El País: O físico Stephen Hawking morre aos 76 anos

O reconhecido pesquisador britânico, que popularizou a ciência, faleceu em sua casa em Cambridge

 O físico britânico Stephen Hawking, o cientista que explicou o universo de uma cadeira de rodas e aproximou as estrelas de milhões de pessoas ao redor do mundo, faleceu nesta madrugada em sua casa de Cambridge, aos 76 anos.

“Estamos profundamente entristecidos com o falecimento do nosso amado pai hoje”, dizem seus três filhos, Lucy, Robert e Tim, em nota publicada na primeira hora da manhã de quarta-feira. “Era um grande cientista e um homem extraordinário cujo trabalho e legado sobreviverão por muitos anos. Sua coragem e persistência, com seu brilho e humor, inspiraram pessoas no mundo inteiro. Certa vez disse: ‘O universo não seria grande coisa se não fosse lar das pessoas que você ama’. Sentiremos sua falta para sempre”.

Aos 22 anos foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, ELA, e os médicos lhe deram apenas dois anos de vida. Mas viveu mais 54 anos. A doença o deixou em uma cadeira de rodas e incapaz de falar sem a ajuda de um sintetizador de voz. Reduziu o controle de seu corpo à flexão de um dedo e ao movimento dos olhos. Seu intelecto avassalador, sua intuição, sua força e seu senso de humor, combinados com uma doença destrutiva, transformaram Hawking em símbolo das infinitas possibilidades da mente humana, e de sua insaciável curiosidade.

“Apesar de haver uma nuvem sobre meu futuro, descobri, para minha surpresa, que desfrutava mais do que nunca da vida no presente”, disse em uma ocasião. “Meu objetivo é simples. É um completo conhecimento do universo, por que ele é como é e por que existe”.

Amigos e colegas da Universidade de Cambridge prestaram uma homenagem produzindo um vídeo sobre a trajetória de Hawking – referindo-se a ele como o “professor Hawking”, como era mencionado no mundo da ciência – e um texto em cujo penúltimo parágrafo se resume uma palestra do professor em seu 75º aniversário: “Foi um momento glorioso estar vivo e pesquisar sobre física teórica. Nossa imagem do Universo mudou muito nos últimos 50 anos, e estou feliz de ter feito uma pequena contribuição”.

O professor Stephen Toope, vice-reitor da Universidade de Cambridge, também o homenageou com estas palavras: “O professor Hawking foi um pessoa única que será lembrada com carinho e afeto não só em Cambridge, mas no mundo inteiro. Suas contribuições excepcionais para o conhecimento científico e a popularização da ciência e a matemática deixaram um legado indelével. Sua personagem foi uma inspiração para milhões. Ele fará falta.”

Nascido em 8 de janeiro de 1942 em Oxford (embora sua família morasse em Londres), Stephen William Hawking já se destacava no colégio do St. Albans, cidade para onde seu pai se mudou. Ali os colegas o apelidaram de “Einstein” por seu interesse pela ciência.

Hawking saltou para a fama junto a seu colega Roger Penrose no final da década de 1960. O motivo, sua teoria da singularidade do espaço-tempo. Os dois físicos aplicaram a lógica dos buracos negros ao universo inteiro, assunto que o primeiro detalharia mais tarde para o grande público em Uma Breve História do Tempo, do Big Bang aos buracos negros (1988).

A partir dos 21 anos, a doença condicionou a vida de Hawking. A ELA destruiu pouco a pouco seu corpo, sua capacidade motora, seus músculos. Primeiro deixou-o em uma cadeira de rodas e logo tirou a capacidade de falar. Além de seu brilhantismo e suas qualidades de divulgador, Hawking se transformou em uma estrela mundial por causa da obstinação com que se agarrou ao mundo. Em 1985, uma pneumonia piorou sua saúde, obrigando-o a respirar por um tubo. Nunca mais pôde usar a voz. O físico optou então por um artefato eletrônico, um sintetizador de voz, para driblar o silêncio. A voz robótica do Stephen Hawking se transformou em parte de sua lenda.

Os buracos negros marcaram sua vida. Em janeiro de 2014 apresentou um polêmico artigo defendendo que não existiam. Ao menos que não existiam da forma como eram entendidos até então. Um buraco negro é um lugar de grande densidade e energia. A teoria dizia que a partir de certo ponto, a energia – a luz – não poderia escapar de sua gravidade. Hawking argumentou que poderia sim, que não existia um horizonte de eventos, isto é, um ponto de não retorno, mas um horizonte aparente. Assim, o buraco negro conteria a energia durante algum tempo antes de deixá-la escapar.

Em entrevista concedida ao EL PAÍS em 2015, o físico se referiu à vida extraterrestre, uma de suas últimas obsessões. “Se os extraterrestres nos visitassem, o resultado se pareceria muito ao que aconteceu quando Colombo desembarcou na América: não foi bom para os nativos americanos. Esses extraterrestres avançados poderiam se tornar nômades e tentar conquistar e colonizar todos os planetas a que pudessem chegar. Para meu cérebro matemático, de números puros, pensar em vida extraterrestre é algo totalmente racional. O verdadeiro desafio é descobrir como poderiam ser esses extraterrestres.”

O diretor do Instituto de Astrofísica das Canárias (IAC), Rafael Rebolo, recorda Hawking como uma “mente brilhante presa em uma jaula”, depois de conversar com ele em suas três visitas a suas instalações. Dessa relação surgiu a ideia de nomeá-lo professor honorário do IAC, coisa que o britânico aceitou de bom grado. “Tinha grandes inquietações e sempre tentava formular perguntas sobre nosso trabalho, se encontraríamos planetas similares à Terra”, relembra Rebolo, que não se esquece da primeira pergunta que o famoso astrofísico lhe fez, se os telescópios Cherenkov que estão sendo instalados em La Palma poderiam confirmar a radiação de Hawking, chamada assim em seu nome. O IAC tinha planos de construir um edifício em suas instalações para dar um escritório a seu único professor honorário, e Rebolo insiste na ideia de levantar o edifício e dar-lhe o nome de Stephen Hawking, que dependerá do orçamento da prefeitura de Tenerife, informa Javier Salas de Tenerife.

Sua vida, tanto no âmbito profissional como no pessoal, foi um desafio aos limites. Hawking viajou por todos os continentes, incluindo a Antártida. Ganhou prêmios, entre eles o Fronteiras do Conhecimento da Fundação BBVA em 2016, mas não o Nobel. Casou-se duas vezes, foi pai de três filhos. Tornou-se uma espécie de ícone pop, que apareceu em séries como Os Simpsons e The Big Bang Theory, da qual se declarava fã. Celebrou seus aniversário de 60 anos subindo em um globo aerostático. Cinco anos depois, experimentou a gravidade zero a bordo de um Boeing 727. Quando lhe perguntaram por que fazia tudo isso, respondeu: “Quero demonstrar que as pessoas não devem se limitar por suas deficiências físicas se o seu espírito não estiver deficiente.”


Felipe Salto e Gabriel Barros: Data marcada com a maioridade

O resultado das contas públicas de 2017 reacendeu o debate sobre o real tamanho do problema fiscal. Quão importante continua a ser a contenção das despesas obrigatórias (como salários, previdência e subsídios) e elevação da arrecadação tributária?

Ainda que os números do ano passado tenham surpreendido positivamente, o quadro continua bastante desafiador. O déficit recorrente, livre de efeitos extraordinários ou temporários, recuou de quase 3,5% do PIB em 2016, para cerca de 3% do PIB em 2017, desequilíbrio ainda bastante substancial. Em 2017, o volume de receitas atípicas alcançou mais de R$ 90 bilhões. O objetivo de avançar em torno da consolidação fiscal de médio e longo prazo ainda precisa ser alcançado.

Na Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, revisamos para melhor as projeções macroeconômicas e fiscais em resposta à conjuntura mais favorável. O PIB deverá crescer 2,7%, em 2018, ante taxa de 2,3%, no cenário apresentado em outubro de 2017. Para o médio prazo, as projeções de crescimento também melhoraram. Dados de maior frequência, como a produção industrial e o índice de atividade econômica do Banco Central, ambos crescendo entre 1,5% e 2%, na ótica mensal, reforçam os sinais da recuperação cíclica. O mercado de trabalho, com maior defasagem, também se recupera, ainda que de forma lenta e gradativa.

Dada a sensibilidade da arrecadação ao crescimento econômico, revisado para melhor, as expectativas para a dinâmica das receitas também avançaram e, na presença do teto de gastos, deverão contribuir para a recuperação do primário. Receitas petrolíferas também tiveram destacada influência nessa dinâmica. A virada de déficit para superávit - que, no cenário de outubro do ano passado, ocorreria apenas em 2024 - foi antecipada para 2023.

Os melhores resultados e expectativas para a atividade econômica, o mercado de trabalho e o resultado primário afetaram positivamente a dinâmica da dívida pública. A trajetória mais benigna para os juros também contribuiu, assim como as devoluções de recursos do BNDES para o Tesouro Nacional, esperadas em R$ 130 bilhões para este ano. Dos R$ 450 bilhões destinados ao banco público, de 2008 a 2014, foram devolvidos R$ 100 bilhões em 2016 e R$ 50 bilhões em 2017. Com a expectativa de nova devolução este ano, os pagamentos antecipados alcançarão R$ 280 bilhões ou cerca de 60% dos aportes feitos anteriormente.

A dívida bruta (isto é, sem descontar ativos do governo, como, por exemplo, as reservas internacionais), passará de 74,5% do PIB (final de 2017) para um pico de 86,6% do PIB (2023), caindo então lentamente para o nível de 76,7% até 2030. No cenário anterior, que não levava em conta as devoluções do BNDES, os números eram piores: o pico da dívida chegaria a 93,5% em 2025 para só então iniciar gradativo movimento de queda.

Essa mudança nos cenários é, sem dúvida, positiva. A redução da velocidade da dívida, todavia, não altera sua dinâmica de alta prevista para os próximos anos. No cenário pessimista, a trajetória poderia superar o limite de 100% do PIB em 2023. Ambos os cenários pressupõem o cumprimento do teto de gastos.

Um ponto importante nas simulações para o resultado fiscal é a sensibilidade das receitas à atividade (a chamada elasticidade). No período pós-2008, onde a frequência e magnitude de receitas atípicas, elevações de alíquotas e desonerações tributárias ganharam relevo, os exercícios apontam elasticidade mais reduzida e em torno de um, ante valores acima da unidade para períodos mais longos. A menor resposta da arrecadação ao impulso do crescimento econômico afeta a velocidade de recuperação das contas públicas.

A combinação de um déficit recorrente em torno de 3% do PIB, em 2017, com uma carga tributária de aproximadamente 32% do PIB (ante cerca de 26% há 20 anos), diz muito sobre a magnitude do desajuste das contas públicas, que afeta tanto o governo central quanto os subnacionais. Tomando as duas últimas décadas, o déficit recorrente é o maior já registrado na história fiscal do país.

Não obstante o tamanho do ajuste requerido para equacionar o desequilíbrio fiscal, de 4 a 5 pontos do PIB, há um congestionamento dessa agenda já em 2019. De acordo com as nossas projeções, é possível que no primeiro ano do próximo ciclo político-eleitoral a margem fiscal disponível para cortes de despesas no curto prazo seja muito reduzida, inferior a R$ 20 bilhões. Em 2020, na ausência de reavaliações mais profundas no gasto obrigatório, o grau de liberdade seria nulo. O risco, portanto, de restrições em torno do funcionamento da máquina pública (o chamado shutdown) é elevado.

