Elio Gaspari: Um jabuti gigante olhando para Bolsonaro

Licitação de R$ 3 bi da Educação foi cancelada por irregularidades

O repórter Aguirre Talento botou aos pés de Jair Bolsonaro um caso que lhe permitirá mostrar a extensão de seu compromisso com a defesa da bolsa da Viúva.

No dia 21 de agosto o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, FNDE, anunciou que realizaria um pregão eletrônico (13/2019) para a compra de “equipamentos de tecnologia educacional para a rede pública de ensino”.

Os educatecas queriam comprar 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops. Até aí seria coisa de Primeiro Mundo, com a Boa Senhora gastando R$ 3 bilhões.

Alguém sentiu cheiro de queimado. O presidente do FNDE, nomeado em fevereiro, foi dispensado e seu sucessor, Rodrigo Dias, assumiu no dia 30 de agosto. Em 4 de setembro revogou preventivamente o edital.

Entre agosto e as duas primeiras semanas de setembro a Controladoria-Geral da União apontou “inconsistências” no edital. Põe inconsistência nisso.

Noves fora que o Ministério da Economia não foi consultado para uma licitação de R$ 3 bilhões, ficando-se só em dois pontos apontados pela CGU, via-se que:

Os 255 alunos da Escola Municipal Laura Queiroz, de Itabirito (MG), receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Poderia ter sido um erro de digitação, mas a CGU mostrou que 355 escolas receberiam mais de um laptop por aluno, e 46 delas, mais de dois. Cada jovem da Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG) receberia cinco.

Na outra ponta do negócio, o das empresas que ofereciam equipamentos, a CGU achou duas, a Daruma (de Taubaté) e a Movplan (de Ribeirão Preto). Ambas mandaram cartas de cinco linhas, com o mesmo fraseado e o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”.

A Movplan fica em Ribeirão Preto, mas datou sua carta de Taubaté, onde mora a Daruma.

As “inconsistências” apontadas pela CGU foram rebatidas pelo FNDE num documento de 20 páginas. A autorização do Ministério da Economia não seria necessária, não se tratou da coincidência gramatical das duas cartas e a remessa para as escolas de um número de laptops superior ao de alunos seria corrigida.

O FNDE alegrou-se, informando que só na escola Laura Queiroz, a Viúva economizaria R$ 54,7 milhões.

O edital foi finalmente revogado pelo FNDE no dia 9 de outubro, data da conclusão do Relatório de Avaliação da CGU. Final feliz, graças à vigilância de competência de um órgão controlador da administração pública.

O que pode parecer um desfecho deveria funcionar para Bolsonaro como um começo: Como é que esse edital apareceu? Uma despesa de R$ 3 bilhões não é um jabuti qualquer. A burocracia do FNDE blindou-se diante das advertências da CGU. Blindada continuou depois da posse do novo presidente e da revogação preventiva do edital.

Cada ato administrativo praticado nessa novela tem um responsável, ou vários. O mesmo se pode dizer das empresas que foram atraídas (ou fizeram-se atrair) pela bonança do negócio. Os auditores da CGU defenderam a bolsa da Viúva, mas se o caso terminar com a simples revogação do edital e zero a zero, bola ao centro, sem a exposição dos responsáveis, eles estarão enxugando gelo.

Serviço: O relatório da CGU, a réplica do FNDE e a tréplica dos auditores estão na rede, no seguinte endereço: https://auditoria.cgu.gov.br/download/13562.pdf.

São 66 páginas de textos com algum juridiquês e muito computês, mas alegrarão quem acredita que há uma banda competente e vigilante no serviço público.


Elio Gaspari: O mundo irreal de Doria e Guedes

Até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais

Exatamente uma semana depois de a PM de Wilson Witzel ter sujado a festa do Flamengo, o governador João Doria disse no domingo que “São Paulo tem uma polícia preparada, equipada e bem informada.” Naquela hora, os corpos de nove jovens estavam no necrotério, pisoteados depois de uma entrada truculenta de sua PM num pancadão de Paraisópolis. Nas bancas e na rede, nesse mesmo domingo, estava também a entrevista do ministro Paulo Guedes à repórter Ana Clara Costa, na qual ele explicava o “timing” de suas reformas:

“Você dá pretexto para os outros fazerem bagunça. (...) Chamar pra rua manifestação ordeira e pacífica, como a que fazem quase todo fim de semana, problema nenhum. Agora, chamar para a rua para fazer igual no Chile e quebrar tudo foi uma insanidade, irresponsabilidade.”

Há algumas semanas, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acompanhando uma ameaça vinda de um filho do presidente, havia cantado a pedra do perigo chileno como justificativa para um surto ditatorial: “Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter.”

É irresponsabilidade (ou desejo) trazer o espantalho chileno para a situação brasileira, e a tragédia de Paraisópolis, bem como a pancadaria da festa do Flamengo, mostra que nos dois casos a insanidade saiu da PM. Não é de hoje que isso acontece.

Em outubro do ano passado, durante a gestão do governador Márcio França, a PM entrou num pancadão de Guarulhos, e três pessoas morreram em situação semelhante à de Paraisópolis. Doutor Doria poderia examinar a investigação do episódio de Guarulhos. Com uma polícia “preparada, equipada e bem informada”, deu em nada.

Um morador de Paraisópolis contou que a PM “chegou jogando bombas de efeito moral”. Pode ser que não tenha sido assim, mas na noite de 13 de junho de 2013, a PM paulista bloqueou uma passeata que protestava contra o reajuste dos ônibus na esquina da Rua da Consolação com a Maria Antônia. Quem estava lá viu que uns 20 policiais vieram do nada, jogando bombas de efeito moral. Aquela passeata era ordeira, convocada pelo Movimento Passe Livre e povoada por gente de tênis baratos e camisetas.

