ao Congresso Nacional para “assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de ser qualificado como agente omisso do destino, da defesa e da democracia”. “Até aqui, o Congresso tem-se omitido na definição do papel das Forças Armadas”, alerta.

Já o diretor do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), o diplomata Rubens Barbosa, observa, em seu artigo, que, diante de uma provável vitória de Joe Biden, Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de segurança nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado.

A revista Política Democrática Online de agosto também tem artigos sobe modulações da guerra de Bolsonaro, novas perspectivas da covid-19 sobre a economia e novo contexto da política monetária, além de análises sobre cultura. A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Eliane Cantanhêde: Mais Brasília, menos Brasil

Bolsonaro entre Guedes e gastança, liberalismo e grotões, ‘zona de impeachment’ e risco à reeleição

É falso o dilema sobre Jair Bolsonaro ser ou não ser liberal. Ele nunca foi, não é e nunca será liberal, aliás, em nenhum sentido. Ao contrário, é um típico populista, além de corporativista e estatizante como os filhos, a grande maioria dos ministros e os militares do governo. Quanto mais 2022 vai chegando, mais essa essência vai se evidenciando e menos o governo se preocupa em dissimular.

Na atribulada travessia entre 2018 e 2022, Bolsonaro joga ao mar Sérgio Moro e o combate à corrupção; o PSL, os aliados neófitos e o discurso contra a “velha política”; as manifestações golpistas contra Supremo e Congresso; as funções maçantes de presidente da República. Por que não jogar ao mar também Paulo Guedes, o teto de gastos e a promessa de enxugamento do Estado?

O candidato de 2018 foi um, o de 2022 é outro e vai saindo do armário em 2019, 2020, 2021, mas, às vezes, é preciso disfarçar. Foi o que ocorreu na quarta-feira, quando, reencarnando temporariamente a persona presidente, Bolsonaro reuniu presidentes da Câmara e do Senado, ministros, líderes e, tal qual Dom Pedro I, avisou: “Digam ao povo que fico, fico liberal”. Faltou acrescentar: “Por enquanto”.

Bolsonaro e Guedes são como água e azeite. Um nacionalista às antigas, outro globalista. Um pró-Estado gastador e empregador, outro desestatizante, pró-iniciativa privada azeitada; um na linha de frente de salários, vantagens e privilégios de militares, policiais e funcionários, outro guerreando por uma administração que gaste menos e produza mais. O casamento foi por interesse. Para Bolsonaro, o objetivo era vencer as eleições. Guedes tinha o sonho genuíno de mudar o País, à sua maneira. A massificação de que era preciso erradicar o PT da face da Terra selou o contrato.

Já no primeiro ano, Bolsonaro falhou com Moro ao atacar Coaf, Receita e Polícia Federal, lavar as mãos para o pacote anticrime e defender armas para todos, excludente de ilicitude, juiz de garantias. Mas o presidente se manteve firme com Guedes até… passar a priorizar a reeleição. O alerta piscou na segunda fase das reformas. Se não ajudou, Bolsonaro se esforçou para atrapalhar o mínimo possível a da Previdência. Mas, na hora da tributária, balançou. E, na administrativa, empacou. Ficou claro, para Guedes e equipe, que o liberalismo de Bolsonaro tinha limite: as próximas urnas. Mexeu nos votos dos servidores, mexeu comigo.

O momento crítico da “debandada” da Economia foi justamente com a saída dos secretários de Privatização e de Desburocratização e Gestão, duas áreas emblemáticas, mas freadas no Planalto. O grito de guerra de Guedes foi ouvido longe: se Bolsonaro optar pelo populismo barato, implodir o teto de gastos e sair comprando votos à custa da estabilidade fiscal, vai entrar numa “zona sombria, numa zona do impeachment”.

Bolsonaro não entende que implodir as contas públicas atinge ainda mais a economia e ameaça a própria reeleição. Ele tem seu exército (com minúscula e com maiúscula) contra a política liberal, mas Guedes também tem o seu: o setor privado e a cúpula do Congresso. Pelo menos até fevereiro, quando mudam os presidentes.

A situação está no seguinte pé: Bolsonaro reafirmou seus votos liberais e a crença no Posto Ipiranga, mas o passado condena e seu senso de sobrevivência vai na direção oposta. O presidente se soma ao candidato para fazer os cálculos entre a “zona do impeachment” e os riscos à reeleição, entre manter o grande capital com Guedes ou atrair os grotões com o Centrão. É questão de tempo ele optar ao tudo pela reeleição. O que significa jogar Guedes ao mar, em companhia de Sérgio Moro. Será o fim do Jair Bolsonaro de 2018 e a consolidação do Jair Bolsonaro de 2022.


Ricardo Noblat: Bolsonaro faz barba, cabelo e bigode na nova pesquisa Datafolha

Os efeitos do dinheiro no bolso

O que aconteceu entre a última semana de junho passado quando o Datafolha foi a campo para saber a opinião dos brasileiros sobre o governo de Jair Bolsonaro, e esta quando repetiu a dose?

