Day: dezembro 25, 2021

Danúbio Rodrigues: “Exemplo chileno de luta pela democracia deve ser seguido”

João Rodrigues, da equipe da FAP

A eleição de Gabriel Boric para presidente do Chile, ocorrida na última semana, consolidou uma guinada à esquerda na América Latina e motivou diversas manifestações em favor dos direitos civis e de mais justiça social na região. Boric, de 35 anos, é ex-líder estudantil, deputado, e foi candidato pela Convergência Social, apoiado pelo Partido Comunista chileno. Ele derrotou o ultradireitista José Antônio Kast.

No episódio desta semana do podcast da Fundação Astrojildo Pereira, o jornalista Danúbio Rodrigues traz histórias do tio e do pai do presidente eleito do Chile, seus contemporâneos na luta contra a ditadura militar. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1960, Danúbio Rodrigues também conta detalhes de sua convivência com Luiz Maranhão, figura histórica do Partidão, e fala sobre o que espera para a democracia brasileira em 2022.

https://open.spotify.com/episode/3lH1yx7qrY9TitteqG2AOH?si=7dd0ce9e25624c73

Formado pela Faculdade Nacional de Filosofia, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Danúbio Rodrigues é especialista em relações internacionais há mais 60 anos e foi assessor especial dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. O episódio conta com áudios do Jornal Hoje, da TV Globo, Esquerda Online, hino A Internacional, de Eugène Pottie, e CNN Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.




Gastos do Ministério da Educação caem em todas as modalidades

Bruno Alfano / O Globo

RIO - Da creche à universidade, o Brasil gastou menos em educação. Dados oficiais do orçamento do governo federal apontam para uma queda de 13% nos recursos destinados a investimento na educação básica (ensino fundamental e médio), que passou de R$ 6,9 bilhões em 2020 para R$ 6 bilhões este ano. Mas o orçamento minguou em todas as frentes do ensino.

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A mesma educação básica, em 2018, primeiro ano antes do início da gestão do presidente Jair Bolsonaro, recebeu R$ 7,5 bilhões. Desde 2020, caiu também a verba voltada para a educação infantil, de jovens e adultos, superior e profissional.

Os maiores cortes se deram na educação de jovens e adultos (EJA). O valor empenhado foi de R$ 76 milhões, em 2018. Mas, este ano, foram só R$ 4 milhões, uma queda acumulada de 94%. A metade do que foi gasto no ano passado, que já tinha sofrido uma drástica redução para R$ 8 milhões. Essa rubrica chegou a ultrapassar a casa de R$ 1 bilhão em 2013.

— O país tinha programas em governos passados que auxiliavam estados e municípios a oferecerem vagas de EJA, mas agora acabaram todos. É uma tragédia — diz Maria Clara di Pierro, educadora da Faculdade de Educação da USP.

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A educação de jovens e adultos é a principal estratégia para aumentar a escolaridade média da população, o que garante, por exemplo, elevação de renda.

Escolas condenadas

O Brasil tem, segundo o IBGE, 11,3 milhões de pessoas analfabetas com mais de 15 anos. Isso corresponde a 6,8% da população. Além disso, mais da metade (52,6%) da população brasileira com mais de 25 anos não tem ensino médio completo — são 70 milhões de brasileiros, justamente o público da EJA. Desses, a maior parte (44 milhões) não tem nem o fundamental, o que representa 33% da população com mais de 25 anos.

— Esse monte de jovens, especialmente os mais velhos, que abandonou a escola durante a pandemia para poder trabalhar, vai ter como solução para a sua escolarização a EJA. Por isso, ela é fundamental atualmente — diz di Pierro.

Já na educação infantil, o corte foi pela metade: de R$ 207 milhões, em 2018, para R$ 96 milhões neste ano. Em 2019, foram investidos R$ 128 milhões e, em 2020, R$ 111 milhões. Nessa modalidade, que atende a crianças em creche e pré-escola, o apoio federal para abertura de novas escolas despencou desde 2018. Foi de R$ 117 milhões no último ano do governo de Michel Temer (MDB) para R$ 49 milhões em 2021.