Também em 2019, será preciso definir a regra de correção para o salário mínimo que vigorará a partir de 2020. A indexação de vários benefícios ao salário mínimo gera rigidez em parte substancial do gasto público: 65% dos benefícios previdenciários e 100% dos assistenciais, assim como o abono salarial. A regra de reajuste terá de levar em conta o teto para os gastos públicos. Tais mudanças devem ainda observar a necessidade de cumprimento da chamada regra de ouro das finanças públicas, que permite endividamento apenas para realização de investimentos.

O cenário para 2019, assim, reserva grandes desafios para o processo de consolidação fiscal. Será preciso promover uma profunda atualização de todo o arcabouço fiscal, de forma harmônica e integrada. Afinal, desde a regulamentação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, já se passaram 18 anos.

O Brasil mudou muito nesse período, assim como o resto do mundo. Houve avanços importantes durante esse período - sociais, político-institucionais e econômicos -, mas ainda há uma ampla agenda que deve ser enfrentada e vencida para que o país consiga sair da armadilha da renda média.

Nosso bônus demográfico está bem perto do fim, as condições de competição global têm se intensificado, sobretudo diante da denominada 4ª revolução industrial, cuja base é intensiva em educação, ciência e tecnologia. Para competir nesse novo cenário global, o país terá ainda que superar os gargalos de infraestrutura, aperfeiçoar a regulação econômica e o ambiente de negócios, bem como avançar na simplificação tributária.

Se vamos ter sucesso ou não só o tempo dirá, mas é inegável que a data marcada para atingir a maioridade está muito próxima.

* Felipe Salto é diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal./ Gabriel Barros é diretor da IFI.


Luiz Carlos Azedo: As cinco pontes

Um dos cases de reforma bem-sucedida na corrida para reinventar o Estado é o Deutsche Post AG, uma empresa alemã de serviços postais e de entregas com 467 mil empregados

Na corrida mundial para reinventar o Estado e modernizar a economia, a China comunista leva vantagem em relação aos Estados Unidos, assim como outros regimes da Ásia em relação às democracias do Ocidente em crise de representação, porque reprime duramente greves e protestos. É a face política mais obscura da globalização, na qual crescem a concentração de renda e as desigualdades, num processo no qual o regime de pleno emprego e os chamados exércitos industriais de reserva perderam a razão de ser. No Brasil, pela primeira vez, o contingente de trabalhadores do mercado informal suplantou o número dos com carteira assinada. As mudanças em curso provocam reações quase ludistas em relação ao surgimento de atividades que substituem as tradicionais, gerando milhares de postos de trabalho, como acontece na disputa entre taxistas e o Uber nas grandes cidades.

O ludismo foi um movimento social ocorrido na Inglaterra entre os anos de 1811 e 1812. Impactados pela Revolução Industrial, os ludistas protestavam contra a substituição da mão de obra humana por máquinas. O movimento ganhou esse nome por causa de seu líder, Ned Ludd. Com a participação de operários das fábricas, os “quebradores de máquinas”, como eram chamados os ludistas, fizeram protestos e revoltas radicais. Invadiram diversas fábricas e quebraram máquinas, por causa do desemprego e das péssimas condições de trabalho no período. O ludismo perdeu força com o surgimento das trade union, os sindicatos da época.

A briga entre taxistas e motoristas de Uber é um bom exemplo do choque de interesses provocado pelas mudanças em curso. Reproduz em escala global um episódio ocorrido na Baía de Vitória em 1927. Uma ponte de aço construída na Alemanha chegou à capital capixaba para permitir a primeira ligação da ilha com o Continente. É um patrimônio histórico e arquitetônico, um conjunto de cinco pontes ferroviárias de aço, interligadas. Tão logo ficou pronta, um açoriano empreendedor criou uma linha de lotação ligando Vila Velha a Vitória, mas houve violenta reação dos catraieiros que faziam a travessia do canal que separa as duas cidades. Ainda hoje é possível fazer a travessia do cais do Paul para o centro da capital do Espírito Santo de catraia, um barco a remo seguro, que transporta até oito pessoas e virou até atração turística. Mas a greve dos catraieiros não tinha a menor chance de dar certo. Assim é o progresso.

Correios
A greve por tempo indeterminado dos funcionários dos Correios pode ter o mesmo destino. Balanço da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), que engloba 31 sindicatos, mostra que a paralisação atinge os estados do Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo (regiões de Campinas, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Santos e Vale do Paraíba), além do Distrito Federal. Amazonas e Amapá a qualquer momento podem aderir à paralisação. É uma rajada no próprio pé.

Um dos cases de reforma bem-sucedida na corrida para reinventar o Estado é o Deutsche Post AG, uma empresa alemã de serviços postais e de entregas expressas, a maior em todo o mundo. Com sede em Bona, a empresa tem 467 mil empregados em mais de 220 países. Surgiu em 1995 como resultado da privatização da empresa de correios alemã, Deutsche Bundespost. O escritório federal alemão de correios era um serviço postal e de telecomunicações fundado logo após o final da II Guerra Mundial. Inicialmente foi o segundo maior empregador federal durante seu tempo, mas seu pessoal foi reduzido para cerca de 543.200 funcionários em 1985. A empresa foi dissolvida em 1995 e dividida em três empresas de capital aberto: a Deutsche Post AG, a Deutsche Telekom e a Deustsche Postbank.

Com 5% do comércio mundial nas mãos, hoje a Deutsche Post não entrega apenas correspondências e outras encomendas. Com a subsidiária DHL, a Deutsche Post cobre não apenas as exportações da Ásia para a Europa ou América, mas também entre os países asiáticos. Opera na China com uma rede nacional de transporte com cerca de 300 pontos de apoio. Com a compra da Airborne, a Deutsche Post se tornou a terceira maior empresa de serviço de entrega “express” nos Estados Unidos. Na América do Norte e na do Sul, a companhia alemã de correios conta com mais de 40 mil funcionários. Nos países europeus, excetuando-se a Alemanha, são 75 mil funcionários e um faturamento de 10 bilhões de euros. Incluindo-se as atividades na Alemanha, a empresa movimentou 60 bilhões de euros no ano passado, obtendo um lucro líquido de 2,7 bilhões de euros.

 

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-cinco-pontes/


Arnaldo Jordy: É preciso taxar os bancos

A direção da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) admitiu, em audiência com representações de consumidores, na última semana, que o peso das tarifas no Brasil está atingindo “níveis preocupantes”. Eu diria que os níveis são exorbitantes e têm sacrificado sobremaneira a população, muitos deles acossados pelo desemprego, que atinge 12 milhões de brasileiros e expõe a face mais cruel da crise escancarada desde 2014, no governo de Dilma Rousseff.

Os paraenses conhecem bem a política tarifária injusta para energia. Aqui pagamos uma das tarifas mais caras do mundo, mesmo morando em um Estado produtor e exportador de energia hidrelétrica. O mesmo pode ser dito sobre os preços dos combustíveis e do gás de cozinha. O botijão teve, em 2017, a maior alta em 15 anos. A gasolina e o diesel dispararam com a política da Petrobras de repassar para o consumidor os impactos sazonais e variações externas nos preços do petróleo.

Isso mostra que o governo federal tenta sair do buraco da crise sacrificando o lado mais fraco, o das pessoas comuns, que já pagam a 5ª maior carga fiscal do planeta, muito mais que os bancos, em proporção aos seus parcos rendimentos. E agora, com a privatização da Eletrobras em curso, a lógica do lucro sobre o bolso do consumidor deverá ganhar contornos ainda mais preocupantes. Enquanto isso, o governo federal abre mão de R$ 238 bilhões em incentivos fiscais no Orçamento de 2018.

Então, como enfrentar o déficit fiscal de 170 bilhões de reais ao ano, que está na razão direta de todos esses arranjos econômicos que afetam o cidadão comum? A saída pelos empréstimos está fora de cogitação, pelo endividamento estratosférico que o Brasil apresenta. A receita é letal: a dívida é paga com juros, com o governo tendo um gasto ainda maior para quitá-la, o que resulta no aumento do rombo.

Economistas da USP informam que, este ano, os cinco maiores bancos do país terão lucro líquido total de 120 bilhões de reais. Por que não taxar excepcionalmente esses lucros para cobrir o rombo do país, cujo déficit primário, em doze meses, até janeiro, é de 100,3 bilhões, equivalentes a 1,53% de todo o PIB do Brasil.

Uma reforma tributária viria a calhar, neste momento, para propor uma solução parecida com a que foi adotada na Hungria, em 2010, quando o primeiro-ministro, Viktor Orban, em vez de aumentar o seu endividamento para tapar o rombo, que acabaria ainda maior pelo pagamento de juros dessa dívida, num ciclo vicioso que o Brasil conhece bem, resolveu incentivar a atividade produtiva, pela sua capacidade de gerar empregos e movimentar a economia, e anunciou um imposto especial, válido por três anos, sobre o setor bancário, depois de constatar que este havia sido o setor que mais havia lucrado nos anos anteriores.

Os bancos foram convencidos a contribuir com esse esforço nacional, para que o país saísse da crise. Ao salvar a economia com a taxação extra, a Hungria criou condições para que as empresas pudessem buscar crédito nos mesmos bancos que foram taxados e que recuperaram, no médio prazo, o sacrifício feito naqueles três anos.

No Brasil, bastaria que o país regulamentasse o que diz a Constituição de 1988, que instituiu a taxação sobre grandes fortunas, que nunca saiu do papel. Sem isso, quem ganha menos no Brasil acaba pagando mais imposto, já que a maior parte dos tributos, 56% deles, é cobrada de forma direta, embutida nos preços dos produtos e serviços, que consomem uma parcela bem maior dos rendimentos dos que ganham menos. Uma queda no desemprego já seria suficiente para aumentar a arrecadação e fazer o país sair da crise em que continua atolado e recuperaria a capacidade de investimento do governo nas obras de infraestrutura que o país precisa e no bem-estar da população.

* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA

 


Revista Piauí: Mal-estar na caserna

Intervenção no Rio expõe divergências entre generais e empurra o Exército para o centro do processo eleitoral

Por Fabio Victor, da Revista Piauí

Na véspera do anúncio da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, o general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, foi dormir contrariado. Naquela quinta-feira pós-carnavalesca, quando o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, lhe apresentou a ideia, ele a rechaçou de pronto: disse que a intervenção era uma medida para casos de maior gravidade, um remédio extremo e amargo, e que a situação na cidade poderia ser controlada por meio de outras ações, como a operação de Garantia da Lei e da Ordem já em vigor. Deixou claro que, caso o Palácio do Planalto insistisse naquela direção, ele não gostaria de ser nomeado interventor. A despeito disso, o ministro o convocou para ir a Brasília no dia seguinte.

Na sexta-feira, ainda no Rio, o general participou por videoconferência do início de uma reunião extraordinária do Alto Comando do Exército para tratar da intervenção – era, até então, uma medida inédita no país desde o fim do regime militar. Soube ali que sua nomeação já estava decidida, notícia que também já pipocava na imprensa. Braga Netto comentou com oficiais seu desconforto com a situação e viajou para Brasília a tempo de pegar o final da reunião no Quartel-General do Exército.

Numa instituição pautada por planejamento e estratégia, o tom entre os generais de quatro estrelas que integram o Alto Comando foi de reprovação à intervenção em si e ao modo apressado e atabalhoado com que a medida acabou sendo imposta. O plano lhes parecia um festival de improvisos. O texto sucinto do decreto resumia seu objetivo a “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” – conforme previsto na Constituição –, mas não embasava o propósito nem descrevia ações para atingi-lo.

