Elio Gaspari: O Supremo encalacrou-se

Egos inflados e idiossincrasias contribuem para colapso da colegialidade do tribunal

Pelo andar da carruagem o Supremo Tribunal Federal derrubará a prisão dos condenados numa segunda instância. Tradução: quem tem dinheiro para pagar advogados fica solto, quem não tem, rala.

Uma banda do debate diz que deve ser assim porque isso é o que diz a Constituição. Não é. Se fosse, o mesmo tribunal não teria decidido duas vezes que o condenado na segunda instância deve ficar preso.

Acima da divergência entre os ministros está a perda da colegialidade dos 11 escorpiões que vivem na garrafa da corte. Quem chamou os juízes da Suprema Corte americana de escorpiões engarrafados foi o grande Oliver Wendell Holmes, mas lá eles se cumprimentam com aperto de mão antes e depois de cada sessão. Aqui, em alguns casos, nem isso.

O ministro Gilmar Mendes tem horror a comparações com o funcionamento da Corte Suprema, mas lá os nove ministros procuram harmonizar suas divergências. Quando um de seus juízes escreve o voto da maioria, ou a dissidência da minoria, circula seu texto entre os colegas e discute emendas ou supressões.

Tudo isso é feito em sigilo, num trabalho que exige paciência e tolerância. Em raros casos, quando a corte percebe que tomará uma decisão crucial, o presidente (cuja função é vitalícia), costura uma possível unanimidade. Às vezes consegue.

No caso da prisão depois da segunda instância o Supremo está dividido à maneira dos jogos de futebol, com um time ganhando e outro perdendo. No balcão da lanchonete entende-se esse critério, o que não se entende é que o time derrotado em fevereiro e outubro de 2016 por 7 a 4 e 6 a 5 possa mudar o resultado num replay. Afinal, futebol é coisa séria.

Apesar dos esforços de alguns ministros, tudo indica que se caminha para um choque de absolutos. Numa discussão de botequim ou numa reunião de condomínio surgiria uma voz moderadora propondo uma válvula.

Por exemplo: o condenado na segunda instância poderia recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, que deveria julgar o caso em até 120 dias. Esse mecanismo daria uma folga à turma que tem dinheiro para pagar advogado, mas anularia a fé exclusiva nas manobras procrastinatórias. Até agora, nada feito.

A rejeição da válvula indica um colapso da colegialidade do tribunal. Para isso contribuíram, entre outros fatores, egos inflados, idiossincrasias e concepções.

Há cortes cujos juízes têm carros e motoristas pagos pela Viúva, mas não se sabe de outra na qual seus veículos usem três chapas, uma de bronze (“sabe com quem está chegando”) outra com fundo branco (indicativa do serviço público) e a terceira, igual à dos contribuintes, sugerindo que os ilustres passageiros são pessoas comuns, ou impedindo que se saiba que não o são.

A Operação Lava Jato perdeu a túnica de vestal que cobria o juiz Sergio Moro e o trabalho de seus procuradores, mas sua essência persiste: ela botou na cadeia gente que praticava crimes na certeza da impunidade. Revogada a segunda instância, restabelece-se o sistema que, há dez anos, num passe de mágica, esfarelou a Operação Castelo de Areia.

À época, o STJ blindou a empreiteira Camargo Corrêa e o Supremo ratificou a decisão. Passou o tempo, mudaram os modos e a Camargo foi a primeira vaca sagrada a colaborar com o governo. Hoje ela trabalha com outro compasso.

 


Elio Gaspari: O fator 'Lula Livre'

Bolsonaro criou agenda de antagonismos, mas não regularizou a quitanda do governo

Lula deixará a carceragem de Curitiba. Talvez seja logo, talvez demore algumas semanas ou poucos meses. Quando isso acontecer, alterará o medíocre cenário político que se instalou no país. Os problemas de Pindorama são bem maiores que a caixa do PSL e os bate-bocas do senador Major Olimpio chamando os filhos do presidente de "príncipes" e sendo chamado por um deles de "bobo da corte".

No final do mês completa-se um ano da vitória de Jair Bolsonaro e de uma espécie de amnésia em relação aos 47 milhões de votos (45%) obtidos pela chapa petista. Nem todo mundo que votou no capitão queria um governo como o que se instalou.

Livre ou, pelo menos, falando à vontade, Lula ocupará um espaço que há um ano seria impensável. Isso porque Bolsonaro conseguiu criar uma agenda de antagonismos incendiária e cosmopolita, porém incapaz de regularizar a venda de berinjelas pela quitanda do governo.

O capitão alimenta contrariedades, mas não enfrenta algo que se possa chamar de oposição. Sergio Moro e a Lava Jato não são mais o que foram e o discurso da lei e da ordem desembocou numa constrangedora necropolítica.

Num de seus telefonemas grampeados, falando com o então vice-presidente Michel Temer, Lula disse que o combate à corrupção, encarnado por Moro, "foi sempre um alimento para golpistas no mundo inteiro, e quem ganhou foi a negação da política".

Exagerava, mas horas depois Moro explodiu sua nomeação para a chefia da Casa Civil liberando impropriamente a gravação de um telefonema de Dilma Rousseff. (Moro determinara o fim do grampo às 11h12 daquele dia e o telefonema de Dilma ocorreu às 13h22. A conversa com Temer das 12h58 só foi revelada em setembro passado.)

Um braço da Lava Jato varejou o gabinete do líder do governo no Senado, doutor Fernando Bezerra Coelho. Ele foi ministro da Integração Nacional de Dilma e seu filho foi ministro de Minas e Energia de Temer. Bolsonaro manteve o senador na liderança de sua bancada. Como disse o príncipe de Salinas, do "Leopardo", as coisas mudam, para pior. Lula ajudou a criar essa piora, mas, do jeito que ela está, não faz parte dela.

O fator Lula Livre tem muito de imprevisível. Afinal, ele mesmo já se definiu como uma "metamorfose ambulante". Olhando-se para os 40 anos de sua atividade política, pode-se apenas especular que repita o jogo de espelhos em que usa um discurso radical e moralista para assustar os adversários, transformando-se em seguida num tolerante moderado capaz de pacificar suas próprias fileiras, apagando incêndios que ajudou a soprar.