Começavam as jornadas de 2013. Anos depois, as manifestações transmutaram-se, e a presidente Dilma Rousseff foi deposta. (Vale lembrar que o governador tucano Geraldo Alckmin e o prefeito petista Fernando Haddad, do PT, que haviam reajustado as tarifas, estavam num evento em Paris, onde cantaram “Trem das onze” durante um jantar.)

Guedes teme que apareça gente “quebrando tudo”, mas, até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais, em São Paulo e no Rio. Esse comportamento persiste pela garantia da impunidade.

Nas divagações chilenas de Guedes e do general Heleno insinuam-se paralelos de incitação política. Já que é assim, pode-se temer também que a incitação política venha de outro lado. Em 1968, ela vinha de um maluco chamado Aladino Félix. Antes que terroristas de esquerda começassem a assaltar bancos e a matar gente (naquele ano), ele roubava dinamite e armas. Assaltou pelo menos um banco, explodiu uma bomba na Bolsa e outra num oleoduto. Como era doido, não se pode acreditar na sua palavra quando dizia que estava ligado a um general da reserva que, por sua vez, teria conexões com o governo. Uma coisa é certa: no seu grupo estavam 14 soldados e sargentos da Força Pública de São Paulo, mais tarde transformada numa Polícia Militar.

Naqueles dias o governador de São Paulo, Abreu Sodré, denunciava uma conspiração nos “subúrbios do poder”.


Elio Gaspari: Uma patrulha selvagem contra a Bishop

As críticas à escolha de Elizabeth Bishop evitaram a discussão de sua poesia

O sujeito soube que a poeta americana Elizabeth Bishop seria homenageada pela Flip do ano que vem e temeu pelo início de mais um debate indigente. Festejar uma lésbica e alcoólatra seria um prato feito para o ministro Abraham Weintraub. Eis que o pedagogo bolsonarista ficou calado e a escolha de Elizabeth Bishop foi condenada com outras críticas selvagens. Como um bolsonarismo de sinal trocado, essa intransigência malversa a história, tentando mudar o resultado de um jogo no replay.

As críticas à escolha de Bishop evitaram a discussão de sua poesia e centraram-se em três pontos. Ela viveu no Brasil por mais de dez anos, mas olhava para a terra de forma condescendente, menosprezando seus literatos (falou mal de Manuel Bandeira). No pior dos pecados, em 1964 apoiou a deposição do presidente João Goulart.

Bishop não olhou para o Brasil como o francês Claude Lévi-Strauss, que passou por aqui nos anos 1930. Ela era poeta e ele, antropólogo. As opiniões de Bishop foram expostas em cartas, enquanto Lévi-Strauss ponderou suas ideias no livro "Tristes Trópicos". Ela disse que toda a poesia latino-americana cabia num poema de Dylan Thomas. Exagerou, mas Lévi-Strauss traçou um retrato fiel e devastador da elite cultural brasileira. Livrou Euclides da Cunha e Heitor Villa-Lobos.

O caroço das críticas a Elizabeth Bishop esteve no seu apoio à deposição de Goulart: "Foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva —tudo terminado em menos de 48 horas." Bonita não foi, mas naqueles dois dias morreram sete brasileiros. (Neste ano a polícia do Rio matou 1.546 pessoas.)

Bishop era uma americana elitista e liberal. No Brasil, era também amiga de Carlos Lacerda. Em 1964, ele governava o Rio e era um feroz adversário de Goulart. Lacerda foi o melhor administrador que a cidade teve, nada a ver com o político acuado e decadente de seus últimos anos. A poeta era companheira de Lota de Macedo Soares, amiga do "Corvo" e criadora da maravilha do aterro do Flamengo.

Em 1963, liberais como Arthur Schlesinger Jr. e Richard Goodwin, assessores do presidente John Kennedy, defendiam a alternativa de um golpe contra Goulart. Um ano depois, quando ele foi derrubado, The New York Times disse, num editorial, que não lamentava a queda de um governante "tão incompetente e irresponsável". (Muito provavelmente essa peça foi escrita por Herbert Matthews, o jornalista que ajudou a criar o mito do guerrilheiro Fidel Castro.)

Em Pindorama também havia liberais contra Jango. Para ficar num só exemplo, o advogado Sobral Pinto, que tanto fez pela liberdade do brasileiros, disse, em janeiro de 1964, que "começou ontem, sob proteção abusiva e violenta de tropas do Exército (...) a revolução bolchevique brasileira (...) Não existe mais, nesta hora, no país, nem lei nem autoridade pública". (Ele condenava a proteção dada pelos militares a estudantes que haviam invadido uma faculdade, hostilizando Lacerda.)

A onda de intransigência mistificadora envenena até festas. Em 2006 a Flip homenageou Jorge Amado, ganhador do Prêmio Stálin em 1951, com o Guia Genial dos Povos ainda vivo. Em 2007 festejou-se Nelson Rodrigues, o supremo panfletário da ditadura. Nos dois casos esses aspectos biográficos foram desprezados, celebrando-se a boa literatura.

Elizabeth Bishop foi criticada porque menosprezou a poesia de Manuel Bandeira, que em abril de 1964 almoçou com o presidente Castello Branco, a quem admirava. A mesma Bishop elogiava João Cabral de Melo Neto como pessoa e como poeta. Logo João Cabral, que havia sido comunista.

A própria Bishop ensinou: "Nunca vi motivo para discussão sobre o nada".


Elio Gaspari: A Presidente Vargas de 1984 a 2019

O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo

A avenida foi a mesma. Em abril de 1984 ali aconteceu o grande comício das Diretas. Noticiou-se que a multidão passava do milhão de pessoas. Nem chegava a isso, mas deixa pra lá. A festa durou cerca de sete horas, sem um só incidente. No último domingo (24), mais de 1 milhão de cariocas festejaram o Flamengo. A festa terminou com uma pancadaria e 23 feridos nas proximidades do monumento ao Zumbi dos Palmares.