Ainda na sexta, acompanhado do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, Braga Netto rumou ao Palácio do Planalto. Em audiência com o presidente Michel Temer, os dois militares reivindicaram dinheiro para as operações e medidas adicionais ao decreto, com ênfase em dois pontos: o governo deveria solicitar à Justiça mandados coletivos de busca e apreensão, além de assegurar regras mais flexíveis de atuação das tropas, entre as quais a permissão para atirar em civis “com intenção hostil”. Nos dias seguintes, o governo passou a testar a reação da sociedade às solicitações dos militares, e a acolhida não foi boa. O Ministério Público Federal, entidades de defesa dos direitos humanos, acadêmicos e jornalistas alertaram que a intervenção não poderia atropelar garantias individuais asseguradas pela Constituição.

Ao fim do encontro no Planalto, ao lado de Jungmann e de Sergio Etchegoyen, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Braga Netto participou de uma entrevista coletiva na qual se manteve sério e em silêncio a maior parte do tempo. Mineiro que completará 61 anos no dia 11 de março, o general é um homem de poucas palavras. Não gosta de ser fotografado. Em sua primeira grande aparição ao país, o interventor nomeado a contragosto deu respostas especialmente monossilábicas. Não podia falar nada, disse com uma sinceridade cortante, pois acabara de receber a missão e não sabia ainda como tocá-la.

Os idealizadores do plano tampouco tinham respostas convincentes para perguntas que se acumularam na esteira do anúncio: se há estados brasileiros em que a violência é maior do que no Rio, por que intervir primeiro lá? Se o uso das Forças Armadas na segurança pública já se mostrou inócuo em várias outras ocasiões, em especial no Rio, por que insistir nessa opção? Se o governo estadual se dispõe a cooperar, por que intervir, em vez de buscar modalidades menos radicais de socorro?

 

Impacto
intervenção nasceu quando o presidente Michel Temer e seus ministros Moreira Franco, da Secretaria-Geral da Presidência, e Jungmann perceberam que uma medida de impacto na área da segurança tiraria do foco a derrota iminente da reforma da Previdência e poderia dar sobrevida a um governo que estava marcado para morrer – dez meses antes do término do seu mandato. Etchegoyen, o auxiliar de Temer que melhor conhecia o tema e já havia mencionado a intervenção como alternativa de choque à situação no Rio, se juntou à dupla para operacionalizar o plano. Ao lado de Moreira e de Jungmann, o general da reserva se tornou um dos estrategistas mais influentes do círculo do presidente.

O Carnaval propiciou as circunstâncias que o grupo palaciano necessitava. Antes da festa, Jungmann e o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, disseram em entrevistas que não viam necessidade de convocar as Forças Armadas para o período carnavalesco. Pezão foi para o interior e o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, viajou para a Europa.

Na segunda-feira, o Jornal Nacional começou destacando: “O Rio de Janeiro tem um Carnaval marcado pelos arrastões; moradores e turistas reclamam da falta de policiamento.” Na terça-feira, a queixa se repetiu, e a escalada (nome que se dá às chamadas que abrem o telejornal) exibiu um saque num supermercado da Zona Sul carioca e tiroteios em outros pontos da cidade. Na Quarta-feira de Cinzas, um derrotado Pezão dizia diante das câmeras que o governo não estava preparado para o policiamento no Carnaval (“Não dimensionamos isso”). Crivella, por sua vez, aparecia em seu giro europeu repetidas vezes no noticiário da Globo, claramente ridicularizado.

Na própria quarta, Michel Temer reuniu os comandantes militares para alertá-los do que viria. Na quinta, Jungmann e Moreira Franco foram ao Rio acertar com Pezão a intervenção. O governador, àquela altura, não tinha cacife para manifestar qualquer resistência. À noite, o governo bateu o martelo num encontro no Palácio da Alvorada. Como diria Etchegoyen dias depois, “ficou claro que estava esgotada a capacidade de gestão do Rio de Janeiro na área de segurança pública”.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, chegou à reunião quando a decisão já estava tomada, tarde da noite, e não gostou do que viu. O parlamentar do DEM vinha planejando o anúncio, a partir de março, de medidas para o setor em que Temer se mexia. Seria uma tentativa de se descolar do fiasco na Previdência e de alavancar as pretensões eleitorais de sua família. Maia ainda não havia abandonado a fantasia de uma candidatura presidencial. Seu pai, o ex-prefeito do Rio César Maia, também tem pretensões eleitorais no estado este ano. Com a intervenção, ambos foram atropelados pelo também carioca Moreira Franco – que é casado com a sogra de Rodrigo. Uma semana depois da publicação do decreto, o presidente da Câmara convocou uma entrevista coletiva e lançou o Observatório Legislativo da intervenção, que promete fiscalizar o andamento das operações militares na cidade.

Apesar das imagens violentas exibidas na tevê, os índices de violência registrados no Carnaval se mantiveram estáveis em relação aos últimos anos – a maioria caiu, segundo a Secretaria de Segurança Pública.

Generais do Alto Comando do Exército avaliaram que o comportamento da mídia, em especial da Rede Globo, foi decisivo para o governo decretar a intervenção. Antes de se reunir com Temer no Planalto, Braga Netto foi abordado por jornalistas, que perguntaram se a crise do Rio era muito grave. Ele fez que não com o dedo e afirmou: “Muita mídia.”

Fortalecimento
Numa quadra histórica em que política e políticos são escorraçados pela opinião pública, a intervenção no Rio sob o comando do Exército coroa um fenômeno de fortalecimento da imagem dos militares entre os brasileiros. Um dos traços mais visíveis dessa tendência foi o crescimento das intenções de voto em Jair Bolsonaro. Deputado há 27 anos, o ex-capitão do Exército é um entusiasta do regime militar. Ocupa desde o ano passado a segunda colocação na corrida para a Presidência da República. Pesquisa do Datafolha em meados do ano passado registrou que as Forças Armadas eram a instituição em que a população declarava ter mais confiança. Não há motivo para pensar que isso mudou de lá para cá. Foi nesse caldo de cultura que prosperou o recurso aos militares na segurança pública nos estados, com as operações de Garantia da Lei e da Ordem – como são chamadas as missões, autorizadas pelo presidente da República, em que as Forças Armadas podem atuar com poder de polícia para combater casos de perturbação da ordem pública.

Em 2015, houve três operações de GLO, com o auxílio de 15 500 homens do Exército. Em 2016, ano de Olimpíada e eleições, o número de operações subiu para sete; o contingente, para 89 800 homens. No ano passado, foram seis operações, com efetivo de 45 900 soldados. Levantamento recente feito pelo jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o emprego das Forças Armadas no combate ao crime organizado cresceu pelo menos três vezes nesta década em relação aos anos 90.

O governo Temer agiu para fortalecer a onda verde-oliva. Deu mais dinheiro às Forças Armadas, cujo orçamento fora depauperado na recessão iniciada sob Dilma Rousseff, depois de um período de bonança nos anos Lula. As despesas discricionárias (não obrigatórias por lei) do Ministério da Defesa, que haviam despencado para 11,5 bilhões de reais em 2016, passaram a ser de 15,3 bilhões de reais em 2017, já sob Temer, apesar da forte recessão do período.

Outras demandas da caserna também foram atendidas. No ano passado, Temer sancionou uma lei controversa, garantindo a militares envolvidos em crimes contra civis, em operações de segurança pública, a prerrogativa de serem julgados pela Justiça Militar. A “segurança jurídica” reivindicada pelo Exército para a intervenção no Rio é, portanto, uma salvaguarda adicional a um privilégio que a classe já conquistou, sob críticas de entidades de defesa dos direitos humanos.

A recente nomeação do general Joaquim Silva e Luna como ministro da Defesa – o primeiro militar na função desde que a pasta foi criada, em 1999 – no lugar de Jungmann, deslocado para o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, é mais um sinal do prestígio das Forças Armadas no atual governo.

Ainda como presidente interino, Temer havia recriado o GSI – que Dilma havia extinguido –, nomeando um militar para chefiá-lo. Entre a Quarta-feira de Cinzas e a sexta-feira em que saiu o decreto de intervenção, Etchegoyen foi o auxiliar com quem Temer mais se reuniu – sete audiências oficiais, a sós ou em grupo, todas registradas na agenda do presidente.

O general à frente do GSI é um raro caso de militar que, na reserva, tornou-se mais poderoso do que na ativa. Enquanto o comandante do Exército, o general Villas Bôas, tem sob sua liderança 215 mil militares, Sergio Etchegoyen, sem comandar um único soldado, passou a ser a face militar mais influente da Esplanada, posição que a intervenção federal no Rio evidenciou.

Se o general palaciano ocupou o centro da cena, participando do teatro de operações e de sua difusão midiática, Villas Bôas, notório falante, se manteve mais discreto. Em parte porque o interventor, general Braga Netto, embora seu subordinado, responde diretamente a Temer, conforme os termos do decreto; mas também para não manifestar em público, com todas as letras, seu descontentamento com a intervenção.

O comandante do Exército, porém, enviou recados. No dia da assinatura do decreto, publicou três mensagens no Twitter – onde tem 80 mil seguidores, bem mais do que qualquer um dos ministros de Temer. Uma, declarando apoio ao interventor. Outra, que dizia que “os desafios enfrentados pelo estado do Rio de Janeiro ultrapassam o escopo de segurança pública, alcançando aspectos financeiros, psicossociais, de gestão e comportamentais. Verifica-se, pois, a necessidade de uma honesta e efetiva ação integrada dos poderes federais, estaduais e municipais”. E uma terceira, com um informe oficial em que comunicava ter apresentado a Temer “alguns pontos [da intervenção] que devem ser detalhados e regulamentados em Decreto Presidencial complementar”. Até o final de fevereiro não fora editado um decreto complementar.

As restrições de Villas Bôas ao emprego dos militares no combate à violência nos estados já era pública. Em audiência na Câmara, em julho do ano passado, o general afirmou aos deputados: “Eu quero deixar bem claro que nós não gostamos de participar desse tipo de operação.” E então contou uma experiência que viveu no complexo de favelas da Maré, no Rio, em 2015. “Eram onze horas da manhã ou meio-dia de um dia normal. E o nosso pessoal, muito atento, muito preocupado, muito crispado e armado, estava patrulhando a rua onde passavam mulheres e crianças. Falei: ‘Somos uma sociedade doente. O Exército está apontando armas para brasileiros.’ Isso é terrível.”

O comandante prosseguiu com a queixa. “O pior é que essa concepção de emprego das Forças Armadas, eu lhes digo, é inócua, porque nós passamos catorze meses nas favelas da Maré e, na semana seguinte à nossa saída, todo o status quo anterior tinha sido restabelecido, absolutamente todo. Por quê? Porque nesse tipo de situação o que obtém a solução […] não são as Forças Armadas. Elas são empregadas apenas para criar uma condição de estabilidade e segurança para que os outros braços do governo desenvolvam […]. Gastamos 400 milhões de reais, e devo dizer que foi um dinheiro absolutamente desperdiçado. Então, reconheço como positivo o governo estar repensando esse tipo de emprego das Forças Armadas, porque ele é inócuo e, para nós, é constrangedor.”

No dia em que Temer assinou o decreto arquitetado com a ajuda crucial de Etchegoyen, perguntei a um auxiliar direto de Villas Bôas como estava o comandante. “Na adversidade é que ele se fortalece”, respondeu.

Já Etchegoyen, sobretudo desde que entrou no governo, defende um plano integrado de segurança como solução possível ao quadro do Rio. Durante um seminário sobre segurança pública em agosto do ano passado, atribuiu o fracasso da cidade no setor à carga ideológica de acadêmicos que pesquisam o tema.

