Bruno Paes Manso

RPD || Bruno Paes Manso: PCC, CV, Milícias – Uma comparação entre Rio e SP

Dois anos depois do massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992, o governo do Estado de São Paulo mudou sua política penitenciária. Para cumprir a promessa de demolir essa prisão que concentrava mais de 7 mil presos no mesmo espaço, palco da maior tragédia da história paulista, o governo passou a construir dezenas de unidades menores, para 700 presos, que se multiplicaram e se espalharam por todo o Estado. O Primeiro Comando da Capital, criado em 1993, um ano após o massacre, soube crescer nesse mundo novo que se formava atrás dos muros e das grades.  

Nas celas superlotadas, com verbas públicas insuficientes para a garantia da ordem e dos direitos dentro dos presídios, coube aos próprios presos inventar e estabelecer uma nova forma de governança nessas unidades. A partir do controle dos presídios, o PCC passou a desempenhar, no decorrer dos anos, o papel de agência reguladora do mercado criminal paulista, estabelecendo protocolos e regras que tornou esse ambiente mais profissional e previsível, com menos riscos e perigos para os envolvidos.  

A consolidação dessas regras dependeu da proibição dos conflitos nos bairros e da busca de exercer um monopólio do uso da força no mundo do crime. Essa nova governança na rede criminal contribuiu para aumentar a previsibilidade no mercado criminal e profissionalizar a cena. Levou os criminosos paulistas às fronteiras do continente, acessando fontes atacadista de drogas em grandes mercados produtores e distribuidores.  

Manifestantes fazem passeata no centro do Rio de Janeiro para lembrar 120 dias do assassinato da Vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, e as ví­timas durante operações policiais no combate ao tráfico de drogas.

No Rio de Janeiro, ao longo de sua história recente, nunca houve um grupo hegemônico a dominar a cena criminal do Estado. Desde o começo dos anos 80, quando o Comando Vermelho passou a atuar no comércio varejista de drogas, o controle dos territórios por grupos armados passou a ser disputado entre grupos rivais, como Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, que estabeleceram uma corrida armamentista para adquirir poder e mercados nessas áreas em disputas constantes. 

Os conflitos, que causavam homicídios nos bairros pobres e aterrorizavam a população do Rio com tiroteios e balas perdidas, caracterizaram a dinâmica violenta da cena fluminense. Integrantes das polícias passaram a descobrir formas de ganhar dinheiro e poder com esse cenário caótico. Entre as estratégias estavam os arregos (corrupção paga a autoridades pelo tráfico), venda de armas e munição no mercado paralelo, operações policiais de guerra que passavam para a opinião pública a mensagem distorcida de que o trabalho policial era uma rotina de disputas cotidianas contra um suposto inimigo.  

O novo modelo de negócio paramilitar – que passou a ser chamado e conhecido como milícias – surgiu e se fortaleceu a partir dos anos 2000, inicialmente, ao se apresentar como um antídoto para o controle territorial exercido pelos grupos de traficantes. Cresceu e se fortaleceu em corporações historicamente ligadas aos negócios e parcerias com o crime e a contravenção.  

Favorecidos pela participação ativa de policiais, agentes penitenciários e militares, as milícias ou grupos paramilitares assumiram a governança em diversos territórios, ganhando dinheiro a partir de uma ampla diversidade de receitas em atividades criminosas – entre elas extorsão a moradores e comerciantes, venda de terrenos em áreas protegidas por legislação ambiental, venda de imóveis irregulares, gás, internet, água, cigarro pirata e, com o tempo, também drogas. A expansão começou principalmente pela zona oeste do Rio, onde moravam parte dessas lideranças paramilitares, que tinham ligações com a região e as associações de moradores locais.  

Apesar das diferenças, ambos os tipos de grupos – PCC e milícias – se fortaleceram na medida em que conseguiam construir uma autoridade capaz de definir regras, traçar pactos e acordos que definem um novo padrão de relacionamento entre os integrantes do mercado criminal destas cidades. A criação de normas e protocolos para organizar ganhos e mediar conflitos tornam o negócio mais lucrativo e menos custoso.  

