José Luis Oreiro: Presidente do Ipea quer que o Brasil volte a ser uma grande fazenda

Na entrevista concedida hoje ao jornal Valor Econômico, o presidente do IPEA, o economista Carlos Von Doellinger, disse que “a gente precisa se conscientizar que o Brasil precisa apostar em suas vantagens comparativas, suas vantagens competitivas. Não somos bons em produzir materiais de transporte, não somos bons nisso (….) nosso caminho não é a indústria manufatureira, a não ser aquela ligada a beneficiamento de produtos naturais, minérios”.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Na entrevista concedida hoje ao jornal Valor Econômico, o presidente do IPEA, o economista Carlos Von Doellinger, disse que “a gente precisa se conscientizar que o Brasil precisa apostar em suas vantagens comparativas, suas vantagens competitivas. Não somos bons em produzir materiais de transporte, não somos bons nisso (….) nosso caminho não é a indústria manufatureira, a não ser aquela ligada a beneficiamento de produtos naturais, minérios”.

O Presidente do IPEA, fiel a tradição liberal brasileira de Bulhões et caterva acha que indústria é algo que está acima da capacidade cognitiva dos brasileiros. Ele diz que devemos nos contentar com nossas vantagens comparativas na produção de soja e minério de ferro (até porque a vantagem competitiva na produção de café já perdemos para outros países, para ver isso é só passar numa loja da Nespresso e ver quantas linhas de cápsulas de café são produzidas com café brasileiro). Esse é um argumento rídiculo e totalmente contrário a evidência empírica disponível. Entre 1930 e 1980 o Brasil cresceu a uma taxa média de 8% a.a. puxado pelo crescimento do setor manufatureiro, que ampliou a sua participação no PIB de 16% em 1948 para 27% em 1974 (vide figura abaixo).

O período de redução do crescimento e posterior estagnação da economia brasileira coincidiu precisamente com a desindustrialização, ou seja, a perda de participação da indústria de transformação na economia brasileira. Além disso, vantagens competitivas não são um dado da “natureza”; mas são construídas ao longo do tempo a medida que se acumula conhecimento técnico e científico (complexidade econômica) e o crescimento do tamanho do mercado interno permite a obtenção de economias estáticas e dinâmicas de escala, as quais levam a redução do custo marginal de produção dos produtos manufaturados (A esse respeito ver Ros, 2013, capitulos 7 e 8). Eventualmente o tamanho do mercado interno se torna insuficiente para o desenvolvimento da indústria de transformação, o que exige que o país passe da fase de industrialização por substituição de importações para a fase de industrialização liderada pela exportação de produtos manufaturados (Kaldor, 1967).

Austrália, Canadá e Nova Zelândia foram países que passaram por um processo de industrialização, mas cuja elevada renda per-capita e elevada acumulação de capital humano permitiram a transição para uma economia de serviços sofisticada. Sobre o caso de como a Austrália e a Nova Zelândia conseguiram escapar da “maldição dos recursos naturais” sugiro a leitura deste excelente post de meu colega Paulo Gala (Austrália, Nova Zelândia e Canadá conseguiram escapar da maldição dos recursos naturais – Paulo Gala / Economia & Finanças)

A desindustrialização ocorrida na economia brasileira não é um fenômeno natural, mas precoce, como argumentei no artigo ” Deindustrialization, economic complexity and exchange rate overvaluation: the case of Brazil (1998-2017)” publicado no numero de dezembro da prestigiosa PSL Quarterly Review (os interessados podem obter o artigo em ( 3d45ce8fcb6c3444952951dea88388c7dc012729.pdf (joseluisoreiro.com.br). Além disso a evidência empírica disponível, publicada em diversas revistas científicas que o presidente do IPEA parece desconhecer, mostra que a participação da indústria de transformação no PIB tem um impacto positivo e estatisticamente significativo sobre a taxa de crescimento da renda per-capita de uma amostra de países. Com efeito, na tabela 2 abaixo reproduzida no artigo “MANUFACTURING, ECONOMIC GROWTH, AND REAL EXCHANGE RATE: EMPIRICAL EVIDENCE IN PANEL DATA AND INPUT-OUTPUT MULTIPLIERS” escrito por Luciano Ferreira Gabriel, Luiz Carlos de Santana Ribeiro, Frederico Gonzaga Jayme Jr e José Luis Oreiro e publicado no número de março da PSL quarterly Review (ver Manufactoring, economic growth, and real exchange rate: Empirical evidence in panel data and input-output multipliers | Gabriel | PSL Quarterly Review (uniroma1.it) observa-se que para uma amostra de 84 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) para o período 1990-2011 a variável participação da manufatura no PIB (vamanu) mostrou ter um impacto positivo e estatisticamente significativo tanto na amostra ampla, como nas amostras recortadas pelo nível de hiato tecnológico, sendo mais forte no caso dos países com nível intermediário de hiato tecnológico como é o caso do Brasil.