“Dependendo do governo e da abordagem, nós tínhamos alguma ideologia que era um ‘ismo’ qualquer, que tentava interpretar o fato social ‘crime’ a partir de uma visão ideológica, muitas vezes dogmática. E que, por ser dogmática, adaptava a realidade a uma compreensão da realidade, e não buscava entender a realidade a partir dela mesma. Produzimos teses, produzimos dissertações, produzimos monografias e eu pergunto: Quanto reduzimos da criminalidade?”, disse o general. E expôs sua receita: “Nós precisamos agir. Nós precisamos fazer. Existem dois fatores críticos para o sucesso disso: a adesão da sociedade no Rio de Janeiro e a compreensão que a mídia terá do que será feito. Isso é fundamental porque vamos ter insucesso, vamos ter incidentes. Estamos numa guerra. Vai acontecer, é previsível que aconteçam coisas indesejáveis, inclusive injustiças. Mas ou a sociedade quer ou não quer.”

Intervenção
intervenção federal no Rio criou um mal-estar entre os dois militares mais poderosos do país – e entre dois amigos de infância. Villas Bôas e Etchegoyen nasceram há 66 anos, num intervalo de três meses, na mesma cidade, Cruz Alta, noroeste do Rio Grande do Sul. As mães dos dois eram amigas desde meninas, os pais eram oficiais do Exército. Tratam-se ainda hoje pelos prenomes, Eduardo e Sergio. O primeiro da infantaria, o segundo da cavalaria, seguiram trajetórias de sucesso na carreira e sempre se mantiveram próximos. Ao assumir como comandante, Villas Bôas nomeou Etchegoyen chefe do Estado-Maior do Exército.

Neto, filho e sobrinho de militares que integraram governos conservadores ou participaram de levantes no século XX, o ministro do GSI se envolveu em pelo menos dois episódios para defender o pai, o general Leo Etchegoyen. Em 1983, o então comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, chamou de “frouxos e incompetentes” os oficiais que depuseram à Comissão Parlamentar de Inquérito da Dívida Externa. Leo Etchegoyen era um dos convocados a depor. Durante uma palestra de Cruz, Sergio confrontou o general e recebeu voz de prisão no ato. Ficou detido por 23 dias.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade incluiu, em seu relatório final, Leo Etchegoyen na lista de responsáveis por violações de direitos humanos, por integrar o aparato repressivo durante a ditadura (foi secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, chefe do Estado-Maior do II Exército e chefe do Estado-Maior do III Exército). O filho rejeita as imputações e diz que o pai, morto, não teve o direito de defesa. Além de criticar o relatório, Etchegoyen, junto com sua família, entrou com uma ação na Justiça contra a Comissão da Verdade, para que o nome do pai seja retirado da relação. Cyro Etchegoyen (tio de Sergio), também integra a lista da Comissão, acusado de ter sido um dos chefes da chamada Casa da Morte, centro de tortura em Petrópolis.

O Etchegoyen do século XXI se declara um defensor da democracia e considera que a única saída para a gigantesca crise recente do país está na política – e nos políticos. Sustentou essa posição ao rejeitar uma sondagem para ser candidato a presidente. Em julho do ano passado, Carlos Marun, então líder da tropa de choque de Temer na Câmara e hoje ministro da Secretaria de Governo, abordou o ministro-general com a ideia de transformá-lo no nome do MDB na disputa pelo Planalto. Etchegoyen desconversou, e Marun voltou à carga em 15 de agosto, numa audiência oficial que solicitou com o ministro.

“Fiz consultas dentro do partido, muitos entenderam como positivo, estive no Rio Grande do Sul, já que ele é gaúcho, lá avançamos em algumas conversas, até que eu e o líder do MDB na Câmara, Baleia Rossi, fizemos o convite para o general entrar no partido e se transformar em uma opção de candidato à Presidência”, me contou Marun. Perguntei se Temer dera aval à operação. “Talvez eu tenha falado com ele em algum momento, mas não me recordo de ter marcado uma audiência”, respondeu Marun, ex-aluno de colégio militar em Porto Alegre. O escudeiro de Temer passou então a elencar o que o atrai no general: “Tem currículo suficiente, espírito de liderança, moral ilibada, amor à democracia. Não deve haver preconceito contra ninguém, o Brasil pode sim ser governado por um militar, desde que seja a vontade do povo expressa nas urnas. Mas ele se colocou completamente refratário à ideia e não quis nem se filiar.”

Perguntei a Etchegoyen o que ele achava do convite. Ele rechaçou a ideia sem meias palavras: “Não é meu talento, não é minha vocação. É uma coisa contrária à minha natureza. É uma mosca que não me morde e se morder não me entusiasma”, disse, numa tarde de novembro, em seu gabinete no 4º andar do Palácio do Planalto. Com um rosto rechonchudo a sustentar uma calva pronunciada, Etchegoyen tem olhos verdes e bigode à la Felipão. O que lhe resta de cabelo é espetado, conferindo ao general um ar enfezado. Descendente de bascos e alemães, é um homem circunspecto, cujas bochechas se avermelham quando sua fala adquire contornos enfáticos – na maior parte do tempo ele é cortês e tem a fala mansa.

“Na minha convicção, a solução do Brasil é política, o Brasil precisa de um político, não de um outsider. Eu não me enquadro nisso. Me olho no espelho e não vejo esse cidadão. Conseguimos avançar tanto na consolidação de instituições e da democracia que qualquer coisa que desviar disso na solução de que precisamos vai trazer muito mais solavancos”, disse Etchegoyen.

Isso, no entanto, não impede que o general defenda a geração de militares responsáveis pelo golpe de 1964. Foi, segundo ele, uma geração capaz de, na adversidade, formar discípulos legalistas. “Tu tens hoje uma liderança militar – o general Villas Bôas, o Alto Comando do Exército – com uma convicção republicana e democrática muito forte. Isso não se adquiriu num insight, numa experiência mística coletiva. Quem nos formou foi a geração que fez 64, é isso que vocês têm de se dar conta”, ele me disse, com seu forte sotaque gaúcho de erres intermináveis. “Essas pessoas, que podem ter cometido equívocos e exageros aqui e ali, tinham a honestidade de propósitos difícil de tu encontrar hoje em dia em qualquer instituição”, acrescentou Etchegoyen.

Mas e os excessos e os crimes que aquela geração cometeu não interferiram na formação desta? “No quê? A sociedade brasileira hoje tem tantos equívocos, tantos segmentos cometendo equívocos, que tu olha para um quartel e vê que ele está protegido de tantos equívocos. Acho que foram pessoas com muita honestidade de propósito. E nos educaram.”

Em novembro, quando conversamos, Etchegoyen sustentou que não havia risco de intervenção militar no país à revelia da Constituição, como cogitado pelo general Hamilton Mourão, oficial muito influente no Exército. Em palestra numa loja maçônica de Brasília, em setembro, ao ser indagado se as Forças Armadas não deveriam intervir para pôr fim à corrupção no governo Michel Temer, Mourão disse que poderia chegar “o momento em que ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”.

Etchegoyen minimizou o ocorrido. “Os militares estão quietos há tanto tempo que quando um general fala vira um escândalo. Acho que foi um episódio supervalorizado”, disse, defendendo Mourão – “um homem bom, leal, um soldado respeitado”.

Segundo o ministro do GSI, “a instituição que mais se comprometeu integralmente com o processo democrático foram as Forças Armadas. Em nenhum momento tu tens nenhuma história para contar de que os militares trouxeram alguma truculência ao processo democrático. Imaginar que vão passar a ser agora?”.

Quando a conversa chegou a Bolsonaro, o general comentou: “Tu achas viável que num país que evoluiu tanto institucionalmente, consolidou uma democracia, alguém consiga governar para impor uma agenda totalitária, excludente?”

Etchegoyen se fortaleceu no Planalto num momento crítico da crise que engolfou o governo na época da delação da JBS. Em maio do ano passado, pouco depois de Temer ser alvejado por denúncias de corrupção, uma manifestação contra as reformas trabalhista e da Previdência terminou com quebra-quebra e violência na Esplanada dos Ministérios. Para contê-la, o governo convocou as Forças Armadas, assinando um decreto que permitia aos militares atuar com poder de polícia por uma semana. Houve, na ocasião, muitas críticas. Pressionado, Temer revogou o decreto um dia depois de tê-lo assinado.

A despeito do recuo de Temer, o ministro do GSI ganhou pontos com o chefe durante o episódio. Segundo Etchegoyen, a convocação dos militares se deveu a um incêndio que atingiu o prédio do Ministério da Agricultura, com feridos. As forças policiais e os bombeiros, relatou, não conseguiriam chegar em número suficiente à Esplanada para conter a situação.

“Ali só tinha duas opções: ou irmos para casa lamentando as vítimas que teriam morrido queimadas, mas politicamente satisfeitos por não termos empregado as Forças Armadas, ou não termos vítimas e irmos dormir aguentando a crítica de ter empregado as Forças Armadas”, argumentou Etchegoyen. O ministro contou que estava ao lado de Temer no Planalto no momento em que a decisão foi tomada. E de quem foi a decisão?, perguntei. “A decisão é sempre do presidente. O assessoramento é meu.”

 

SMU
8 quilômetros do gabinete de Etchegoyen, na Esplanada dos Ministérios, o Setor Militar Urbano (SMU) é o bairro do Exército em Brasília – um oásis de tranquilidade contíguo à ilha da fantasia que é o Plano Piloto. Ao lado do Clube do Exército, de um teatro, de uma igreja e da praça projetada por Burle Marx que virou ponto de lazer e piquenique, está a Vila Militar, com suas casas de cerca baixa evocando uma segurança que a maioria dos brasileiros não conhece. A residência de Villas Bôas fica numa quadra à parte, privativa para generais, numa área verde cercada por grades conhecida como Fazendinha. Está a menos de 500 metros do principal conjunto de prédios do bairro, o Quartel-General do Exército, chamado de Forte Apache.

O visitante que acessa o Forte Apache pela entrada principal do edifício, reservada a autoridades, dá num hall monumental de piso de mármore branco, decorado com enormes telas a óleo de batalhas do Exército brasileiro. Nos corredores, numa espécie de coreografia incessante, os subalternos batem continência à passagem de um superior. Quanto maior a patente, mais alto o estalo produzido pelo braço do subordinado na lateral do corpo “em movimento enérgico” (como previsto em um decreto presidencial que regulamenta esse tipo de saudação).

Numa manhã quente no final de novembro passado, o comandante do Exército me recebeu para uma entrevista em seu gabinete no Forte Apache. Eduardo Villas Bôas é um homem magro e alto, com rosto anguloso, queixo pontiagudo e olhos num tom entre o verde e o castanho. Seus cabelos, bem curtos, começam a branquear, principalmente nas laterais – recentemente ele resolveu pintá-los. Tem a fala calma, que, por causa da doença degenerativa que o acomete, às vezes é entrecortada por uma respiração arfante, como a de um asmático em crise.

A enfermidade do general, conhecida como doença do neurônio motor, ataca as células nervosas responsáveis pela atividade muscular. Há dezenas de subtipos da moléstia, cujo diagnóstico costuma ser difícil e impreciso. Diferentemente do Alzheimer, que debilita o cérebro e mantém o resto do corpo intacto, as doenças do neurônio motor geralmente devastam aos poucos o corpo sem causar danos ao cérebro. No caso de Villas Bôas, ela já lhe impediu de caminhar, afetou os músculos que auxiliam sua respiração e comprometeu movimentos dos braços e das mãos.

