Jornalista Luiz Carlos Azedo: A saúde de Bolsonaro
15 de julho de 2021POLÍTICA HOJE,PH-destaque
Nove entre 10 políticos de oposição atribuem a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 à facada que levou em Juiz de Fora (MG). A partir daí, a ascensão do principal candidato antissistema, no então nanico PSL e com pouquíssimo tempo de televisão, tornou-se irreversível. Sem ter que debater com os adversários nem apresentar propostas de governo, Bolsonaro caminhou para a vitória. Sem sair do hospital, atropelou nas urnas os adversários. E derrotou o petista Fernando Haddad no segundo turno, com apoio maciço dos eleitores que rejeitavam o PT. Como num capítulo de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, sua audácia seduziu a fortuna.
Ontem, o presidente da República foi transferido do Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, onde fora internado de madrugada, para o hospital Vila Nova Star, em São Paulo, com fortes dores abdominais e obstrução intestinal. Uma nota divulgada pela Secretaria de Comunicação afirma que Bolsonaro foi avaliado pelo cirurgião Antônio Luiz Macedo, que o acompanha desde a facada sofrida em 2018. Seu médico orientou que fosse levado para São Paulo para avaliar a necessidade de uma cirurgia de emergência.
Bolsonaro embarcou num jatinho da Força Aérea Brasileira depois de disparar tuítes contra os adversários: “Mais um desafio, consequência da tentativa de assassinato promovida por antigo filiado ao PSol, braço esquerdo do PT, para impedir a vitória de milhões de brasileiros que queriam mudanças para o Brasil. Um atentado cruel não só contra mim, mas contra a nossa democracia”, diz o primeiro post, no qual incluiu uma foto sem camisa no leito do hospital, já com monitoramento cardíaco e tubos nasais de oxigênio. Sua expressão não esconde um maroto sorriso disfarçado.
A notícia imediatamente bombou nas redes sociais, sem deixar de provocar reação dos adversários, que se aproveitaram, obviamente, das recorrentes declarações escatológicas de Bolsonaro para ironizar a situação na qual o presidente da República, digamos assim, não conseguia obrar. Bolsonaro respondeu às manifestações de apoio, em linguagem de campanha eleitoral: “Por Deus foi-nos dada uma nova oportunidade. Uma oportunidade para, enfim, colocarmos o Brasil no caminho da prosperidade. E mesmo com todas as adversidades, inclusive uma pandemia que levou muitos de nossos irmãos no Brasil e no mundo, continuamos seguindo por este caminho”.
“Agradeço a todos pelo apoio e pelas orações. É isso que nos motiva a seguir em frente e enfrentar tudo que for preciso para tirar o país de vez das garras da corrupção, da inversão de valores, do crime organizado, e para garantir e proteger a liberdade do nosso povo”, acrescenta o “fio”.
Depois da facada
A narrativa do salvador da pátria predestinado está de volta: “Que Deus nos abençoe e continue ilumando (sic) a nossa nação. Um forte abraço! – Brasil acima de tudo; Deus acima de todos!”, sapecou, antes de o avião decolar da Base Aérea de Brasília. Esse é o nosso presidente da República. Todas as informações de bastidor do Palácio do Planalto revelam que há 10 dias não dormia mais de uma hora seguida, soluçava constantemente nas solenidades e na live semanal. Sentia muitas dores, o que aumentava a sua irritação com os auxiliares e, naturalmente, com a CPI da Covid, que atazana sua vida.
Há meses vinha protelando uma cirurgia de hérnia abdominal, um procedimento relativamente simples — no seu caso, porém, um pouco mais complexo por causa das operações anteriores. Agora, corre o risco de ter que fazê-lo numa emergência, que pode ser delicada, se não conseguir esvaziar os intestinos no pré-operatório. Parece piada pronta, mas é a ironia do destino.
Bolsonaro está em queda livre nas pesquisas, em crescente isolamento político, assediado por pedidos de impeachment e manifestações de rua cada vez maiores da oposição. As pesquisas de opinião revelam que sua reeleição é uma missão quase impossível, diante do favoritismo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, da busca de uma alternativa de centro por setores da oposição moderada e da insatisfação de muitos dos seus eleitores. Sua internação muda o clima político, gera uma cadeia de solidariedade entre seus apoiadores e refreia a ofensiva de seus adversários. Bolsonaro aproveita a situação para resgatar o clima que o beneficiou eleitoralmente em 2018, depois da facada.
Cristovam Buarque: E os valentes desarmados reagem!
15 de julho de 2021POLÍTICA HOJE,PH-destaque
Ao dizer que homem armado não ameaça, insinuando que usa logo a arma, o comandante da aeronáutica passou a ideia de que as Forças Armadas não avisariam antes de agir contra o Congresso, ou ao menos contra o senador Omar Aziz. Ao fazer isto, o comandante degradou a Aeronáutica por colocá-la ao nível de um homem armado, com faca ou revólver ameaçando um desafeto.
A Aeronáutica é uma força, com missão nobre: usar seus soldados, aviões e bombas para defender a Pátria contra inimigos externos. Não pode ser comparada a um homem enlouquecido por alguma raiva.
O governo Bolsonaro deixará tristes marcas – queima de florestas, descuido com a epidemia que matou mais de meio milhão de brasileiros, muitos outros equívocos e atos antipatrióticos –, mas uma das mais graves de suas marcas poderá ser a degradação do prestígio, do respeito e da confiança do povo para com suas Forças Armadas.
A eleição de Bolsonaro foi pelo voto, resultado dos erros de governos democráticos anteriores. Ele não foi imposto pelas Forças Armadas, nem mesmo era um militar desde quando foi expulso do Exército. Mas ele conseguiu comprometer as Forças Armadas ao pôr militares dentro de seu governo e expor incompetência e suspeitas, ainda não comprovadas, de corrupção por oficiais.
Durante os 21 anos do regime militar, o Brasil enfrentou a brutalidade de uma lamentável ditadura: as Forças Armadas podiam ser odiadas pelos perseguidos ou opositores, seus oficiais podiam ser temidos, mas eram respeitados pela competência e honestidade. Todos os quatro presidentes terminaram suas vidas aposentados sem riqueza.
Mário Andreaza fez estradas e quando aposentado teve de receber ajuda para tratar de sua saúde. Costa Calvalcanti fez Itaipu e não deixou qualquer fortuna para a família. Foram competentes, honestos e respeitados, apesar de merecerem críticas e repulsa como parte das maldades da ditadura.
O respeito e as críticas ficaram na história, quando as Forças Armadas saíram do poder em um processo de negociação com as lideranças civis. Diferentemente de outros países, no Brasil os militares entregaram o poder sem serem derrotados, ficaram como participantes do processo de democratização. Desde então, os governos eleitos, de direita, centro ou esquerda, foram respeitados pelas FFAA em um comportamento democrático exemplar. E elas receberam respeito da sociedade.
A eleição de Bolsonaro pareceu acender uma chama revanchista contra a democracia e os civis, levando as Forças Armadas a aceitarem uma simbiose com um governo incompetente que está destruindo o Brasil, florestas, ciência, saúde, democracia, direitos conquistados, isolando o país como pária e motivo de galhofas no mundo. E os militares se deixaram envolver, comprometidos e até coniventes com os erros e incompetências. Deixaram de ser Forças Armadas e passaram a ser parte do governo.