Fabrício Queiroz foi preso na casa do advogado do presidente Bolsonaro e do seu filho Flávio, senador. E, no último sábado, o Brasil atingiu a triste marca dos 100 mil mortos pelo coronavírus.

A devastação da Amazônia seguiu em frente e até cresceu. O Ministério da Saúde completou 3 meses sob o comando de um general. E mal tomou posse, o 4º ministro da Educação adoeceu.

O que explica então que a aprovação de Bolsonaro tenha aumentado e a rejeição caído segundo a nova pesquisa Datafolha? Duas poderosas coisinhas, pela ordem de importância.

A primeira: o auxílio emergencial de 600 reais pago a pelo menos 42% da população para que ela enfrentasse os efeitos da pandemia. A segunda: a mudança de comportamento de Bolsonaro.

O índice dos que acham o governo ótimo ou bom subiu de 32% para 37%. Caiu de 44% para 34% o índice dos que o acham ruim ou péssimo. É a melhor avaliação desde que o governo começou.

Dos 5 pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva, pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos.

Entre os que receberam o auxílio, a taxa dos que consideram Bolsonaro um presidente ótimo ou bom é seis pontos superior à observada entre os que não pediram o benefício.

A popularidade do presidente no Nordeste, a região mais pobre do país, cresceu seis pontos. Bolsonaro no modo bonzinho reduziu sua desaprovação entre os brasileiros de maior renda no Sudeste.

Fique, portanto, Bolsonaro à vontade para criticar governadores e prefeitos que decretaram medidas de isolamento social, defender a volta ao trabalho e prescrever cloroquina aos doentes.

Tudo isso lhe será perdoado. Só não pare de pagar o auxílio emergencial, ou qualquer outro nome que se lhe dê. Nem o reduza. Se reduzir será lembrado como aquele que deu e depois tomou.

A mesma mão que hoje afaga, amanhã apedreja.

O Supremo Tribunal Federal tenta exorcizar o fantasma do SNI

Arapongas sob freios
O fantasma do Serviço Nacional de Informações (SNI) fez o governo Bolsonaro colher mais uma derrota no Supremo Tribunal Federal. Criado depois do golpe militar de 64 para supervisionar e coordenar as atividades de informações e contrainformações no Brasil e exterior, e extinto em 1990 pelo presidente Fernando Collor, o SNI foi o órgão repressor mais eficiente da ditadura.

“Eu criei um monstro”, reconheceu o general Golbery do Couto e Silva, seu fundador, e ex-ministro dos governos Ernesto Geisel e João Figueiredo. Foi para evitar que algo parecido possa ressurgir que o Supremo decidiu impor limites à atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ela só poderá pedir informações a outros órgãos se “ficar evidenciado o interesse público”.

São 42 os órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) – entre eles a Polícia Federal, a Receita Federal, o Banco Central e a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça. O Supremo também barrou o envio à Abin de dados como quebra de sigilo e escutas telefônicas, que somente podem ser obtidos com prévia autorização judicial.

“Arapongagem não é direito, é crime. Praticado pelo estado, é ilícito gravíssimo”, disse a ministra Carmen Lúcia, relatora do caso. “Qualquer fornecimento de informação que não cumpra rigores formais do direito contraria a finalidade legítima posta na lei da Abin. […] Não é possível ter como automática a requisição sem que se saiba por que e para quê”.

Os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luix Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli acompanharam o voto da ministra. Celso de Mello ausentou-se e Marco Aurélio Mello votou contra. Fachin foi direto ao ponto: “O modelo adotado pelo SNI durante a ditadura não pode, sob nenhuma hipótese ser o mesmo da Abin”.

A Abin é comandada pelo delegado Alexandre Ramagem que cuidou da segurança de Bolsonaro depois da facada em Juiz de Fora. Bolsonaro o nomeou diretor-geral da Polícia Federal. Sua posse acabou suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes. Por pouco, o episódio não provocou uma crise institucional. Bolsonaro chegou a anunciar que fecharia o Supremo. Recuou depois.


Vinicius Torres Freire: Chororô liberal e o desgoverno Bolsonaro

Fracassos do reformismo se devem à desordem política e administrativa do Planalto

O episódio da “debandada” provocou um chororô dos liberais, além de escancarar intrigas no Ministério da Economia.

Paulo Guedes forçou um recuo dos “fura-teto”, mas tem dificuldade de avançar porque ele mesmo não tem plano organizado, porque o governo não tem iniciativa, programa, competência e está dividido quanto ao que fazer da economia. Se não fosse por um general “fura-teto” e pelo Congresso, Jair Bolsonaro e seus “liberais” estariam com uma corda no pescoço.

Guedes depende de conveniências menores de Bolsonaro e do programa passivo do comando da Câmara. Do pouco que sai do Planalto, Rodrigo Maia e seu grupo vetam ou autorizam o que pode tramitar —não há plano organizado em acordo com uma coalizão no Congresso.

Tais decisões talvez mudem um pouco de figura, pois todos os líderes do governo e da maioria são agora deputados e senadores do MDB e do PP; todos menos um foram ministros de Dilma Rousseff e de Michel Temer, aliás.

