Elio Gaspari || O embaixador Eduardo Bolsonaro

Jair Bolsonaro é um mágico. Baixa o nível do debate dos assuntos públicos, trata de cocô e não discute os 12 milhões de desempregados. É ajudado pela oposição que aceita sua agenda ilusionista. Um bom exemplo desse fenômeno é a qualidade do debate em torno da indicação de seu filho 03 para a embaixada do Brasil em Washington.

É nepotismo? Sem dúvida. O que isso quer dizer? Pouco. O ditador nicaraguense Anastasio Somoza nomeou o genro, Guillermo Sevilla Sacasa para Washington. Um craque, tornou-se decano do Corpo Diplomático e atravessou os mandatos de oito presidentes. O Xá do Irã mandou para os Estados Unidos um cunhado, e Ardeshir Zahedi foi um grande embaixador. As monarquias do Golfo mandam seus filhos para Washington e, com a ajuda do poder de petróleo, eles se desempenham com mais sucesso que outros embaixadores árabes.

Há o nepotismo das ditaduras e há compadrio das democracias. Bill Clinton mandou Jean Kennedy Smith (irmã do falecido presidente) para a embaixada na Irlanda e Barack Obama mandou Caroline Kennedy, (filha de John) para a do Japão. (Uma meteu-se em encrencas, a outra foi irrelevante.) Isso, para não falar de Pamela Harriman, mandada por Clinton para a França. Seu mérito foi ajudá-lo na campanha. Fora disso, foi uma cortesã, mulher do filho de Winston Churchill e colecionadora de milionários, de Averell Harriman a Gianni Agnelli, passando por Ali Khan, Elie de Rothschild e Stavros Niarchos.

Juscelino Kubitschek nomeou Amaral Peixoto embaixador em Washington. Genro de Getulio Vargas, tornara-se um cacique na política nacional. “Alzirão” saiu-se bem no cargo. Como ele, Eduardo Bolsonaro ganhou a embaixada depois de ter chegado ao Congresso pelo voto popular. Amaral Peixoto falava pouco e nunca disse bobagens do tipo “fritei hambúrgueres”.

A indicação do 03 para a embaixada foi aplaudida pelo presidente Donald Trump. Como muita gente não gosta de Trump nem dos Bolsonaros, isso foi visto como um demérito. Na realidade, 03 conseguiu algo que nenhum embaixador brasileiro teve, pois o aplauso do governante do país para onde vai o novo representante é tudo o que se quer. Não se pode ver defeito nessa trumpada. A Inglaterra gostava de saber que John Kennedy era grande amigo do embaixador David Ormsby-Gore. (Mais tarde, ele quase casou com a viúva.) Se Trump perder a reeleição, pode-se trocar o embaixador, zero a zero e bola ao centro.

03 será sabatinado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado. Ali, todos poderão mostrar suas qualificações.

Os senadores perguntando e o deputado respondendo. Afinal, se “diplomacia sem armas é como música sem instrumentos”, ele vai para Washington tocar chocalho. Nepotismo e trumpismo serão aspectos subsidiários. O essencial é o julgamento da relação que papai Bolsonaro quer ter com os Estados Unidos.

Em 2015 o plenário do Senado rejeitou o embaixador Guilherme Patriota, designado por Dilma Rousseff, mas esse resultado teve mais a ver com a fraqueza do governo do que com a capacidade do diplomata. Pamela Harriman foi aprovada por unanimidade na Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, viveu feliz em Paris, teve um derrame na piscina do hotel Ritz e morreu dias depois.


Elio Gaspari: A falta que faz um chanceler

A declaração de Jair Bolsonaro de que a derrota de Mauricio Macri na prévia eleitoral argentina pode significar uma vitória da “esquerdalha” de Dilma Rousseff, Hugo Chávez e Fidel Castro foi coisa inédita, assombrosa. Ele pode achar o que quiser, mas não tem mandato para meter o Brasil numa disputa eleitoral argentina. Falando de questões internas, pode se intitular “Capitão Motosserra” ou expor sua teoria da relação do meio ambiente com o cocô. Bolsonaro é assim e, sem dúvida, prefere ver os brasileiros discutindo cocô, em vez do cheiro de uma recessão na economia.

Bolsonaro não gosta dos governos civis que o antecederam. Tudo bem. Ficando-se com os exemplos que lhe deixaram os militares, salta aos olhos uma lição: falta-lhe um chanceler ou, pelo menos, um ministro das Relações Exteriores com as qualidades profissionais de Mario Gibson Barboza (governo Médici), Azeredo da Silveira (Geisel) e Saraiva Guerreiro (Figueiredo). Os três descascaram abacaxis nas relações com a Argentina sem criar atritos. Graças aos dois primeiros, conseguiu-se negociar em relativa harmonia a construção da Hidrelétrica de Itaipu.

Médici aguentou um desaforo do general presidente Agustín Lanusse. Numa visita a Brasília, ele enfiou um caco no discurso que fez no Itamaraty, e sua comitiva chegou à grosseria de cortar do comunicado conjunto uma referência à “inquebrantável amizade” dos dois países. Na costura da calma estava Mario Gibson.