Esta simbiose começa a ameaçar a democracia ao ameaçar o Congresso e a Justiça, ainda pior, quando as Forças Armadas passam a impressão de aliar-se a setores armados, policiais, milícias e bandoleiros, para impedir o reconhecimento do resultado das eleições. A imagem que aos poucos começa a chamuscar nossas Forças Armadas poderá ser um dos piores legados do governo Bolsonaro, mas a culpa não será apenas dele. Alguns oficiais colaboraram.
O resultado é que as pessoas desarmadas começam a se preparar contra as ameaças insinuadas pelos armados. Depois que acabaram as ditaduras na Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Brasil, circulava em meios acadêmicos destes países a ideia de um pacto pela desmilitarização do continente. Alguns sonhadores imaginavam que além de continental, o pacto poderia ser transatlântico. Sem armas do outro lado das fronteiras terrestres e do oceano, seria possível a extinção das Forças Armadas em todos os países da América Latina e da África, liberando centenas de bilhões de dólares para investir em educação, ciência, tecnologia, saúde, infraestrutura e policiamento para a segurança interna, como fez Costa Rica há 70 anos.
O comportamento das Forças Armadas naqueles países apagou estas ideias utópicas. Na constituinte atual no Chile, este assunto pode surgir, sem prosperar por causa dos conflitos fronteiriços deste país com todos seus vizinhos, Peru, Bolívia e até mesmo Argentina. O Brasil não tem esses conflitos, e o desgaste que Bolsonaro provoca nas Forças Armadas pode fazer ressurgir o tema por aqui, porque homem armado não ameaça e homens e mulheres valentes desarmados reagem.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Fonte:
Blog do Noblat / Metrópoles
‘Desenvolvimento urbano no Brasil foi para o espaço’, diz Vicente Del Rio
15 de julho de 2021EVENTOS FAP,EF-destaque,BIBLIOTECA SALOMÃO MALINA,2021,JUL
Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP
Conhecido no Brasil pela grande maioria de profissionais e alunos de arquitetura e urbanismo das últimas duas décadas, Vicente Del Rio diz que, “nos últimos dois governos federais, o desenvolvimento urbano no Brasil, com a devida atenção e seriedade esperadas para abordar esse assunto no país, foi para o espaço”.
Confira o vídeo!
Em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, o arquiteto e urbanista afirma que a falta de qualidade de vida nas cidades tem relação com o “aumento da politicagem prejudicial ao desenvolvimento urbano e da falta de responsabilidade política perante os problemas dessa área”. Ele vive na Califórnia (EUA) e concedeu entrevista por telefone.

Na quinta-feira (15/7), a partir das 17 horas, ao lado de outras referências na arquitetura brasileira, Del Rio vai participar do debate online com o tema “O desenho da cidade que poderia ser”, que também terá como ponto de discussão o livro “Desenvolvimento Urbano Contemporâneo no Brasil” (LTC, 314 páginas), de sua autoria.
A discussão vai analisar o modernismo na arquitetura brasileira. A obra, publicada em 2013, tem abordagem que ajuda a compreender o presente e está à venda na internet.
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O assunto será discutido no novo evento online do ciclo de debates em pré-celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna, que ocorreu de 13 a 17 de fevereiro de 1922 e segue como marco artístico-cultural brasileiro. O webinário será realizado pela Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ambas em Brasília.
“A questão da cidade sem qualidade de vida é um problema muito sério, disse Del Rio. “[No Brasil] falta continuidade administrativa. Um político faz uma coisa, e o próximo desfaz”, critica, ressaltando a necessidade de legislação urbanística, controle de desenvolvimento urbano e sistema político participativo mais forte.
Ao longo dos anos, e sobretudo na pandemia, o Brasil piorou em termos socioeconômicos, na avaliação do arquiteto e urbanista. “Isso tudo faz com que o controle urbano seja cada vez mais difícil. A qualidade de vida nas favelas e loteamentos ilegais e periféricos está cada vez pior”, analisa ele. “O país está muito pior em termos de qualidade de vida urbana”, ressaltou.
O livro “Desenho Urbano Contemporâneo no Brasil” discute o tema num período de superação do paradigma modernista e de abertura política, demonstrando os esforços por um urbanismo social e culturalmente engajado, assim como a busca por modelo de cidades mais justas e de melhor qualidade de vida para todos.
Confira os eventos já realizados – Pré-celebração Semana de Arte Moderna
Após situar o leitor no contexto histórico, social e político do desenho urbano contemporâneo no Brasil, o livro apresenta 12 estudos de caso apresentados por pesquisadores de renome que avaliam experiências em oito capitais brasileiras, agrupadas de modo a revelar as três principais tendências: modernismo tardio, revitalização e inclusão social.
De acordo com especialistas, o livro de Del Rio, além de documentar importantes experiências do desenho urbano contemporâneo no Brasil, provoca a reflexão acerca de diferentes contextos, como os anseios, as expectativas, as esperanças, os desejos de desenvolver o desenho urbano mais adequado para cada lugar.
Saiba mais sobre Vicente Del Rio
Arquiteto-urbanista (FAU/UFRJ, 1978), especializado em planejamento urbano e regional (UERJ, 1979), mestre em Desenho Urbano (Oxford Polytechnic, 1982) e doutor em Arquitetura e Urbanismo (USP, 1991).
Foi Sênior Fellow na Johns Hopkins University (1985) e no Center for Urban Design, University of Cincinnatti, onde fez pós-doutorado (1991-92). Lecionou na FAU-UFRJ de 1979 a 2001, onde foi professor titular e coordenador da pós-graduação em arquitetura.
Desde 2001 leciona no City and Regional Planning Department, California Polytechnic State University em San Luis Obispo (EUA), onde foi professor titular e agora é professor emérito. Também lecionou na Universidade Mackenzie em São Paulo e, desde 2005, é professor visitante da Universidade Lusófona de Lisboa onde coordena os workshops de verão em desenho urbano.
Ciclo de Debates sobre Centenário da Semana de Arte Moderna
9º evento online da série | Modernismo, cinema, literatura e arquitetura.
Webinário: O desenho da cidade que poderia ser – Modernismo na arquitetura brasileira
Dia: 15/7/2021
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira
Observação: Para solicitar participação diretamente do debate online, envie solicitação para o WhatsApp oficial da Biblioteca Salomão Malina – (61) 98401-5561. (Clique no número para abrir o WhatsApp Web).Leia também:
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Ana Cristina Rosa: Não há mal que dure para sempre
15 de julho de 2021Temas & Debates
Várias conquistas alcançadas pelos movimentos sociais negros brasileiros ao longo de pelo menos cinco décadas de lutas por equidade racial estão sob ataque e ameaça direta ou indiretamente nos últimos tempos.
À primeira vista, o embate parece extremamente negativo. Porém há ao menos um ponto emblemático, quiçá positivo, nesse xadrez da vida real. Por mais longa e tortuosa que seja a jornada dos que perseguem o ideal civilizatório de respeito à igualdade de direitos, os ataques são uma prova de que os avanços foram maiores e mais significativos do que aparentam.