Não se sabe como começou a confusão, mas é elementar que a Polícia Militar não precisava ameaçar o povo com fuzis ou apontando-lhe revólveres. A primeira bomba de gás contra uma multidão parada pode ter sido um exagero. As demais, truculência, sobretudo sabendo-se que na festa havia crianças.

O veículo da Guarda Municipal também não precisava dar marcha a ré em alta velocidade numa pista livre. Acabou atropelando um guarda. Assim como Gabigol fez a alegria dos brasileiros com dois gols em três minutos num final de jogo, a PM do Rio manchou a celebração no fim da festa.

O medo faz mal à alma. O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo. Em 2013, quando o papa Francisco chegou ao Rio, estava protegido por um dispositivo teatral, com soldados e até cães farejadores.

Na Presidente Vargas o carro do papa ficou preso no trânsito e centenas de pessoas cercaram-no, assustando muita gente que via a cena pela televisão. Só Francisco não se assustou e manteve o vidro aberto. Os agentes da Polícia Federal que escoltavam o veículo a pé mantiveram a calma, sem agredir ninguém. Também não se assustaram as pessoas que queriam vê-lo, pois não é todo dia que há um papa na Presidente Vargas.

O Rio é governado por um bufão que estimula a violência policial na construção de sua própria teatralidade. No gramado do estádio de Lima, ajoelhou-se diante de Gabigol, recebendo um olhar seco, digno dos melhores monarcas da casa de Windsor.

No dia seguinte à pancadaria do fim da festa do Flamengo, o repórter Rafael Soares revelou o áudio de um PM que revelou sua contrariedade diante de um episódio no qual um sargento matou a tiros dois jovens que estavam numa motocicleta.

O caso aconteceu em 2015, soldados da patrulha haviam dito ao sargento para não atirar, mas “ele estava trabalhando com ódio, ficava falando que ia matar, matar”. O sargento matou porque achou que a furadeira carregada por um dos jovens era uma arma.

Já houve casos em que um cidadão foi morto porque carregava um guarda-chuva e outro, uma esquadria de alumínio. O PM que matou o homem do guarda-chuva foi absolvido e o outro caso ainda está sendo investigado. O sargento que ficava falando em matar ainda não foi julgado.

Na tarde de domingo, depois da confusão da Presidente Vargas, uma mulher se referiu aos PMs como “esses milicianos”. É verdade que o pessoal das milícias está em alta, mas nenhuma cidade terá segurança se a sua polícia se comportar de forma a permitir tamanha confusão.

A PM é uma corporação militar que deve trabalhar com normas profissionais e, sobretudo, de forma disciplinada, cumprindo protocolos. O que aconteceu na Presidente Vargas não seguiu protocolo algum. Quanto à disciplina, quem sabe?

Em março do ano passado, durante a intervenção federal na segurança do Rio, um general foi inspecionar o quartel do 18º Batalhão da PM e viu-se diante de uma tropa formada por 20 homens.

À voz do comando, alguns deles não lhe deram continência. Foi preciso que o coronel repetisse: “Todo mundo”. Só então foi obedecido.

 


Elio Gaspari: A 'Bosta Seca' de Palocci

Eros Grau mostrou que o ex-comissário mentiu ao tratar do contrato que assinou com Márcio Thomaz Bastos

Advogando para a família de Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014, o ex-ministro Eros Grau expôs uma variante da Teoria da Bosta Seca, segundo a qual quando dois delatores contam histórias conflitantes, não se deve mexer no caso, para evitar a fedentina.

O ex-comissário Antonio Palocci foi capaz de conflitar consigo mesmo.

Em sua recente delação à Polícia Federal, ele disse que em 2009 foi contratado por Thomaz Bastos para ajudar no desmonte da Operação Castelo de Areia, na qual a empreiteira Camargo Corrêa estava enterrada até ao pescoço. Recebeu um capilé de R$ 1,5 milhão.

Como o escritório de consultoria de Palocci era capaz de tudo, sua palavra podia valer alguma coisa.

Grau mostrou, documentadamente, que o contrato de Thomaz Bastos com Palocci referia-se a serviços de assessoria nas negociações para a compra das Casas Bahia pelo Grupo Pão de Açúcar. Mais: o próprio Palocci deu essa explicação ao Ministério Público em 2011, que resultou no arquivamento de um processo.

Aquilo que em 2011 foi um serviço para o Pão de Açúcar, em 2018 virou uma propina da Camargo Corrêa.

A defesa de Palocci reconhece que ele contou duas histórias para o mesmo contrato e justificou-se para a repórter Mônica Bergamo dizendo que ele “não revelou às autoridades qual era o verdadeiro escopo do contrato porque não estava colaborando com a Justiça nem tinha o compromisso de dizer a verdade”. Conta outra.

Em tempo: as 86 páginas da delação de Palocci são um passeio pelas suas andanças no andar de cima durante o mandarinato petista. Recusada pelo Ministério Público, ela tem muito caldo e pouca carne. Um capítulo, contado em apenas uma página, conta o caso do mimo de US$ 1 milhão feito pelo ditador líbio Muammar Gaddafi durante a campanha de 2002.

Essa história circula há anos. Palocci contou que o dinheiro foi repassado ao PT usando-se uma conta do publicitário Duda Mendonça na Suíça. Os dois teriam combinado a transação no hotel WT Center, em São Paulo. Duda está à mão e o depósito pode ser rastreado.