Quando entrei na sala, ele estava sentado em sua cadeira de rodas, atrás da mesa de reuniões do gabinete, e vestia seu uniforme do dia a dia, com camisa cáqui e calça verde. Em aparições públicas que não sejam solenidades oficiais, costuma optar pelo uniforme de combate, camuflado.

“Deixa em off ou põe em on?”, Villas Bôas perguntou à equipe de auxiliares em torno da mesa de reuniões de seu gabinete. De supetão, o comandante do Exército decidiu promover uma enquete com seus homens de confiança para saber se falaria abertamente ou off the record, quando a origem da informação é ocultada numa reportagem.

Tratávamos da aproximação entre militares e política. Villas Bôas expunha os ressentimentos que a cúpula do Exército tem com o Partido dos Trabalhadores. O ponto mais sensível, que exaltou os outros presentes à sala em sintonia com o comandante, era um trecho de uma “resolução sobre conjuntura” assinada pelo Diretório Nacional petista em maio de 2016. No texto, publicado dias após o Senado autorizar a abertura do processo de impeachment de Dilma e determinar o seu afastamento da Presidência por 180 dias até a votação final, o partido aponta como deveria ter agido para ter evitado a queda e se queixa por não ter interferido no sistema de promoção das Forças Armadas nem ter alterado o currículo das escolas militares.

“Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação”, diz o parágrafo que consta no documento de dez páginas.

Estavam na mesa os generais Otávio Rêgo Barros, chefe do CCOMSEx, o Centro de Comunicação Social do Exército; Tomás Ribeiro Paiva, chefe de gabinete, e Ubiratan Poty, chefe do Centro de Inteligência do Exército, além dos coronéis Alberto Fonseca, assessor do gabinete do comandante responsável por análises de conjuntura, e Alcides de Faria Junior, chefe da Divisão de Relações com a Mídia do CCOMSEx. Foi a eles que Villas Bôas perguntou se deveria falar “em off ou em on” naquele trecho da entrevista. Todos sugeriram que o comandante abordasse o assunto “em on”.

“Isso nos preocupa porque, se por um lado, nós somos instituições de Estado e não podemos participar da vida partidária, indica uma intenção de partidos interferirem no Exército”, iniciou o comandante. O general Tomás o seguiu: “Isso para mim foi o maior erro estratégico do PT, foi uma coisa burra.” “Essa é uma coisa que não é admitida pelas Forças Armadas, a intervenção em nosso processo educacional. Esquece”, emendou o coronel Fonseca. “Isso nos fere profundamente. Está na nossa essência, no nosso âmago”, concordou Villas Bôas.

No embalo, o grupo expressou insatisfação com a Comissão Nacional da Verdade, instalada no governo Dilma para apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Os militares se queixam de que a comissão restringiu seu foco à ditadura de 1964 a 1985 e só investigou violações “de um lado”, o deles.

Meses depois de nossa conversa, Villas Bôas se meteria numa enrascada ao evocar essa mesma posição diante da intervenção no Rio. Durante uma reunião para debater o decreto, o general cobrou de Temer garantias aos militares em ação no Rio para que mais tarde não fossem alvos de uma nova Comissão da Verdade. Foi como se pedisse um salvo-conduto para repetir nas favelas cariocas crimes cometidos durante a repressão. Um auxiliar do comandante definiu a declaração como “uma frase infeliz”.

 

Mais novo
A
o assumir seu segundo mandato, em janeiro de 2015, Dilma trocou os chefes das três Forças. Villas Bôas estava entre os generais da lista tríplice enviada pelo Exército ao ministro da Defesa, o petista Jaques Wagner, que examinou os nomes e os submeteu à presidente, a quem cabe a nomeação. Embora o mais comum seja priorizar o general mais antigo da lista, naquele ano o escolhido foi o mais novo.

“Villas Bôas é um militar clássico, um brasileiro nacionalista e respeitador das leis. Onde chefiou sempre se transformou num líder porque é afável, corajoso e motivador. E é um democrata, um cara olhando para a frente, portanto qualquer movimento nesse sentido, de uma intervenção militar ao arrepio da lei, não encontraria nele um estimulador”, me disse Wagner, hoje secretário de Desenvolvimento Econômico do Governo da Bahia e provável candidato ao Senado em 2018, embora também seja uma alternativa do PT à Presidência caso Lula seja definitivamente impedido.

Desde cedo Villas Bôas rechaçou publicamente os murmúrios sobre recorrer às Forças Armadas como remédio para a crise, reiterando que cabe ao Exército cumprir a Constituição. Numa entrevista, chamou de “malucos” e “tresloucados” os entusiastas de um golpe. Quando conversamos, em novembro, disse que a chance de haver uma intervenção militar no Brasil era “absolutamente zero”.

Quando soube da gravidade da sua doença, meses depois de descobri-la, o comandante do Exército solicitou uma audiência com Temer e colocou seu cargo à disposição. Era março de 2017. “General, não preciso do seu físico, o que mais preciso do senhor é de sua cabeça e de sua liderança”, ouviu do presidente. Villas Bôas continuou na função. Dias depois da audiência, tornou pública sua enfermidade. Na ocasião, já tinha dificuldade para caminhar.

Quando, no rastro das denúncias contra Temer, a crise escalou e as menções a um golpe militar ultrapassaram a fronteira dos “tresloucados”, Villas Bôas precisou fazer política. A incendiária declaração do general Hamilton Mourão em setembro teve ampla repercussão na imprensa – de várias partes houve cobranças de que o general fosse exonerado do cargo de secretário de Economia e Finanças do Exército. Villas Bôas minimizou o episódio. Além de não punir o colega, na sua primeira manifestação pública posterior à confusão – uma entrevista ao programa Conversa com Bial, na Globo – definiu Mourão como “um grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão”.

O comportamento de Villas Bôas dividiu opiniões. Parte o considerou condescendente com a linha dura que flerta com o golpismo, parte ouviu a fala do comandante como um lance habilidoso para não atiçar a parcela do Exército alinhada com Mourão – que não é pequena, mas está majoritariamente na reserva. Conhecedores do funcionamento das Forças Armadas concordam com a segunda leitura. Contemporizando, Villas Bôas desinflou o balão.

Adeptos da tese da condescendência, no entanto, se lembram de uma publicação de Villas Bôas no Twitter, depois do episódio com Mourão. Nela, o comandante cita uma frase de Samuel Huntington, conhecido cientista político conservador americano cujas ideias inspiraram o generalato brasileiro na ditadura. “Samuel Huntington nos instiga: ‘A lealdade e a obediência são as mais altas virtudes militares; mas quais serão os limites da obediência?’ O Estado, ao nos delegar poder para exercer a violência em seu nome, precisa saber que agiremos sempre em prol da sociedade da qual somos servos”, escreveu Villas Bôas em novembro.

A mulher do comandante, com quem ele é casado há 41 anos, também compartilhou no Facebook publicações simpáticas à causa dos “tresloucados”. “Intervenção militar não é golpe. Não é a volta da ditadura. Não é golpe na democracia. Intervenção militar é a garantia da democracia com a saída imediata dos políticos que destruíram nossa nação!”, dizia uma delas.

Menos de três meses depois de sua declaração bombástica na loja maçônica, Mourão daria outra palestra, desta vez no Clube do Exército de Brasília. A certa altura, disse: “Nosso atual presidente vai aos trancos e barrancos, buscando se equilibrar, e, mediante um balcão de negócios, chegar ao final de seu mandato.” O Palácio do Planalto chiou, e Mourão foi exonerado. Apesar de a punição ter sido publicada no Diário Oficial, na prática o general punido continuou na função até o final de fevereiro. Em 1º de março, entraria para a reserva.

Mourão – que não tem parentesco com Olympio Mourão Filho, o general que deu a largada no golpe de 64 ao marchar com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro – prepara sua candidatura à presidência do Clube Militar do Rio, mas não descarta disputar algum cargo, majoritário ou proporcional, na eleição de 2018. Diz ter sido sondado por alguns partidos, mas informou a amigos que, por enquanto, não se interessou.

 

Oficiais
A
té o governo do marechal Castelo Branco, o primeiro do regime militar inaugurado com o golpe de 64, os oficiais de alta patente podiam permanecer por anos na ativa e transitar sem impedimento entre os quartéis e a vida política. Foi o caso do marechal gaúcho Cordeiro de Farias, governador biônico do Rio Grande do Sul (de 1938 a 1943) e governador eleito de Pernambuco (de 1955 a 1958), que em seguida continuaria a ocupar cargos estratégicos no Exército. O também marechal Henrique Teixeira Lott foi derrotado por Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960. Outros militares que no século XX ocuparam a posição máxima na hierarquia das Forças Armadas tiveram intensa atuação política, como Newton Estillac Leal e Odílio Denys.

Castelo fez alterações no sistema de promoção de militares que asseguraram a renovação na cúpula do Exército. Entre as mudanças, estipulou que um general não poderia ultrapassar doze anos no posto e fixou prazos para que ascendessem dentro desta patente, de tal modo que cada um dos graus (brigada, divisão e exército) atualizasse anualmente seus quadros: um general de brigada que não for promovido em quatro anos a general de divisão, por exemplo, vai compulsoriamente para a reserva, e assim por diante.

Os militares com veleidades políticas também foram afetados: uma vez eleitos, passaram a ser transferidos para a reserva, automaticamente, no ato da diplomação. Castello também criou o mecanismo do domicílio eleitoral como condição para que um candidato pudesse ser elegível, inviabilizando, nas eleições estaduais de 1966, as candidaturas dos então generais Teixeira Lott, Amaury Kruel, Justino Alves Bastos e Jair Dantas Ribeiro aos governos da Guanabara, de São Paulo, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.

A candidatura de um militar à Presidência, ainda que um militar da reserva, como Jair Bolsonaro, constitui uma novidade no cenário brasileiro pós-redemocratização. Villas Bôas associa a força do ex-capitão a uma reação da sociedade brasileira (“que é conservadora”, ressaltou) contra o que ele chama de “pensamento politicamente correto em suas várias vertentes”.

O general tentou explicar melhor o fenômeno Bolsonaro. Sem que os auxiliares o interrompessem, engatou a tese de que a moral e os bons costumes são a arma da direita contra o avanço do que ele definiu genericamente como “ideologia”. “Temos visto um movimento muito grande relativo à ideologia de gênero, vimos a questão dos museus. São coisas que para a população são agressivas”, disse Villas Bôas, fazendo alusão à performance de um homem nu que foi tocado por uma criança acompanhada pela mãe, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. “A ideologia tem dificuldade de trabalhar com a realidade. A atuação ideológica não visa solucionar o problema, ela visa fortalecer esse componente ideológico.”

Num só fôlego, o comandante passou a listar exemplos de causas que são prejudicadas pela “ideologia” de movimentos que as defendem. “Quanto mais se implanta um pensamento de preocupação ambiental, mais nós temos tido danos ambientais e desmatamento. Porque não visa atingir resultados, visa sim fortalecer todo o sistema que opera essas ideologias.”

Villas Bôas avançou até a questão indígena. “Quanto mais indigenismo se tem no Brasil, mais os coitados dos índios estão abandonados. Porque os índios ficaram reféns desses slogans ideológicos e não conseguem expressar suas reais necessidades.”