Lanusse foi substituído pelo demagogo larápio Juan Perón. Tinha tudo para acabar em encrenca. Ele vivia exilado na Espanha. Em 1964, tentou descer na Argentina mas foi barrado pelo governo brasileiro no aeroporto de Galeão e teve que voar de volta. Ainda por cima, era amigo do presidente deposto João Goulart e assumiu criando dificuldades para a construção de Itaipu. O general Ernesto Geisel detestava-o e disse ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, que não negociaria “com quem está de má-fé, sem honestidade de propósitos”.

O diplomata não havia sido convidado para o ministério e sabia que estava numa sabatina, mas disse ao general: “Mesmo assim, é preciso negociar”. Geisel negociou.

Perón morreu sem que a ditadura brasileira encrencasse com seu governo ou com o de sua substituta, a vice Isabelita, uma ex-dançarina de cabaré panamenho.

Coube a Saraiva Guerreiro, o chanceler de João Figueiredo, o melhor lance da diplomacia dos generais com a Argentina. Em 1982, ela era presidida pelo general Leopoldo Galtieri, um cavalariano chegado ao topo, que mantinha boas relações com Figueiredo. Em 1982, com a popularidade em baixa, Galtieri resolveu invadir a possessão britânica das Ilhas Malvinas. Se dependesse de Figueiredo e dos militares que o cercavam, o Brasil ficaria do lado da Argentina.

Coube a Guerreiro tomar distância. Não podia ficar perto da maluquice de Galtieri, mas também não podia se aproximar da inevitável vitória dos ingleses. Algo como tirar a meia sem descalçar o sapato, e Guerreiro conseguiu.

(Meses depois, a diplomacia brasileira conduziu uma gestão para que os ingleses devolvessem o capitão Alfredo Astiz, que se rendeu nas Malvinas. Tremenda sorte a de Astiz, pois recebeu o tratamento que merecem os soldados. Ele havia sido um dos maiores assassinos da ditadura militar argentina que sucedeu a Isabelita Perón. Era apelidado de Anjo Ruivo da Morte. Está na cadeia.)

Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que na Presidência deviam ouvir os profissionais. Por sorte, tiveram Gibson, Silveira e Guerreiro.


Elio Gaspari: De novo com vocês, delações de Palocci

Há um forte cheiro de pirotecnia nessa nova série de revelações do ex-ministro

Foi assim no ano passado: faltavam seis dias para o primeiro turno e o juiz Sergio Moro divulgou um anexo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci à Polícia Federal. Era um pastel de vento em cujo recheio havia uma única informação (Lula organizou uma caixinha de fornecedores da Petrobras e colocou o comissário como gerente), mas faltava a investigação. Quem pagou? Como? Para quem foi o dinheiro?

O efeito da "mão de Deus" no gol de Moro foi sentido no escarcéu que acompanhou a revelação. Hoje, graças ao site The Intercept Brasil, conhecem-se as mensagens trocadas pela turma da Lava Jato em torno do assunto.

Uma semana antes, no dia 25 de setembro, referindo-se a Moro e às confissões de Palocci, um procurador escreveu: "Russo [apelido do juiz] comentou que embora seja difícil provar, ele é o único que quebrou a 'omertá' petista". (Falava do código de silêncio do mafiosos.)

Uma procuradora acrescentou: "Não só é impossível provar como é impossível extrair algo da delação dele".

Um terceiro procurador foi além: "O melhor é que fala até daquilo que ele acha que pode ser que talvez seja. Não que talvez não fosse".

Dois dias depois da divulgação do anexo por Moro, uma procuradora perguntava: "Vamos fazer uso da delação do Palocci?"

Outro respondeu: "O que Palocci trouxe parece que está no Google".

Segundo outro procurador: "O acordo é um lixo, não fala nada de bom (pior que anexos Google)".

Fez-se um banquete com o lixo e o resto é história. Dez meses depois, Antonio Palocci volta a atacar com um novo vazamento de sua colaboração para a Polícia Federal. Moro é ministro da Justiça, e uma parte da turma da Lava Jato está sendo confrontada com suas próprias malfeitorias, mas pode ser coincidência.

Desta vez o comissário teria contado que a Ambev, uma das maiores empresas do país, fez "pagamentos indevidos" a Lula e Dilma Rousseff. Não se conhecem os anexos e, portanto, não se pode saber que pagamentos são esses, nem como foram feitos. Inicialmente, a Ambev disse que não comentaria o caso (o que foi má ideia), mas se sabe que durante três anos ela pagou legalmente um total de R$ 1,2 milhão à empresa de consultoria de Antonio Palocci. Como essa firma era um lindo biombo, nesse caso os doutores da Ambev foram comprar pasta de dentes na Cracolândia.

Há um forte cheiro de pirotecnia nessa nova série de revelações de Palocci. Quanto mais cedo forem conhecidos os anexos, melhor.

Levando areia para o vento pirotécnico, Palocci teria contado que em 2002 o ditador líbio Muamar Kadafi deu o equivalente a US$ 1 milhão ao PT.

Para quem olha esse caso de fora, a primeira pista de que havia algo de estranho na relação de Lula com Kadafi surgiu em 2003, quando ele foi a Trípoli e disse que "jamais esqueci os amigos que eram meus amigos quando eu ainda não era presidente".