Um bom exemplo é a articulação daqueles que não querem abrir mão de nenhum dos privilégios constituídos à base de uma estrutura social excludente, preconceituosa e discriminatória. A polêmica em torno de ações para a inserção de jovens pretos e pardos no mercado de trabalho por meio de programas de trainee, que costumam mobilizar detratores, ilustra bem a situação.
Verdade que, assim como há críticos, existem também apoiadores da luta antirracista. Dessa forma, ao mesmo tempo em que políticas para reduzir a exclusão racial no país vêm perdendo espaço na esfera federal, a maioria dos Estados tem adotado medidas para enfrentar essa forma de desigualdade.
Além disso, iniciativas inéditas, como o Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer) —que afere a diferença de acesso a oportunidades entre negros e brancos—, e o Índice de Equilíbrio Racial (IER) nas empresas —parte do Pacto de Promoção da Equidade Racial que permite calcular a quantidade de pessoas negras por cargo e salário—, têm surgido e merecem ser celebradas.
Quando o Estado se nega a respeitar e a tratar todos os cidadãos com dignidade, sobretudo numa nação erguida à base do sacrifício e da exploração do trabalho de escravizados, é fundamental que a iniciativa privada manifeste disposição de agir para mitigar o problema. Afinal, não há mal que sempre dure.
*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) – Seção Distrito Federal.
Fonte:
Folha de S. Paulo
El País: Pérolas de memórias dos movimentos negros
15 de julho de 2021TEMAS & DEBATES,TD-destaque
Daniela Mercier, El País
“Na minha geração, ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou fazer essa memória.”
A frase proferida em uma entrevista há um ano é de Januário Garcia. Autor de imagens que estamparam capas de discos marcantes, como Alucinação (Belchior em um close hipercolorido) e Muito (Caetano Veloso no colo de Dona Canô), ele também foi um importante fotógrafo dos movimentos negros, acompanhando manifestações e ativistas que ocuparam as ruas contra o racismo e a violência policial desde a década de setenta. Com um acervo da ordem de 65.000 arquivos analógicos, além de imagens digitais, ele tinha consciência da necessidade e da urgência de preservar seus registros e, desde julho de 2020, vinha trabalhando com acadêmicos para catalogar o seu trabalho. No último dia 30 de junho, aos 77 anos, faleceu por complicações da covid-19. A pandemia levou a vida de um dos militantes mais ativos pela história e valorização da cultura negra no Brasil e, com ele, também um pedaço da memória da luta racial dos últimos 40 anos.
A perda histórica não é banal. Não somente fotografias, mas gravações, correspondências, atas de reuniões, rascunhos de discursos, panfletos e cartazes que contam a trajetória de organizações e movimentos sociais negros do país ainda estão guardados, em grande parte, devido ao esforço pessoal de seus integrantes, ao mesmo tempo em que pesquisadores enfrentam a lacuna de registros oficiais e da grande imprensa para resgatar essas informações. A preservação da memória documental do ativismo negro está ainda mais fragilizada no Governo Bolsonaro, com a escolha de Sérgio Camargo —crítico da militância e negacionista do racismo estrutural— para o comando da Fundação Palmares, que tem entre suas missões justamente proteger a história negra. Em junho, Camargo anunciou a retirada de circulação de 95% do acervo bibliográfico da entidade, incluindo cerca de 4.000 livros, catálogos, panfletos e folhetos com temática negra, mas considerados inadequados por conterem “militância política explícita”, “demonização da polícia”, entre outros critérios, Após ação popular, a Justiça Federal do Rio de Janeiro concedeu uma decisão liminar (provisória) impedindo a doação do acervo.
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É nesse contexto que três grupos de pesquisadores uniram esforços em um projeto de captação, conservação, digitalização e divulgação do acervo de entidades e militantes, lançado neste mês: o Afro Memória. A iniciativa é coordenada por Paulo César Ramos, pesquisador do Afro, o núcleo de estudos sobre a questão racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na elaboração de sua tese de doutorado sobre a mobilização contra a violência policial em São Paulo, ele conversou com ativistas sobre suas experiências. “Chegava um momento das entrevistas em que eles diziam: ‘Eu não me lembro desse detalhe’ ou ‘essa informação existe, mas eu não consigo me lembrar agora. Se você tiver interesse pode ir lá em casa pegar os papéis que eu guardei’”, conta Ramos sobre a situação que o levou a iniciar o projeto. “Chegando à casa desses militantes eu descubro que eles tinham relíquias. Em estantes, em caixas, guardadas das maneiras mais variadas”, explica o pesquisador.
A ação encabeçada pelo Afro-Cebrap é realizada em parceria com duas instituições: a Universidade da Pensilvânia, nos EUA, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na instituição norte-americana, o professor Michael Hanchard desenvolve desde a década de oitenta estudos sobre os movimentos negros do Brasil e já havia iniciado um trabalho de organização de documentos e de entrevistas que resultaram, entre outras pesquisas, no seu livro Orfeu e o poder: movimento negro no Rio e em São Paulo, que ganhou edição brasileira em 2001. Já a universidade paulista possui o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), criado em 1974 para preservação de acervos de movimentos sociais em geral e onde toda a documentação do novo projeto está sendo abrigada.
Entre as primeiras coleções obtidas pelo Afro Memória está a de Milton Barbosa, de 73 anos, militante e dirigente histórico do Movimento Negro Unificado (MNU). Foi ele que leu o discurso que lançou o movimento nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978, em um ato público contra a discriminação e a violência policial que moldou a dinâmica do ativismo negro contemporâneo. Com Barbosa estavam até hoje as diferentes versões do panfleto do protesto, por exemplo. Para o pesquisador Ramos, manuscritos que geraram textos históricos, como esse, são o grande achado do projeto. “Os rascunhos que registram a evolução de uma determinada ideia e a construção de um consenso em torno de uma discussão são muito interessantes”, comenta. “A partir deles você consegue entender as crises que estavam sendo instaladas.”
As estratégias de articulação dos movimentos e seus impasses também são vistos nas correspondências. Em uma carta aos “companheiros do MNU-Campinas” em outubro de 1984, a comissão executiva nacional expressa a sua preocupação com a aproximação do movimento com partidos no Estado, evidenciando um dilema da militância no período da redemocratização. “O MNU, ao longo de sua existência, tem conseguido a duras penas em alguns momentos, manter uma posição firme no que tange à sua autonomia, buscando […] afirmar uma perspectiva política onde a questão racial é o ponto de partida para o entendimento das questões gerais da sociedade”, escreveram os dirigentes, no original doado pelo militante Reginaldo Bispo, ex-coordenador nacional da entidade e um dos fundadores da Organização pela Libertação do Povo Negro (OLPN). “Entendemos a legitimidade da formação de tendências, desde que sejam resguardadas a democracia interna do movimento, seus documentos básicos e a linha política definida pelo congresso”, dizia o documento.