E chegou ao racismo: “A questão de preconceito racial – que é absolutamente pertinente, o preconceito é algo realmente odioso –, pela forma como tem sido conduzida, tem feito o Brasil deixar de ser um país de mestiços para passar a ser um país de brancos e pretos.” Arrematou com Bolsonaro: “Então, quando surge alguém que se contrapõe a esse pensamento, com coragem e capacidade de expressar isso, ele consegue representar uma parte grande da sociedade, que se sente até acuada, imobilizada diante dessa pressão tão grande. Daí o crescimento de uma candidatura como a do Bolsonaro.”

Villas Bôas considera que o ex-capitão tem uma aceitação ampla nas Forças Armadas e avalia que as chances dele dependem do surgimento ou não de um nome que una o centro – algo que, nas entrelinhas, o comandante parece acalentar.

 

Interventor
A
ssim como seus colegas do Alto Comando do Exército, o interventor Braga Netto nutre respeito e admiração por Villas Bôas. Embora seja da mesma arma de Etchegoyen, a cavalaria, o general se entende melhor e ouve mais o comandante – a quem trata por “senhor” – do que o ministro do GSI. Braga Netto e Villas Bôas trabalham juntos para que a intervenção tenha como efeito colateral mais investimentos no Exército – é esse, de resto, o aspecto que julgam positivo nas operações de GLO. Os dois também alinharam o discurso de que os militares estão prontos a se sacrificar pelo sucesso da intervenção, desde que as outras partes envolvidas (“poderes constitucionais, instituições e, eventualmente, a população”, como descrito no informe oficial enviado a todos os integrantes do Exército) também estejam dispostas ao sacrifício.

A parceria desejada pelos generais se projeta turbulenta. Seja porque algumas das primeiras medidas da intervenção – como a de fichar, fotografar e revistar moradores de favelas – provocaram reações negativas; seja porque Braga Netto, antes mesmo de anunciar seu plano de ação, teve de lidar com um passivo de operações militares recentes no Rio.

Em novembro passado, oito pessoas foram assassinadas durante uma operação conjunta do Exército e da Polícia Civil no Salgueiro, conjunto de favelas em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Segundo a autópsia, todas foram baleadas pelas costas. O episódio, que ficou conhecido como a chacina do Salgueiro, até hoje não foi esclarecido. Os soldados do Exército que participaram da ação não depuseram ao Ministério Público Estadual nem à polícia, somente ao Ministério Público Militar. Promotores civis solicitaram cópias dos depoimentos, mas não as obtiveram.

A organização Human Rights Watch criticou o interventor recém-empossado. “A obstrução das investigações por parte do general Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis. Isso é um péssimo sinal para os cidadãos do Rio de Janeiro, considerando seu novo posto como chefe da segurança pública do estado”, disse a diretora do escritório brasileiro da ONG norte-americana, Maria Laura Canineu.

Por meio de seu porta-voz no Comando Militar do Leste, Braga Netto informou que o Ministério Público Militar ouviu os soldados envolvidos na operação e está investigando o caso.


Sérgio Besserman Vianna: Coragem

A maior das coragens intelectuais é rever suas próprias opiniões, especialmente as mais caras à própria história

Coragem intelectual é algo muito raro. Coragem física, não; pelo contrário, é comum. Embora a literatura e o cinema consigam com facilidade despertar o interesse humano por atos de grande coragem, para o macho homo sapiens são ações quase naturais, darwinianamente selecionadas em centenas de milhares de anos como boa opção para sobreviver, conquistar poder e atrair a atenção das mulheres.

Já a coragem intelectual, a coragem de Sócrates, Giordano Bruno, Galileu Galilei (mesmo que nunca tenha sussurrado eppur si muove) e muitos outros — ou seja, a coragem de enfrentar o pensamento dominante, mesmo que ao custo da própria vida ou liberdade — tem motivações na afirmação da liberdade individual e da importância de sempre aprofundar o pensamento.

A maior das coragens intelectuais é a de rever suas próprias opiniões, especialmente aquelas mais caras à própria história, psicologia e visão de mundo. Não é algo simples. Mesmo na Ciência, com sua adesão rigorosa a métodos de investigação e de confronto com as evidências, podemos contar duas histórias opostas sobre o tema. A primeira, muito edificante, é relatada pelo biólogo Richard Dawkins. Um recém-doutor apresenta sua tese sobre o metabolismo celular em um auditório de Oxford. Ao final, em seguida às palmas, um catedrático da área, já idoso, levanta-se, sobe as escadas e cumprimenta o jovem cientista na frente de todos: “Obrigado por mostrar que eu estive errado nos últimos 25 anos”.

Mas nada que é humano é simples. O grande Max Planck, um dos pais da física quântica, observou que, muitas vezes, o avanço da Ciência não vinha do convencimento, mas da eventual morte dos cientistas estabelecidos, abrindo espaço para outra geração aberta às novas ideias.

Pessoalmente, assisti a dois momentos de grande coragem intelectual (que não beneficiaram em nada seus autores). Mikhail Gorbachev, reconhecendo o fracasso da experiência soviética, e Alan Greenspan, ex-presidente do Fed (o banco central americano), sendo questionado por um senador democrata após a crise de 2008: “Então, você reconhece que estava errado (sobre se mercados se autorregulam)?”. E Greenspan, repetindo Keynes, “Sim. Quando os fatos mostram que eu estava errado, eu costumo mudar de opinião”.

Karl Marx, no final da vida, de saco cheio com as simplificações de cartilha do seu pensamento, declarou: “Só tenho certeza de uma coisa, não sou marxista”. Muito antes, sua filha Laura lhe aplicou um questionário onde no final lhe perguntava sobre seu lema preferido. E Marx: “Duvidar sempre”.

O psicanalista Frances André Green resumiu numa frase maravilhosa: “A infelicidade da pergunta é a resposta”. Nesse Brasil politicamente tão polarizado de forma rasa e superficial, talvez esteja faltando aos extremos fisicamente tão aparentemente corajosos um mínimo de superação da covardia intelectual.

* Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

 


Demétrio Magnoli: A esquerda diante da democracia

Boulos subordina PSOL à narrativa que nasceu como tática do PT para conservar hegemonia lulista sobre esquerda na sequência da derrota representada pelo impeachment

‘Este nosso encontro talvez fosse improvável”, sugeriu Guilherme Boulos no lançamento de sua pré-candidtura presidencial, diante de Caetano Veloso e um cortejo de celebridades. Improvável por quê? “O que nos uniu foi o avanço do conservadorismo, que nos forçou a buscar alianças novas”, explicou o candidato pelo PSOL. De acordo com a narrativa que vai sendo alinhavada pela esquerda, o Brasil já não vive numa democracia. O “golpe do impeachment” abriu uma fase de “autoritarismo” que equivale a “voltar 50 anos atrás” (portanto a 1968, segundo Boulos) e se destina a “retirar direitos” trabalhistas e previdenciários. Não é um bom caminho para enfrentar os desafios do ciclo pós-Lula.

Boulos subordina o PSOL a uma narrativa que nasceu como tática do PT para conservar a hegemonia lulista sobre a esquerda na sequência da desmoralizante derrota representada pelo impeachment. Do ponto de vista petista, a denúncia do “golpe de 2016” não passa de um expediente oportunista — e a prova disso é que o PT já anunciou a retomada da política de coligações eleitorais com os “golpistas” do MDB e do “centrão”. Mas aquilo que serve ao lulismo não serve à esquerda pós-lulista.

Taticamente, a denúncia do “autoritarismo” implica a “unidade das esquerdas” — isto é, uma frente formal (como quer Tarso Genro) ou informal (como prefere Boulos), no modelo da aliança de resistência à ditadura militar. Na prática, monta-se uma camisa de força eleitoral: após o primeiro turno, os partidos e movimentos de esquerda devem se juntar às candidaturas remanescentes do “campo da esquerda”, que tendem a ser aquelas patrocinadas pelo PT.

No caso da disputa presidencial, a esquerda fica virtualmente comprometida com o candidato ungido por Lula (seja ele Jaques Wagner, Fernando Haddad, Ciro Gomes ou outro). “Jamais vou pedir para você não ser candidato”, garantiu Lula em mensagem exibida no lançamento da campanha de Boulos, explicitando o sentido da parceria. Por essa via, o lulismo sobrevive ao ocaso político de Lula, ancorando as forças de esquerda ao redor de um cais em ruínas.

Estrategicamente, a negação da realidade é a pior das bússolas políticas. No Brasil, estão ausentes todos os traços clássicos dos regimes autoritários. As liberdades públicas não foram tocadas. A separação de poderes ficou comprovada pelo próprio impeachment e, no governo Temer, pelo fracasso do projeto de reforma previdenciária, dois lances de confronto do Congresso com o Executivo. A independência do Judiciário é atestada pelos inquéritos e denúncias contra Temer. O voto de Gilmar Mendes decidiu o habeas corpus a favor de José Dirceu. Lula está solto; Eduardo Cunha, preso. Apesar do que se propaga falsamente a partir do PT e do PSOL, os militares não são (nem poderiam ser) usados para reprimir manifestações políticas.

O Boulos que fala em retorno a 1968 — assim como as celebridades (devo dizer “intelectuais”?) que o cercam — reflete a dificuldade da esquerda pós-lulista de encarar os dilemas reais de nossa democracia bastante imperfeita. A narrativa farsesca, que soa como música aos ouvidos de convertidos, tem o efeito de isolar seus arautos numa redoma folclórica. Lula qualificou Boulos como “pessoa de muito futuro na política”. O dúbio elogio equivale a excluí-lo do presente.

A fonte de inspiração de Boulos e de boa parte do PSOL é o espanhol Podemos, fundado em 2014 sob o influxo das manifestações antiausteridade. Atraído pelo castrismo e pelo chavismo, o partido esquerdista classificou a monarquia parlamentar espanhola (o “regime de 1978”) como uma versão amenizada do franquismo. Nutrindo-se da recessão e dos escândalos de corrupção, o Podemos decolou como um míssil, chegando perto de ultrapassar o Partido Socialista para figurar como segundo partido do país. Contudo, entrou em declínio após as eleições gerais de dezembro de 2015, vitimado por seu próprio discurso de negação da democracia.

O ato desastrado inicial foi a recusa de um pacto de governo com os socialistas, o que propiciou a recondução dos conservadores ao poder. O ato seguinte foi uma aliança tácita com os nacionalistas catalães, que o conduziu a repetir o epíteto de “bloco monárquico” usado pelos separatistas contra todos os partidos constitucionalistas. A reação do eleitorado, expressa nas pesquisas de opinião, já empurrou o Podemos à condição de quarto partido do país. Farsas têm consequências — eis a lição espanhola.

Hipnotizada pelo passado, a esquerda póslulista ainda cultua a Cuba dos Castro, jura fidelidade ao regime agonizante de Nicolás Maduro, recusa-se a admitir o fiasco da política econômica dilmista, traça paralelos delirantes entre o governo Temer e o regime militar e, sobretudo, vira as costas ao diálogo democrático. Três décadas atrás, o PT rejeitou assinar a Constituição de 1988, a mesma que lhe permitiu governar o Brasil por 13 anos. Hoje, imitando o Podemos, seus presumíveis sucessores crismam todos os demais atores políticos como um “bloco autoritário”.

2018 não é 1968. Alguém precisa dizer isso a Boulos.

* Demétrio Magnoli é sociólogo

 


FAP Entrevista: Fernando Gabeira

Gabeira defende parcialmente a intervenção federal no Rio de Janeiro e divide a esquerda atual entre os que veem a democracia como um fim e aqueles que a enxergam como um meio para promover uma ditadura

Por Germano Martiniano

Fernando Gabeira Gabeira é o entrevistado desta semana da FAP Entrevista, uma série de entrevistas com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições. Um dos mais reconhecidos escritores e jornalistas do país, atualmente ele faz o “Programa do Gabeira”, que é exibido pela Globo News, onde viaja por todo o Brasil conhecendo e relatando os problemas de cada região.