Palocci mencionou o dinheiro líbio pela primeira vez no final de 2017, quando negociava sua colaboração com o Ministério Público. Os procuradores acharam que suas revelações tinham muito pirão e pouca carne e ele foi se confessar na Polícia Federal. Lá, voltou a falar do caso. É razoável supor que em dois anos o comissário tenha sido capaz de lembrar como esse dinheiro chegou ao Brasil e a quem foi entregue.

Na semana passada, Palocci se tornou o primeiro comissário a ganhar o direito de andar livre pelas ruas (de tornozeleira eletrônica). Ex-quindim da plutocracia, comprovadamente tornou-se um milionário durante o consulado petista.


Elio Gaspari: Itaipu, uma usina de encrencas

A hidrelétrica de Itaipu, símbolo do "Brasil Grande", virou cenário de um lance de corrupção vulgar

O repórter José Casado disse tudo: "Sob Bolsonaro, [Itaipu] virou fonte de convulsão na outra margem do rio Paraná." A maior hidrelétrica do continente nasceu de um litígio e, graças a meio século de costuras diplomáticas, virou uma proeza binacional. Em poucos meses de conversas impróprias, voluntarismos e tráfico de influência, o Brasil viu-se metido num escândalo. Logo em Itaipu, usina construída por um ex-oficial do Exército que passou pela vida pública sem nódoa. José Costa Cavalcanti foi ministro de Minas e Energia e do Interior, assinou o Ato Institucional nº 5 e dirigiu a construção de Itaipu. Tinha pouca graça, talvez nenhuma. Morreu pobre, em 1991.

Logo na usina de Costa Cavalcanti estourou o escândalo de um acordo matreiro firmado entre os governos de Bolsonaro e de seu amigo Mario Abdo, "Marito", como ele o chama. Quando o caso estava no escurinho de Assunção, o ministro Sergio Moro revogou o status de refugiado que havia sido concedido em 2003 a três paraguaios que vivem no Brasil.

Espremendo-se uma história onde entram picaretas paraguaios, o empresário suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP) e diplomatas invertebrados, tudo poderia vir a se resumir ao seguinte: retirando-se um item do acordo, como foi feito, uma empresa brasileira, a Leros, compraria energia paraguaia para vendê-la no mercado brasileiro. Graças a algumas tecnicalidades, seria possível que ela pagasse US$ 6 (cerca de R$ 24) por um megawatt, vendendo-o, numa boa, por US$ 30 (R$ 119).

Na sua picaretagem um jovem advogado paraguaio dizia falar em nome do vice-presidente Hugo Velázquez e apresentava seu pleito como um ricochete do desejo da "família presidencial do país vizinho". Apanhado com a divulgação de mensagens trocadas com o presidente da estatal de energia de seu país, o moço informou que perdeu seu celular. (Ele é filho da ministra encarregada de combater a lavagem de dinheiro)

O presidente da estatal paraguaia de energia demitiu-se e botou a boca no mundo. Caíram a mãe do moço, o chanceler e o embaixador em Brasília. Arriscavam cair também o presidente Mario Abdo e o vice. Salvaram-se rasgando o acordo, no que foram acompanhados por Bolsonaro no dia seguinte. A costura pode ter levado meses, o desmanche deu-se em menos de uma semana. Hoje todo mundo garante que nunca ouviu falar dessa história.

Itaipu existe graças ao trabalho silencioso de presidentes e diplomatas que sempre evitaram acordar o sentimento nacionalista do Paraguai. Com a trapalhada do acordo, desmanchou-se um trabalho de meio século. Em 2023 o tratado que permitiu a construção da usina deverá ser renegociado, e lançou-se a semente da discórdia, com o Brasil sendo acusado de ter jogado bruto pelo presidente da estatal paraguaia que se demitiu.

Faz tempo, o engenheiro Octávio Marcondes Ferraz, construtor da usina de Paulo Afonso (BA) e um dos patriarcas da Eletrobras, batia de porta em porta dizendo que não se deveria fazer Itaipu com o Paraguai. Seria melhor construir três hidrelétricas na bacia do Paraná, mas em território brasileiro. Tinha o apoio do senador gaúcho PauloBrossard. Não foram ouvidos, mas nenhum dos dois seria capaz de pensar que o Brasil se meteria numa encrenca tão vulgar.

 


Elio Gaspari: Ele é assim mesmo, mas é estratégia

Bolsonaro nunca mudou nem vai mudar, o problema de seu estilo está na relação com a verdade

‘Sou assim mesmo. Não tem estratégia’, disse o presidente Jair Bolsonaro à repórter Jussara Soares. Meia verdade, ele é assim mesmo, mas há uma estratégia para lá de bem-sucedida no seu estilo inflamado e provocador.

Em 2005 ele era um deputado periférico, havia defendido o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e foi entrevistado por Jô Soares (o vídeo está na rede). A conversa durou 21 minutos. Lá pelo final (minuto 19:00), Jô tocou na ideia de se passar FH pelas armas e Bolsonaro respondeu, rindo: “Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, você jamais estaria me entrevistando aqui agora”.