“São pérolas que as pessoas sabem um pouco ou ouviram falar, mas é importante destacar que há documentos, que há materialidade”, ressalta o cientista social Mário Medeiros, que dirige o AEL, na Unicamp, com o historiador Aldair Rodrigues. Entre 2017 e 2020, os pesquisadores haviam realizado um trabalho semelhante com documentos dos primeiros clubes negros de São Paulo. “Falando da experiência anterior, a gente achava que a documentação dos movimentos negros mais recentes estaria em melhor estado do que aquela do final do século XIX e do início do século XX. Mas não é verdade”, conta Medeiros. Ele aponta que as dificuldades para conservar essa memória das organizações mais recentes permanecem pela falta de recursos. “Papel, fotografia, VHS, cassete: preservar é muito caro e tudo isso vai se perdendo com o tempo.”
Registros de 40 anos de história
Também integram a primeira leva do projeto os acervos das entidades Soweto Organização Negra e Geledés Instituto da Mulher Negra —esta última a organização criada pela filósofa e referência do feminismo Sueli Carneiro. Medeiros afirma que com toda a documentação, que junta chega a dezenas de milhares de itens, é possível contar uma história da cidadania negra mais recente. “É a história da luta contra o racismo e organizações antirracistas. Dos movimentos de mulheres negras que vão criando o feminismo negro no Brasil, que é uma pauta superimportante hoje. As diferentes conexões internacionais que os diferentes movimentos negros vão tendo no Brasil. Uma agenda contra a violência policial, contra o genocídio da população negra, que é algo que parece uma agenda muito contemporânea, mas que nos últimos 40 anos tem sido o mote dos movimentos negros”, afirma o pesquisador. Na Unicamp, a coleta desse acervo se insere no projeto A idadania é Negra. O AEL também trabalha em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para a preservação dos Cadernos Negros, coletânea anual de contos e poemas e importante meio de difusão da escrita literária afro-brasileira desde 1978.
Completa o acervo atual do Afro Memória, por fim, os guardados de Januário Garcia. “Ele faz parte de uma geração de intelectuais negros que se preocupam com a memória, e no caso dele temos a memória documentada pela fotografia, extremamente importante para a experiência negra”, conta o pesquisador da Unicamp, que no último ano trabalhava com o fotógrafo na catalogação das peças. “Ele estava ajudando a identificar o material. Com o falecimento do Januário, a gente perde uma parte significativa da memória desse acervo”, lamenta Medeiros.
O arquivo do fotógrafo ainda está em fase de organização, e os pesquisadores analisam como continuar o trabalho. Já as coleções dos militantes do MNU e do Geledés estão em processo de tratamento (higienização e acomodação), antes de ficarem disponíveis para consulta no espaço da Unicamp.
Até lá, os destaques do material coletado pelo projeto serão exibidos em uma série de lives no canal do Cebrap no Youtube. A primeira foi transmitida na última terça (6), com a presença de Milton Barbosa. “Esse contato com a realidade histórica do processo de luta é de fundamental importância”, declarou.
Fonte:
El País
Amazônia Real: Céu sem lei é controlado por garimpeiros
15 de julho de 2021TEMAS & DEBATES,TD-destaqueAMAZONIA REAL
Por Maria Fernanda Ribeiro, da Amazônia Real
“Vocês verão muitas coisas ruins do avião; altos maquinários. Você vai se sentir triste, como nunca viu, como uma pessoa que entra na sua casa e estraga seu terreno. Vai ver que estamos falando a verdade. Você pode olhar, para você acreditar”, alertou o líder indígena Davi Kopenawa Yanomami. Reconhecido mundialmente como um grande defensor na luta pelos direitos da Terra Indígena Yanomami (TIY), Davi Kopenawa autorizou o sobrevoo feito no dia 30 de abril pela reportagem sobre as áreas de garimpo ilegal. Ele sabia que haveria riscos.

O avião da reportagem partiu de Boa Vista, capital de Roraima, e demorou uma hora até chegar à primeira área de garimpo. O verde da floresta amazônica predominava na paisagem nos primeiros 30 minutos de sobrevoo, já dentro dos limites da TIY, quando um avião de pequeno porte cruzou na frente da aeronave que transportava a reportagem. Localizada no extremo Norte do Brasil, a terra indígena de 9,6 milhões de hectares fica entre os estados de Roraima e Amazonas, e se estende até a fronteira com a Venezuela. À medida que as imagens da devastação do garimpo ilegal avançavam, aumentava também a presença de aviões e helicópteros que sobrevoavam o local, como se céu e terra pertencessem aos garimpeiros ilegais. É a quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970.

A Amazônia Real se uniu à Repórter Brasil para investigar a fundo o problema do garimpo ilegal na maior terra indígena do Brasil. Foram quatro meses de apuração e a análise de mais de 5 mil páginas de documentos para traçar a rota do ouro, identificar as principais empresas compradoras, compreender as fragilidades na legislação (que isenta os compradores de qualquer responsabilidade), destrinchar o antigo interesse dos políticos na atividade e revelar como a rápida aproximação do garimpo com o tráfico internacional de drogas. A investigação teve acesso a dois inquéritos da Polícia Federal por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e às acusações do Ministério Público Federal, feitas com base em operações de combate ao garimpo na TI Yanomami feitas desde 2012.
O especial Ouro do Sangue Yanomami – que conta com sete reportagens produzidas – mostra que nesse exato instante há uma profusão de atores se enriquecendo com a atividade ilegal nas terras indígenas do país. É um crime contínuo, defendido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e tolerado pela sociedade.
Os voos irregulares

A bordo de um avião modelo Caravan, a equipe de reportagem da Amazônia Real sobrevoou cinco pontos da TI Yanomami em abril deste ano, duas semanas antes dos ataques a tiros à comunidade Palimiu por garimpeiros ligados à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Paapiu, Homoxi, Xitei, Parima e Waikás foram as áreas identificadas pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) por serem as mais críticas. É onde há muitos garimpeiros, presença ostensiva de balsas, de maquinários e voadeiras, contaminação das águas por mercúrio e extração das árvores em larga escala.
Aviões e helicópteros, mesmo voando de maneira irregular, parecem não se incomodar e muito menos temer o fato de estarem invadindo um espaço aéreo. É como se ali nem existissem os três Pelotões Especiais de Fronteira do Exército para impedi-los. Em céu de garimpeiro, eles dão as ordens.
Na região do Homoxi, um dos aviões permaneceu voando em círculos abaixo do Caravan da reportagem até que fôssemos embora. O risco de “levar tiro de garimpeiro”, expressado pelo piloto, impediu que voássemos mais baixo e acelerou a passagem do avião por algumas áreas garimpeiras para não chamar a atenção.
Em uma conversa de piloto para piloto, o que trabalhava para os garimpeiros perguntou ao que conduzia a equipe de reportagem quem é que estava na aeronave e se ele iria pousar. O piloto optou por não contar que estava com um fotógrafo e uma repórter a bordo. Segundo ele, era mais seguro seguir assim.
