Como violar monumentos desafiando o perigo fascista

Foto: Reprodução/Redes Sociais
Foto: Reprodução/Redes Sociais

Discussão é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo

Chegou-me, pela mão certeira de um aluno, um ensaio de Ortega Y Gasset, escrito há mais de cem anos (“Espanha invertebrada”, 1917), sobre a decadência de sua nação e publicado pelo Estadão/Estado da Arte, em 25.08.2021. O filósofo espanhol reconhece, metaforicamente, no surgimento, então recente, do que hoje chamamos de cinema, uma possibilidade nova de compreensão de um drama de séculos, o qual permaneceria opaco se visto sob os limites de fotografias isoladas de cada ato desse drama.

No mesmo dia, na imprensa e em redes sociais, publicou-se imagens fotográficas da queima, no Rio de Janeiro, de uma estátua de Pedro Álvares Cabral, protagonista da narrativa fundacionista do Brasil historiograficamente consagrada e, por isso mesmo, contestada por um revisionismo histórico proposto por correntes acadêmicas e ativistas de movimentos políticos. A fidelidade jornalística ao registro do fato vincula-o a um protesto em defesa de populações indígenas (ou de “povos originários”, conceito histórico-político amplamente aceito hoje, para nomeá-las e legitimar a causa) e contra o estabelecimento de um marco temporal que reinterpreta e redefine seus direitos constitucionais, discussão ora em curso no Judiciário e no Legislativo brasileiros.

A fotografia do acontecimento carioca e do conflito conjuntural a que se vincula é, como na metáfora de Gasset sobre a derrocada de sua Espanha, insuficiente para a plena compreensão do processo em que o fato se insere. Estamos – assim como se estava na Espanha a duas décadas de uma guerra civil – diante de um script cinematográfico. Processo contínuo, que se não for refratado, pedirá um Picasso vindouro para pintar, como aviso aos pósteros a essa quadra perigosa que vivemos, o quadro agonístico das Guernicas que gestos insólitos como aquele preparam. Com isso quero dizer que não é do conflito de interesses e valores entre agronegócio e povos originários que tratarei aqui. Sem desqualificar sua importância para a pauta política e social do presente, evitarei conferir-lhe a centralidade fotográfica que lhe atribui a gramática polarizadora em voga. Peço passagem para outra pauta, que é coisa de cinema.

Quero discutir as depredações como tema político em si, autônomo (embora não alheio), face a causas econômicas e sociais. E não se trata de questionar apenas o fogo como meio, mas os fins desse gesto iconoclasta. A discussão, conforme a sinto, é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso.

Muitas das críticas pontuais à violência como método costumam ser apenas céticas quanto às possibilidades de que ela, a violência, atinja, no caso, o objetivo supostamente nobre ao qual, também supostamente, esse ativismo se dedica, isto é, o de revogar a história “escrita pelos opressores” e reescrevê-la “sob a ótica dos oprimidos”.  Acho preciso falar contra isso, sem meias palavras e logo, antes que a extrema direita, espertamente, o faça.

Mas penso que há um passo a mais a dar, além de manifestar esse lúcido ceticismo. Num momento em que a destruição é o tom da política (na verdade, da antipolítica) imposta por quem deveria governar o País, é preciso ir além de um não ao não estéril desse ativismo carbonário que emula e ajuda o exterminador. É preciso dizer sim ao que a nossa história prevalecente instituiu. Um sim que não é sanção, é reconhecimento de uma condição.  

Ainda que povoada de iniquidades, não só delas a história nacional se fez. Nela estão marcas do labor e obras voltados a torná-la melhor, segundo aspirações em disputa e valores compartilhados, em cada época. Labor e obras que, de modo algum, foram fracassos. Esse juízo maniqueísta, inquisitorial e anacrônico sobre a construção do Brasil, que avalia a obra de atores e movimentos do passado pelo metro de desejos e demandas contemporâneos, nega luz a algumas virtudes políticas de nossas ambiguidades tradicionais. Se cabem ideias de reformar essa tradição, a ideia-força da pacificação precisa estar no centro, não no limbo da política e da história que estamos fazendo hoje. Devemos tão somente achar modos mais civilizados de derrubar as prateleiras, as estátuas e as estantes que nos acompanharam até aqui? Ou conservá-las, no limite do razoável?