Bingo. Se Bolsonaro não tivesse falado do desaparecimento de Fernando Santa Cruz, talvez houvesse mais gente falando dos 12 milhões de desempregados. Essa é a parte do comportamento do atual presidente que pode ser chamada de estratégica. A outra é a sua maneira de ser, e nela há dois componentes. Numa estão suas opiniões, que, como as de todo mundo, podem mudar. Noutra estão os seus próprios fatos, que são só dele.

Quando Jô classificou a ideia da execução de FH como “barbaridade” , Bolsonaro explicou: “Barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, como ele fez, é privatizar as telecomunicações, é entregar as nossas reservas petrolíferas para o capital externo.”

Mudou de opinião, tudo bem.

Bolsonaro, contudo, tem seus próprios fatos, que não fazem parte do mundo real. Ele não sabe como militantes da APML mataram Fernando Santa Cruz, porque isso não aconteceu. Na mesma entrevista com Jô, Bolsonaro relembrou um crime cometido por terroristas que acompanhavam Carlos Lamarca.

No mundo do fatos, em maio de 1970, Lamarca e um grupo de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária que treinavam técnicas de guerrilha no Vale do Ribeira foram descobertos e enfrentaram um pelotão da Polícia Militar comandada pelo tenente Alberto Mendes Júnior. A tropa se rendeu, e o tenente ofereceu-se para ficar como prisioneiro, em troca da libertação dos sargentos, cabos e soldados. Dias depois, no meio da mata, os cinco captores que conduziam o tenente viram que ele seria um estorvo, capaz de denunciar sua localização. Decidiram matá-lo, e um deles (Yoshitame Fujimore) abateu-o, golpeando-o na cabeça com a coronha de um fuzil.

(Meses depois, um dos captores de Alberto Mendes foi preso, localizou a sua cova e foi libertado em 1979, pela anistia. Em 1967, na Bolívia, o Che Guevara capturou 30 militares, não matou ninguém.)

A cena do assassinato do tenente não bastou ao deputado Bolsonaro. Com seus próprios fatos, ele disse a Jô que “Lamarca torturou-o barbaramente, fez com que ele engolisse os próprios órgãos genitais e o assassinou a coronhadas”. (Minuto 9:00)

Bolsonaro tirou os detalhes escatológicos do acervo de barbaridades do Exército japonês durante a Segunda Guerra e ainda assim exagerou ao nível da inverossimilhança, pois nenhum homem consegue engolir seus órgãos genitais. Ao fim das contas, em 2005, como hoje, era estrategia, mas “sou assim mesmo”.


Elio Gaspari: A ‘realidade paralela’ de Bolsonaro

Se Jair Bolsonaro conversasse com os septuagenários veteranos da “tigrada” da ditadura, não teria chamado o general da reserva Luiz Rocha Paiva de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro). Ele foi um dos principais colaboradores na manutenção do site Terrorismo Nunca Mais. Talvez também não tivesse sugerido que Fernando Santa Cruz, desaparecido desde 1974, quando tinha 26 anos, foi executado por militantes de esquerda. Fernando era o pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que tinha menos de 2 anos quando ele desapareceu.

O caso de Fernando Santa Cruz exemplifica, como poucos outros, o assassinato de uma pessoa que tinha vida legal, família constituída e domicílio conhecido. Ele morreu no último mês do governo Médici. A política de extermínio das organizações armadas brasileiras que agiam nas cidades já tinha esfriado, pois elas haviam sido esmigalhadas. Em novembro, um comando do DOI de São Paulo matou Sônia Maria Lopes de Moraes, da Ação Libertadora Nacional, e Antônio Carlos Bicalho Lana, que se escondiam no litoral paulista. Em dezembro, o Centro de Informações do Exército sequestrou em Buenos Aires e matou no Rio o ex-major Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, que haviam militado na Vanguarda Popular Revolucionária. Depois disso, nada. (Do Natal de 1973 ao final de 1974, mataram cerca de 40 militantes do PCdoB nas matas do Araguaia, inclusive os que se renderam. Ou, numa realidade paralela, foram todos resgatados por um disco voador albanês) Nesse período, deu-se a decapitação da liderança do Partido Comunista, que não pegou em armas.

Fernando Santa Cruz havia sido preso no Recife em 1966, quando era menor de idade. Desde 1968 tinha vida legal. Trabalhou no Ministério do Interior e mudou-se para São Paulo, onde trabalhava no Departamento de Águas e Energia Elétrica. Durante o carnaval de 1974, Fernando estava no Rio e marcou um encontro com o amigo Eduardo Collier, militante da APML. Temia ser preso e falou disso com a família.

Um policial de apelido “Marechal” disse que ele estava preso num quartel da guarnição de São Paulo. Daí em diante, nada. A mãe de Fernando, Elzita Santa Cruz, morta há pouco, foi uma leoa e bateu em todas as portas. Os senadores Franco Montoro e Amaral Peixoto perguntaram pelo paradeiro de Fernando da tribuna da Casa. Elzita escreveu ao comandante da guarnição do Rio e ao marechal Juarez Távora. O velho tenente de 1930 enviou a carta ao general Golbery, chefe do Gabinete Civil do presidente Ernesto Geisel, que assumira em março. Meses depois, ela interpelou o próprio Golbery. Na busca por Fernando, teve a ajuda do marechal Cordeiro de Farias, comandante da Artilharia da FEB na Itália. Nada. O ministro da Justiça, Armando Falcão, informava que estava foragido, vivendo “na clandestinidade”. Mentira.