Essa poderia ser mais uma lenda palocciana, mas em dezembro de 2003 Lula foi à Líbia e, durante o jantar que lhe foi oferecido pelo ditador que seria assassinado em 2011, disse o seguinte:

“Quero dizer ao presidente Gaddafi que, ao longo dessa trajetória política, assumi muitos compromissos políticos. Fizemos alguns adversários e muitos amigos. Hoje, como presidente da República do Brasil, jamais esqueci os amigos que eram meus amigos quando eu ainda não era presidente da República”.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: O mistério do convite a Moro

Houve um certo sincronismo entre os vazamentos da delação de Palocci e a campanha

Gustavo Bebianno, ex-secretário-geral da Presidência e copiloto da campanha de Jair Bolsonaro quando ela cabia numa Kombi, contou ao repórter Fábio Pannunzio que o juiz Sergio Moro já estava convidado para o Ministério da Justiça antes que as urnas do segundo turno começassem a ser apuradas. Mais: naquela tarde de 28 de outubro, o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes revelou-lhe que havia conversado com o juiz “cinco ou seis vezes”.

Talvez o mistério da conexão de Moro com a campanha de Jair Bolsonaro pudesse ser desvendado se os envolvidos ralassem nos métodos da Lava-Jato: condução coercitiva, prisão preventiva interminável e oferta de delação premiada. Não é o caso.

Diversas mensagens trocadas por procuradores da Lava-Jato indicam que eles torciam pela derrota de Fernando Haddad na eleição. Uma doutora escreveu: “Ando muito preocupada com uma possível volta do PT, mas tenho rezado muito para Deus iluminar nossa população para que um milagre nos salve.”

Num lance inexplicável, seis dias antes do primeiro turno de 7 de outubro, Moro divulgou um dos anexos da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Era um pastel de vento, com acusações vagas que até hoje deram em nada. A oferta de delação de Palocci já tinha sido recusada pelo Ministério Público, e o próprio Moro havia duvidado de sua consistência. Segundo o procurador Carlos Fernando de Souza: “Não tinha provas suficientes. Não tinha bons caminhos investigativos”.

Houve um certo sincronismo entre os vazamentos da delação de Palocci e a campanha eleitoral. Moro determinou prisão de Lula no início de maio, e semanas depois as confissões do ex-ministro começaram a pipocar.

Doze dias depois do primeiro turno e 11 dias antes do segundo, a revista eletrônica Crusoé informou: “Sergio Moro aceitou ser ministro do governo Jair Bolsonaro”. No dia seguinte circulou a notícia de que Moro aceitaria ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Mais tarde, o doutor revelaria que no dia 23 de outubro (cinco dias antes do segundo turno) foi sondado por Paulo Guedes para entrar no governo.

No dia do segundo turno, Guedes revelou a Bebianno que Moro havia sido convidado. No dia seguinte, Bolsonaro fez que não sabia de nada: “Pretendo conversar com ele para ver há interesse da parte dele. Se eu tivesse falado isso antes soaria como oportunismo.”

Bolsonaro não falou com Moro durante a campanha, mas Guedes falou. Moro, por sua vez, informou que “caso efetivado oportunamente o convite, será objeto de ponderada discussão e reflexão.” Parolagem, o convite já havia sido feito.

Nessa conversa fiada, a única voz sincera foi a do general Hamilton Mourão: “Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”. Esse contato teria acontecido semanas antes.

Quantas semanas? Se foram duas, as conversas se deram entre os dois turnos. Se foram três, podem ter acontecido antes do primeiro turno. Aquilo que Bebianno chamou de “conversas” não podem ser tomadas como convites. Foram sondagens bem-sucedidas. Como teriam sido cinco ou seis, a alma da manobra está na data da primeira.

Tudo seria o jogo jogado se Moro não tivesse soltado o anexo da delação de Palocci quatro dias antes do primeiro turno.


Elio Gaspari: Tomar dinheiro de desempregado é covardia

O doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo

O doutor Paulo Guedes garantiu a sua presença nos anais da ciência econômica: propôs a taxação dos desempregados para financiar um programa de estímulo ao emprego. Não se conhece iniciativa igual no mundo, nos séculos afora.

Pela proposta da ekipekonômica, os brasileiros que recebem o seguro-desemprego, que vai de R$ 998 a R$ 1.735, pagarão de R$ 75 a R$ 130 como contribuição previdenciária. O sujeito perdeu o emprego, não tem outra renda, pede o benefício, que dura até cinco meses, e querem mordê-lo em 7,5% do que é pouco mais que uma esmola.

Se isso fosse pouco, no mesmo pacote a ekipekonômika desonerou os empregadores que aderirem ao programa do pagamento de sua cota previdenciária de 20%. Tinha razão o poeta Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, mas o doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo.

Tomar dinheiro dos miseráveis era coisa comum no tempo da escravidão. Em 1734, para combater “a ociosidade dos negros forros e dos vadios em geral”, a Coroa cobrava quatro oitavas de ouro a cada bípede livre que vivia na região das minas. Em 1835 a Assembleia da Bahia tomava dez mil réis de todos os negros libertos nascidos na África. Esse imposto rendia um bom dinheiro, algo como 7,6% do orçamento da província. Eram tungas de outra época.

No século 21, a ekipekonômica de Guedes quer arrecadar R$ 11 bilhões em cinco anos com argumentos mais refinados e cosmopolitas. Como o programa de estímulo ao emprego (e à propaganda oficial) gera despesa, deve-se indicar uma fonte de receita para custeá-lo.

Sob o céu de anil deste grande Brasil, os doutores miraram no bolso dos desempregados que conseguem acesso ao seguro, um benefício restrito aos trabalhadores do mercado formal. Em julho, 11,7 milhões de pessoas trabalhavam sem carteira assinada.

O argumento dos doutores pode ser uma girafa social, mas parece matematicamente correto. É intelectualmente desonesto porque o programa de estímulo ao emprego dos jovens durará só até 2022, enquanto a tunga do seguro dos desempregados ficará para sempre.