Os liberais reclamam que são minoritários, preteridos e tratados como corpos estranhos no malévolo paquiderme estatal. Queixam-se do “deep state”, burocratas que andariam por porões brasilienses a sabotar privatizações etc. Talvez devessem mandar um telegrama de protesto para Guedes, pois em tese o ministro nomeou sua equipe e toma decisões.

Talvez se lembrem também de que os governos “social-democratas” privatizaram mais do que eles, os liberais. Os “comunistas” do primeiro governo FHC, como diz Bolsonaro, quebraram o monopólio estatal do petróleo, venderam a Vale, as teles, ferrovias e uma estatal elétrica, pelo menos. Os de Itamar Franco abriram a economia e venderam a CSN, a Açominas, a Cosipa e a Embraer.

Não quer dizer que reformas liberalizantes não vão passar. Esse é o programa de parte do establishment e do movimento que depôs Dilma Rousseff. Lembram-se de 2015, da “Ponte para o Futuro” do MDB, de Temer e companhia? Pois é.

Essas coisas ganham impulso e perduram por mistura de interesses e da feia necessidade, de pressões sociais e econômicas, de ideias da alta burocracia e dos acadêmicos. Mesmo um teto de gastos, diferente desse que está aí, foi plano de Nelson Barbosa, ministro da Fazenda na fase terminal de Dilma 2, que até queria fazer umas reformas, mas foi sabotada pelo PSDB e largada pelo PT.

O pessoal “Ponte para o Futuro”, também uma coalizão contra a Lava Jato, e o puro creme do milho da “velha política” passaram a liderar o governo no Congresso e seguram a cabeça de Bolsonaro. O próprio Temer agora é “brother”.

Se Bolsonaro tivesse um programa de administração, teria feito um governo Temer 2, mas não entende nem queria saber de nada disso, não reuniu quadros (nem conhecia algum), não organizou bancada e não tem articulação social (mafuá em rede social é outra coisa). Dedica-se a fazer guerra ideológica autoritária e a resolver os problemas da família com a polícia.

Em suma, um problema de Guedes e dos “liberais” é que não há propriamente governo. Reclamam dos generais, mas foi deles, de Braga Netto em particular, o plano de criar uma coalizão parlamentar mínima, em abril, e alguma articulação administrativa.

Reclamam do Congresso, que aprovou a reforma da Previdência e o auxílio emergencial, contra o plano pífio dos “liberais” para a epidemia, sem o que o país estaria em convulsão social e econômica, com saques, mais fome e quebradeira ainda maior.

Se algo andar, será por causa dessa geringonça que tenta dar forma a algo que pareça um governo.


Reinaldo Azevedo: Chega de autoengano! O governo Bolsonaro funciona

A Amazônia arde e, na Saúde, um general tenta esconder montanha de mortos

Salim Mattar e Paulo Uebel, membros até esta terça-feira (11) da ala dita liberal daquele ajuntamento que toma Brasília, resolveram deixar suas respectivas secretarias. E, então, se falou em crise do governo Bolsonaro. Será mesmo? De qual governo?

Uma ilustração. Nesta quinta, já em campanha eleitoral, o presidente foi ao Pará. Discursou: “[Mandei] a esse estado maravilhoso aqui, mesmo sem comprovação científica, mais de 400 mil unidades de cloroquina para o tratamento precoce da população. Eu sou a prova viva de que deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento. E sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivesse sido tratado (sic), lá atrás, com esse medicamento, poderiam essas vidas terem (sic) sido evitadas (sic). E mais ainda: aqueles que criticaram a hidroxicloroquina não apresentaram alternativas”.

Emprega-se o advérbio latino “sic”, que significa, em tradução adaptada, “assim mesmo, com exclamação!”, quando uma transcrição traz erros, absurdos, disparates. Reparem que, em seu gramaticocídio homicida, Bolsonaro tentou dizer “vidas poupadas”, mas saiu “vidas evitadas”. Na sua fala, a diferença entre viver e morrer é um lapso.

A primeira tentação é recorrer à metáfora do hospício para definir o que vai em Brasília. Seria um erro. Um ajuntamento de malucos não deve ser coisa bonita de se ver, mas a fealdade, suponho, é algo compensada pela inocência culposa. Fala-se aqui de atos dolosos.

Oportunismos distintos resolveram se combinar na certeza de que dispunham de esperteza o suficiente para instrumentalizar o adversário interno e impor a sua, vá lá, agenda. Amalgamaram-se, assim, o reacionarismo delirante, o liberal-passadismo e o nacional-estatismo de uniforme.

Já volto ao ponto. Não sem antes, adaptando Eça de Queirós aos fatos, retirar o manto diáfano da fantasia que cobre a nudez forte da verdade. E a verdade é que o governo Bolsonaro, à diferença do que dizem por aí, funciona e cumpre suas promessas.

A Amazônia arde, e os investidores fogem. A Cultura tem a gramática do tal Mário Frias. A Educação está entregue a um defensor de castigos físicos para infantes, depois de ter sido ocupada por um lunático e por um analfabeto agressivo. O Itamaraty transformou a política externa na cloaca do mundo.