As aeronaves em áreas de mineração cumprem funções essenciais: transportar sondas, bombas, motosserras, calhas de lavagem, mangueiras, detectores de metais e o mercúrio, necessários para a mineração do ouro, suprimentos para manter os garimpeiros confinados por semanas e deixar claro que ali há donos. São eles que recolhem a pedra preciosa, prospectam novas lavras e mantêm a atividade aurífera a pleno vapor. Os produtores rurais repetem um mantra: “Olho de dono é que engorda boi”. No garimpo, o boi se chama ouro.
O rastro de destruição

(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Nas duas horas de duração do sobrevoo, o rastro de destruição causado pelo garimpo ilegal é constante. Há poucos locais em que a vista descansa para apreciar os trechos de floresta preservada sem invasores e os imensos buracos causados por homens e máquinas à procura de ouro. A proximidade das lavras garimpeiras, dos acampamentos não indígenas e de pistas clandestinas com as malocas e roçados das comunidades Yanomami mostra a ousadia dos invasores na certeza da impunidade.
Leia mais sobre as aeronaves ligadas à atividade garimpeira
Invasores que parecem porcos com fome, como afirma Davi Kopenawa. “Homem garimpeiro é como um porco de criação da cidade, faz muito buraco procurando ouro e diamante.” Kopenawa já presenciou a consequência e a violência das invasões com o episódio do massacre de Haximu, no Alto Orinoco, na Venezuela, em 1993, quando garimpeiros armados, numa série de ataques a tiros e facas, mataram 16 Yanomami. Foi o primeiro caso de genocídio reconhecido pela Justiça brasileira. Davi teme ver a história se repetir.
Sobrevoando a uma altura de 2 mil pés (600 metros do solo), a reportagem flagrou invasores trabalhando nas imensas crateras para extrair o ouro das cavas e dos barrancos. É intensa a movimentação de embarcações nos rios para abastecimento do garimpo. De cima, é nítido o funcionamento de uma complexa organização logística terrestre, fluvial e aérea que viabiliza a extração ilegal desse ouro de aluvião na TI Yanomami em uma escala intensa e frenética.
O relatório “Cicatrizes na Floresta – Evolução do Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami”, lançado em março de 2021 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), aponta cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território. No entanto, os próprios garimpeiros dão um número maior. Segundo o aviador e histórico minerador José Altino Machado seriam mais de 26 mil homens nesta que é conhecida como a quarta corrida do ouro em Roraima. Zé Altino, como é mais conhecido, é presidente da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal e foi o responsável pela primeira e segunda invasões no território nos anos 1970 e 1980.
Leia mais sobre Zé Altino, memória-viva do garimpo
Pistas clandestinas

Além dos aviões e helicópteros, dos maquinários, das balsas e voadeiras previamente antecipadas por Davi Kopenawa, há incontáveis pistas clandestinas, de diferentes tamanhos, que rasgam a floresta. Algumas são coladas às malocas dos Yanomami. Assim como balsas e maquinários pesados, que também estão próximos de algumas comunidades e dos roçados indígenas.
Na região do Homoxi, na fronteira com a Venezuela, os garimpeiros levantaram um alojamento a alguns metros de distância de uma comunidade. De um lado da margem de um igarapé contaminado pela ação do mercúrio, uma grande maloca e mais duas menores aparecem circundadas pela área de roçado, onde é cultivado o alimento de toda a aldeia. Do outro lado da margem, está o acampamento dos invasores. A cena é marcada por lavras de garimpo, rio assoreado, imensos buracos de terra escavada e as lagoas de sedimentos deixados pela fúria da atividade ilegal.
São muitas as cicatrizes deixadas pelos garimpeiros na TI Yanomami. Uma vez exaurida a extração do ouro, é hora de levantar o acampamento, recolhendo as improvisadas barracas de lonas azuis para serem usadas num outro ponto de garimpagem. Se a lavra for “rentável”, os garimpeiros ficam meses nela. Caso contrário, partem para outra localidade no que eles consideram ser uma terra sem dono. Em uma lavra, a concentração de um metal tão raro quanto o ouro é de apenas alguns gramas por tonelada de terra minerada.
A Força Aérea Brasileira, segundo o Ministério da Defesa, faz o monitoramento do espaço aéreo 24 horas por dia, e caso haja aeronaves suspeitas e não identificadas sobrevoando a TI Yanomami, há procedimentos de interceptação. Em nota enviada à reportagem, o ministério afirma atuar “permanentemente no combate a delitos transfronteiriços e ambientais” e que as ações são coordenadas pelo Centro de Operações Militares 4, do 4º Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta), localizado em Manaus.
2.430 hectares destruídos

Tal avizinhamento e o risco que isso acarreta foram alvo de denúncia no relatório produzido pelos Yanomami. De um lado, há o agravamento no quadro epidemiológico, como a disparada nos casos de Covid-19 e malária. Com o desmate florestal, a proliferação do mosquito Anopheles é facilitada, potencializando a disseminação da doença. Entre 2014 e 2019, os casos de malária quintuplicaram na TI Yanomami. E o garimpo também está relacionado a altas taxas de contaminação por mercúrio, usado para separar o ouro (o metal pesado e tóxico cria um amálgama que depois, ao ser incinerado, se volatiza e é levado pelo vento), causando danos de longo prazo e irreversíveis na saúde dos indígenas, além de gerar desestruturação econômica e levar a conflitos violentos.
O tamanho da destruição do garimpo ilegal do ouro já chega a 2.430 hectares na TI Yanomami, o equivalente a 2.430 campos de futebol, segundo o relatório mais recente da HAY, divulgado em maio deste ano. Somente em 2020, a degradação avançou 500 hectares, associada à intensificação do uso de material pesado e sofisticado para a extração do minério. A atividade garimpeira se prolifera no território, subindo os rios, com crescentes núcleos de invasores e novas rotas de acesso ao interior da floresta amazônica.
A região do Waikás, conhecida como Tatuzão do Mutum, continua no topo do ranking da devastação. Em 2017, o local contava com uma estrutura até então inédita em terras indígenas de Roraima, com casas, mercearia, pontos de acesso à internet e cabeleireiros.
É possível avistar pela janela do avião que, mesmo a área já tendo sido alvo de operações do Exército, a atividade clandestina continua a funcionar com alojamentos instalados ao longo do leito do rio Uraricoera, mas também adentrando a mata. Waikás já teve cerca de 35% do total de suas terras degradadas.
A área fica a poucos minutos da comunidade Palimiu, onde aconteceram os primeiros ataques a tiros contra o povo Yanomami por garimpeiros ligados ao PCC, conforme noticiou em primeira mão a Amazônia Real. A sensação, mesmo do alto, é de destruição acelerada e de impotência. Como disse Kopenawa à reportagem: “nossos inimigos são muitos e nós somos poucos”.

Esse ouro é valioso para o povo da cidade. As pessoas usam no pescoço, no nariz, para ficarem bonitas e para fazerem casamento. Pra mim, é uma cultura diferente. Mas esse ouro é sujo, é ouro cheio de sangue do meu povo Yanomami. É ouro que mata a natureza, mata a vida da água, a água está tá morta. Eu não gosto de ver uma mulher, um homem, usando ouro cheio de sangue do meu povo Yanomami.