Há três semanas, neste espaço, Eremildo, o Idiota, propôs que junto com a discussão do fim dos incentivos à energia solar se pensasse também na cobrança de um imposto aos desempregados, pois eles usam os serviços públicos e não contribuem para a caixa da Viúva. Eremildo é um cretino assumido e se orgulha disso.


Elio Gaspari: Valec e EPL, estatais e imortais

Fusão pode ter bom resultado ou ser troca de três pares por meia dúzia

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, anunciou que o governo estudará a fusão de três estatais: a Infraero, a Valec e a EPL. Para quem recebe essa notícia, noves fora os padecimentos que já sofreu nos aeroportos, as duas outras siglas são sopa de letras. Olhando-se de perto, são uma aula.

A Valec é uma estatal que cuida de ferrovias desde o século passado. Em 1987 o repórter Janio de Freitas denunciou vícios na sua concorrência para a Norte-Sul. (Ela ainda não está pronta, mas deixa pra lá.)

No mandarinato petista a Valec ficou com o projeto do trem-bala que ligaria o Rio de Janeiro a São Paulo. Maluquice sem par, não tinha projeto nem empreiteiros querendo entrar no delírio. Ficaria pronto para a Copa de 2014, ou, a mais tardar, para a Olimpíada de 2016. A concessão foi a leilão e não teve interessados. A estatal foi entregue ao ex-deputado José Francisco das Neves, mais conhecido como “Doutor Juquinha”.

Essa pérola tinha mais funcionários no Rio do que em Brasília, onde ficava sua sede. Felizmente, o BNDES e o Tribunal de Contas travaram o trem-bala, mostrando que numa das pontas estavam espertalhões italianos. A essa altura, a papelada do trem já havia custado R$ 63 milhões.

Em 2012 “Doutor Juquinha” foi para a cadeia. Solto, viu-se condenado a nove anos de prisão e foi novamente preso. Colecionou maracutaias.

O trem-bala sumiu da propaganda por algum tempo, mas em 2012 seu projeto mudou-se para uma nova estatal que acabara de ser criada, a EPL ou Empresa de Planejamento e Logística. Ela comandaria R$ 133 bilhões em investimentos, inclusive para o trem.

A EPL encarnaria uma revolução e seu presidente prometia zerar os investimentos em infraestrutura em cinco anos. Como representava o início de um novo mundo, o trem seria privatizado, pois havia japoneses e coreanos interessados. Mais: ele poderia ir até Campinas e talvez, com menor velocidade, ligasse São Paulo a Belo Horizonte, Curitiba e Brasília.

Em 2015 o trem-bala foi para o arquivo, mas a EPL, como o Fantasma das Selvas, mostrou que era imortal. A essa altura o comissariado petista fumava a ideia da Ferrovia Transoceânica, que ligaria o Atlântico ao Pacífico, com dinheiro dos chineses. Foi uma fantasia vexaminosa.

Em 2017 a EPL tinha 143 funcionários, uma mixaria diante da Valec, com 1.027.

Em fevereiro o ministro Tarcísio de Freitas anunciou a inexorável extinção da Valec e seu colega Paulo Guedes defendeu o fechamento da EPL. Não rolou. Quanto à Infraero, seria desossada depois da privatização de 44 aeroportos. Também não rolou.

O ministro Tarcísio conhece as malhas da burocracia da infraestrutura. Sua última ideia não tem a retumbância das promessas de início de governo. Uma coisa é certa: a Infraero, a EPL e a Valec sobreviverão ao primeiro ano do governo Bolsonaro, pois os estudos da fusão poderão se estender até o fim do primeiro semestre de 2020.

A fusão dessas três estatais poderá produzir um bom resultado, poderá também ser uma troca de três pares por meia dúzia. Conhecendo-se o passado da trinca e sobretudo da dupla Valec/EPL fica o risco de se planejar um cruzamento de tatu com tartaruga e urubu.


Elio Gaspari: Lula saiu de Curitiba maior do que entrou

Ideia de vida política sem ex-presidente foi eterna enquanto durou

A ideia de uma vida política sem Lula e sem o PT foi eterna enquanto durou. Desde o dia do seu encarceramento e da derrota do candidato petista à Presidência, seus adversários tiveram uma oportunidade para demonstrar seu anacronismo. Jogaram o tempo fora.

Jair Bolsonaro, o cavaleiro do antipetismo, governa o Brasil há quase um ano testando uma agenda desnecessariamente radical. Sergio Moro, o Justiceiro de Curitiba, tornou-se um ministro subserviente e inócuo. Os procuradores da Lava-Jato enredaram-se nas próprias armações, reveladas pelo The Intercept Brasil.

Disso resultou que Lula saiu de Curitiba maior do que entrou. Desde que ele foi para a cadeia, muitas foram as radicalizações surgidas na política nacional. Nenhuma partiu dele.

Há uma pergunta no ar: o que ele fará? Isso só ele sabe.

Recuando-se no tempo, sabe-se que a última cadeia de Lula deu-se em 1980, quando ele era visto pelo governo como um líder sindical incendiário. O barbudo entrou na cela do Dops paulista no dia 18 de abril. Duas semanas depois ele continuava lá, quando o coronel Romeu Antônio Ferreira, segundo homem do DOI do Rio de Janeiro, recebeu uma proposta de atentado contra um show organizado pela esquerda que se realizaria no Riocentro no dia 1º de maio. A ideia era jogar uma bomba na casa de força, para cortar a energia. O coronel vetou o projeto. Um ano depois, quando Romeu estava na Escola de Comando e Estado Maior, a ideia foi retomada. A bomba jogada contra a casa de força pifou e outra explodiu no colo de um sargento do DOI, ferindo o capitão que o acompanhava.

Passaram-se quase 40 anos e Lula continua sendo visto como um radical. As vezes ele o é, mas até hoje seu papel foi mais de bombeiro do que de incendiário.