Na Justiça, brilha um híbrido de Beria latino-americano com pastor de periferia. Na Saúde, um general tenta esconder, com sua feição opaca e seu corpanzil de burocrata do antigo Partido Comunista Búlgaro, a montanha de quase 106 mil mortos.

Na coordenação política, outro general produz um ranking sobre a Covid-19 que tenta transformar em vitória a omissão oficial, buscando responsabilizar pela tragédia adversários políticos que, afinal, procuraram seguir as orientações da ciência.

O saber técnico não tem importância na Esplanada em que Damares Alves brilha como peça de resistência. O que havia de política social no país foi para o ralo.

Portarias, com a qual condescendeu Sergio Moro, o extremista de direita agora candidato a beato, armaram o país até os dentes. As Polícias Militares nunca mataram tantos pretos e pobres, é claro! Como o vírus. O governo Bolsonaro é, em suma, o que estava destinado a ser. O “Mito” foi eleito para isso.

Então agora retomo o fio lá do primeiro parágrafo. Mattar e Uebel, os “liberais”, resolveram cair fora. Paulo Guedes gritou, pedindo socorro: “Debandada!” Os “Faria Limers” saíram em seu socorro.

E fica combinado, para pacificar também o tal jornalismo econômico, que o teto de gastos será respeitado, que a agenda de reformas será retomada, que até se vai privatizar alguma coisa. Não vai dar certo, mas acalma.

É claro que liberais de verdade não tentam emprestar luzes a reacionários com ou sem coturno. Nem em nome do mal menor.

“E os que lá restaram, Reinaldo?” Não são liberais nem os que saíram nem os que ficaram. O liberalismo tem, sim, os seus pecados. Toda vez, no entanto, em que um dito liberal estiver servindo ao obscurantismo em nome das luzes, desconfie. Trata-se apenas de um obscurantista com uma lanterna na mão.


Bruno Boghossian: Com adesões a Boulos, PT pode sofrer nova onda de desgastes nas eleições

Partido finge não ver problema em candidatura e ainda pode perder tempo com caça às bruxas

O PT preferiu fazer pouco caso diante da adesão de eleitores identificados com o partido à candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo. Afinal, o ex-ministro Celso Amorim não vota no município, e Chico Buarque nem é filiado à legenda, argumentaram dirigentes.

Os petistas fingiram não ver o problema. O partido comandou a Prefeitura por 12 anos em três décadas, mas penou para definir um nome na disputa deste ano. A vaga ficou com Jilmar Tatto, ex-deputado, ex-secretário e integrante de um clã que domina redutos políticos da zona sul.

De saída, a escolha não empolgou. Petistas notórios declararam apoio a Boulos, como o cientista político André Singer, o ex-presidente do PT Tarso Genro e a ex-deputada Bete Mendes, fundadora da legenda.

A sigla pode enfrentar uma nova onda de desgastes nas eleições municipais. Há quatro anos, a legenda perdeu 60% de suas prefeituras na esteira do impeachment e da Lava Jato. Agora, parece jogar para cumprir tabela em cidades importantes.

A escolha de Tatto representa uma opção pela política local, mas muitos petistas se incomodam com o fato de que o partido abriu mão de usar a campanha como palanque para um embate com Jair Bolsonaro. Alguns, como Tarso Genro, acreditam que o PT deveria se aliar a Boulos.

Ex-ministro de Lula e Dilma, Celso Amorim afirma que seu apoio ao candidato do PSOL não representa uma crítica ao PT. Ele argumenta que a eleição terá grande repercussão nacional e “precisa de candidatos que tenham essa dimensão”.

“O edifício está desabando. Não adianta só pregar um andaime novo”, diz. “O cansaço com a política tradicional requer um nome que venha com propostas novas, ideias novas.”

A presidente do PT disse que os filiados que apoiarem outras siglas podem sofrer sanções. “A filiação petista carrega consigo algumas responsabilidades, entre elas a de lealdade ao candidato do partido”, disse Gleisi Hoffmann ao repórter Fábio Zanini. A legenda ainda pode perder tempo numa caça a suas próprias bruxas.


Hélio Schwartsman: O Brasil merece Bolsonaro

Sinais de que as bandeiras do capitão reformado não podiam ser levadas a sério sempre estiveram presentes

Fatalismo é o nome genérico dado às várias doutrinas filosóficas segundo as quais o futuro, por necessidade lógica, determinismo causal ou mais simploriamente pela vontade de Deus, está traçado desde o início dos tempos, de modo que resistir é inútil.

O fatalismo anda de mãos dadas com a ideia, tão cara a algumas vertentes do protestantismo, de predestinação, que, no fundo, diz que cada um recebe o que merece. Meu ponto, e agora eu vou ser cruel, é que o Brasil merece Bolsonaro.

Ele, afinal, foi eleito democraticamente pela pluralidade dos cidadãos que se manifestaram nas urnas. É verdade que o capitão reformado nunca prometeu cometer estelionato eleitoral, mas os sinais de que suas bandeiras não podiam ser levadas a sério sempre estiveram presentes para quem quisesse ver.