Esse foi o dirigente sindical de grandes greves perdidas do ABC e esse foi o "sapo barbudo" do temido PT do final do século passado. Esse foi também o candidato a presidente que em 2002 assustou o andar de cima e adoçou-o com a "Carta aos Brasileiros" de Antonio Palocci. Ele viria a se transformar num petista milionário, quindim dos amedrontados.

Mesmo na carceragem de Curitiba, esse foi o cacique que bancou a permanência de Gleisi Hoffmann na presidência do partido, contendo articulações mais moderadas. A moderação, quando tiver que vir, se vier, virá dele.

 


Elio Gaspari: A banca viciou-se nos juros altos

Bancos lucram tanto com quem paga que isso compensa calotes que tomam

O economista-chefe da Febraban, Rubens Sardenberg, fez uma estranha associação entre os juros altos da banca e a situação da economia: “O aumento da inadimplência, a queda lenta do desemprego e o baixo crescimento da renda criam alguma cautela do ponto de vista de quem está concedendo o crédito”.

A cautela poderia levar a uma menor oferta de crédito, não a uma subida nas taxas de alguns empréstimos. A Selic está em 5,5% ao ano, algumas taxas caíram, mas a mordida anual dos juros do cartão de crédito parcelado foi de 163,1% para 177,3%.

Indo-se ao livro “Uma Chance de Lutar”, a autobiografia da senadora Elizabeth Warren, candidata a presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, vê-se a seguinte cena:

Pouco antes da crise de 2007 ela deu uma palestra para executivos do Citibank e disse que eles poderiam conter as inadimplências (e as bancarrotas familiares) parando de emprestar a quem estava em dificuldade.

Ao que um dos caciques presentes tomou a palavra: “Professora Warren, gostamos muito de sua exposição, mas não temos a intenção de parar de emprestar a essas pessoas. São eles quem garantem a maior parte de nossos lucros”.

Cobrando juros altos para quem parcela as dívidas do cartão de crédito a banca lucra tanto com quem paga que isso compensa os calotes que toma.

O Citi continuou apostando e nunca mais convidou a professora Warren. Em 2008 o banco foi às cordas, salvou-se com um socorro de US$ 20 bilhões da Viúva e hoje é uma sombra do que foi. Já a professora elegeu-se senadora e lidera (por pouco) algumas pesquisas de preferências entre os candidatos do Partido Democrata.

Vargas Llosa mente, mas pesquisa

Nobel de Literatura, escritor peruano acaba de publicar seu 19º romance

Mario Vargas Llosa acaba de publicar seu 19º romance, “Tiempos Recios”, (“Tempos Difíceis”). Conta os caminhos de Marta, a “Miss Guatemala”, uma bonita mulher que atravessa a história da América Latina na segunda metade do século passado.

Prêmio Nobel de Literatura em 2010 e candidato derrotado à Presidência do Peru em 1990, Vargas Llosa conhece a política e a escrita. Ele sustenta que seu livro “é um romance e não um livro de história, mas digamos que pesquiso para mentir com conhecimento de causa”.

Assim como fez com Canudos em “A Guerra do Fim do Mundo” e com a ditadura da República Dominicana do Generalíssimo Rafael Trujillo em “A Festa do Bode”, Vargas Llosa move seus personagens dentro de uma moldura histórica.

Ele sustenta que se o governo dos Estados Unidos não tivesse manipulado o fantasma do comunismo em 1954 para derrubar o presidente reformista Jacobo Arbenz, da Guatemala, Fidel Castro não teria sido o que foi. Por coincidência, quando Arbenz caiu, um jovem médico argentino estava na Cidade da Guatemala. Chamava-se Ernesto Guevara.

Vargas Llosa mente, mas pesquisa, pois identifica um homem da CIA, “El Invisible”, no golpe da Guatemala e quando vai-se ver, o cidadão passou pelo Brasil em 1970 e chefiou as operações clandestinas na América Latina até o golpe chileno de 1973.

“Miss Guatemala” havia sido amante do coronel que a Central Intelligence Agency empreitou para derrubar Arbenz. Passou-se para a vida do chefe da polícia de Trujillo e, em todos os casos, foge espetacularmente quando seus protetores são assassinados ou caem em desgraça. Nisso, sempre tem a ajuda da CIA. Na velhice, persistia na obsessão anticomunista.

À primeira vista, os “Tempos Difíceis” tomaram conta da segunda metade do século passado, mas, olhando-se bem, continuam. O anticomunismo era apenas o disfarce de algo mais velho, duradouro e profundo.


Elio Gaspari: Quando foi que isso tudo começou?

O que surgiu com o aplauso à cena de ‘Tropa de elite’ transformou-se numa necropolítica

Em 2007, o filme “Tropa de elite” mostrava uma cena na qual o Capitão Nascimento, do Bope da PM do Rio, queria saber onde estava o traficante Baiano, espancava um jovem e mandava que o torturassem asfixiando-o com um saco de plástico. Esse momento foi aplaudido em muitas salas do país. Passaram-se 12 anos, Jair Bolsonaro está no Planalto, e Wilson Witzel (Harvard Fake’15) governa o Rio de Janeiro. Durante a campanha do ano passado, o capitão-candidato foi a um quartel do Bope, discursou e repetiu o grito de guerra de “Caveira!”. Eleito governador, Witzel anunciou sua plataforma para bandidos que empunhassem fuzis: “A polícia vai mirar na cabecinha e... Fogo!”

As plateias de “Tropa de elite” haviam mandado um sinal, e ele materializou-se na eleição. Tudo começou ali. O cidadão que aplaudiu a cena da tortura acreditava que aquele deveria ser o jogo jogado, reservando-se o direito de achar que só se deve torturar quem se mete com traficante ou que só se deve acertar a cabecinha do sujeito que vai para a rua com um fuzil. Passou-se um ano, não se sabe como o ex-PM Fabrício Queiroz “fazia dinheiro”, e a polícia do Rio acerta não só cabecinhas de bandidos, como também crianças. O cidadão do aplauso é capaz de fingir que não sabia que essa seria uma das consequências da sua manifestação de felicidade. Por trás de cena do Capitão Nascimento havia muito mais.