Hoje, como em 1980, Lula pode ser temido por radical, mas ele não é o único da cena.

O governo acredita nas suas lorotas
Segundo o Bolsonômetro, o presidente Jair Bolsonaro faz uma declaração imprecisa ou falsa a cada quatro dias. Perde de longe para seu colega Donald Trump (22 por dia), mas bate todos seus antecessores brasileiros. Até aí, seria apenas um mau jogo, mal jogado, mas a prática disseminou-se e cristalizou-se. Bolsonaro acredita que tem uma relação especial com os Estados Unidos. Entregou o que prometeu, mas não recebeu em troca nem aquilo com que contava. Em algum momento, acreditou que poderia liderar uma onda conservadora na América do Sul. Produziu um inédito isolamento.

Na semana passada o governo sabia que os dois leilões de campo do pré-sal haviam subido no muro, mas continuou esperando um sucesso. Veio o anticlímax da quarta-feira e, mesmo assim, proclamaram vitória. Bolsonaro disse que “no meu entender, foi um sucesso”. Sabiam que haveria outro leilão no dia seguinte e arremataram uma nova decepção. Felizmente, o ministro Paulo Guedes resumiu o episódio sem adjetivos: “Tivemos dificuldade para, no final, vender de nós para nós mesmos.”

Faz tempo, o embaixador Marcos Azambuja ensinou que “os diplomatas produzem blablablá (‘ bullshit ’, no original), mas não o consomem.” O governo se comporta como se as queimadas da Amazônia fossem coisas dos índios ou do clima e como se o óleo que sujou as praias do Nordeste fosse coisa de venezuelanos ou de um navio grego que jura inocência. Nesses dois casos reagiu mal, mas sempre se pode dizer que foram imprevistos. Para quem opera no mundo do petróleo, o desfecho dos leilões da Petrobras era uma forte probabilidade.

São muitas as iniciativas de Bolsonaro e de Paulo Guedes que poderão modernizar o Brasil. Isso não tem a ver com a incerteza gerada pelo palavrório inútil em torno de fantasias imprecisas, para não mencionar as puras falsidades. Quando Bolsonaro diz que o leilão do pré-sal foi um sucesso, se esquece que na audiência estão pessoas que entendem de petróleo, leilões e governos.

Apocalipse
De quem já viu de tudo, de todos os lados dos balcão, depois de conhecer as propostas do doutor Paulo Guedes:

Um tumulto.

Sem querer, o sábio caiu no poema “Nosso Tempo” de Carlos Drummond de Andrade.

“— Esse é tempo de partido,

Tempo de homens partidos

(...)
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.”

“Nosso Tempo” foi escrito durante a agonia do Estado Novo, ao final da Segunda Guerra.

Lava-Jato
Depois da decisão do STF a turma da Lava-Jato de Curitiba deveria retomar a discussão ensaiada no dia 16 de março de 2016, quando foi divulgada a conversa de Dilma Rousseff com Lula.

Como o juiz Sergio Moro havia soltado o grampo sabendo que a conversa aconteceu depois que ele mesmo determinou o fim da interceptação, temia-se que o ato fosse contestado. Para defendê-lo, ameaçavam com um pedido de renúncia coletiva.

Às 22h12m, o procurador Carlos Fernando Santos Lima defendeu a ideia e escreveu: “Devemos ir para frente da TV e dizer o que acontece. Vamos dizer da guerra subterrânea que enfrentamos.”

Boa ideia.

O feitiço de Trump
Donald Trump é um craque da desinformação. Em abril, com jeito de quem não queria nada, ele disse que o procurador-geral da Ucrânia precisava ir fundo nas investigações sobre corrupção em seu país. Em junho, numa entrevista à rede ABC, revelou que aceitaria informações de outros países contra seus rivais, Não disse quais países.

Teatro, do bom. Rudolph Giuliani, seu advogado pessoal, conversava com os ucranianos desde janeiro, pedindo-lhes que investigassem as atividades do ex-vice-presidente Joe Biden e de seu filho. Em maio assessores de Giuliani estiveram na Ucrânia e em junho a embaixadora americana em Kiev foi demitida, porque estava atrapalhando.

Para mostrar que falava sério, Trump congelou o projeto de ajuda militar à Ucrânia e em julho deu o fatídico telefonema apertando seu colega Volodymyr Zelensky.

Em setembro conheceu-se o teor da conversa e deu no que deu.

Para quem acompanha esse filme, na quarta-feira o embaixador William Taylor, que substituiu a colega demitida, fará seu depoimento público na Câmara.

Taylor tem biografia. Serviu no Exército, combateu no Vietnã e ocupou a embaixada em Kiev durante o governo de George Bush. Ele já denunciou o toma lá dá cá.

Bloomberg
Para alegria da banca e tristeza de Trump, Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York, sinalizou que disputará a indicação pelo partido Democrata.

Ele tem uma fortuna de US$ 53 bilhões e não herdou um só centavo do pai. Trump é filho de milionário.

Bloomberg construiu um império e nunca faliu. Seis empresas de Trump faliram.

Depois de governar Nova York durante 12 anos, de 2002 a 2013, saiu limpo e aplaudido.

Durante a convenção democrata de 2016, quando se sabia que Trump seria o candidato republicano, ele avisou:

“Como novaiorquino, quando eu vejo um vigarista, reconheço-o.”


Elio Gaspari: De J.Portela@edu para Heleno@mil

Sei como se fez o AI-5, não há receita, mas passo-lhe ingredientes de 1968

Caro general,
Outro dia o senhor falou das dificuldades para se baixar um Ato Institucional nº 5 no Brasil de hoje. Nas vossas palavras: “Essas coisas, hoje, num regime democrático... é complicado. Tem de passar em um monte de lugares. Não é assim. (...) Tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir”.