A violência armada aparece como instrumento primordial para que esses grupos – traficantes e paramilitares – exerçam essa autoridade e imponham regras entre seus pares e até entre seus competidores. Esses grupos criminosos, portanto, acabam atuando nos espaços de sombra, onde o Estado não consegue ser o fiador de uma ordem legal, o que acaba cedendo espaços de poder para o surgimento e fortalecimento de agências reguladoras criminosas. 

Bruno Paes Manso é autor de A GUERRA: A ASCENSÃO DO PCC E O MUNDO DO CRIME NO BRASIL (Todavia, 2018), em coautoria com Camila Nunes Dias. É jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).


Bruno Paes Manso: 'Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos'

Autor do livro ‘A República das milícias’, Bruno Paes Manso traça as origens dos esquadrões da morte até a reverberação no Palácio do Planalto. Obra traça importância de Fabrício Queiroz para consolidar votações de clã presidencial em bairros cariocas

Gil Alessi, El País

Um terremoto silencioso começou no bairro de Rio das Pedras, localizado nas franjas da floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, na virada para os anos 2000. Aos poucos, suas ondas sísmicas se espalharam por comunidades da baixada fluminense, da zona oeste, chegando até mesmo à Assembleia Legislativa e ao Tribunal de Contas do Estado. Os tremores tiveram reflexos também em Brasília. Foi naquela comunidade pobre de ruas estreitas e trânsito caótico —onde posteriormente Fabrício Queiroz, pivô do escândalos dos Bolsonaro, iria se refugiar das autoridades— que nasceu uma das primeiras milícias do Rio. “Policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras, e estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas”, escreve o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso em seu livro mais recente, A República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Editora Todavia).

O que se seguiu foi uma expansão vertiginosa deste modelo de governança local, cujas marcas registradas são a cobrança de taxas dos moradores, venda de botijões com sobrepreço, controle sobre o transporte clandestino, loteamento irregular de terrenos e uma forte dose de violência contra quem viola as regras. Manso mostra como o medo da entrada do tráfico de drogas nas comunidades, aliado a uma polícia historicamente violenta, herança do tempo dos esquadrões da morte surgidos nos anos de 1960 e 1970, cimentou o terreno para a expansão das milícias em territórios onde o poder público era inexistente. Afinal, vale o bordão: “O poder não deixa vácuo”. Em momentos de crise política, como agora, as milícias se fortalecem: “Quanto mais desacreditadas as instituições, mais força ganham estes grupos, pois passam a ser fiadores da ordem nos territórios. Se você não tem para onde correr, estes grupos oferecem alguma proteção. E claro, impõe um domínio tirânico.”PUBLICIDADE

O autor também aborda a relação da família Bolsonaro com os grupos milicianos, encabeçada por Fabrício Queiroz, que abriu portas para os jovens candidatos da família nos batalhões de polícia e bairros controlados por milícias. Em comum, a crença na “violência redentora” como salvação para o Rio (e agora para o Brasil). “Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos. Eles podem não ter uma ligação direta com os grupos que fazem negócios nestas comunidades, mas sempre fizeram discursos favoráveis a eles”, afirma Manso em entrevista ao EL PAÍS. “Seja o Flávio, que já falou em legalizar as milícias, ou o Jair, dizendo que elas trazem ordem. Então existem afinidades ideológicas, principalmente quanto ao uso da violência como ferramenta para estabelecer ordem nesses lugares”, diz o autor.

No livro fica claro o papel central que Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio, teve para fortalecer o clã Bolsonaro junto a policiais e milicianos. “A articulação do Queiroz facilitou muito a vida dos Bolsonaro que se elegem pelo Rio [Eduardo disputa por São Paulo], principalmente nos primórdios”, explica Manso. Durante um bom tempo, “ele era a pessoa que fazia a ponte da família com a base eleitoral da Polícia Militar, da Polícia Civil, com policiais da zona oeste, e com os familiares dessas pessoas”. O batalhão onde Queiroz atuou, em Jacarepaguá, sempre foi muito ligado aos grupos milicianos, e o assessor circulava com desenvoltura nesse meio, entre paramilitares e militares.