DAVI KOPENAWA YANOMAMI
Fonte:
Amazônia Real
‘Desenvolvimento urbano no Brasil foi para o espaço’, diz Vicente Del Rio
Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP
Conhecido no Brasil pela grande maioria de profissionais e alunos de arquitetura e urbanismo das últimas duas décadas, Vicente Del Rio diz que, “nos últimos dois governos federais, o desenvolvimento urbano no Brasil, com a devida atenção e seriedade esperadas para abordar esse assunto no país, foi para o espaço”.
Confira o vídeo!
Em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, o arquiteto e urbanista afirma que a falta de qualidade de vida nas cidades tem relação com o “aumento da politicagem prejudicial ao desenvolvimento urbano e da falta de responsabilidade política perante os problemas dessa área”. Ele vive na Califórnia (EUA) e concedeu entrevista por telefone.
Na quinta-feira (15/7), a partir das 17 horas, ao lado de outras referências na arquitetura brasileira, Del Rio vai participar do debate online com o tema “O desenho da cidade que poderia ser”, que também terá como ponto de discussão o livro “Desenvolvimento Urbano Contemporâneo no Brasil” (LTC, 314 páginas), de sua autoria.
A discussão vai analisar o modernismo na arquitetura brasileira. A obra, publicada em 2013, tem abordagem que ajuda a compreender o presente e está à venda na internet.
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O assunto será discutido no novo evento online do ciclo de debates em pré-celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna, que ocorreu de 13 a 17 de fevereiro de 1922 e segue como marco artístico-cultural brasileiro. O webinário será realizado pela Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ambas em Brasília.
“A questão da cidade sem qualidade de vida é um problema muito sério, disse Del Rio. “[No Brasil] falta continuidade administrativa. Um político faz uma coisa, e o próximo desfaz”, critica, ressaltando a necessidade de legislação urbanística, controle de desenvolvimento urbano e sistema político participativo mais forte.
Ao longo dos anos, e sobretudo na pandemia, o Brasil piorou em termos socioeconômicos, na avaliação do arquiteto e urbanista. “Isso tudo faz com que o controle urbano seja cada vez mais difícil. A qualidade de vida nas favelas e loteamentos ilegais e periféricos está cada vez pior”, analisa ele. “O país está muito pior em termos de qualidade de vida urbana”, ressaltou.
O livro “Desenho Urbano Contemporâneo no Brasil” discute o tema num período de superação do paradigma modernista e de abertura política, demonstrando os esforços por um urbanismo social e culturalmente engajado, assim como a busca por modelo de cidades mais justas e de melhor qualidade de vida para todos.
Confira os eventos já realizados – Pré-celebração Semana de Arte Moderna
Após situar o leitor no contexto histórico, social e político do desenho urbano contemporâneo no Brasil, o livro apresenta 12 estudos de caso apresentados por pesquisadores de renome que avaliam experiências em oito capitais brasileiras, agrupadas de modo a revelar as três principais tendências: modernismo tardio, revitalização e inclusão social.
De acordo com especialistas, o livro de Del Rio, além de documentar importantes experiências do desenho urbano contemporâneo no Brasil, provoca a reflexão acerca de diferentes contextos, como os anseios, as expectativas, as esperanças, os desejos de desenvolver o desenho urbano mais adequado para cada lugar.
Saiba mais sobre Vicente Del Rio
Arquiteto-urbanista (FAU/UFRJ, 1978), especializado em planejamento urbano e regional (UERJ, 1979), mestre em Desenho Urbano (Oxford Polytechnic, 1982) e doutor em Arquitetura e Urbanismo (USP, 1991).
Foi Sênior Fellow na Johns Hopkins University (1985) e no Center for Urban Design, University of Cincinnatti, onde fez pós-doutorado (1991-92). Lecionou na FAU-UFRJ de 1979 a 2001, onde foi professor titular e coordenador da pós-graduação em arquitetura.
Desde 2001 leciona no City and Regional Planning Department, California Polytechnic State University em San Luis Obispo (EUA), onde foi professor titular e agora é professor emérito. Também lecionou na Universidade Mackenzie em São Paulo e, desde 2005, é professor visitante da Universidade Lusófona de Lisboa onde coordena os workshops de verão em desenho urbano.
Ciclo de Debates sobre Centenário da Semana de Arte Moderna
9º evento online da série | Modernismo, cinema, literatura e arquitetura.
Webinário: O desenho da cidade que poderia ser – Modernismo na arquitetura brasileira
Dia: 15/7/2021
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira
Observação: Para solicitar participação diretamente do debate online, envie solicitação para o WhatsApp oficial da Biblioteca Salomão Malina – (61) 98401-5561. (Clique no número para abrir o WhatsApp Web).
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RPD 33 || Editorial: A crise e as tarefas dos democratas
15 de julho de 2021Revista Online
Dois ingredientes novos surgiram recentemente no caldo da conjuntura política brasileira, ambos com consequências potenciais de longo alcance. Em primeiro lugar, a marcha da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as responsabilidades nas falhas havidas no enfrentamento da pandemia. Em segundo lugar, a retomada das manifestações de rua por parte das forças de oposição.
O trabalho da CPI trouxe à tona, até o momento, a omissão inacreditável das autoridades à frente do Ministério da Saúde no que se refere à provisão de vacinas em quantidade suficiente e tempo hábil para toda a população brasileira. De quebra, demonstrou sobejamente a tolerância de parte dessas mesmas autoridades com procedimentos de inocuidade comprovada no tratamento da doença, quando não o empenho na sua propaganda. Finalmente, levantou indícios de irregularidades nas negociações de compra de vacinas, indícios que demandam a continuidade da investigação.
O efeito pedagógico da CPI é potencializado pela audiência surpreendente que a TV Senado alcança na transmissão ao vivo de suas sessões. Milhões de espectadores são expostos aos depoimentos, aos argumentos de governistas e opositores, e têm a possibilidade de formar seu juízo sobre os fatos, a partir de informação de primeira mão.
O retorno das oposições às ruas, por sua vez, mesmo ainda que tímido, em razão da pandemia, foi suficiente para mostrar desempenho superior aos eventos convocados semanalmente pelo presidente, desde sua posse. E a tendência parece ser o crescimento do número de manifestantes de oposição nas ruas, à medida que avança o processo de vacinação.
O efeito combinado desses ingredientes, com a crise econômica como pano de fundo, é a queda continuada da popularidade do governo e do presidente nas pesquisas de opinião. Prossegue a migração dos apoiadores indecisos ao campo da reprovação do governo, no qual tendem a ficar apenas os irremovíveis, os convictos que já renunciaram ao exame crítico das próprias opiniões.
No entanto, como já observado, a reação governista à sua vulnerabilidade junto à opinião pública tende a ser a radicalização retórica, com ataques às instituições, a deslegitimação do processo eleitoral e ameaças de golpe.
Nesse quadro delicado, a tarefa das oposições é dupla. De um lado, cuidar das eleições, preparar candidaturas e alianças programáticas, pensar no primeiro e no segundo turno de 2022. De outro lado, é imperativo que permaneçam unidas, em diálogo permanente, em defesa da democracia, do calendário eleitoral e da posse dos eleitos.