Table 2 – Dynamic Panel Estimations (GMM) – Arellano and Bond (Diff GMM – two steps Robust) with Windmeijer (2005) standard errors, years 1990-2011

Primary and ManufacturingAll sectors
GDPpcgBroad sampleIntermediate Technological GapHigh Technological GapVery High Technological GapDeveloping Countries
l.GDPpcg0.0120-0.02020.146-0.266-0.00585-0.0713
(0.36)(-0.49)(1.81)(-0.64)(-0.15)(-1.70)
      
l.misxrate7.103***6.404***6.681*7.538*5.558***7.662***
(5.44)(4.34)(2.55)(2.48)(3.78)(4.48)
      
misxrate-4.038-4.160-1.342-0.803-3.624*-5.231**
(-0.56)(-0.79)(-0.40)(-0.28)(-2.36)(-2.83)
      
gaptec-0.0520*-0.0494**-0.165***-0.0330*-0.0616**-0.0936***
(-2.56)(-2.87)(-3.58)(-2.02)(-2.90)(-3.78)
      
vaserv    -0.156*-0.109*
    (-2.10)(-2.03)
      
vamanu0.214**0.661**0.223**0.198**0.112**0.0868**
(2.94)(2.71)(2.63)(2.69)(2.82)(2.65)
      
vaprim-0.115*-0.0810**-0.0630**-0.0369-0.312***-0.210**
(-2.04)(-2.72)(-2.92)(-0.74)(-4.40)(-2.60)
      
humank-0.0152-0.02850.08290.0749-0.0263-0.0342
(-0.55)(-1.12)(0.53)(0.29)(-0.81)(-1.03)
      
infla-0.00249**0.000307-0.131**-0.0352***-0.001530.000332
(-3.39)(0.10)(-2.62)(-3.81)(-0.37)(0.09)
      
ainv0.261***0.342***0.0304***0.253***0.200***0.265***
(6.84)(7.53)(4.70)(4.15)(5.24)(6.72)
      
govexp-0.444***-0.489***-0.0910*-0.233*-0.376***-0.269**
(-5.15)(-4.01)(-2.57)(-2.45)(-4.25)(-2.84)
      
ttrade-0.00999-0.00381-0.0422**-0.000792-0.00999-0.00171
(-1.13)(-0.35)(-3.12)(-0.06)(-1.07)(-0.15)
      
pop-0.944**-1.414***-0.146**-0.686**-0.692*-1.207**
(-2.76)(-3.33)(-2.81)(-2.92)(-1.99)(-2.90)
      
eci     0.0149
     (0.12)
Temporal DummyYesYesYesYesYesYes
Arellano and Bond’s test for AR(1) – Az = -14.14  Pr > z =  0.000z = -10.04  Pr > z =  0.000z = -13.34  Pr > z =  0.000z =  -9.02  Pr > z =  0.000z = -10.58  Pr > z =  0.000z = -11.17  Pr > z =  0.000
Arellano and Bond’s test for AR(2) – Az =  -0.32  Pr > z =  0.752z =  -1.53  Pr > z =  0.126z =   0.07  Pr > z =  0.942z =   1.43  Pr > z =  0.154z =   1.77  Pr > z =  0.176z = -0.99  Pr > z =  0.323
Sargan’s test for over-identified restrictions  – BProb > chi2 =  0.571Prob > chi2 =  0.231Prob > chi2 =  0.113Prob > chi2 =  0.757Prob > chi2 =  0.571Prob > chi2 =  0.205
N1256673181135987778

Notest (s) statistics in brackets; * p<0.05, ** p<0.01, *** p<0.001. In A – The null hypothesis: there is no “n” order correlation in the residues. In B – The null hypothesis: the model is correctly specified, and all over-identifications are correct. Results generated using the xtabond2 command in Stata, and assuming exogeneity of time dummies (see Roodman 2005),REPORT THIS AD

Os economistas estruturalistas Raul Prebish e Celso Furtado, considerados como (sic) “comunistas” pela corja de incompetentes e ignorantes sobre princípios elementares de economia que comanda a política econômica hoje no Brasil, advertiam nos anos 1940 e 1950 que a industrialização e a consequente diversificação da pauta exportadora era absolutamente necessária ao desenvolvimento econômico sustentado. Isso porque produtos primários como soja e minério de ferro possuem uma baixa elasticidade renda da demanda, ao passo que os produtos manufaturados possuem uma elevada elasticidade renda da demanda. Assim se a renda mundial crescer, digamos, 3% a.a as exportações de produtos primários deverão crescer, no longo-prazo algo como 1,5 a 2% a.a porque a elasticidade renda da demanda é inferior a um. Já se a renda doméstica de um país exportador de produtos primários crescer 4% a.a (como deseja o Presidente do IPEA), as importações de manufaturados irão crescer entre 5 a 7% a.a, dado que a elasticidade renda da importação é muito superior a um. Dessa forma, um ritmo de crescimento de 4% a.a é insustentável no longo-prazo porque implica num aumento das importações num ritmo superior ao das exportações e, consequentemente, num aumento do déficit em conta-corrente; o que irá implicar num aumento do endividamento externo. Ao contrário do endividamento interno, o qual é feito na moeda corrente do país, existem limites estreitos para o endividamento externo, como bem nos lembra a crise da dívida externa de 1980, a qual deu origem a “década perdida”.

Em suma, se queremos que o Brasil volte a crescer de forma sustentada a um ritmo de 4% a.a (o que é bem diferente de crescer 4% em 2021, valor que eu acho superestimado, mas que embute um carregamento estatístico de 2,6% do ano de 2020, sendo portanto bem menos impressionante do que o presidente do IPEA nos quer levar a acreditar), não há outra alternativa do que a reindustrialização do país. Nesse contexto, a única reforma que pode atuar nesse sentido é a proposta de reforma tributária baseada no estudo do Centro de Cidadania Fiscal, elaborada, entre outros, pelo economista Bernard Appy. O que o Presidente do IPEA defende é o retorno do Brasil ao período pré-1930, o período da República Velha, no qual os bancos, o capital estrangeiro e os grandes fazendeiros controlavam, com mão de ferro, os destinos desse país. Cabe aos bons brasileiros impedir tamanho retrocesso.

Referências

Kaldor N. (1967), Strategic factor in economic development. Ithaca, NY: New York State School of Industrial and Labor Relations, Cornell University.

Ros, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions. Oxford University Press: Oxford.

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