A partir de 2014 Queiroz passa a desempenhar outro papel para a família Bolsonaro. “Quando começa a crise política pós-junho de 2013, com a Operação Lava Jato e tudo o mais, o discurso do Bolsonaro de guerra à corrupção e uso de violência começa a fazer sentido para um grupo maior de pessoas, não mais apenas para o nicho representado por Queiroz”, diz o autor. Neste momento o assessor passa a ser uma “peça burocrática no gabinete, responsável por organizar a rachadinha [o confisco de parte do salário dos funcionários. Flávio e Queiroz foram denunciados pelo crime, que negam ter cometido, e ambos conseguiram importantes vitórias no processo]”. “Mas o grande apelo eleitoral dos Bolsonaro deixa de depender dele”, afirma.

A aliança das milícias com grupos de traficantes evangélicos do Terceiro Comando Puro, que comandam o Complexo de Israel (onde religiões de matriz africana são proibidas), também é abordada no livro, traçando um panorama sombrio para o futuro do Rio de Janeiro, com uma espécie de milícia 2.0. “As milícias estão tentando fazer estas alianças, e a ligação com o tráfico me parece inevitável. É uma fonte de receitas das quais eles não parecem querer abrir mão”, diz Manso. O objetivo final seria alcançar uma hegemonia semelhante à que o Primeiro Comando da Capital tem em São Paulo, onde o grupo criminoso “conseguiu se tornar o governo do mundo do crime, com regras, protocolos e prazos de pagamento determinados pela organização. Eles profissionalizaram essa cena criminosa e se tornaram o Governo onde o Governo não chega”. É cedo para dizer, no entanto, que esta parceria irá se tornar a maior força do crime organizado do Rio: “O Comando Vermelho continua uma força enorme do Rio, com centenas de fuzis e um potencial de violência imenso. Então há um equilíbrio de forças por enquanto”.

No outro front da batalha das milícias pelo poder está a sempre presente necessidade de se infiltrar no Estado —e se tornar parte dele. Após uma primeira geração de líderes que se lançaram na política, como os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, acusados de fundar a milícia Liga da Justiça e que foram presos e destituídos de seus mandatos, agora os chefes paramilitares lançam mão de laranjas para disputar cargos públicos. “A influência destes grupos nas instituições do Estado é fundamental para que eles prosperem. O modelo de negócio das milícias depende disso: para que a milícia amplie seus negócios é preciso que existam pessoas nas estruturas do Estado que assumam esse cinismo, que façam vista grossa”. Ou seja, para que a milícia prospere, basta que o poder público não faça nada.

Para os grupos milicianos, existem oportunidades de ganho em quase todas as atividades comerciais, legais ou ilegais. “Eles se beneficiam de legislações que flexibilizam o monitoramento ambiental, para que possam lotear áreas de proteção, ou de fiscais corruptos, para erguer prédios sem os alvarás, como ocorreu em Muzema [em abril de 2019 dois prédios desabaram em Muzema, na zona oeste do Rio, deixando 24 mortos. As edificações foram erguidas por milicianos]. Sem falar do peso que a influência política exerce em um batalhão de polícia para que faça vista grossa diante de uma série de crimes cometidos”, aponta Manso.


Folha de S. Paulo: Eleição de Bolsonaro inaugura república das milícias, diz pesquisador

Para autor de livro recém-lançado, presidente mantém vivo discurso da linha dura e de grupos de extermínio

Duas das principais referências morais e profissionais na formação do presidente Jair Bolsonaro foram o general do Exército Newton Cruz e o coronel Carlos Brilhante Ustra. Em comum, ambos eram contrários ao processo de abertura que levaria à Nova República e assumiam a necessidade de sujar as mãos na disputa política que viam como uma guerra.

Chefe da agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações), cargo que exerceu até 1983, quando foi para Brasília assumir o Comando Militar do Planalto, Cruz foi um dos representantes da linha dura na Presidência de João Baptista Figueiredo, organizando a resistência contra a redemocratização em um período em que pelo menos 40 bombas explodiram no Brasil.