O repórter Rafael Soares mostrou um aspecto desse desfecho. No dia 13 de novembro de 2014, um PM que servia no Bope tentou convencer o traficante Lacosta a executar um major que atrapalhava os negócios do setor:

“Manda ver onde mora e quando ele for sair da casa, forja um assalto e rasga ele”.

Depois entrou em detalhes:

“Glock com silenciador e carregador goiabada de 100 tiros pow vai brincar com ele. Esse cara tá com marra de brabo.”

Dois meses antes dessa conversa, a PM do Rio havia prendido 23 policiais acusados de extorsão. Entre eles estava o terceiro homem na hierarquia da corporação, sob cujas ordens ficavam os comandantes do Bope.

O dilema da segurança nas grandes cidades brasileiras nunca esteve num confronto simples, como o da retórica de Bolsonaro e Witzel, com o Capitão Nascimento de um lado e o traficante Baiano do outro. Nas camadas do meio estão policiais, milicianos e todas as combinações possíveis com a bandidagem. Aquilo que começou com o aplauso à cena de “Tropa de elite” seguiu seu curso e transformou-se numa necropolítica. Ela finge que combate o crime, mas contém o ingrediente que inibe esse propósito: o PM que queria “rasgar” o major negociava com o traficante Lacosta, a quem chamou de “meu rei”, porque há quem precise de bandido vivo e solto. Lacosta vai bem, obrigado. A facção à qual ele se associou foi pioneira na criação de holdings com milícias.

Não há nada de novo nessa constatação. O ex-sargento PM Ronnie Lessa, acusado de ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco, teve uma carreira complementar à sua atividade no Bope. Foi guarda-costas de contraventor, teria ligações com o Escritório do Crime e na casa de um de seus amigos guardava 117 fuzis desmontados. Tinha amigos na milícia de Rio das Pedras e uma boa vida, a ponto de ter comprado uma boa casa no condomínio da Barra da Tijuca onde vivia o deputado Jair Bolsonaro.


Elio Gaspari: O direito difuso concentrou interesses

Muita gente estrilou com a fundação da Lava Jato, como se fosse novidade

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) decidirá na quarta-feira a legalidade do contingenciamento de R$ 720 milhões do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. Quem nunca ouviu falar nisso ganhou uma oportunidade para entender como o dinheiro da Viúva vira fumaça no alambique de leis e normas da burocracia. Em março, o desembargador Fábio Prieto botou o pé na porta com um voto que evitava a fuga desse dinheiro.

"Direito difuso" é a indenização que uma empresa deve pagar por ter lesado uma comunidade. Por exemplo: se uma pessoa compra um carro e ele tem um defeito, pode pedir indenização, mas se uma fábrica contamina o ar de uma cidade cria um direito difuso, pois não é possível ressarcir cada vítima.

Assim, quando o Conselho de Administração de Defesa Econômica, o Cade, condena essa empresa a pagar uma indenização, manda o dinheiro para um Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, FDDD. Desde 2011 ele arrecadou R$ 2,3 bilhões.

Até aí, foi fácil, pois a burocracia sabe tomar o dinheiro alheio. A dificuldade, ou a verdadeira facilidade, estava em dizer para onde iria o ervanário. De saída, a União mordeu a maior parte, pois reteve (em burocratês, contingenciou) R$ 2,3 bilhões. Liberou apenas R$ 43 milhões. O Congresso havia decidido que o dinheiro poderia ir para "qualquer outro interesse difuso".
Transformou o difuso num concentrado para quem tivesse acesso ao cofre.

O dinheiro vai para entidades credenciadas pelo Conselho Gestor do FDDD, nominalmente dedicadas ao bem comum. Assim, uma fábrica mineira de rapaduras recebeu R$ 156 mil. Já uma associação de proprietários, artistas e escolas de circo do Ceará ficou com R$ 100 mil para cuidar da memória de seus espetáculos. Um projeto de construção de 5.000 cisternas em escolas do semiárido nordestino poderá vir a receber R$ 301 milhões.

Rapaduras, circos e cisternas refletem um compreensível interesse benemerente. Contudo outra parte do dinheiro destinou-se a financiar entidades não governamentais. Três delas receberam um total de R$ 1,1 milhão. Em duas, há membros do Ministério Público em suas diretorias.

Uma dessas entidades credenciadas para distribuir o dinheiro, o Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor, recebeu, por um caminho lateral, R$ 7,6 milhões para pagar aluguéis, impostos, comprar móveis, contratar funcionários e consultorias. Traduzindo: pelo menos R$ 8,7 milhões difusos, se concentraram na rede credenciada.

A liberação dos R$ 720 milhões, determinada por um juiz de Campinas, talvez explique a presença do ministro Sergio Moro na reunião de março do Conselho Gestor Fundo de Direitos Difusos. Nela, o doutor louvou a ação do Ministério Público que batalha pela liberação dos recursos.

Muita gente estrilou, com razão, quando estourou o caso da fundação arquitetada pelos procuradores de Curitiba para gerir R$ 1,2 bilhão, como se ela fosse uma novidade. Os direitos difusos dos contribuintes já foram usados para construir uma máquina muito parecida, capaz de pedir, a qualquer momento, R$ 2,3 bilhões. Por enquanto, querem R$ 720 milhões, metade do que queriam os doutores de Curitiba.

O que fazer? Botem todo esse dinheiro numa Kombi e deixem-no na porta da Receita Federal, nome de fantasia da velha Bolsa da Viúva.

 


Elio Gaspari: Janot mostrou o cenário chinfrim

Ex-procurador-geral exagerou na seletividade da própria memória

O livro “Nada Menos que Tudo”, do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, deseduca, desinforma e ofende o vernáculo. Traz mais revelações sobre o funcionamento do aparelho digestivo de sólidos e líquidos do doutor do que a respeito da máquina do Judiciário e do Ministério Público que chefiou por quatro anos. Conta dois episódios de vômito e um de gases. A certa altura diz que o senador Renan Calheiros tinha uma “suposta namorada”, quando se sabe que ele teve uma filha com a senhora.