Os mais ingênuos foram os “farialimers”, que se julgam mais espertos do que todos. Só com doses tóxicas de “wishful thinking” era possível acreditar que Bolsonaro, com um sólido histórico de 28 anos de votações em favor de pautas intervencionistas, estatistas e corporativistas na Câmara, se tornaria fiador de um projeto liberal para o país.

Não se saíram muito melhor os que se decidiram pelo capitão para protestar contra o establishment. Assim que vislumbrou a possibilidade de sofrer impeachment, Bolsonaro correu para os braços do centrão, o símbolo mesmo da velha política que ele dizia abominar. Mas será que era crível que o sujeito que fez carreira como representante do baixo clero da Câmara se voltaria contra o sistema que o pariu?

Os mais decepcionados devem ser os que elegeram Bolsonaro contra a corrupção. A cada dia que passa se avolumam evidências de que a primeira família usava e abusava dos peculatozinhos de parlamentares sem grande acesso ao poder. E indícios desses esquemas, como a Wal do Açaí, já haviam aparecido no noticiário antes da eleição. Não viu quem não quis.


Míriam Leitão: A renovação da economia

Cinquenta milhões de hectares de pastagens produzem menos da metade do que poderiam produzir porque o solo perdeu qualidade. Isso é território equivalente a dois terços do Reino Unido. Imagine que o país invista em tecnologias simples, como curva de nível? Isso elevaria em R$ 20 bilhões a capacidade de geração de renda da mesma área. A pecuária tem 28% de ineficiência, se ela fosse combatida, o país poderia produzir 10% a mais no mesmo espaço, isso seriam 20 milhões de cabeças de gado. Além disso, deixariam de ser derrubados 15 milhões de hectares de floresta.

Se a gente fizer contas assim chegará a bilhões ou trilhões de reais acrescidos ao PIB brasileiro. Foi isso que o WRI Brasil fez para calcular o quanto o país tem a ganhar se escolher uma nova forma de produzir na retomada da economia. O mundo inteiro está discutindo isso — é o chamado green new deal — e a conclusão mais inteligente é que adotando medidas para converter a economia para novos padrões de baixa emissão o país cresce mais e melhor. E gera mais empregos. O número final impressiona. O PIB pode crescer 38% a mais até 2030, no melhor cenário, o que significa R$ 2,8 trilhões.

— O Brasil tem 200 milhões de hectares de pastagem, 70% das pastagens brasileiras tem algum nível de degradação. Sem proteção básica do solo, a chuva leva todo o fertilizante e é preciso colocar mais. Em vez de recuperar esse solo já ocupado, o país avança sobre a floresta e desmata. De cada 10 hectares de pasto na Amazônia, sete foram de desmatamento dos últimos 35 anos — diz Rafael Barbieri, economista sênior do WRI.

Ou seja, a cada ano o país perde bilhões com a queda de produtividade das pastagens, além disso destrói floresta, que ao ser derrubada diminui o fluxo de água nos rios, onde hidrelétricas produzirão menos energia. É um círculo vicioso. O país perde de várias maneiras com essas opções. E se em cada área os novos investimentos fossem diferentes? Essa foi a pergunta básica no estudo que reuniu especialistas da organização, professores da UFRJ, como Roberto Schaeffer, da PUC-Rio, ex-ministros como Joaquim Levy, estudiosos do Banco Mundial. Parece impossível que o governo atual faça as escolhas certas. Por isso eu perguntei para Carolina Genin, diretora de Clima do WRI, por que lançar o estudo neste momento:

— O trabalho começou há um ano e meio e replica para o Brasil uma pergunta que tem sido feita no mundo: se a transição para a economia de baixa carbono é benéfica. A conclusão é que sim e há muitas evidências. A agricultura, infraestrutura e indústria estão preparadas. Em alguns casos, é apenas dar escala ao que já fazemos. Nosso público alvo é o setor corporativo e o setor financeiro. E é uma linha de base para conversa com o Congresso. Seria um erro fazer o estudo pensando apenas no governo federal. Queremos fomentar o debate. É uma discussão de país.

No Brasil, o governo está dividido por uma discussão de meados do século passado: se é o Estado ou o setor privado que deve tocar o investimento. Em torno disso digladiam-se os ministros. O que deveria estar em debate é o que se discute no mundo hoje. Por exemplo, o que eles chamam de “infraestrutura de qualidade”. Parece um conceito abstrato. Rafael Barbieri dá um exemplo para o tornar concreto. Belo Monte foi construída tendo como base o regime de chuvas e o curso hídrico do passado. Só que está chovendo menos e o fluxo dos rios será menor com a mudança climática. O país construiu uma usina gigante que ficará ociosa em grande parte do tempo.

— Ela foi obsoleta na sua concepção. Com menos fluxo de água, ela vai gerar menos, ter menos receita e demorar mais a se pagar. Hoje, considerar os efeitos climáticos ao projetar uma obra é gestão estratégica de risco — diz Rafael Barbieri.