A série de atentados, cujo objetivo era provocar medo para justificar novas medidas de endurecimento, culminou com a bomba no Riocentro, em 1981, que devia explodir durante um show de MPB com cerca de 20 mil pessoas. O artefato, contudo, estourou antes, dentro de um carro com dois militares. Cruz assumiu, anos depois, que havia sido informado dos planos e nada fez por falta de tempo.

Ustra, por sua vez, foi chefe do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército em São Paulo entre 1970 e 1974. O então major era valorizado pelos militares da linha dura como o símbolo dos oficiais que sujaram a mão na guerra, em contraponto aos burocratas fardados que se articulavam na transição para entregar o poder aos inimigos civis.

Nos porões paulistas, liderados por Ustra, a tortura era prática comum. Dos 876 casos catalogados no livro “Brasil: Nunca Mais”, cerca de 400 ocorreriam no centro comandado por ele.

Ustra escreveria sua visão da história no livro “A Verdade Sufocada”, uma das bíblias bolsonaristas, no qual se queixou de que o Brasil sofria na democracia derrotas comprometedoras na batalha ideológica, que deveria ser vencida a qualquer custo.

As esquerdas, dizia ele, estavam na dianteira, ganhando a mente das massas, dominando postos estratégicos nas universidades, escolas, Redações dos jornais e no mundo das artes. A vitória cultural da esquerda também atrapalhava as polícias militares, cujo trabalho no combate ao crime sofria sabotagem dos defensores de direitos humanos.

O discurso antidemocrático e conspiratório, contra a Constituição de 1988 e o novo regime que surgia, marcaria a carreira de uma legião de militares, como Bolsonaro.

Em março de 1985, quando José Sarney assumiu a Presidência, o nome de Newton Cruz foi retirado da lista de promoção ao topo da carreira. O general foi para a reserva, contribuindo para alimentar a mágoa de Bolsonaro, como conta Flávio, seu filho, na biografia que escreveu sobre o pai, “Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro”.

O coronel Freddie Perdigão, acusado de planejar o atentado no Riocentro e integrante da Casa da Morte (centro clandestino de tortura e assassinato), em Petrópolis, deixaria o Exército e se envolveria na segurança de bicheiros na Baixada Fluminense, associado a grupos de extermínio.

A ponte dos egressos da linha dura para a cena criminal e de extermínio do Rio seria feita com a ajuda de membros dos esquadrões da morte cariocas, como os policiais civis Mariel Mariscot e Euclides Nascimento —este último presidia a Scuderie Le Cocq, organização que levou as práticas de execução a outros estados, em especial o Espírito Santo.

Bolsonaro, inconformado com os ventos democráticos, passou a agitar contra os comandos da Nova República a partir de 1986. Primeiro, escrevendo um artigo, publicado na revista Veja, em que se queixava dos salários nas Forças Armadas.

No ano seguinte, ele daria um passo além e contaria em off a uma repórter da mesma revista os planos para explodir algumas bombas, tumultuar o ambiente político e demonstrar a fragilidade do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e do presidente José Sarney.

Diante do risco real a terceiros, a revista revelou os planos de Bolsonaro, que passou por um processo militar, mas foi absolvido. A versão da revista, no entanto, era consistente e não havia como o capitão seguir carreira no Exército da democracia.

Com a fama adquirida após o episódio, o reformado Bolsonaro daria início a sua carreira política, atuando como sindicalista de luxo para aumentar salários e aposentadorias de policiais e militares. As mágoas em relação ao establishment político estavam mais vivas do que nunca e definiram sua trajetória. Em quase três décadas de carreira parlamentar, ele seria a antítese da política, o deputado em defesa da guerra contra o crime e a subversão esquerdista.

Em sua retórica explosiva, ultrapassava os limites da decência e do decoro, fortalecendo o sobrenome da família com infâmias que nem mesmo os linhas-duras tiveram coragem de falar em público durante a repressão. Mantinha vivo na democracia o discurso dos policiais exterminadores.

Bolsonaro era capaz de apoiar o uso do pau de arara contra suspeitos, celebrar grupos de extermínio e milícias e pregar o assassinato criminoso de “bandidos” por forças paramilitares, chegando ao ponto de dizer em um programa de TV que a solução para o Brasil era uma guerra civil, que levasse à morte pelo menos 30 mil pessoas.