Nenhuma família de militante executado fingiu que ele desapareceu.

Bolsonaro pode ter sua realidade paralela, mas o general Rocha Paiva nunca foi “melancia”, nem Fernando Santa Cruz foi executado pela APML. Por falar nisso, Rubens Paiva não foi resgatado por comparsas. Quem diz isso são oficiais que estavam no quartel da PE do Rio em 1971.


Elio Gaspari: A questão do conteúdo dos grampos persiste

A ideia de Moro de destruir as mensagens era primitiva e cheirou mal

A Polícia Federal fez um serviço de primeira localizando e prendendo a quadrilha que invadiu os celulares de centenas de autoridades, inclusive do presidente da República, do ministro Sergio Moro e de procuradores da Lava Jato. Um deles tinha antecedentes criminais e confessou ter sido o remetente dos grampos para o site The Intercept Brasil. Como isso foi feito e se era gratuito, como ele diz, só a investigação poderá esclarecer. Resta saber se Glenn Greenwald conhecia a extensão do crime de sua fonte. Essa é uma perna da questão.

A outra perna está no conteúdo das mensagens já divulgadas e ela continua no mesmo lugar. Os procuradores blindaram-se na recusa a comentar o que apareceu nos grampos. Muitos deles, como Sergio Moro, dizem que já apagaram os arquivos. Se o serviço da PF foi de primeira, essa blindagem é de quinta. A ideia de Moro de destruir as mensagens era primitiva e cheirou mal.

Na forma, o crime cometido pelo invasores dos celulares foi peculiar. Eles atacaram dados de centenas de pessoas e seus antecedentes afastam a ideia de que houvesse interesse público na operação. A questão do conteúdo é outra.

Não passa pela cabeça de ninguém querer apagar da memória dos americanos as revelações contidas nos famosos “Papéis do Pentágono” que expuseram documentos relacionados com a Guerra do Vietnã.

Eles foram furtados por um consultor do Departamento de Defesa. Indo-se mais longe, também, não passa pela cabeça dos americanos passar a esponja em cima dos documentos furtados por oito ativistas católicos que invadiram um escritório do FBI na Pensilvânia numa noite de março de 1971. Eles levaram perto de mil documentos. No meio estavam as provas de que o FBI espionava militantes pacifistas, artistas e negros, difamava pessoas e manipulava jornalistas.

Cópias de documentos foram mandados para o New York Times, o Los Angeles Times e o Washington Post. O governo tentou impedir a publicação e divulgou uma nota advertindo que eles comprometiam a segurança nacional. Ben Bradlee, o editor do Washington Post, e Katharine Graham, sua proprietária, decidiram publicar parte do material. Aberta a comporta, o conteúdo dos documentos mudou para melhor a história do FBI.

O FBI pôs 200 agentes atrás dos ladrões, e a investigação somou 33 mil páginas, para nada. O mistério só foi desvendado 40 anos depois, quando a repórter Betty Medsger, que recebeu a papelada em 1971, identificou e entrevistou 7 dos 8 invasores. Dois deles viviam longe da política e um tornara-se sincero admirador de Ronald Reagan.

 


Elio Gaspari: Bolsonaro errou o tiro no 'melancia'

O capitão precisa ouvir o conselho do general Médici e, todo dia, botar água na cabeça para esfriá-la

Com 13 milhões de desempregados, a economia andando de lado e a projeção de mais um ano de pibinho, o Brasil já tem problemas suficientes, não precisa trazer de volta o fantasma da anarquia militar. Com idas e vindas ele assombrou a vida do país dos últimos anos do século 19 até o final do 20.

Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República pela vontade de 57,8 milhões de brasileiros. Teve o apoio público de dezenas de oficiais das Forças Armadas e formou um ministério com oito militares. Fez um agradecimento ao ex-comandante do Exército dizendo que “o que nós já conversamos morrerá entre nós, o senhor é um dos responsáveis por estar aqui, muito obrigado, mais uma vez.” Sabe-se lá o que conversaram, mas desde o primeiro momento o capitão reformado associou seu governo às Forças Armadas. Como agradecimento, tudo bem. Além disso, é uma perigosa impropriedade.

Bolsonaro deixou a tropa depois de dois episódios de ativismo e indisciplina. Referindo-se ao capitão, o ex-presidente Ernesto Geisel classificou-o como “um mau militar”. Quem está no Planalto é um político com 30 anos de vida parlamentar e uma ascensão meteórica. Em seis meses de Presidência, demitiu três oficiais-generais e na semana passada disse que outro, Luís Eduardo Rocha Paiva, aliou-se ao PC do B: “Descobrimos um ‘melancia’, defensor da guerrilha do Araguaia em pleno século 21”. Ele havia criticado a escolha de EduardoBolsonaro para a embaixada em Washington e a fala dos governadores “de paraíba”.