No mundo atual, mais do que apenas crescer é preciso saber como crescer. A opção por uma economia de baixo carbono é naturalmente a escolha de tecnologias novas. Ônibus elétrico, em vez dos velhos, a diesel, tem inovação embutido e custos menores em várias áreas. Na saúde, por exemplo. O texto sustenta que a transição energética para tecnologias de baixa emissão não é uma questão de “se”, mas de “quando”. Uma das sugestões é usar o gás como combustível de transição, nos navios de cabotagem, por exemplo.

No longo estudo, há exemplos e números que levam a uma constatação: essa é a nova economia. Se não for por aí, o Brasil ficará no passado.


Merval Pereira: Abin sob controle

O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a assumir o papel de defensor das liberdades civis ao exigir que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), reformulada para atender ao desejo do presidente Bolsonaro de obter informações, muitas vezes além dos limites legais, precisará de autorização judicial sempre que quiser dados específicos de uma pessoa ou entidade.

A tônica dos votos foi a desconfiança de que o novo órgão seja usado para obter dados de todos os setores de inteligência do governo sem que o “interesse público” esteja em jogo. O futuro presidente do Supremo, ministro Luis Fux, foi direto: “Há justo receio” porque “recentemente se disse que a Abin deveria saber mais do que sabe”, referindo-se à famosa reunião ministerial onde Bolsonaro queixou-se dos órgãos de informação do governo.

A ministra Carmem Lucia, relatora da ação que deu o tom do julgamento, frisou inicialmente que “arapongagem, pra usar uma expressão vulgar, mas no dicionário, essa atividade não é direito, é crime. Praticado pelo estado, é ilícito gravíssimo”. Para ela, “qualquer fornecimento de informação, mesmo entre órgãos públicos, que não cumpra rigores formais do direito e nem atenda ao interesse público configura abuso de direito e contraria a finalidade legítima posta na lei da Abin. (…) Não é possível ter como automática a requisição sem que se saiba por que e para quê”.

O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) abrange 42 órgãos como Banco Central, Receita Federal, Polícia Federal, Coaf, Anatel, ICMbio, e a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça, que recentemente esteve envolvida na confecção de um relatório de inteligência sobre mais de 500 servidores públicos considerados opositores do governo. A própria ministra Carmem Lucia pediu explicações sobre o caso, e a primeira reação do ministro André Mendonça foi negar formalmente a existência de tal dossiê.

Depois, apertado por uma comissão da Câmara, acabou admitindo que havia um levantamento “rotineiro” sobre essas pessoas, e teve que enviar a relação para a Câmara e para o próprio STF. Alegou que não enviou primeiramente à ministra Carmem Lucia “porque ela não pediu”.

Esse episódio, que escancarou a ânsia do governo por usar serviços de inteligência para bisbilhotar a vida de oposicionistas, foi citado no julgamento, tendo o ministro Edson Fachin destacado: “(…) a ausência de protocolos claros de proteção e tratamento de dados, somada à possibilidade, narrada na inicial e amplamente divulgada na imprensa, de construção de dossiês investigativos contra servidores públicos e cidadãos pertencentes à oposição política, deve gerar preocupações quanto à limitação constitucional do serviço de inteligência”.

A Abin nasceu com a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura militar, justamente para que o trabalho de inteligência do governo fosse institucionalizado, como lembrou Fachin em seu voto: “Como bem mostrou o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o modelo adotado, ao longo do regime militar pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) como órgão da Presidência da República, não pode, sob nenhuma hipótese ser o mesmo da Abin”.

Também o ministro Luis Roberto Barroso se referiu ao SNI: “Há uma imensa desconfiança em relação à atividade de inteligência por obra do SNI. O passado condena. (…) Temos um passado que condena de utilização indevida de agências de inteligência para a proteção de interesses por vezes inconfessáveis de lideranças políticas autoritárias”.

Advogados e ministros falaram muito, durante o julgamento, na função das agências de inteligência na corrosão da democracia, e por isso a ministra Carmem Lucia salientou a diferença entre esse trabalho, necessário à defesa nacional e a “arapongagem”, que atende a objetivos políticos de governos autoritários.

O dossiê da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do ministério da Justiça será analisado pelo plenário do Supremo na próxima semana, e pelo visto na votação de ontem e por outras manifestações dos ministros, será criticado e considerado ilegal.


El País: Fabrício Queiroz vai voltar para a cadeia, decide STJ

Ministro Félix Fischer revoga benefício concedido por presidente do Superior Tribunal de Justiça e determina retorno de ex-assessor do clã presidencial à prisão. Ordem também para mulher do ex-PM

A história do policial aposentado Fabrício Queiroz e dos constrangimentos que traz à família Bolsonaro parece cada vez mais longe de acabar. Detido em junho no âmbito das investigações sobre a prática de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Queiroz recebeu o benefício da prisão domiciliar no mês seguinte, quando o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, decidiu em liminar, durante o recesso judiciário, que a pandemia de coronavírus colocava em risco o aposentado. De quebra, estendeu o benefício também à sua mulher, Márcia Aguiar, então foragida. Nesta quinta-feira, contudo, o ex-assessor do clã presidencial ficou sabendo que deverá voltar para a cadeia, por determinação do ministro Félix Fischer ―a decisão também vale para Márcia Aguiar.