Gabeira participou da luta armada contra a ditadura, foi membro-fundador do Partido Verde, no qual foi eleito deputado federal em 1994, sendo reeleito em 1998. Em 2002 trocou o PV pelo PT e foi eleito novamente. Porém, no final de 2003 abandonou a legenda petista por considerar inaceitável a conduta do partido no inicio do governo Lula. É autor do livro “O que é isso, companheiro?”, em que busca compreender o sentido de suas experiências - a luta armada, a militância numa organização clandestina, a prisão, a tortura, o exílio - e no qual elabora, para a sua e para as gerações seguintes, um retrato autêntico e vertiginoso do Brasil dos anos 60 e 70.

Ele atendeu a FAP, por telefone, no Ceará, onde está gravando mais um programa para Globo News. Na entrevista, Fernando Gabeira falou sobre as eleições 2018, meio-ambiente, a esquerda atual e, logicamente, se aprofundou sobre a violência na capital carioca. Para ele, a intervenção federal é mais preocupante que o tráfico de drogas: “o objetivo deveria ser reduzir as armas e não acabar com o tráfico de drogas, que me parece com resultados muito distantes no horizonte”, avalia.

Confira trechos da entrevista:

FAP - Como você analisa a violência na capital carioca e a intervenção federal?
Fernando Gabeira - Analiso a violência no Rio de Janeiro como algo bastante sério e estou de acordo com a intervenção federal desde que ela cumpra os seguintes aspectos:

1) Ela deve ter um prazo claro de saída, não um prazo de calendário, mas a partir da tarefa que ela precisa executar que é normalizar a situação na cidade, pelo menos reduzir o índice de criminalidade e devolver a polícia a sua operacionalidade para ela continuar seu trabalho;

2) Que respeite a população, que não trate a população da favela como se estivessem em um território hostil, mas sim como uma população amiga comandada por forças hostis;

3) Que não seja acompanhada de ocupação em várias favelas, pois, este meio já se provou inadequado, nenhum exercito tem condições de ocupar todas as favelas do Rio;

4) Que estimule a Lava-Jato a realizar seu papel, que é completar a limpeza na política brasileira e do Rio de Janeiro, porque ainda tem muita gente que precisa ser alcançada;

5) Que explicite para população quais são seus propósitos para haver uma maior interação entre o cidadão e o poder público;

6) Por fim, defendo a intervenção, não por achar que todo estado que tem violência deve ter intervenção federal, porém o caso do Rio de Janeiro há dois fatores que justificam a intervenção, o primeiro é a ruina do estado provocada pela incompetência e corrupção do grupo político que ainda está lá, e segundo é a ocupação territorial armada, ocupação do território com pessoas armadas é algo que deve ser combatido em qualquer lugar do Brasil.

O senhor acha que a legalização das drogas seria uma das soluções para o problema da violência na capital carioca e no Brasil?
Essa questão está sendo debatida pelo próprio ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que pediu que houvesse um debate na sociedade sobre a diferença entre tráfico e consumo. Eu acho que a legalização pode potencialmente trazer algum alívio para a violência, mas ela pode trazer também uma série de fatores colaterais que demandariam uma polícia mais bem organizada para tratar deles. Por isso que eu defendo que este tema seja posterior a reformulação da polícia.

O senhor tem um programa na Globo News, no qual viaja o país conhecendo e relatando os problemas de várias regiões. Apesar de todos os problemas sociais e políticos, é possível ver o futuro do país com otimismo?
Eu vejo com otimismo moderado, não creio que estas eleições irão resolver muitos problemas. Mas sinto tanta vontade no Brasil de que as coisas melhorem, que exista mais progresso, mais emprego, que acho que este desejo vai acabar se materializando de alguma maneira. Estas eleições não trarão uma mudança excepcional, mas acho que os caminhos das modificações estão abertos, inclusive já foi aberto no campo da economia, pois a crise mais profunda já foi estancada. Agora é possível pensar em crescimento, crescimento sustentável, reforma politica e também em outras reformas que o país necessita.

Qual deve ser o eixo central, em sua visão, para podermos construir um pais mais justo e mais democrático?
É preciso seguir reconstrução econômica e dentro deste processo discutir a previdência social, pois ela é um grande problema para o Brasil. Precisamos discutir também o processo de modernização do país, de inovação que possa fazer com que ele avance economicamente de uma forma mais firme. Portanto, vejo que no campo da economia precisamos resolver estes dois fatores: solução dos gastos do Estado, principalmente a previdência e do problema do atraso tecnológico e cientifico. No campo político precisamos de uma reforma que reaproxime os grupos políticos do cidadão brasileiro, pois as mudanças que foram feitas na Câmara dos Deputados no “apagar das luzes” foram muito mais para manter o esquema dominante do que para permitir uma renovação.

Acredita em renovação para 2019?
Acredito em uma renovação modesta, não em grande escala. Alguma renovação haverá, pois tem muita gente trabalhando para isso, há muitos grupos trabalhando para renovação e creio que a população irá olhar com muita simpatia para quem ainda não ocupou nenhum cargo público.

O desmatamento na Amazônia, além de outras regiões do país, continua com números alarmantes. O que falta ao país para protegermos todas nossas riquezas ambientais?
O que falta no país é uma consciência de que a proteção das riquezas ambientais acaba sendo a médio e longo prazo mais interessante para economia e para prosperidade do próprio país. De modo geral, a tendência é ter uma visão mais imediatista. O Brasil é um país é muito grande muito, então nossa tendência histórica é de se destruir uma região acreditando que haverá outra para se explorar. Este processo está se esgotando e o Brasil muito breve deverá compreender, não por uma questão de uma consciência moral, e sim por questões econômicas, a importância da água, da diversidade natural. Tudo isso são elementos que definirão uma economia do futuro. Porém, sempre haverá uma luta muito grande entre as pessoas que veem o desenvolvimento do Brasil a longo prazo e aqueles que querem ter um lucro em curto prazo. Hoje, no congresso brasileiro existe uma tendência mais forte em favorecer o curto prazo.

Como o senhor vê a esquerda brasileira atual? Ainda existe esquerda?
Com os acontecimentos que surgiram e com a experiência que foi adquirida neste início de século, as tendências em dividir a sociedade entre direita e esquerda, podem ainda existir, porém não representam mais unanimidade. A sociedade atual, às vezes, aceita soluções de direita; às vezes, aceita soluções de esquerda no mesmo governo. Claro que a complexidade social é tamanha, que nenhuma das duas visões pode resolver sozinha a situação. Cada momento, cada problema, demanda uma análise e solução específica. Um dos parâmetros fundamentais da esquerda, que creio ter possibilidade ainda de avançar e obter maiores êxitos, é o fato de ela ser ou não democrática. Essa é uma linha divisória no interior da esquerda brasileira. As pessoas que acreditam que o processo deve ser democrático e que enxergam a democracia como um fim, e no processo contrário, as pessoas que enxergam a democracia como um meio para se promover uma ditadura. Este é um marco importante, que define duas visões de esquerda. Hoje, por exemplo, só uma minoria da esquerda brasileira rejeita o governo da Venezuela. Outros consideram que o Bolivarianismo é um governo legitimo, popular e progressista, quando na verdade ele não representa mais que uma tentativa de usar a democracia para implantar uma ditadura.


Seminário da FAP aponta reformas estruturais e investimentos em tecnologia como saídas para um Estado sustentável

Evento na capital brasileira foi o último de três promovidos pela Fundação Astrojildo Pereira com o intuito de subsidiar as discussões a serem realizadas durante a Conferência Nacional do Partido Popular Socialista (PPS), nos próximos dias 24 e 25 de março, em São Paulo

Por Germano Martiniano

Ajuste fiscal, reformas estruturais, investimento em ciência e tecnologia, redução de custos e fim da burocracia para ações voltadas ao desenvolvimento da produção local foram algumas das propostas elencadas no seminário - Desenvolvimento Sustentável e Inclusão Social – organizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), neste sábado (10), na Biblioteca Salomão Malina, no Conic, em Brasília. Transmitido ao vivo por meio do perfil da FAP no Facebook (http://www.facebook.com/facefap), o evento registrou  52.470 impressões nas redes Twitter, Facebook e Instagram, além de 6.519 visualizações do vídeo no período da manhã e de 527 visualizações no período da tarde.

O seminário na capital brasileira foi o último de três promovidos pela Fundação com intuito de subsidiar as discussões a serem realizadas durante a Conferência Nacional do Partido Popular Socialista (PPS), nos próximos dias 24 e 25 de março, em São Paulo.

Com a ausência de Cristovam Buarque, que por motivos de saúde não pôde comparecer ao evento; a mesa principal foi composta por André Amado, secretário executivo do evento; Alberto Aggio, historiador; Felipe Salto, economista e Maria Amélia Rodrigues, economista e PhD em desenvolvimento sustentável.

Debate
O economista Felipe Salto, que abriu o debate, apontou que o ajuste fiscal é essencial para o país poder investir em políticas públicas que promovam a sustentabilidade e, consequentemente, a inclusão social. “Precisamos aumentar a produtividade da economia e também de uma agenda fiscal que seja ampla e plural. As despesas do Estado, como salários dos servidores públicos e previdência, estão crescendo acima da inflação”, criticou Salto.

Maria Amélia Rodrigues, também economista e responsável pelo texto base do seminário, avalia que as escolhas políticas feitas pelo Estado brasileiro, ao longo do tempo, tiveram seu alicerce no modelo econômico adotado pelo país, que está assentado em um tripé: sistema financeiro hipertrofiado, economia voltada para commodities e o sistema de ciência e tecnologia assentado em uma base educacional frágil.

“É necessário fazer uma transição entre um velho modelo econômico para outro mais sustentável, baseado em elementos endógenos. Essa transição requer: voltar partes dos ganhos das commodities para uma economia sustentável; incentivar a produção local e reduzir custos e burocracia; investir em capital humano, educação e tecnologia”, afirmou Maria Amélia.

Alberto Aggio finalizou fazendo uma análise da apresentação dos outros dois expositores. Para o historiador, as abordagens anteriores comprovam que o modelo econômico brasileiro está falido e que “compor um quadro de reformas, convencer a sociedade dessa necessidade e fazer nascer lideranças novas para vencer a desconfiança que os cidadãos têm nos atuais políticos” são uns dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta.

Após a exposição da mesa os participantes puderam debater os pontos propostos. Combate às drogas, questões de gênero, intolerância religiosa, violência urbana, proteção do meio-ambiente, avanço tecnológico, educação e outros pontos fizeram parte do debate. “Quando tratamos de sustentabilidade, não se trata apenas de olhar o viés ambiental, como muitos pensam. Mas, também de como integrar todos estes pontos citados em uma proposta de modelo de sociedade”, concluiu Maria Amélia Rodrigues.