Esse general de brigada chefiou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e, na reserva, em março foi nomeado para integrar a Comissão da Anistia. Chamá-lo de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) foi um despautério. Em 2010 Rocha Paiva acusou o PT de “querer implantar um regime totalitário no Brasil”. Dois anos depois, lembrou as execuções praticadas pelo PC do B no Araguaia. Foram pelo menos três. (Esqueceu-se das execuções de guerrilheiros que se renderam, mas ninguém é obrigado a se lembrar de tudo.)

Tanto o general Rocha Paiva como Bolsonaro deram suas opiniões por meio desse instrumento diabólico que são as redes sociais. Num caso, falou um general da reserva que ocupa um cargo público. Noutro, o presidente da República. Juntos, produziram um inédito curto-circuito.

A presença de militares no governo gerou a compreensível curiosidade em torno de suas preferências e ansiedades. General da reserva é uma coisa, da ativa, outra. Muito outra é general da reserva que ocupa cargo civil. Os chefes militares raramente falavam, de Dutra até comandantes mais recentes, passando por Castello Branco, Médici e Geisel. O atual comandante do Exército, Edson Pujol, não tem conta no Twitter.

Na dia 12 de outubro de 1977, quando o presidente Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sylvio Frota, um grupo de oficiais tentou sublevar-se e um general ligou para o ex-presidente Médici, que vivia no Rio, calado. Queria seu apoio e ouviu o seguinte:

“Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça.”

(O general Augusto Heleno, que era capitão e ajudante de ordens de Frota, lembra-se de alguns episódios desse dia.)

Bolsonaro precisa por água na cabeça para cuidar de seu governo, deixando os quartéis em paz e silêncio.

 


Elio Gaspari: Bolsonaro tem muito tambor e pouco violino

Houve época em que era mais fácil comprar cocaína que importar computador

Em julho de 2017 o procurador Deltan Dallagnol foi convidado para fazer uma palestra no Ceará, pediu cachê de uns R$ 30 mil, mais passagens para ele, a mulher, os filhos e estadia no Beach Park ("as crianças adoraram"). Em junho passado o ministro de Economia baixou a Portaria 309, que reduzia os impostos de importação de bens de capital, informática e tecnologia. Dezoito dias depois, suspendeu-a. Nada a ver uma coisa com a outra? Elas mostram como a mão invisível do atraso leva o leão a miar.

Quem pagou a villeggiatura do doutor Dallagnol foi a Federação da Indústrias do Ceará, uma das estrelas do Sistema S, aquele em cuja caixa de R$ 20 bilhões arrecadados compulsoriamente nas veias das empresas o doutor Paulo Guedes prometeu "meter uma faca".

Passaram-se seis meses sem que Guedes voltasse a falar no Sistema S, mas quando ele assinou a portaria 309 cumpriu uma das maiores promessas de campanha do capitão Bolsonaro. Baixando os impostos de importação de bens de capital e de equipamentos de informática, baratearia os preços de computadores, celulares e produtos eletrônicos. A alegria durou pouco pois recolheu-a prometendo revê-la.

A mão invisível de uma parte do patronato da indústria ganhou a parada mostrando ao governo que poderia bloquear seus projetos no Congresso. Ela já conseguira o arquivamento do projeto de abertura comercial deixado por Michel Temer. Esse jogo tem quase um século. Houve época em que era mais fácil comprar cocaína do que importar computador.

Quando a economia nacional começou a se abrir, o agronegócio foi à luta, modernizou-se e hoje é internacionalmente competitivo. A indústria blindou-se atrás de federações (alimentadas pelo Sistema S), aliada a "piratas privados e criaturas do pântano político" (palavras de Guedes). Poderosa, preserva-se com leis protecionistas. Resultado: os piratas prosperaram, a indústria definhou e seus produtos custam caro. Já as federações, nadam em dinheiro, custeando palestras que poucos empresários sérios custeiam.

O capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionismo. A cada semana agita o país com tolices ("golden shower"), impropriedades (o conforto de um trabalho infantil que não conheceu) ou mesmo irrelevâncias (a nomeação do filho para a embaixada em Washington, ganha um almoço de lagosta no Supremo Tribunal quem souber os nomes dos três últimos embaixadores nos Estados Unidos).

Quando um assunto relevante como a abertura da economia vai para o pano verde, o leão revoga a portaria 309 no escurinho de Brasília, prometendo revisá-la em agosto. A ver, pois essa orquestra tem muitos tambores e poucos violino.

A trava de Toffoli
A trava do ministro José Antonio Dias Toffoli que congelou as investigações relacionadas com as contas do senador Flávio Bolsonaro mostra que a Justiça é cega e lenta para o andar de baixo. Para o de cima, a história é outra.

A ideia segundo a qual movimentações financeiras estranhas só podem ser compartilhadas depois de uma decisão judicial transformam o Coaf e a Receita Federal em sucursais do Arquivo Nacional. (Cadê o Queiroz?) Olhada de outro jeito, essas informações não deveriam ser usadas, sem ordem de um juiz, por procuradores voluntariosos, capazes de destruir reputações na busca de quinze minutos de fama.