Para se fazer o AI-5 era preciso destruir a ordem constitucional da Carta de 1967, e posso dizer que vi a arquitetura desse desmanche. Eu, Jaime Portela de Melo, general, paraibano, chefe do Gabinete Militar do presidente Costa e Silva, estive em todas as encrencas militares do meu tempo.

Acho que o senhor, ou qualquer outra pessoa disposta a estudar como se pode conduzir o Brasil para um AI-5, deve entender que faltam diversas condições. Hoje não há uma esquerda assaltando bancos, sequestrando aviões, matando militares e planejando guerrilhas rurais. 2019 não é 1968, a Venezuela não é Cuba e a China não é o Vietnã. Tínhamos também um ministro do Exército vaidoso, vazio e vacilante.

De qualquer forma, quero mostrar os ingredientes que foram adicionados à crise.

Primeiro, precisa-se de alguém que fique falando na necessidade de um ato institucional. Já em janeiro de 1968, o senador Dinarte Mariz, meu amigo, defendia essa ideia.

Havia uma tensão vinda da esquerda e ela foi exacerbada. Antes do primeiro assalto a banco de Carlos Marighella, houve um roubo de armas num quartel da Força Pública de São Paulo. Isso era coisa de um maluco que estudava discos voadores, um místico dado a profecias anunciando a chegada do Anticristo. Usava muitos nomes, inclusive o de Aladino Félix.

Ele disse que recebia ordens minhas, mas, sendo maluco, quem há de crer? Esse doido explodiu 14 bombas em São Paulo e assaltou pelo menos um banco. Não matou ninguém. Já o terrorismo da esquerda, só em 1968, matou seis militares (dois estrangeiros).

A estratégia da tensão foi ajudada por esquadrões que tumultuavam espetáculos e espancavam artistas. No Rio um grupo de terroristas punha bombas em teatros vazios e livrarias fechadas. Nele militavam oficiais da reserva e da ativa, lotados no Centro de Informações do Exército. Eles explodiram 18 bombas. Fez-se nada. Dois cidadãos foram sequestrados e levados para um quartel, onde os torturaram. Não sei como, mas os americanos desvendaram esse caso.

O Alceu Amoroso Lima, católico, porém comunista, me chamava de “sanguinário”. Em julho mostrei ao Conselho de Segurança Nacional que havia um plano internacional de tomada do poder pela esquerda. Denunciei a cumplicidade da imprensa. Exagerava? Em setembro, o Jornal do Brasil publicou um extenso artigo intitulado “Algumas Questões sobre as Guerrilhas”. Seu autor era Carlos Marighella.

Dias depois da minha fala, Aladino explodiu três bombas em São Paulo, alguém pôs uma bomba numa reunião de estudantes em Porto Alegre e os esquerdistas assaltaram mais um banco em Belo Horizonte.

Quando nós pedimos à Câmara a cassação do Márcio Moreira Alves muita gente achou que o AI-5 seria um plano B. Na reunião do dia 13 de dezembro, quando o presidente baixou o ato, eu disse apenas 14 palavras.

Tensão, general, sem ela não se consegue AI-5.

Atenciosamente,
General Jaime Portela de Melo

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: Os BolsoLulas

Até agora, o radicalismo da inépcia foi monopólio do governo

Em abril de 2018, horas antes de se entregar à Polícia Federal, Lula discursou para sua militância diante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e disse que "eu não sou um ser humano, sou uma ideia". Foi adiante:

"Eu fico imaginando o tesão da Globo colocando a minha fotografia preso. Eles vão ter orgasmos múltiplos. (...) Eles têm de saber que vocês, quem sabe, são até mais inteligentes que eu, e queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade; parecia difícil a ocupação de São Bernardo, e amanhã vocês vão receber a notícia que vocês ganharam o terreno que vocês invadiram."

Era sonho. Lula foi para a cadeia, ninguém foi para a rua, seu candidato a presidente foi derrotado por 55% a 45% e em janeiro de 2019 o capitão Jair Bolsonaro tomou posse na Presidência da República. Logo o capitão, que Lula achava fácil derrotar.

Passaram-se dez meses, Lula conta o tempo para deixar a carceragem de Curitiba e os Bolsonaros deixaram na porta da sua cela a bandeira da pacificação. Num país com 12 milhões de desempregados eles brigam aqui e alhures, para nada. Se Lula vai empunhar essa bandeira, só ele sabe, mas vale a pena lembrar que há poucas semanas o PT foi para a avenida Paulista com poucas camisas vermelhas. A deputada Gleisi Hoffmann vestia uma camiseta branca com o rosto de Lula enfeitado por flores.

Em sua entrevista a Leda Nagle, o deputado Eduardo Bolsonaro disse que "vai chegar um momento em que a situação vai ser igual ao final dos anos 60 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando sequestravam-se e executavam-se autoridades, cônsules, embaixadores, com execuções de policiais e de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar de uma resposta. Ela pode ser via um novo AI-5".

Eduardo Bolsonaro corrigiu-se e seu pai condenou a fala. Mesmo assim deve-se registrar que no final dos anos 60 havia também um terrorismo de direita, cujo núcleo clandestino era composto por militares e civis. Era menos letal, mas buscava estimular a tensão política.

O nervo da formulação do deputado esteve na frase "se a esquerda radicalizar". E se a esquerda não radicalizar? Até agora, o radicalismo da inépcia foi monopólio do governo. Ademais, o último atentado terrorista ocorrido no Brasil, em 1981, foi a bomba do Riocentro, mas ele saiu do DOI-Codi do 1º Exército.

Há radicais na esquerda, mas no Brasil o que está na vitrine é outro radicalismo tosco, demófobo e desorientado. Ele teceu a bandeira da pacificação, levou-a a Curitiba e deixou-a na porta da cela de Lula.