O inquérito sobre as suspeitas de que o hoje senador Flávio Bolsonaro recolhia parte do salário de funcionários fantasmas de seu gabinete na Alerj entre 2007 e 2018 corre em sigilo, mas os detalhes da trama protagonizada por Fabrício Queiroz não param de salpicar no noticiário. Na semana passada, a revista Crusoé revelou que uma conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 27 cheques depositados pelo ex-assessor, num total de 89.000 reais. A informação contradiz versão apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro, segundo quem Queiroz havia feito apenas 10 depósitos de 4.000 reais cada para quitar uma dívida.PUBLICIDADE

Queiroz foi assessor do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que aparece como “líder” de suposta organização criminosa no inquérito que leva o policial aposentado de volta para a cadeia. Nesta quinta-feira, o jornal O Globo trouxe mais detalhes sobre depoimento de Flávio ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), no qual o senador disse não se lembrar se fez pagamentos em espécie ao comprar dois apartamentos em Copacabana, em 2012. Para o MP-RJ, o dinheiro usado para as compras teria origem no esquema de rachadinha. O próprio O Globo já tinha revelado que usou 86.700 reais em dinheiro vivo na compra de 12 salas comerciais em 2008 ―quantia que ele diz ter pegado emprestado com seu pai e com um dos irmãos.

Desde a prisão do ex-assessor de seu filho, o presidente da República conteve sua atitude provocadora, que abastecia o noticiário diariamente com ofensas e ultrajes e mantinha o clima político do país em constante tensão. Bolsonaro tem evitado o assunto e, desde a primeira prisão de Queiroz, se limitou a dizer, durante uma de suas lives no Facebook, que a detenção do ex-assessor de seu filho foi “espetaculosa”, que “parecia que estavam prendendo o maior bandido da face da Terra”. O faz-tudo da família Bolsonaro foi detido em junho durante a Operação Anjo em um imóvel de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro, em Atibaia, no interior de São Paulo.

Próximos passos

A defesa de Queiroz disse receber “com surpresa” a decisão de Fischer, “sobretudo diante da desnecessidade da prisão de seus constituintes”. Em nota, os advogados disseram que já têm “adotado todas as medidas legais para a urgente reforma da decisão, mormente diante do risco concreto e real de dano à saúde, por pertencerem ambos [Queiroz e sua mulher] a grupo de risco agravado diante da pandemia.” A defesa do ex-assessor dos Bolsonaro também tem um pedido de habeas corpus pendente no Supremo Tribunal Federal (STF), onde pede a anulação das ordens restritivas. Quem vai julgar o recurso será o ministro Gilmar Mendes.

A determinação de Fischer pressiona a família Queiroz, especialmente porque agora Márcia Aguiar deve ir também para a cadeia. Há semanas se especula que, à diferença do ex-PM, que repete lealdade à família Bolsonaro, a mulher ou a filha, Nathália, também implicada nos repasses, poderiam decidir colaborar com a Justiça ou conceder entrevistas sobre o tema. O caso da rachadinha se arrasta desde 2018. Queiroz ainda não foi denunciado pela promotoria fluminense e há um debate jurídico em curso para decidir quem deve julgar Flávio Bolsonaro, se a primeira instância ou o segunda, já que o senador argumentar ter direito a foro privilegiado.


Dora Kaufman: Redes neurais artificiais e a complexidade do cérebro humano

A ideia de usar a lógica de aprendizagem em uma máquina remete, ao menos, à Alan Turing. Em seu artigo de 1950, onde propõe um teste para a pergunta se uma máquina pode pensar (Computing Machinery and Intelligence, Mind Magazine), Turing cogita a ideia de produzir um programa que, em vez de simular a mente do adulto, simule a mente de uma criança. Evoluindo ao longo do tempo, ele a chamou de “máquina-criança”. O campo da inteligência artificial (IA) foi inaugurado num seminário de verão, em 1956, com a premissa de que “todos os aspectos da aprendizagem ou qualquer outra característica da inteligência, podem, em princípio, ser descritos tão precisamente de modo que uma máquina pode ser construída para simulá-la”. Quase 80 anos depois, a IA ainda está restrita à modelos empíricos, o campo não possui uma teoria, e é controversa a associação à máquinas de conceitos como inteligência e aprendizado.

Ética é objeto da ação humana, não existe ética da inteligência artificial
Apostando na superação das limitações científicas atuais, um grupo de líderes do Vale do Silício está empenhado em “superar a morte”, atingir o que eles chamam de “amortalidade”. Ray Kurzweil, no livro The Singularity is Near, prevê que ao final do século XXI a parte não biológica da inteligência humana será trilhões de vezes mais poderosa que a inteligência humana biológica, e não haverá distinção entre humanos e máquinas.