Os advogados de Flávio Bolsonaro foram brilhantes ao engatar seu argumento a um litígio que nasceu em 2003 num posto de gasolina do interior de São Paulo. Os sócios do posto foram autuados pela Receita Federal, tiveram a conta bancária da empresa bloqueada pela Receita e passaram a mover o dinheiro como pessoas físicas. A Receita voltou a autuá-los e o Ministério Público enfiou-lhes uma ação penal. O advogado do posto de gasolina contestou a legalidade do compartilhamento de informações da Receita com o Ministério Público, perdeu na primeira instância e ganhou na segunda. O Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal, onde o processo entrou e ficou sonolento.

O caso foi para o gabinete do ministro Toffoli. Em abril do ano passado o STF entendeu que esse litígio deveria ter repercussão geral, ou seja, valeria para qualquer caso semelhante. O julgamento foi marcado para 21 de março deste ano e depois foi transferido para o próximo dia 21 de novembro.

Estavam assim as coisas, quando os advogados de Flávio Bolsonaro tinham um habeas corpus para ser apreciado no Rio de Janeiro e decidiram engatar seu caso ao do posto de gasolina de Americana (SP), pedindo uma liminar. Como o Supremo está em férias e seu presidente torna-se plantonista, coube a Toffoli tomar a decisão, com repercussão geral, congelando a essência da investigação das contas de Flávio Bolsonaro.

A briga do posto de gasolina de Americana com a Receita começou em 2003 e estava no STF há mais de um ano. A Justiça é lenta, mas às vezes não tarda.


Elio Gaspari: O dinheirinho fácil das palestras

Deve-se ao procurador Deltan Dallagnol a exposição do próspero mercado de palestras de autoridades. Em 2018, o doutor recebeu cerca de R$ 300 mil como servidor e planejava a criação de uma empresa de palestras e eventos que poderia render R$ 400 mil. Dallagnol cobrava R$ 35 mil por aparição. Como servidor público, recebia mais ou menos isso por um mês de trabalho. Como celebridade, ganhava a mesma coisa num só dia.

Ficou feio para Deltan, mas ele nada fez de novo, apenas decidiu surfar num mercado onde misturam-se fama, favores e fetiches. O ex-presidente Barack Obama cobra US$ 400 mil por uma palestra de 90 minutos.

A porca torce o rabo quando o palestrante (horrível palavra) é um servidor do Estado ou é um cidadão cuja relevância deriva da sua exposição pública no trato de assuntos políticos ou econômicos. Jornalistas, por exemplo. Essa circunstância ganha peso quando o valor da palestra equivale ao salário mensal do convidado. Há empresas, sobretudo do mundo do papelório, que oferecem uma bandeirada de R$ 30 mil.

Ninguém pode ser penalizado pela fama que tem, mas quando um magistrado, procurador ou parlamentar é convidado para dar uma palestra por R$ 30 mil, deve desconfiar da benemerência de seu patrocinador. As mensagens de Dallagnol mostram que uma instituição convidava palestrantes (argh!) oferecendo-lhes R$ 3 mil, o que pode ser um valor razoável, mas ele sugeria ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot que cobrasse R$ 15 mil, pois estimava que seu cachê estivesse em R$ 30 mil.

Essas quantias são um dinheirinho fácil. Palestras e eventos, sobretudo aqueles que acontecem em aprazíveis balneários, transformaram-se em mecanismos de confraternização do andar de cima. São boas ocasiões para fazer amigos e influenciar pessoas.

Dallagnol concebeu uma empresa que pertenceria à sua mulher e à do seu colega Roberson Pozzobon. Óbvio, pois eles não poderiam ser os donos, mas receberiam pelas palestras ou cursos que ministrassem. Nas suas palavras: “Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós.” Novamente, ele não inventou essa roda.

Há uma curiosa coincidência no plano de Dallagnol. A ideia da empresa ocorreulhe em dezembro, dois meses depois da assinatura de um acordo da Petrobras com o governo americano e um mês antes do fechamento de outro acordo da empresa com o Ministério Público do Paraná. O acerto colocava R$ 1,2 bilhão na caixa dos procuradores para que organizassem uma fundação destinada a incentivar “entidades idôneas, educativas ou não, que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.

O mimo das palestras leva a um beco que parece não ter saída, pois não se pode impedir que alguém queira pagar para ouvir o que outra pessoa tem a dizer. Também não se pode exigir que alguém fale por uma hora e meia e receba apenas um cafezinho.

O nó pode ser desatado. Basta que o convidado coloque na rede todas as palestras que faz, indicando quem pagou e quanto recebeu. Isso poderia ser obrigatório para servidores públicos em atividade e facultativo para os demais bípedes.


Elio Gaspari: A Moro tudo, menos o papel de bobo

O ex-juiz e o coletivo da Lava Jato repetem o erro do PT e insistem na desqualificação das informações

O ministro Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato decidiram se defender das acusações que derivam das mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil desqualificando o seu conjunto. Como os textos teriam sido obtidos a partir de uma ação ilegal, não mereceriam crédito. Falta combinar com quem lê os diálogos e não acredita que o fim justifica os meios. O ministro Edson Fachin pode não ter acreditado na autenticidade do “aha uhu o Fachin é nosso” atribuído ao procurador Deltan Dallagnol. Mesmo duvidando, Fachin parece ter-lhe dado uma resposta hiperbólica:

“Juízes também cometem ilícitos e também devem ser punidos. (...) E assim se aplica a todos os atores dos Poderes e das instituições brasileiras, incluindo o Ministério Público.”