As memórias de Janot desencadearam um episódio chinfrim porque, numa entrevista a propósito do livro, ele revelou que foi armado ao Supremo Tribunal Federal para matar Gilmar Mendes. (Essa cena, narrada com detalhes na entrevista, está contada no livro de forma críptica, sem identificar o ministro que levaria um tiro “na cabeça”.) A pedido do doutor Alexandre de Moraes, a Polícia Federal foi à casa do ex-procurador-geral numa operação de busca e apreensão e capturou sua pistola. Episódio desnecessário, acompanhou o estilo teatral das memórias do ex-procurador.

Sucederam-se manifestações de solidariedade e espanto, traduzidas pela professora Eloísa Machado de Almeida: “O episódio coroa a má relação entre procuradores da República e ministros do Supremo”. Aquilo que poderia ter sido um conflito em torno do direito virou um confronto de antropófagos com canibais. Como escreveu a professora: “O futuro da Lava Jato sempre dependeu de sua própria integridade jurídica e de seus membros. A autoridade do Supremo vem da legitimidade constitucional de suas decisões. Por isso, agora, ambos naufragam abraçados”.

Mais preocupado em falar bem de si, Janot exagerou na seletividade da própria memória. Ainda assim, ele mostra o momento em que o conjunto da Lava Jato começou a naufragar. Em 2014, quando a Procuradoria-Geral recebeu um lote de delações vindas de Curitiba, Janot teria comentado:

“Isso tá uma merda, não tem nada.”

Ele se referia às acusações de Alberto Youssef contra Lula e Dilma Rousseff, “destituídas de valor jurídico”. Como procurador-geral, Janot poderia ter contribuído para ordenar os métodos e a qualidades das delações. Ele e os procuradores preferiam cavalgar a popularidade de seus espetáculos.

Três meses depois, em fevereiro de 2015, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, de Curitiba, dizia que “o procedimento da delação virou um caos.(...) O que vejo agora é um tipo de barganha onde se quer jogar para a plateia, dobrar demasiado o colaborador, submeter o advogado, sem realmente ir em frente. Não sei fazer negociação como se fosse um turco.” Acabou aprendendo, mas essa é outra história.

Em maio de 2015, o Ministério Público em Curitiba foi confrontado com duas delações conflitantes, na qual um dos colaboradores oferecia-se para uma acareação. Um dos doutores disse que não se devia mexer no assunto: “Esse é o tipo de coisa que quanto mais mexeu pior fica.” Ao que um de seus colegas completou:

“É igual bosta seca: mexeu, fede”.

Desde que os processos de Curitiba e da Procuradoria-Geral chegaram às cortes superiores a fedentina tomou conta da Lava Jato, pois não havia como deixar a bosta seca intocada.

 


Elio Gaspari: Juiz Bretas nega passaporte a Temer e retoma costume da ditadura

Juiz retoma costume da ditadura, que até 1975 fez a mesma coisa com Jango

No dia 12 de julho a Oxford Union, sociedade de debates criada em 1823 por estudantes daquela universidade, convidou o ex-presidente Michel Temer para uma palestra, agendada para 25 de outubro. No início de agosto Temer pediu ao juiz Marcelo Bretas que liberasse o seu passaporte por seis dias, para um bate-e-volta. A decisão demorou mais de dois meses e, no último dia 18, o doutor negou o pedido.

Negando passaporte a um ex-presidente, Bretas retomou o costume da ditadura que até 1975 fez a mesma coisa com João Goulart. (Ele viajava com um documento que lhe havia sido dado pelo presidente paraguaio Alfredo Stroessner). Jango, bem como todos os exilados a quem a ditadura negava passaportes, era adversário do regime e tinha atividade política no exterior.

Temer é um ex-presidente que deixou o palácio depois de entregar a faixa ao seu sucessor eleito democraticamente. Mesmo depois de banida pela República, a família imperial tinha documentos brasileiros e, em 1922, foi mimada com passaportes diplomáticos.

Já passaram pela tribuna da Oxford Union figuras como Winston Churchill, Elton John, Ronald Reagan, Madre Teresa de Calcutá, Albert Einstein e Marine Le Pen. Como toda sociedade de debates, ela estimula a controvérsia.

Negando a Temer o direito de viajar por poucos dias, o juiz Bretas arrisca entrar para a história da Oxford Union como um patrocinador de silêncio. Felizmente existe a possibilidade de um recurso.

O regime democrático brasileiro mostra seu vigor quando se vê que Lula, condenado em duas instâncias, cumpre sua pena em regime fechado, mas dá entrevistas periódicas a jornalistas.

Temer não foi condenado em qualquer instância. Bretas tornou-o réu em dois processos e chegou a prendê-lo numa decisão, revertida pelo Superior Tribunal de Justiça, que lhe delegou o controle do passaporte.

Durante os dias do espetáculo da prisão de Temer apareceram histórias segundo as quais poderia fugir do país. Ele nunca trocou de endereço.

No despacho em que negou o pedido, Bretas diz que “não fosse a decisão contrária de instância superior (...) o peticionante provavelmente ainda estaria preso preventivamente, pois os argumentos que aqui apresentou não foram capazes de alterar meu convencimento quanto à necessidade de sua custódia”.

Não fosse o segundo gol do Uruguai, o Brasil teria ganho a Copa de 1950. Ele prendeu Temer, e o STJ, instância superior, mandou soltá-lo, bola ao centro.

A vida da lei não está só na lógica, mas na experiência. A experiência mostra que negar passaportes (no caso, para uma palestra) faz mal à história de um país. Na direção contrária, faz bem àqueles que se afastam do absurdo disfarçado de lógica.