Porteiros e polícia
Além do fantasma de Marielle Franco, outra assombração ronda o movimento de carros no condomínio onde viviam Jair Bolsonaro e o miliciano Ronnie Lessa no dia do assassinato da vereadora. É o risco de que acabe sobrando para o porteiro que registrou a entrada de Élcio Queiroz na propriedade.

Não se sabe o que aconteceu naquele dia, mas uma velha história ensina que polícia e porteiros produzem situações fantásticas.

Em maio de 1976, Íris Coelho, ex-secretária do general Golbery do Couto e Silva e do presidente Castello Branco, escreveu-lhe uma carta contando o que havia acontecido ao porteiro de seu edifício. Haviam roubado objetos de carros que estavam na garagem e ele foi preso. Com 11 anos de serviço e pai de três filhos, soltaram-no 24 horas depois: "O pobre estava todo machucado, os tímpanos perfurados. Aplicaram-lhe choque, bateram-lhe a cabeça contra a parede. Foi fichado como ladrão de automóveis e arrombador".

Íris não era uma novata. Depois de uma audiência com o embaixador soviético, Castello chamou-a para ditar uma minuta da conversa secreta.

Passaram-se seis meses e o governador do Rio remeteu o resultado da investigação a Golbery, o então poderoso Chefe da Casa Civil da Presidência. Resultava que depois de novos depoimentos e acareações, a polícia apurou o seguinte:

1- O porteiro disse que conversou com Íris, expressou-se mal ou ela não entendeu o que ele falou. Além disso, não a autorizou a fazer qualquer reclamação.

2- As marcas que tinha pelo corpo eram produto de uma alergia.

Íris Coelho voltou a escrever:

"Sinto muito, acredite que lastimo realmente ter sido causa de tanto trabalho e perda de tempo. Do modo como o processo se encaminhava, achei que a melhor solução seria aquela que foi dada na acareação com o porteiro. Creia-me, aprendi uma grande lição."

Seja qual for versão, sempre que se chega à conclusão de que o porteiro mentiu, vale a pena perguntar quem estava interessado nisso.


Elio Gaspari: Madame Natasha pede compostura verbal

A boa senhora recomenda que os bolsonaristas evitem a cloaca do idioma

Madame Natasha tem opiniões políticas e não as revela, até porque quase sempre estão erradas. Ela zela pelo idioma e pela compostura no seu uso. Natasha acompanhou a campanha eleitoral do ano passado e convenceu-se de que Jair Bolsonaro e seus seguidores apresentavam-se como paladinos da lei, da ordem, da moralidade e dos bons costumes.

Neste mês de outubro, ela colecionou falas de alguns poderosos e assombrou-se com o que viu. Coisas que não se dizem numa casa de família e que nunca se ouviram na política brasileira.

Quem puxou o desfile da incontinência foi o presidente. Falando a um grupo de garimpeiros, Bolsonaro disse que "o interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério". Dias depois, quando um cidadão perguntou-lhe onde estava seu amigo Fabrício Queiroz, o doutor respondeu: "Tá com tua mãe".

(É o caso de relembrar a conduta do general João Figueiredo em Florianópolis, em 1979. Quando ele ouviu o que não gostou, vindo de uma manifestação, partiu para cima dos estudantes aos gritos: "Eu gostaria de perguntar por que a minha mãe está em pauta. Vocês ofenderam minha mãe". É a velha história: não se deve botar mãe no meio.)

O Delegado Waldir (GO), então líder do PSL na Câmara, deu a Bolsonaro o veneno da sua própria incontinência. Reagindo à iniciativa que pretendia tirá-lo do cargo, ele disse, durante uma reunião do partido: "Vou implodir o presidente. [...] Não tem conversa, eu implodo o presidente, cabô, cara. Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo, cara. Eu votei nessa porra. [...] Eu andei no sol 246 cidades, no sol gritando o nome desse vagabundo". (Dias depois, repetiu: "Ele me traiu. Então, é vagabundo".)

O deputado Felipe Francischini (PSL-PR) acrescentou: "Ele começou a fazer a putaria toda falando que todo mundo é corrupto. Daí ele agora quer tomar a liderança do partido que ele só fala mal?".

Dias depois começou uma briga de textos. A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) desentendeu-se com Eduardo Bolsonaro ("moleque") e foi rebatida pela colega Carla Zambelli (PSL-SP), que a chamou de Peppa: "Só agradeço a Deus por estar tirando o véu da sacanagem ao povo brasileiro e mostrando quem é quem".

Finalmente, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que gravou a fala do Delegado Waldir, defendeu-se: "Alerto sobre a tentativa de pedir cassação de mandato. Garanto que não estão acostumados com alguém como eu. Tenho muita coisa para f*** o Parlamento inteiro. Eu vou bagunçar o coreto de todo mundo, vou sacudir o Brasil".

Fabrício Queiroz até hoje não conversou com o Ministério Público, mas em junho, oito meses depois de ter deixado o gabinete de Flávio Bolsonaro, disse o seguinte a um amigo, conforme um áudio revelado pela repórter Juliana Dal Piva:

"Tem mais de 500 cargos, cara, lá na Câmara e no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [os Bolsonaros] em nada", diz Queiroz, no áudio, para depois complementar: "20 continho aí para a gente caía bem pra c***".

Natasha acredita que todos eles podem continuar defendendo suas posições, mas não devem usar a cloaca do idioma para se expressar. Ela torce para que Daniel Silveira conte o que sabe e gostou muito da ameaça de Joice Hasselmann: "Não se esqueçam que eu sei quem vocês são e o que fizeram no verão passado". Tomara que conte.

A senhora faz esse apelo porque zela pelo idioma, mas lembra o que ensinou o escritor mexicano Octavio Paz: "Quando uma situação se corrompe, a gangrena começa pela linguagem".