O centro da agenda política é a questão democrática. É dever de todas as forças políticas, desse campo, cooperar na mobilização e no esclarecimento progressivo da população, no Congresso Nacional, na imprensa e nas ruas, a respeito desse ponto.
RPD || Bruno Paes Manso: PCC, CV, Milícias – Uma comparação entre Rio e SP
14 de julho de 2021VIOLÊNCIA,MILÍCIAS,CV,rpd,cidadania,artigo,PCC,revista política democrática online,Revista OnlineBruno Paes Manso
Dois anos depois do massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992, o governo do Estado de São Paulo mudou sua política penitenciária. Para cumprir a promessa de demolir essa prisão que concentrava mais de 7 mil presos no mesmo espaço, palco da maior tragédia da história paulista, o governo passou a construir dezenas de unidades menores, para 700 presos, que se multiplicaram e se espalharam por todo o Estado. O Primeiro Comando da Capital, criado em 1993, um ano após o massacre, soube crescer nesse mundo novo que se formava atrás dos muros e das grades.
Nas celas superlotadas, com verbas públicas insuficientes para a garantia da ordem e dos direitos dentro dos presídios, coube aos próprios presos inventar e estabelecer uma nova forma de governança nessas unidades. A partir do controle dos presídios, o PCC passou a desempenhar, no decorrer dos anos, o papel de agência reguladora do mercado criminal paulista, estabelecendo protocolos e regras que tornou esse ambiente mais profissional e previsível, com menos riscos e perigos para os envolvidos.
A consolidação dessas regras dependeu da proibição dos conflitos nos bairros e da busca de exercer um monopólio do uso da força no mundo do crime. Essa nova governança na rede criminal contribuiu para aumentar a previsibilidade no mercado criminal e profissionalizar a cena. Levou os criminosos paulistas às fronteiras do continente, acessando fontes atacadista de drogas em grandes mercados produtores e distribuidores.

No Rio de Janeiro, ao longo de sua história recente, nunca houve um grupo hegemônico a dominar a cena criminal do Estado. Desde o começo dos anos 80, quando o Comando Vermelho passou a atuar no comércio varejista de drogas, o controle dos territórios por grupos armados passou a ser disputado entre grupos rivais, como Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, que estabeleceram uma corrida armamentista para adquirir poder e mercados nessas áreas em disputas constantes.
Os conflitos, que causavam homicídios nos bairros pobres e aterrorizavam a população do Rio com tiroteios e balas perdidas, caracterizaram a dinâmica violenta da cena fluminense. Integrantes das polícias passaram a descobrir formas de ganhar dinheiro e poder com esse cenário caótico. Entre as estratégias estavam os arregos (corrupção paga a autoridades pelo tráfico), venda de armas e munição no mercado paralelo, operações policiais de guerra que passavam para a opinião pública a mensagem distorcida de que o trabalho policial era uma rotina de disputas cotidianas contra um suposto inimigo.
O novo modelo de negócio paramilitar – que passou a ser chamado e conhecido como milícias – surgiu e se fortaleceu a partir dos anos 2000, inicialmente, ao se apresentar como um antídoto para o controle territorial exercido pelos grupos de traficantes. Cresceu e se fortaleceu em corporações historicamente ligadas aos negócios e parcerias com o crime e a contravenção.
Favorecidos pela participação ativa de policiais, agentes penitenciários e militares, as milícias ou grupos paramilitares assumiram a governança em diversos territórios, ganhando dinheiro a partir de uma ampla diversidade de receitas em atividades criminosas – entre elas extorsão a moradores e comerciantes, venda de terrenos em áreas protegidas por legislação ambiental, venda de imóveis irregulares, gás, internet, água, cigarro pirata e, com o tempo, também drogas. A expansão começou principalmente pela zona oeste do Rio, onde moravam parte dessas lideranças paramilitares, que tinham ligações com a região e as associações de moradores locais.
Apesar das diferenças, ambos os tipos de grupos – PCC e milícias – se fortaleceram na medida em que conseguiam construir uma autoridade capaz de definir regras, traçar pactos e acordos que definem um novo padrão de relacionamento entre os integrantes do mercado criminal destas cidades. A criação de normas e protocolos para organizar ganhos e mediar conflitos tornam o negócio mais lucrativo e menos custoso.
A violência armada aparece como instrumento primordial para que esses grupos – traficantes e paramilitares – exerçam essa autoridade e imponham regras entre seus pares e até entre seus competidores. Esses grupos criminosos, portanto, acabam atuando nos espaços de sombra, onde o Estado não consegue ser o fiador de uma ordem legal, o que acaba cedendo espaços de poder para o surgimento e fortalecimento de agências reguladoras criminosas.
Bruno Paes Manso é autor de A GUERRA: A ASCENSÃO DO PCC E O MUNDO DO CRIME NO BRASIL (Todavia, 2018), em coautoria com Camila Nunes Dias. É jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).
RPD 33 || Guilherme Accioly: A perda de complexidade da economia brasileira
14 de julho de 2021Revista Online
Pelo menos, desde a década de 50, reconhece-se a importância da industrialização das economias periféricas, como a brasileira, para seu desenvolvimento econômico. Entendendo isso, diversas nações adotaram políticas industriais ativas, com variados graus de sucesso.
Alguns países, em especial na Ásia (Coréia do Sul, Taiwan) foram extraordinariamente bem-sucedidos. Em poucas décadas, passaram de economias agrárias e muito pobres para potências industriais.
O Brasil não fez feio. Foi capaz de criar uma economia relativamente sofisticada, com um setor industrial razoavelmente avançado e diverso. Tem indústria automobilística (embora composto apenas por filiais de multinacionais) e até aeronáutica, como o milagre que é a Embraer. Inventou a celulose de fibra curta (de eucalipto, enquanto, até então, o mercado era só de fibra longa/pinus) e se tornou um dos maiores exportadores do produto – ainda é o 4º maior.
Mas esse processo perdeu fôlego. A participação da indústria no PIB despencou de 48%, em 1985, para 20,4%, em 2020. Grupos nacionais da indústria desapareceram ou perderam relevância.
A desindustrialização ocorrida é uma das faces de um fenômeno mais profundo: a progressiva erosão da complexidade da estrutura produtiva brasileira. Uma economia mais complexa é aquela em que há maior densidade de produtos com efeitos de encadeamento e transbordamento. Ou seja, que geram maiores e mais abrangentes externalidades, potencializando o dinamismo da economia.
O estado da arte na medição da complexidade das economias nacionais é o Atlas da Complexidade Econômica, ferramenta desenvolvida e gerenciada pelo Harvard Growth Lab, visando ”entender a dinâmica econômica e novas oportunidades de crescimento para todos os países do mundo”. Uma de suas funcionalidades é um ranking mundial de Complexidade Econômica. Nele, o Brasil, depois de ocupar a 27ª posição em 2000, recuou para a 49º em 2018. O México estava na 19ª colocação, em 2018, a Tailândia na 22ª.
Outro ranking internacional que aponta para o progressivo atraso da economia brasileira é o Índice de Competitividade Global, do Banco Mundial. Segundo ele, o Brasil ocupava a 80ª posição (dentre 137 países), enquanto estava em 72º, em 2007.