O chanceler Oswaldo Aranha mandou dar passaportes brasileiros aos comunistas que lutavam na guerra civil espanhola e refugiaram-se na França. O senador baiano Luís Viana ajudou a dobrar o SNI, que negava passaporte ao cineasta Glauber Rocha.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: Moro desculpou-se, mas não se arrependeu

A única coisa verdadeira na carta do então juiz da Lava Jato era a data

No dia 29 de março de 2016, o juiz Sergio Moro pediu "escusas" ao Supremo Tribunal Federal por ter liberado a divulgação do áudio de um telefonema da presidente Dilma Rousseff a Lula. Os 95 segundos da conversa detonaram a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil e deram mais um empurrão na derrubada do governo petista.

Moro escreveu o seguinte: "Diante da controvérsia decorrente do levantamento do sigilo, compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários. Jamais foi a intenção desse julgador provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo."

Mensagens e grampos reunidos por uma equipe da Folha e do Intercept Brasil mostraram que a única coisa verdadeira na carta de Moro era a data.

Moro e os procuradores quiseram, e conseguiram, criar a polêmica e constrangimento.

A ARMAÇÃO, ATÉ AS 13H32 DO DIA 16
Aos fatos:

A pedido de Moro, os telefones usados por Lula estavam grampeados pela Polícia Federal desde o final de fevereiro. No dia 15 de março, a equipe que ouvia as conversas concluiu um relatório com 42 transcrições. A última havia ocorrido às 19h17 do dia 14.

Desde o dia 9 o procurador Deltan Dallagnol sabia que Dilma havia oferecido a chefia da Casa Civil a Lula. A informação veio de um agente da PF e às 19h25 Deltan solicitou ao delegado Igor Romário de Paula que lhe conseguisse um CD com os grampos: "Estou sem nada para ouvir no carro rsrsrs."

No dia seguinte, falando com o delegado, Deltan pediu para receber todo o conjunto que "pode ser importante para indicar riscos à segurança e à condução". Era voz corrente que Lula poderia ser preso.

No dia 13, Moro alertou Dallagnol para a possibilidade de mudança de foro do processo de Lula caso ele virasse ministro. De fato, os grampos do dia seguinte informavam que Lula iria a Brasília para conversar com Dilma, precisando de "meia hora sozinho com ela".

Às 7h45 do dia 16, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima perguntou qual a posição da Procuradoria-Geral com relação ao assunto que discutiria dali a pouco com Moro. Tratava-se de saber o que se faria com o relatório dos grampos. Carlos Fernando queria "abrir tudo".

Ele sabia que Lula e Dilma estavam tomando café da manhã juntos e explicou: "Por isso a urgência".

Às 11h12, Sergio Moro oficiou à PF a suspensão da escuta dos telefones. Ali havia de tudo, da indecisão de Lula, ao seu espanto com o tamanho da manifestação do dia 13, quando 3,6 milhões de pessoas foram para as ruas protestar contra o governo, e até assuntos familiares, como uma cadeira de rodas para seu irmão Vavá.

Até as 12h58 Moro não havia decidido tirar o sigilo das 42 conversas transcritas pela Polícia Federal. Divulgadas, elas prejudicariam a manobra, mas não teriam um efeito letal. Eram menos escabrosas do que as gravações que o ex-diretor de Transpetro Sérgio Machado vinha fazendo clandestinamente ao conversar com Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney.

O TELEFONEMA DE DILMA MUDA TUDO
Às 13h32, Dilma telefonou para Lula, avisando que o "Bessias" estava a caminho, levando o documento de sua nomeação para chefia da Casa Civil.

Doze minutos depois o jogo mudou. Numa rapidez inédita, o agente federal Rodrigo Prado informou aos procuradores: "Senhores: Dilma ligou para Lula avisando que enviou uma pessoa para entregar em mãos o termo de posse de Lula. Ela diz para ele ficar com esse termo de posse e só usar em 'caso de necessidade'... Estão preocupados se vamos tentar prendê-lo antes de publicarem no Diário Oficial a nomeação do Lula."

Às 13h46, o Planalto divulgou a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil.

Às 14h26, o delegado Luciano Flores de Lima mandou que Prado transcrevesse a conversa de Dilma com Lula, "sem comentários". Às 15h34 o delegado narrou ao juiz Moro o conteúdo da conversa.

Às 16h21, Moro levantou o sigilo de todos os telefonemas, inclusive daqueles que ocorreram depois do seu despacho suspendendo a escuta.

Às 17h21, Moro disse a Deltan que havia levantado o sigilo mas que "aqui não vou abrir a ninguém". Minutos depois, mandou uma mensagem urgente ao procurador, mas seu conteúdo não é conhecido.

'O MUNDO CAIU'
Às 18h40, ao vivo e a cores, o diálogo de Dilma com Lula foi ao ar e o procurador Carlos Fernando registrou: "Tá na GloboNews".

Deltan comentou: "Ótimo dia. Rs".

O procurador Athayde Costa arrematou: "O mundo caiu".

Caiu, mas todos sabiam o que haviam feito.

O procurador-geral Rodrigo Janot estava na Suíça e seu chefe de gabinete, Eduardo Pelella, perguntou: "Vocês sabiam do áudio da Dilma? (...) A gente não falou sobre isso". (19h17)

Minutos antes, Deltan dissera que "por cautela, falei com Pelella e deu ok". Esquisito, porque ao saber que o grampo de Dilma com Lula não estava no relatório da PF, Pelella espantou-se: "Não estão nos relatórios? Caralho!!!" (19h23)

A partir das 21h os procuradores de Curitiba temem pelo que pode acontecer. O procurador Orlando Martello, que se surpreendeu com a divulgação dos áudios, avisa: "Estou preocupado com o Moro! (...) Vai sobrar representação contra ele."

Carlos Fernando concorda: "Vai sim. E contra nós. Sabíamos disso."

A procuradora Laura Tessler entra na conversa: "A população está do nosso lado, qualquer tentativa de intimidação irá se voltar contra eles".

Martello propõe: "Se acontecer algo com Moro, renúncia coletiva MP, PF, RF" [Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal].

Carlos Fernando gostou da ideia: "Por mim, ok. Adoro renunciar... Rsrsrs."