Em 2013, o Google fundou a Calico, empresa dedicada a “resolver a morte”, em seguida nomeou Bill Maris, igualmente empenhado na busca da imortalidade, como presidente do fundo de investimento Google Venture que aloca 36% do total de 2 bilhões de dólares em startups de biociência com projetos associados à prorrogar a vida. No mesmo ano, Peter Diamandis, co-fundador e presidente executivo da Singularity University, lançou a empresa Human Longevity dedicada à combater o envelhecimento, projetando que o aumento da longevidade criaria um mercado global de US$ 3,5 trilhões.

A startup Neuralink, fundada por Elon Musk em 2016, investe no desenvolvimento de uma interface cérebro-computador que possibilitaria, por exemplo, fazer streaming de música direto no cérebro; outro foco é viabilizar a transferência da mente humana para um computador, libertando o cérebro do corpo envelhecido e acoplando-o à uma “vida digital” num processo chamado “mind-upload” (transferência da mente humana). Essa visão utópica pós-humanista supõe que esses melhoramentos conduzirão à vitória sobre o envelhecimento biológico, portanto, ao nascimento de uma nova espécie: os pós-humanos, libertados de seu corpo mortal.

Na visão de Yoshua Bengio, um dos três idealizadores do deep learning, "esses tipos de cenários não são compatíveis com a forma como construímos atualmente a IA. As coisas podem ser diferentes em algumas décadas, não tenho ideia, mas, no que me diz respeito, isso é ficção científica".

O ponto de partida para avaliar o quão distante a ciência está dessas ideias é compreender a arquitetura e o funcionamento do cérebro. O biofísico Roberto Lent, em recente conversa no TIDD Digital, traduziu a extrema complexidade do cérebro humano em números: cada ser humano possui 86 bilhões de neurônios e 85 bilhões de células coadjuvantes no processo da informação. Considerando apenas os neurônios, como em média ocorrem 100 mil sinapses por neurônio, temos um total aproximado de 8,6 quatrilhões de circuitos que, ainda por cima, são plásticos, ou seja, mutáveis continuamente.

Numa sinapse, transmissão da informação de um neurônio para o outro, o segundo neurônio pode bloquear a informação, pode modificar a informação, pode aumentar a informação, ou seja, a informação que passa para o segundo neurônio pode ser bastante diferente da informação que entrou, indicando a enorme capacidade de modificação da informação que tem o cérebro. As regiões responsáveis pela memória e pelas emoções, dentre outros fatores, afetam a informação inicial.

O aprendizado de uma criança, que alguns comparam com o aprendizado de máquina, ocorre por complexos processos cerebrais. Segundo Lent, uma criança para aprender a escrever precisa formar uma conexão entre escrita e significado, para tal usa a região da face no hemisfério esquerdo porque não temos uma área cerebral da escrita e da leitura. Essas habilidades são construtos da civilização, que têm "apenas" 4 mil anos, logo não tem tempo evolutivo suficiente para ter uma área cerebral específica. A região do hemisfério esquerdo, desenvolvida na fase bebê para o reconhecimento de faces, desloca-se para o hemisfério direito, e no hemisfério esquerdo começa a ser implantada uma região de reconhecimento de símbolos da escrita. Isso mostra o grau de plasticidade do cérebro, ao realocar funções que vão aparecendo durante a vida do indivíduo com novas aquisições culturais.

A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de mudar, adaptar-se e moldar-se a nível estrutural e funcional quando sujeito à novas experiências do ambiente interno e externo —, gera uma complexidade que é difícil reproduzir em uma máquina. A dinâmica do cérebro é altamente modulável, não é uma cadeia de informação linear que leva diretamente à um resultado previsível, como também nos ensinou Roberto Lent.

Para Yann LeCun, outro dos três idealizadores do deep learning, a observação e a interação da criança com o mundo desempenham um papel central no aprendizado infantil, incluindo saberes tais como que o mundo é tridimensional, que tem gravidade, inércia e rigidez. Esse tipo de acúmulo de enorme quantidade de conhecimento é que não se sabe como reproduzir nas máquinas - observar o mundo e descobrir como ele funciona -, mas em algum momento, pondera LeCun, "vai se descobrir uma maneira de treinar as máquinas para que aprendam como o mundo funciona assistindo vídeos do YouTube”.

Andrew NG, respeitado cientista e empreendedor em IA, crê que o maior problema da IA é de comunicação: "O tremendo progresso por meio da IA ‘estreita' está fazendo com que as pessoas argumentem erroneamente que há um tremendo progresso na AGI (artificial general intelligence). Francamente, não vejo muito progresso em direção à AGI”. A IA que atualmente permeia os aplicativos, plataformas online, sistemas de rastreamento e de reconhecimento facial, diagnósticos médicos, modelos de negócio, redes sociais, plataformas de busca, otimização de processos, chatbots, e mais uma infinidade de tarefas automatizáveis, é apenas um modelo estatístico de probabilidade baseado em dados, “anos luz” distante da complexidade do cérebro humano.

*Dora Kaufman professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, pós-doutoranda na Filosofia da USP, doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?”. Professora convidada da Fundação Dom Cabral