O que aconteceu? Por que paramos de avançar e estamos andando para trás? A resposta, claro, é complexa e passível de inúmeras versões. Arrisco tentar simplificar: porque perdemos qualquer tentativa de projeto nacional.
Mesmo os governos do PT não tinham um projeto claro. Ainda que várias iniciativas louváveis tenham sido encaminhadas, a descoordenação e a execução precária não permitiram que se avançasse. O projeto mais importante de política industrial foi a criação da maior empresa de carne bovina do mundo! Isso já em plena crise climática, mesmo sendo fartamente conhecida a contribuição da pecuária para esse desastre. Sem falar em mais um passo para a redução da complexidade da economia brasileira.
O atual governo é, também nisso, um completo descalabro. Não tem nenhuma ideia do que pretende para o país. Brada contra uma inexistente ameaça comunista e pouco mais. Há um arremedo de projeto econômico, um liberalismo de botequim (com o perdão dos botequins) que se resume a destruir tudo que funciona no Estado brasileiro. Em particular, do que mais precisamos para avançar: pesquisa, tecnologia e educação. Não há nenhuma esperança de o país se modernizar em nenhum aspecto nesse governo, muito menos numa questão profunda como o retrocesso na complexidade da economia.
Mas, com a união dos setores democráticos da sociedade, é possível que, em 2022, seja, de novo, possível pensar num projeto de país.
Aí o Brasil terá de voltar a investir no que todos os países dinâmicos estão investindo. Em tecnologia, muito especialmente naquelas voltadas à descarbonização da atmosfera. No aproveitamento racional do imenso patrimônio que é a diversidade natural brasileira, inclusive desse tesouro que estamos jogando fora, a Floresta Amazônica. Terá também de fazer o que todas as economias avançadas já fizeram há muito tempo, oferecer uma educação em todos os níveis com qualidade e universalidade. A existência do SUS também abre a possibilidade de investimentos produtivos, com alto grau de complexidade, nos setores industriais do chamado Complexo Industrial da Saúde, como já advertem alguns dos melhores economistas brasileiros.
Há tempo de reverter essa marcha para o atraso e a mediocridade. Mas o Brasil precisa de um olhar para o futuro.

Guilherme Accioly é economista
RPD 33 || Davi Emerich : CPI da Covid-19 – Incógnitas e avanços
14 de julho de 2021Revista Online
Em que resultarão os trabalhos da CPI da Covid-19, ainda em funcionamento no Senado Federal?
Essa é a pergunta que políticos, jornalistas, empresários, milhões de brasileiros estão fazendo neste momento, tendo como pano de fundo o governo de Jair Bolsonaro e as eleições de 2022.
Bola de cristal ninguém possui, e política, para usar uma expressão já consagrada, não é mãe Dinah.
CPI, assim como greves e outros movimentos bruscos e complexos, sabe-se como começa, desconhece-se seu desfecho.
Já tivemos CPIs de todos os tipos e com evoluções impensáveis. Algumas nem conseguiram se reunir, em virtude do jogo de maiorias no Congresso; outras fizeram um carnaval danado e tiveram um fim melancólico; várias resultaram em propostas legislativas e leis; duas levaram à renúncia um presidente da República e ao impeachment de outro.
É ainda cedo para se prever o final da CPI em marcha, tudo está a depender do calibre dos achados de corrupção e das políticas de alianças partidárias e da formação de maiorias para empurrar à frente desígnios mais incisivos, ou não.
Importante registrar, diferentemente de países como os Estados Unidos, de matriz bipartidária em sua representação congressual, no Brasil temos 23 partidos com parlamentares na Câmara e no Senado. Nenhum com mais de 15% das bancadas, a pulverização é total. Nesse cenário, valem mais os interesses de cada mandato do que posicionamentos políticos e ideológicos coerentes, doutrinários e históricos.
Talvez já seja possível afirmar que a CPI alcançou uma grande vitória, a de afirmar o princípio da ciência diante de uma vaga negacionista que devastou políticas públicas e corrompeu o pensamento mais racional brasileiro, ensejando milagres de perna curta, crendices, misticismos, loucuras coletivas. Negacionismo que, além desses aspectos, foi responsável pela corrosão ainda maior das finanças das famílias pobres sem acesso a recursos da saúde, levando-as a gastarem o que não tinham na compra de medicamentos como cloroquina, ivermectina e antibióticos, ao arrepio da medicina.
Uma CPI, que nasceu para contestar o negacionismo e forçar o governo federal a encarar a Covid-19 com mais responsabilidade, acabou catapultada a um piso superior com as denúncias e os fortes indícios de corrupção no Ministério da Saúde, sobretudo na área de compra de vacinas e de outros insumos para combater a pandemia. E, quando emergem denúncias nessa proporção, tudo fica volumoso – a tensão política e as crises geradas por ela.
No meio de todo o burburinho, hipóteses se desenvolvem, umas podendo ser confirmadas, outras não. Uma delas é de que a não compra de vacinas no tempo certo de laboratórios com nomes firmados nas bolsas de valores do mundo ocorreu menos pelo negacionismo e mais pela influência do jogo escuro do mercado. O “mecanismo”, termo frequente entre bolsonaristas, assim, teria aberto espaços à intermediação, nos quais o ilícito se sentiria mais em casa.
O negacionismo ideológico do governo, por tal raciocínio, acabou sendo uma muleta em outras mãos para esconder a ação corruptora. Veremos onde isso vai dar.
As denúncias envolvendo o Ministério da Saúde, levantadas e orbitando a CPI, arrastam, ainda mais, também os militares para terrenos pantanosos. Encher a repartição de militares – houve até um ministro general – não estaria impedindo as supostas falcatruas. Ora, militares sem inteligência é algo impensável se se acredita nas Forças Armadas como guardiãs da democracia, como define a Constituição Federal.
Para quem logo tira do bolso o impeachment como solução final a ser ensejada pela CPI, é bom ressaltar que esse instituto tem mais a ver com maioria política congressual e menos com fatos, por mais verdadeiros que sejam. O impeachment só se materializa, ao final, com a pressão das ruas, da sociedade e de expectativas eleitorais futuras de quem detém o mandato.
Independentemente de um desfecho retumbante que não depende da CPI, há outros cenários positivos que os senadores podem também trabalhar – e com possibilidades boas de sucesso.
Uma delas é sugerir políticas públicas que possam afirmar a ciência no país, com investimentos em universidades, centros de pesquisa, novas parcerias inovadoras com o segmento privado. Aqui, um olhar atencioso para os nossos laboratórios (Fiocruz e Butantan, entre outros), até para fazer frente a outras epidemias que virão.
Outra fronteira: as compras que envolvem a saúde, em nível federal, nos estados e municípios, precisam ter um marco legal diferenciado e não podem estar contaminadas por injunções políticas. Corrupção com dinheiro público enoja qualquer cidadão de bem. Agora, corrupção que leva brasileiros à morte, agride, é desumana, é monstruosa.

Davi Emrich é jornalista. Foi Secretário de Comunicação do Senado Federal e integra o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, um órgão consultivo composto por representantes da sociedade civil.