Confira o roteiro de discussões utilizado no seminário:

- Assumir o compromisso com uma gestão cuidadosa do dinheiro público
- Resgatar o papel dos bancos de agente de financiamento da produção
- Direcionar parte dos ganhos da exportação de commodities para fortalecer a nova economia sustentável baseada em conhecimento
- Redirecionar os incentivos do modelo de commodities para outro modelo com maior valor agregado, inclusão social e renda
- Reduzir os custos e a burocracia para quem produz, gera empregos e recolhe impostos no país
- Mobilizar a capacidade criativa, empreendedora e inovadora da sociedade
- Priorizar o investimento em capital humano
- Mobilizar forças sociais em prol de uma conduta centrada em valores

Confira entrevistas com os participanntes do seminário:
https://youtu.be/BA2RVRq9evo


El País: A reconquista do Extremo Oriente da Rússia

Kremlin promove o retorno dos descendentes de cristãos russos perseguidos por suas crenças, a fim de repovoar e trabalhar as terras de seus ancestrais. Alguns deles estavam no Brasil

Por Pilar Bonet, de Dersu (Rússia)

Dersu, uma aldeia composta por cabanas de madeira cobertas de neve, foi o principal destino dos imigrantes de origem russa que vieram da América Latina para cumprir os planos de Moscou para a colonização do Extremo Oriente. Vivem aqui 74 Velhos Crentes, ou seja, membros da comunidade cristã que foi perseguida por se opor à reforma litúrgica do patriarca ortodoxo Nikon no século XVII. Os raskolniki, como são conhecidos, se dispersaram pela periferia da Rússia, e uma parte deles partiu para o exílio. A maioria dos que chegam à Rússia atualmente completa um périplo ao redor do mundo, que teve início na China, aonde se refugiaram da Revolução Bolchevique e da guerra civil, e prosseguiu na década de sessenta no Uruguai, no Brasil e na Bolívia, quando as relações entre Moscou e Pequim se deterioraram.

Ulian Murashov, de 53 anos, é o chefe da comunidade de Velhos Crentes de Dersu e, junto com sua esposa, Ksenia, e seus 12 filhos, chegou a esta localidade em 2012, em busca de um lugar mais apto à agricultura e à pecuária do que os apartamentos da guarnição militar na fronteira com a China, onde as autoridades os alojaram durante um ano depois que eles vieram da Bolívia. Nesse país sul-americano, o casal Murashov cultivava dezenas de hectares na província do Obispo Santistevan, no departamento da Santa Cruz (leste). Antes de empreenderem a viagem à Rússia, a pátria de seus antepassados, venderam tudo o que tinham. Suas atividades na Rússia são as mesmas que desempenhavam na Bolívia, com a diferença de que o clima nesta região só permite uma safra por ano. Os Murashov e os parentes que os acompanharam a Dersu dispõem de quase 2.200 hectares de terras, entre adquiridas e arrendadas. A família tem 100 cabeças de gado e vende laticínios e pão uma vez por semana no mercado de Roschino, a 36 quilômetros da sua aldeia.

A reconquista do extremo oriente da Rússia

Os Murashov parecem a reencarnação dos avós e bisavôs, cujos retratos estão pendurados na parede da sua izba (moradia típica). Ksenia usa vestido comprido e um lenço na cabeça. Ulian ostenta uma longa barba avermelhada. “Na Bolívia me chamavam de gringo”, brinca, num castelhano marcado pelo sotaque brasileiro. Ulian conseguiu rapidamente o passaporte russo, mas conserva também o passaporte do Brasil, país onde viveu antes de se mudar para a Bolívia. Daí o seu modo peculiar de se expressar.

“A primeira impressão que nos deram, pela roupa e pela maneira de falar em russo, foi a de uma representação teatral de outra época”, diz Fedor Kronikovski, que desde o verão passado é o defensor oficial dos direitos dos Velhos Crentes imigrados. Antes de ter sido nomeado, duas casas pertencentes aos Velhos Crentes queimaram em Dersu e o metropolita Korniliy transmitiu ao presidente Vladimir Putin sua preocupação com os membros de sua comunidade.

O líder dos Velhos Crentes e o chefe do Estado russo se entenderam nos primeiros contatos jamais mantidos entre o chefe do poder civil na Rússia e o mais alto dignitário daquela Igreja. Um grupo de trabalho especial dedicado aos Velhos Crentes foi criado na Administração do Kremlin e a agência governamental de desenvolvimento do capital humano do Extremo Oriente planeja uma visita ao Brasil, Bolívia, Uruguai e Argentina em abril para incentivar as comunidades locais de Velhos Crentes — entre 3.000 e 5.000 pessoas — a retornar à sua pátria histórica: o leste da Rússia. Em Moscou temem que a captação de novos imigrantes possa ser afetada por problemas em relação aos correligionários que já emigraram para a Rússia.

“Será que somos tão valiosos? Minhas lágrimas caem e estou profundamente agradecido quando penso na atenção impressionante dada pelo Estado [russo], mas as autoridades locais não têm interesse nesse programa de assentamento e muitos aqui nos encaram como parasitas e nos rejeitam”, diz Ulian. “Eu sei que o Governo está lutando, mas tem de renovar as prefeituras, que estão nas mãos das máfias”, diz o colono, preocupado também com a hostilidade de parte da vizinhança.

“Os Velhos Crentes destroem a cumplicidade entre as autoridades locais que quase não possuem recursos e os empresários que tentam influenciá-las por meio do dinheiro”, diz Kronikovski, segundo o qual “aqueles que contemplam os Velhos Crentes de uma posição egoísta são minoria”. “A maioria”, diz ele, “quer ajudá-los porque pensam que o país precisa deles, porque sua fé é uma garantia de imunidade contra a degradação e porque na Rússia atual não existe gente assim”.

Ksenia e Ulian Murashov com um de seus filhos na cozinha da sua casa.
Ksenia e Ulian Murashov com um de seus filhos na cozinha da sua casa. P.B.

Na espaçosa sala de estar dos Murashov, os dois filhos mais jovens, Agripina, de sete anos, e Filaret, de 12, observam o estrangeiro com curiosidade. Sua escolarização é feita por uma professora que dá aulas a domicílio duas vezes por semana. Nestes dias estão alojados na casa de Fedor Kilin e sua esposa Tatiana, os pais de Ksenia, que vieram fazer uma visita desde Svobodna, seu local de residência na vizinha província de Amur. Esses octogenários nascidos na China viveram mais tarde no Uruguai. Depois de uma missão de reconhecimento na Rússia em 2008, Fedor Kilin foi um dos pioneiros do retorno ao país dos czares. O primeiro grupo de colonos disposto a se instalar em Dersu chegou no dia da Páscoa de 2009. Kronikovski e o pope da Igreja Ortodoxa de Roschino receberam o grupo com uma mensagem acima das diferenças litúrgicas: “Cristo ressuscitou”.

Roschino, de 6.000 habitantes, fica a 500 quilômetros ao norte de Vladivostok e no passado tinha um aeroporto do qual se voava para as principais cidades próximas. A retomada das comunicações aéreas é pouco provável por enquanto. Na pista de pouso foram construídas casas e a torre de controle foi transformada em igreja. De Roschino a Dersu não há estrada asfaltada e, guiados por Kronikovski, se atravessam cerca de 36 quilômetros sobre o gelo e o também congelado rio Bolshaia Usurinka.

Dersu recebeu esse nome em homenagem ao caçador Dersu Uzala, imortalizado por Akira Kurosawa, o cineasta japonês que levou às telas a história do geógrafo e oficial czarista Vladimir Arsenev. A aldeia se chamava anteriormente Lauliu, mas os nomes de lugares chineses ou de comunidades autóctones do Extremo Oriente foram substituídos depois do confronto militar russo-chinês de 1969 em Zhenbao (Damanski para a Rússia), uma ilha do rio Usuri, que é fronteira entre os dois países. Zhenbao está na área de mais de 300 quilômetros quadrados que a Rússia cedeu à China em virtude de um tratado bilateral ratificado em 2005.

Os Velhos Crentes constroem grandes izbas em Dersu. Os Murashov têm um poço e uma bomba, razão pela qual abrigam em sua cozinha as máquinas de lavar automáticas de outras famílias da comunidade.

Ulian Murashov em frente à sua casa
Ulian Murashov em frente à sua casa P.B.

A família tem receio dos jornalistas em geral, mas se mostra hospitaleira com este jornal e a língua castelhana alternada com o russo soa exótica nestas paisagens nevadas. Ksenia nos oferece chá, pão e geleia caseiros, enquanto Ulian e o defensor de seus direitos se envolvem em um debate sobre o equipamento agrícola que a empresa estatal de petróleo Rosneft deu à comunidade. O equipamento é para todos, mas deve ser registrado em nome de apenas uma pessoa e Ulian teme que o titular tenha que assumir as reparações do maquinário enquanto os outros o usam sem responsabilidades.

Kronikovski tenta convencê-lo das virtudes do trabalho em comum, mas Ulian diz que se sente mais à vontade com a colheitadeira que construiu a partir de sucata. “Tudo o que preciso é terra e um pouco de ajuda para comprar sementes e combustível. Os empréstimos bancários, que devem ser reembolsados todos os meses, não foram pensados para a agricultura, e as subvenções do Estado são muito burocráticas”, diz o colono, a quem o Governo russo pagou a viagem e o transporte de pertences desde a América Latina e ajudou com uma subvenção financeira.

Ulian também se queixa da especulação dos intermediários e Kronikovski admite que “os empresários chineses são mais atraentes do que os russos porque oferecem equipamentos e créditos aos agricultores em troca de comprar-lhes toda a colheita”. “Moscou deveria se preocupar mais e tornar mais vantajoso trabalhar para os seus empresários”, diz.

Os Velhos Crentes não fumam nem bebem e têm prole numerosa. Também são críticos e teimosos. Possuem uma moral de trabalho rigorosa e um profundo senso de responsabilidade. De Moscou, o Estado os trata como se fossem espécimes de uma fauna rara e apreciada. Os vizinhos desses imigrantes os veem, no entanto, de outra maneira. Este jornal ouviu como Ulian e um de seus filhos, barbudo como ele, foram insultados em voz baixa por uma mulher que passou perto deles em Roschino. Segundo contam, a mulher era amiga da acusada de incendiar as casas de Dersu. Tatiana, aposentada, resmunga porque aos novos vizinhos “se dá tudo” e ela só tem uma pensão de 11.000 rublos (cerca de 626 reais) que não é suficiente “nem para pagar a lenha”.

Venedikt Reutov, de 25 anos, outro Velho Crente estabelecido na aldeia de Liubitovka, a duas horas de carro de Dersu, também teve conflitos com os vizinhos. Ele chegou da Bolívia em 2014, com os pais e os irmãos. Venedikt casou-se na Rússia com Faina, criada em uma comunidade de Velhos Crentes na província de Khabarovsk. Venedikt confessa que às vezes se desespera e tem vontade de abandonar tudo. O mesmo acontece com seus irmãos, mas “não sabem para onde ir”. Ele conta que um líder local, atualmente preso, roubou-lhe 5,3 milhões de rublos (cerca de 301.618 reais) e que de sua opinião agora depende que o coloquem em liberdade condicional. “Deveria dizer que o deixem preso até que pague o que me roubou.” Entre as experiências negativas, Venedikt Reutov conta os 700.000 rublos que foi obrigado a entregar a uma pessoa que inesperadamente reclamou direitos de propriedade do terreno de 270 hectares que ele estava comprando. Dos 630.000 dólares que a venda de seu patrimônio na Bolívia lhe proporcionou, não resta quase nada, diz.

Venedikt e Faina se consideram pessoas modernas e se distanciam das tradições de sua comunidade de Velhos Crentes, reticente em relação a telefones, computadores e inclusive à eletricidade. De fato, eles se conheceram através da rede social Facebook e têm WhatsApp e Instagram em seus celulares. Eles sorriem para as fotos e sonham em ir de férias aos Estados Unidos, onde vivem seus parentes, membros da diáspora dos Velhos Crentes russos. Da América Latina, Venedikt sente falta de cocos, mangas e das três colheitas anuais.