Nessa troca de mensagens que foi das 21h às 23h, os procuradores Andrey Borges de Mendonça e Antonio Carlos Welter levantaram dúvidas quanto à legalidade da divulgação do grampo de Dilma com Lula. Seis outros acompanharam a tese de Carlos Fernando para quem discutia-se uma filigrana, prontificando-se a renunciar, indo à televisão para denunciar o governo.

Não foram necessárias renúncias coletivas nem entrevistas agressivas. A manobra teve o apoio da opinião pública, o ministro Gilmar Mendes cassou a posse de Lula e seis meses depois Dilma Rousseff foi deposta pelo Congresso.

No dia 16 de março de 2016, a República de Curitiba teve sua maior vitória. Como no gol de Maradona, a bola foi ajeitada com a mão ("de Deus", como ele disse).

Cinco dias depois, trocando mensagens com Deltan, Sergio Moro resumiu sua conduta: "Não me arrependo do levantamento do sigilo. Era a melhor decisão."

Era?

 


Elio Gaspari: Celso de Mello - ‘ !!!!!!!!!!!!!!! ’

A mensagem do ministro Celso de Mello para a repórter Mônica Bergamo tinha 15 pontos de exclamação. Diante da presepada do prefeito Marcelo Crivella na Bienal do Livro, o decano do Supremo Tribunal Federal fez um curto e indignado protesto contra as “trevas que dominam o poder do Estado”, a “intolerância”, a “repressão ao pensamento” e a “interdição ostensiva ao pluralismo de ideias”. Não deu nome aos bois, mas qualificou a manada: as “mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo (que) erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República !!!! ”.

Celso de Mello não é só o decano do Supremo Tribunal Federal, pois esse título mostra apenas que é o ministro que está lá há mais tempo, desde 1989. Ele é uma espécie de fiel da balança nas divergências e idiossincrasias de seus pares. Ele havia sinalizado seu desconforto em agosto passado, quando Jair Bolsonaro republicou uma medida provisória que havia sido rejeitada pelo Congresso: “Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade suprema da Constituição da República”.

Habitualmente oceânico em seus votos, o ministro foi breve em sua mensagem a Mônica Bergamo. Com 173 palavras, falou do tempo “novo e sombrio” que se anuncia. Seus 15 pontos de exclamação mostram que está zangado. É a zanga de um homem da lei. Acaba de sair nos Estados Unidos uma boa biografia de Oliver Wendell Holmes, o grande juiz da Suprema Corte, onde sentou-se de 1902 a 1932. Flor do orquidário de Mello, Holmes foi o autor do grande voto em defesa da liberdade de expressão que ficou em minoria na época mas hoje é um marco na jurisprudência americana. Certo dia, aos 90 anos, o juiz pediu a uma secretária que lhe lesse “O amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. A certa altura, mandou que parasse: “Filha, não vamos acabar este livro, sua chatice não é aliviada por sua pornografia”. Hoje “O Amante de Lady Chatterley” é apenas um romance chato. Quando a moça lia para Holmes, ele estava proibido nos Estados Unidos. (A licenciosidade de Lawrence é light se for comparada com a retórica de Bolsonaro.)

Celso de Mello mostrou que vai à luta contra “as trevas que dominam o poder do Estado”. Nessa briga Marcelo Crivella é um cisco no olho. O desconforto do ministro com as plataformas móveis de Jair Bolsonaro é grande e antigo. Antes mesmo da eleição, ele cogitava antecipar sua aposentadoria para não entregar sua vaga depois de uma eventual vitória do capitão. Mudou de ideia e pode ter se arrependido, pois em nove meses viu seus temores confirmados. No início do mandato de Bolsonaro, o ministro foi colocado na situação de esquentador de cadeira para Sergio Moro. Do Moro de janeiro resta apenas uma pálida sombra, disciplinado pela calistenia do Planalto, onde ensina-se que lá não se admite a figura de ministro com agenda própria. Quem samba fica, quem não samba pode ir embora. E Moro decidiu ficar.

Celso de Mello chegará à aposentadoria compulsória no seu 75º aniversário, em novembro do ano que vem. Até lá, escreverá boas páginas na defesa das “vias democráticas”, na luta da luz contra a treva.


Elio Gaspari: Weintraub e a 'suspenção' das bolsas

Brasil tem que conviver com ministro que assina documento sem ler e suspende auxílio à pesquisa

Num governo que fez a opção preferencial pelo folclore radical, Abraham Weintraub é um personagem inesquecível. É legítimo herdeiro do general Aurélio de Lyra Tavares, que há exatos 50 anos governava o Brasil na junta militar que empalmou o poder diante da incapacidade do presidente Costa e Silva. O doutor Weintraub pediu dinheiro ao ministro Paulo Guedes referindo-se à “suspenção” de pagamentos. Dias depois, explicou-se dizendo que assinou a carta de oito páginas sem lê-la.

Em março de 1964, o general Lyra Tavares escreveu ao seu chefe, Humberto Castello Branco, falando em “acessoramento”, numa carta em que meteu também um “encorage”. Como o general acabou seus dias num fardão da Academia Brasileira de Letras o ministro da Educassão tem pouco a temer (quando a ditadura vivia seu período de abrandamento, era comum que panfletos e documentos militares criticassem a “distenção”).

Com Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Weintraub compõe o triunvirato folclórico do governo Bolsonaro. Uma cedilha a mais ou a menos não deve ser motivo para condenar uma pessoa. Grave mesmo é que, no dia em que se noticia a suspensão do pagamento de 5.613 bolsas de mestrado e doutorado, o ministro vá para vitrine escrevendo que “tem gente que acredita em Saci Pererê, em Boi Tatá e em Mula sem Cabeça; e tem gente que acredita no Datafolha”. Seu chefe manifestou o mesmo ceticismo em relação a uma pesquisa que mostrou a corrosão de sua popularidade, lembrando que tem gente que acredita em Papai Noel. Tudo bem porque qualquer fantasia é admissível para quem se vê mal numa pesquisa, inclusive a de acreditar no bom velhinho.