A estratégia negacionista destina-se a evitar a discussão do conteúdo das mensagens que se transformaram em denúncia de parcialidade. Coisa parecida fez o PT quando a Lava Jato começou a expor seus malfeitos. Não só o fim justificava os meios, como era tudo uma conspiração que chegava ao braço clandestino do governo americano. Lula acabou na cadeia e continua repetindo a mesma cantilena. Trata-se de converter todas as questões a um jogo de sim ou não. Se a pessoa acredita em Lula, deve acreditar numa conspiração. Se uma pessoa acredita em Moro e no coletivo da Lava Jato, deve acreditar noutra conspiração. A ideia deu errado para o PT e está dando errado para Moro.

Cinquenta e oito por cento dos entrevistados pelo Datafolha consideraram inadequada sua conduta. Enquanto isso, a percentagem de pessoas que consideram justa a condenação de Lula está em 54%, o mesmo patamar de abril, quando as armações reveladas pelo Intercept eram desconhecidas. Muita gente concorda com as sentenças e condena o comportamento de Moro. O mundo de sim e não só existe na cabeça de quem quer receber atestados de onipotência ou de infalibilidade.

Até hoje não apareceu um só fato relevante que permita duvidar da autenticidade das mensagens reveladas pelo Intercept. Verificações parciais confirmaram a veracidade de alguns textos. Num caso, uma procuradora disse que não se reconhecia num diálogo. O Intercept mostrou de forma convincente como conseguiu identificá-la.

Até agora o material divulgado reuniu centenas de informações que poderiam demonstrar uma fraude. Bastaria um conflito cronológico para que a névoa que hoje paira sobre Moro se mudasse para cima do Intercept. Em 1983 a revista alemã Stern comprou por milhões de marcos os “Diários de Hitler”. Um renomado historiador atestou a autenticidade dos manuscritos. Na primeira hora surgiu uma pergunta: como Hitler poderia ter escrito as entradas dos dias seguintes ao 20 de julho de 1944, quando sofreu um atentado e foi ferido no braço? Daí em diante, testes químicos e investigações paralelas mostraram que o diário era uma fraude.

No caso das mensagens do Intercept não há um manuscrito, e as conversas poderiam ter sido editadas. Vá lá, que seja. Mas Moro não lembra de nada, nadinha. Como ministro da Justiça, tornou-se um figurante de eventos, até mesmo vestindo camisas de um time de futebol. (Apesar da amnésia, Moro lembrou-se de pedir desculpas ao Movimento Brasil Livre por causa de uma indelicadeza.) Nenhum procurador se lembra de coisa alguma. O apagão coletivo zomba da inteligência alheia quando se sabe que diversas pessoas já se reconheceram nos diálogos. (O PT também não sabia das roubalheiras.)

Nunca é demais lembrar, pode-se fazer de tudo pela Lava Jato e por Sergio Moro, até mesmo sustentar ele foi imparcial. O que não se pode fazer é papel de bobo.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: Fanfarronadas têm um preço

A capitã do navio de africanos expôs o risco político do radicalismo xenófobo de Matteo Salvini

O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um "ato de guerra" praticado por uma embarcação "pirata".

Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.

O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: "Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso" —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de "histeria" e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.

Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de "vendida". Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.

Isso era o que acontecia em 1947. O governo inglês capturava navios com judeus que seguiam para a Palestina. Depois, quando a saga do navio Exodus (com Paul Newman no papel principal) tornou-se um marco na vida de Israel, tiraram o corpo fora.

Por trás do Sea Watch e das ONGs há uma rede de apoios e cumplicidades. A tripulação do barco tinha jovens franceses, holandeses e espanhóis. Nada de novo: havia uma rede clandestina e multinacional por trás de navios como o Exodus. (Nela militava Samy Cohn, que se tornou banqueiro e morreu no Brasil.) Há diferenças entre os refugiados judeus de 1947 querendo ir para a Terra Santa e os africanos de hoje querendo entrar na Europa, mas o ministro alemão que defendeu a libertação de Carola Rackete foi ao essencial: "Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso". Os líbios do Sea Watch poderiam ter morrido no Mediterrâneo e, segundo a capitã, ameaçavam jogar-se ao mar, como faziam os africanos dos navios negreiros do século 19. Calcula-se que neste ano 600 africanos afogaram-se no Mediterrâneo.

As falas de Salvini, repudiadas na terça pela juíza, foram uma fanfarronice demagógica. O ministro tinha motivos para saber que a marinheira, uma "fora da lei", segundo ele, não ficaria muito tempo presa. Sendo alemã, poderia ser deportada. Sabia também que os africanos não ficarão em Lampedusa. Jogou para sua plateia, mas subestimou a reação de outros países e das próprias instituições italianas. Nos dias de hoje, isso é comum.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".