Uma noção de perigo exige uma atitude política que mostre a incautos o quão estamos distantes de 1968, muito mais do que de 1929; quão é grave derrubar estátuas, estantes e prateleiras numa hora em que o fascismo não é mais passado e nos assombra, de novo, com sua atualidade, em vários países. Efeitos nefastos da falta dessa noção podem ir muito além das mazelas intelectuais legadas pelas vertigens de 1968 e que José Guilherme Merquior tão bem apontou no seu O marxismo ocidental. A rejeição moral, culturalista, ao capitalismo e ao mercado, a cada dia mais realidades imperativas para a vida das pessoas comuns; a estetização da política por um discurso crítico da razão; a hipervalorização da vontade política como via de libertação contra a racionalidade das instituições, tudo isso afetou, sem matar, o pensamento da geração seguinte. Mas agora o preço pode ser a integridade mental e mesmo física da comunidade política. Nas circunstâncias do mundo atual, em que a década 1930 está politicamente mais próxima que ade 1960, reclamando mais Churchills do que Sartres, iconoclastia é ímpeto colaboracionista com o agressor. Fazem falta pensamentos reformadores que recusem nacionalismos, mas ajudem seus países a resgatarem seus selfs nacionais. Sem dizerem sim a si, as nações impactadas pela força de gravidade global nada terão a contribuir para um cosmopolitismo generoso.

É por isso que considero apropriado olhar para a estátua de Cabral na fogueira e pensar em Ortega y Gasset. No seu texto, o enredo cinematográfico do infortúnio espanhol, narrado com sentimento e razão, traça, retrospectivamente, um caminho que começa no particularismo dos atores e termina em inelasticidade social. Vale-nos como prevenção:

(…) A essência do particularismo é que cada grupo deixa de sentir-se a si mesmo como parte e em consequência deixa de compartilhar os sentimentos dos demais. Não lhe importam as esperanças ou as necessidades dos outros (…). Por outro lado, é característico deste estado social a hipersensibilidade para os próprios males. Irritações e dificuldades que em tempos de coesão são facilmente suportados, parecem intoleráveis quando a alma do grupo se desintegrou da convivência nacional (…)

(…) Dizem que os políticos não se preocupam com o resto do país. Isto, que é verdade, é, contudo, injusto, porque parece atribuir exclusivamente aos políticos tal despreocupação. A verdade é que se para os políticos não existe o resto do país, para o resto do país existem muito menos os políticos. E o que acontece dentro desse resto não político da nação? (…). Cada agremiação vive hermeticamente fechada em si mesma. (…)Rodam umas sobre as outras como órbitas estelares que se ignoram mutuamente. Polarizada cada qual em seus tópicos gremiais, não tem nem notícia dos que regem a alma do grupo vizinho. Ideias, emoções, valores criados dentro de um núcleo profissional ou de uma classe, não transcendem minimamente às restantes. O esforço titânico que se exerce em um ponto do volume social não é transmitido, nem obtém repercussão a alguns metros de distância, e morre onde nasce.

Propus ir além da reação e do ceticismo. Pauta positiva, sim, mas outra pauta. Não a iconoclasta, que resulta de um racionalismo jacobino, sempre oscilando entre delírios subjetivistas e o pragmatismo de interesses mal compreendidos. Pauta positiva para dialogar com os “de baixo” reais do país, não com seres simbólicos, imaginários, estetizados por ideologias que vão parar no obscurantismo. Um caminho do meio, para dialogar com gente para quem, ao tempo em que “cada tauba que caía doía no coração”, faz sentido dizer que “os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar”. 

Nem as pessoas treinadas nos ofícios de estudar e pensar, nem os matogrossos e jocas do Brasil, precisamos de pautas postiças. Aos primeiros cabe baixar a bola e falar a língua de quem busca cobertores adequados a seus vários frios e, na chuva, aprende, com o tempo, a encontrá-los não apenas nos estoques de Deus (embora neles também, por que não?). Talvez lhes ocorra reformar sua atitude resignada de deixar a vida lhes levar. Mas se o fizerem, em algum momento, não será porque vanguardas iluminaram seu caminho. Será para reformar, sem renegar, a nossa tradição, pois ela também tem lá a sua serventia. O caminho do meio não subestima o amor que pessoas sentem pelas suas saudosas malocas.

Assim a maloca, assim a história de cada pessoa e a do nós nacional em contínua construção. Pauta positiva só pode vir daí. Não há caminho do meio possível se aceitamos, sociológica ou filosoficamente, a naturalização coercitiva de pautas incendiárias. Inexistem “verdadeiros anseios”. Eles são sempre contingentes, descobertas da vida em comum. Vanguardas não são apenas equívocos de método. São enganos existenciais.

Embora seja também verdade que aumenta a aceitação social das pautas revisionistas. É um processo de mudança de mentalidade que transcorre sob nossos olhos. Processo, no entanto, que não é nem irreversível, nem automaticamente virtuoso. Do ponto de vista da democracia, por exemplo, algumas das novas tendências em processo (como a promoção de maior igualdade entre os indivíduos, pela consideração de suas diferenças de condição) democratizam a própria democracia. Outras, como, por exemplo, a de refundar identidade e história do país, empobrecem um repertório que, historicamente, vem se tornando cada vez mais plural e dilapidam um patrimônio que, sendo cada vez mais democrático, já fez Pedro Álvares Cabral sair da vida para se tornar História. Por que trazê-lo de volta? Não será esse um flerte indesculpável com as taras regressistas dessa má hora que vivemos?

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-historia-de.html

Privacy Preference Center