Ministro da Educação é outra história, sobretudo num país que precisa de pesquisadores. O Brasil que já conviveu com um ministro do Exército que escreveu “acessoramento” pode conviver com outro, na Educação, que assina sem ler um documento mencionando uma “supenção” de pagamentos. Mais difícil será conviver com um administrador que suspende todas (repetindo, todas) as novas bolsas de mestrado e doutorado do país.

Weintraub poderia abrir o debate do financiamento dessas bolsas, de sua qualidade e dos critérios que as orientam. Também poderia reconhecer a gravidade da suspenção, organizando-se para minorar seus efeitos. Nessa discussão haverá espaço para vida inteligente. É sempre bom lembrar que nos seus 21 anos de duração, a ditadura demitiu, prendeu e exilou cientistas, mas também montou uma sólida base de estímulo à pesquisa. Poucos professores foram tão patrulhados pela esquerda em 1964 quanto o reitor Zeferino Vaz, da Universidade de Brasília. A partir de 1966 ele comandou a organização da Unicamp, que está hoje entre as melhores do país. O campus da universidade leva seu nome. Deve-se a Sérgio Buarque de Holanda a distinção, na política brasileira, entre conservadorismo e atraso. Talvez Zeferino fosse conservador, mas atrasado não era. Weintraub é atrasado, só.

Ele acha que existe um boi chamado Tatá. O Boitatá é uma enorme serpente de fogo que protege as matas. Ricardo Salles e Bolsonaro, por exemplo, sentiram o bafo do Boitatá.

 


Elio Gaspari: O inferno de Moro, uma tragédia brasileira

Ministro é hoje uma fritura ambulante. Fritam-no (ou frita-se) no Planalto, no Congresso e no Judiciário

Quando decidiu largar a toga, trocando o altar da Lava-Jato pelo serpentário de Brasília, Sergio Moro fez uma escolha arriscada. Ele havia se tornado um símbolo da luta contra a corrupção, mandando para a cadeia gente convencida de que aquilo era lugar de preto e de pobre. Na última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro chamou-o de “patrimônio nacional”, mas Moro e as paredes do Planalto sabem que há poucas semanas ele o chamava de outra coisa. Quem já fritou um bife sabe que é preciso virar a carne, para não queimá-la. Moro é hoje uma fritura ambulante. Fritam-no (ou frita-se) no Planalto, no Congresso e no Judiciário.

Há dois anos ele seria um forte candidato na disputa pela Presidência da República. Essa viagem do paraíso ao inferno é uma tragédia brasileira que aponta para algo maior que ele. Mostra os vícios de soberba inerente à ideia do “faço-porque-posso”. Em 2004, antes de se tornar famoso, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo sobre a Operação Mãos Limpas italiana e disse o seguinte:

“Os responsáveis pela Operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. (...) A investigação da ‘Mani Pulite’ vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no ‘L’Expresso’, no ‘La Repubblica’ e outros jornais e revistas simpatizantes. (...) Os vazamentos serviram a um propósito útil.”

Moro e os procuradores da Lava-Jato repetiram a mágica. Agora queixam-se de vazamentos, e o ministro da Justiça lastimou que seus projetos “não têm tido a necessária exposição na imprensa”.

O doutor não percebeu a mudança climática a que se submeteu trocando Curitiba por Brasília. Era um juiz que encarnava o combate à roubalheira e, junto com os procuradores, era também a melhor fonte de notícias. Afinal, era preferível ouvir Moro ou Deltan Dallagnol a dar crédito às patranhas virginais de empreiteiros ou de comissários petistas. Moro, Dallagnol e os procuradores sempre souberam que seus serviços seriam avaliados nas cortes superiores de Brasília. Confiaram numa inimputabilidade que lhes seria concedida pela opinião pública, até que vieram as revelações do The Intercept Brasil e, acima de tudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou a sentença de 11 anos de prisão imposta a Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil.

Os inimigos do procurador Dallagnol acusavam-no de manipular a fama com palestras bem remuneradas, mas ninguém seria capaz de supor que de 20 palestras vendidas entre fevereiro de 2017 e fevereiro de 2019, cinco fossem patrocinadas pelo plano de saúde Unimed, com um tíquete médio de R$ 32 mil. Em setembro de 2018 o procurador queria ir à Bahia e perguntou a uma agenciadora: “Será que a Unimed Salvador não quer me contratar para uma palestra na semana de 24 de setembro?” (A Lava-Jato passou ao largo dos planos de saúde.)

Dallagnol fez o que achava que podia fazer. Desde o aparecimento das mensagens obtidas pelo Intercept, os procuradores da Lava-Jato e Sergio Moro encastelaram-se numa defesa suicida de silêncio e negação. Danificaram a alma da Lava-Jato com a soberba do encastelamento que levou as empreiteiras e os comissários do PT à ruína e à cadeia.

Para Moro, a conta do “faço-porque-posso” veio na semana passada, com a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

Alberto Toron estava certo
No dia 19 de janeiro de 2018 o advogado Alberto Toron, defensor de Aldemir Bendine, encaminhou ao então juiz Sergio Moro um pedido para que seu cliente apresentasse seus argumentos finais depois de conhecer os memoriais de Marcelo Odebrecht e de outros colaboradores que o acusavam de receber propinas.

Toron argumentava que eles eram réus, mas haviam se transformado em acusadores, em situação que “se assemelha ao papel de um assistente do Ministério Público”. Quatro dias depois, Moro negou o pedido. Pouco custava aceitá-lo. Sua decisão foi ratificada em duas instâncias superiores, até que na semana passada, por três votos contra um, a Segunda Turma do STF anulou a sentença de Moro que condenou Bendine a 11 anos de prisão, por ter cerceado sua defesa. Talvez o resultado fosse, quatro a um, se o ministro Celso de Mello estivesse na sessão.

Vale a pena voltar no tempo. Na véspera do pedido de Toron, dois procuradores da Lava-Jato discutiam o projeto de colaboração do ex-ministro Antonio Palocci e achavam que ele estava enrolando. Um deles cravou: “Pensamos numa entrevista com o candidato, colocando de modo claro que ou ele melhora, ou vai cumprir pena.”