Para ele, a Constituição de 1988 e as políticas de direitos humanos que tentavam controlar a violência policial eram amarras que impediam uma guerra necessária no país. Dessa forma, o parlamentar e seus filhos se tornaram porta-vozes ideológicos dos policiais que sujaram as mãos na batalha contra o crime.

Havia uma forte afinidade de valores entre eles: a violência redentora e fardada, mesmo quando agisse contra a lei, poderia salvar o Brasil, algo que o deputado e seu clã sempre alardearam abertamente em discursos e projetos parlamentares.

Pintados como heróis, esses policiais matadores, mais cedo ou mais tarde, usavam seu poder para enriquecer com diversos negócios criminosos. Foi assim que Bolsonaro e seus filhos se aproximaram de alguns dos milicianos mais perigosos do Rio.

Isso ocorreu por intermédio do policial militar Fabrício Queiroz, que tinha papel de destaque nos mandatos parlamentares do clã. Queiroz trabalhou a maior parte da carreira como policial do 18º batalhão, em Jacarepaguá, unidade cuja omissão seria fundamental para o processo de espraiamento das milícias a partir de 2000 no Rio.

Nesse período, Queiroz se envolveu em ações suspeitas, como um homicídio em 2003 praticado com um policial egresso do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), que na década seguinte se tornaria um dos bandidos mais perigosos da nova cena criminal do Rio: o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega.

O laço de sangue e lealdade levou Queiroz a aproximar Adriano dos Bolsonaros, que passariam a defendê-lo e ajudá-lo por mais de uma década.

Nesses anos, Adriano organizou ações de matadores e ganhou dinheiro com empreendimentos ligados ao jogo de azar e com a venda de imóveis irregulares em áreas protegidas ambientalmente na região de Rio das Pedras, bairro com forte presença de milícias. Morreu em uma ação policial na Bahia em fevereiro deste ano, após quase um ano foragido.

Durante esse processo de embarque de Adriano no mundo do crime, os Bolsonaros prestaram diversas homenagens a ele. Flávio contratou como assessoras de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio a mãe e a mulher do ex-capitão da PM.

Esses e outros vínculos com criminosos e seu histórico compromisso com a defesa da violência e da ideologia paramilitar não impediram a vitória de Bolsonaro na eleição de 2018. Talvez tenham até ajudado.

A última disputa presidencial marcou também o ocaso da Nova República, 33 anos depois de seu nascimento. Desde pelo menos junho de 2013, com as manifestações de rua, o clima político parecia fora do eixo.

A situação se agravou depois de 2014, quando denúncias sobre corrupção e caixa dois envolvendo políticos, reveladas pela Lava Jato, passaram a dominar quase diariamente o noticiário.

Pouco depois, houve o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Seu sucessor, Michel Temer (MDB), também foi alvo de denúncias de corrupção. Somado a tudo isso, o país enfrentou uma crise econômica e fiscal de proporções dramáticas, criando uma imensa sensação de impotência e de depressão coletiva, período marcado pela descrença na política e nos políticos da Nova República.

Quando se esvai a fé na política como forma de mediação dos conflitos, resta a polícia —uma autoridade capaz de estabelecer a ordem e garantir a obediência pelo uso da força. O discurso da violência redentora pregado por Bolsonaro ganhou receptividade ampla e nacional.

Os brasileiros escolheram como líder um apologista dos justiceiros, como se decidissem abandonar suas crenças nas instituições democráticas para transformar o país em um imenso Rio das Pedras.

Bolsonaro ainda recebeu em peso o apoio dos militares, que jogaram por terra três décadas de consolidação das Forças Armadas como instituição do Estado ao assumir um lado e participar da política. O vice-presidente, Hamilton Mourão, outro fã declarado de Ustra, puxou o bonde e atraiu membros da tropa militar para o governo.

A eleição de Bolsonaro marcou o fim da Nova República para inaugurar a imprevisível república das milícias.

*Bruno Paes Manso, Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é autor de "A República das Milícias - dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" (ed. Todavia)