Moro rebarbou o pedido de Toron no dia 23. Dois dias depois os procuradores da Lava-Jato romperam as negociações com Palocci, que começou a negociar uma colaboração com a Polícia Federal.

Uma coisa nada teve a ver com a outra, mas ambas tiveram a ver com o “faço-porque-posso”. Moro achou que podia, assim como Palocci achou que podia oferecer sua colaboração à Polícia Federal. Conseguiu, e em abril fechou seu acordo com a PF. Daí em diante, num ano eleitoral, as revelações de Palocci começaram a vazar.

Os dois “faço-porque-posso” encontraram-se no dia 1º de outubro, seis dias antes da realização do primeiro turno da eleição presidencial, quando Sergio Moro divulgou o teor de um anexo da confissão de Antonio Palocci à PF. Como logo disse uma procuradora, “o acordo é um lixo”, mas teve eficácia eleitoral. Moro fez porque podia.

Semanas depois Jair Bolsonaro foi eleito, e Moro aceitou o convite para o Ministério da Justiça. (Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro “contato” da equipe de Bolsonaro com Moro ocorreu antes de segundo turno.)

Achavam, mas não podiam.

A PF e a pf
O presidente Bolsonaro pode não ter gostado da ação do Coaf acusando a bizarrice na movimentação financeira de seu filho Flávio e de seu amigo Fabrício Queiroz.

Tudo bem, mas seu entorno gostou de ter recebido a informação de que Queiroz estava sendo investigado. Essa informação teria vindo de uma voz amiga da Polícia Federal.

Graças a esse aviso, Queiroz pediu demissão do cargo que ocupava no gabinete do deputado Flávio Bolsonaro, uma semana antes do primeiro turno da eleição do ano passado. Por coincidência, no mesmo dia, Nathália, a filha de Queiroz, foi afastada do gabinete do próprio Jair Bolsonaro na Câmara.

Agrotrogloditas
Os agrotrogloditas do andar de cima conseguiram o impossível: estimulando seus próprios instintos e os dos piromaníacos da Amazônia, impuseram ao setor uma encrenca internacional que custará centenas de milhões de dólares.

Rodrigues Alves
Bolsonaro repete que quem manda no governo é ele. Faria bem se refletisse sobre o que dizia o grande presidente Rodrigues Alves (1902-1906):

Meus ministros fazem tudo o que eles querem, menos o que eu não quero que eles façam.


Elio Gaspari: De E.Geisel@edu para Bolsonaro

Como diz o Médici, esfrie a cabeça, a Viúva de Caxias nos paga para aturar sacripantas e engolir sapos

Capitão,
O senhor pode detestar o Emmanuel Macron, mas seus sentimentos em relação a ele são suaves se comparados à malquerença que eu tinha pelo presidente americano Jimmy Carter. Ele assumiu em 1977 e eu sabia que teríamos encrenca.

No telegrama de felicitações que o Itamaraty redigiu para sua posse, puseram que ele assumiria um “honroso encargo”. Mandei cortar o “honroso”.

Quando ele se meteu nos nossos assuntos com um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, denunciei o acordo militar que tínhamos com os Estados Unidos. Os diplomatas americanos paparicavam políticos oposicionistas e ele chegou ao ponto de dar asilo ao Leonel Brizola, que havia sido expulso do Uruguai.

O que me envenenou foi o Carter mandar a mulher dele ao Brasil para uma espécie de viagem de inspeção. A dona Rosalynn tinha um caderno de notas e sentava-se comigo fazendo perguntas.

Num jantar do Alvorada ela foi impertinente e a conversa ia azedando, a ponto da mulher do embaixador ter feito um sinal para que as duas fossem ao banheiro. Que direito ele tinha de mandá-la tratar comigo? Ela não havia sido eleita coisa alguma.

Eu nunca disse uma palavra sobre Jimmy Carter, nem deixei que meus ministros falassem mal dele em público. Se nós não fazemos isso, os bajuladores radicalizam as posições para nos agradar.

O senhor deve saber que alguns ministros gostam de papaguear o que ouvem dos presidentes, mesmo quando dizemos bobagens.

Papagueiam, são criticados e acreditam que ganham prestígio conosco. Às vezes ganham, mas bobagens continuam sendo bobagens. Eu, por exemplo, proibi um programa de televisão com um vídeo do balé Bolshoi. Os papagaios justificavam a decisão com argumentos malucos.

Quando Carter visitou o Brasil oficialmente, recebi-o com toda cordialidade. Fizemos um programa austero, mas ele acabou armando um encontro com o cardeal Paulo Evaristo Arns, que eu considerava um sacripanta. Imagine que ele gostaria de vê-lo eleito papa.

A Viúva de Caxias nos paga salários para aturar situações horríveis. Lidar com o Carter foi uma delas, andar de carruagem em Londres com uma cartola apertando-me a cabeça foi outra.

Sei que o Carter me achou um velho militar, franco, frio e direto. Mesmo assim, disse que gostou de mim. Pois eu nunca gostei dele.

Anos depois, quando ambos havíamos deixado os governos, ele visitou o Brasil e manifestou o desejo de me ver. Não aceitei o encontro. Ele achou que poderia falar comigo por telefone e ligou para Teresópolis. Não o atendi. Pode-se achar que fui grosseiro, mas eu não estava mais na folha de pagamento da Viúva e podia fazer o que achasse melhor.

Outro dia almocei com dois barões. O Rio Branco me disse que não se defende soberania com bate-boca. Ele expandiu as nossas fronteiras, inclusive na Amazônia, sem discussões públicas. Estava também o barão de Penedo, que enfrentou os ingleses ao tempo em que eles queriam acabar com o nosso tráfico de escravos. Penedo não batia boca com os abolicionistas.

Repito-lhe o conselho que o presidente Médici deu aos oficiais que queriam me depor quando tirei o general Sylvio Frota do Ministério do Exército: “Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça”.

Cordialmente,

Ernesto Geisel