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— O Ministério da Educação tem papel fundamental de apoiar na expansão das vagas da educação infantil, na manutenção das crianças no ambiente escolar por meio do financiamento e do apoio técnico aos municípios, que são os entes responsáveis por essa etapa. Programas de repasses de recursos, como o Brasil Carinhoso, são estratégias importantes que colaboram com a expansão das vagas e a permanência das crianças na sala de aula — afirma Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Até agora, de acordo com ela, 34,2% da população estão na creche e 92%, na pré-escola. Segundo o Plano Nacional da Educação, a oferta de vagas na pré-escola já deveria ter sido universalizada desde 2016. Além disso, entre os 25% mais pobres da população, apenas 27,8% estão na creche. Entre os mais ricos, são 54%.

— A educação infantil sofre um grave subfinanciamento — afirma Luz, representante da fundação que é especializada em educação infantil. — É uma etapa mais cara. Então, nas cidades mais pobres, o dinheiro do Fundeb é insuficiente para atender a todas as crianças com qualidade.

No orçamento da educação básica, está, por exemplo, o funcionamento dos institutos federais de educação, que tiveram dificuldades este ano por falta de verba, e o apoio a estados e municípios para reforma de escolas. Nessa ação, os valores caíram de R$ 1 bilhão, em 2018, para R$ 800 milhões este ano.

Enquanto isso, crianças estudam em escolas com risco de desabamento em cidades brasileiras. Daniela Costa, mãe de Eduarda, de 15, Estefânia, de 10, e Eduardo, de 13, contou que a escola onde os filhos estudam, a E.M. Parque Amazônia, no bairro da Terra Firme, em Belém, sofre com infraestrutura precária.

— A escola é cheia de infiltrações. Uma vez, um pedaço do teto desabou e quase acertou um aluno — desabafa.

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Mãe de duas crianças de outro colégio na cidade, a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Professora Ruth Rosita de Nazaré Gonzales, Andrea Albuquerque diz que faltam lâmpadas:

— Antes da pandemia, já havia muita sujeira, o mato era muito alto, e agora, depois da reabertura, não houve nenhuma reforma.

Federais em crise

No ensino superior, a maior parte do orçamento é de salários e aposentadoria, o chamado gasto obrigatório. Por isso, a análise da queda geral se mostra pequena — de R$ 40 bilhões para R$ 32 bilhões.

No entanto, quando se observa apenas o valor que o governo tem poder de cortar (o orçamento discricionário), a redução do empenho foi de R$ 13 bilhões, em 2018, para R$ 8,2 bilhões este ano. Um valor insuficiente para todas as atividades universitárias, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Com isso, houve cortes na pesquisa e, em alguns casos, até na assistência estudantil, que garante a alunos pobres condições para não abandonem o curso.

O MEC foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem. A prefeitura de Belém e o governo do Pará, responsáveis respectivamente pelas escolas Parque Amazônia e Professora Ruth Rosita de Nazaré Gonzales, também não retornaram.

Colaborou Ana Beatriz Moda, estagiária

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/gastos-do-ministerio-da-educacao-caem-em-todas-as-modalidades-educacao-basica-superior-infantil-profissional-de-jovens-adultos-25331455


Bolsonaro ignora covid em pronunciamento de Natal

DW Brasil

Em pronunciamento de Natal em cadeia nacional de rádio e televisão na noite desta sexta-feira (24/12), o presidente, Jair Bolsonaro, ignorou a covid-19 e a campanha de vacinação contra a doença.

Bolsonaro fez uma fala breve, de menos de um minuto, e genérica, sem tocar em temas específicos e evitando polêmicas. O presidente começou e terminou o pronunciamento citando Deus.

No ano em que o coronavírus mais matou no Brasil, o presidente mencionou apenas que 2021 foi de "muitas dificuldades", mas que espera que 2022 "seja um ano de esperança, conquistas e realizações".

Ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, o presidente disse que, ao longo do ano, não faltou ao governo "seriedade, dedicação e espírito fraterno no planejamento e na construção de políticas públicas em prol de todas as famílias".

"Com dignidade e respeito ao próximo, não economizamos esforços para apoiar a todos, em especial os mais vulneráveis", completou a primeira-dama, que ressaltou que o governo não se afastou do que acredita e defende: "Deus, pátria, família e liberdade".

Polêmica na vacinação de crianças

A fala de Bolsonaro ocorre em um momento em que o Brasil discute a vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra o coronavírus. O governo quer que a imunização ocorra apenas com prescrição médica. Os secretários estaduais de saúde já se pronunciaram, dizendo que não acatarão a recomendação do governo federal.

Na tarde de sexta-feira, Bolsonaro, alinhado com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que não há uma quantidade de mortes de crianças que justifique a adoção de uma ação emergencial de vacinação infantil. Queiroga já havia se pronunciado de forma semelhante.

Desde o início da pandemia, porém, a covid-19 provocou a morte de 2,5 mil de 0 a 19 anos – entre elas, 301 crianças de 5 a 11 anos, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria.

"Eu tenho uma filha de 11 anos. É uma vacina nova. Não está havendo morte de crianças que justifique algo emergencial. Tem outros interesses. Entra a desconfiança nisso tudo. Essa desconfiança, essa interrogação enorme que existe aí. Efeitos colaterais existem ou não existem? Quais são? Miocardite, entre outros", disso o presidente em entrevista no Palácio da Alvorada.

Também na sexta-feira, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski atendeu a uma ação do partido Rede Sustentabilidade e deu prazo de cinco dias para que o Ministério da Saúde explique os motivos de querer exigir prescrição médica para a vacinação de crianças.

A vacinação de crianças de 5 a 11 anos já está em andamento em países como Estados Unidos, Israel e na União Europeia.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-ignora-covid-em-pronunciamento-de-natal/a-60255299


Cristovam Buarque: As lições do Chile com a eleição de Gabriel Boric

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

A eleição de Gabriel Boric para Presidente do Chile nos passa algumas lições.

A primeira, de que a política está polarizada, a “terceira via” não chega ao segundo turno, e vence a eleição o extremo que conseguir apoio do centro.

A segunda lição, para chegar ao segundo turno é preciso ter propostas diferentes das ideias obsoletas herdadas do passado. É preciso: incorporar o desenvolvimento sustentável como propósito da economia casada com o meio ambiente; perceber o papel da educação como vetor do progresso; há um desejo de renovação, nem a velha direita nem a esquerda velha; é preciso incorporar nas propostas as mudanças nos costumes e nos direitos humanos; ter a percepção de que justiça social não caminha sobre economia ineficiente, nem sob moeda com inflação. Foram estas novidades ideológicas que derrotaram os partidos e lideranças tradicionais no primeiro turno e derrotaram o candidato de direita no segundo. Estamos atrasados: os “nem nem” do Centro não entenderam a força dos extremos neste momento da história. Nem foram capazes de modernizar seus discursos, a direita ainda menos, ficando cada vez mais atrasada.

A terceira lição é o civilismo da política chilena em que um líder considerado de extrema esquerda assume-se como presidente de todos e não apenas de seus eleitores, recebe a visita do seu opositor de extrema direita, e no dia seguinte vai conversar com o atual presidente, também de direita. Lula e Fernando Henrique Cardoso fizeram isto, mas o Brasil regrediu, difícil imaginar nosso Boric, Boulos, sendo recebido como presidente eleito por Bolsonaro.

A maior lição de todas porém não está nas eleições do domingo passado, mas na cultura criada pela história das últimas décadas, de responsabilidade fiscal adotada universalmente por todos políticos e partidos chilenos. A lição chilena é o enterro do populismo: as divergências são profundas, maiores do que entre esquerda e direita no Brasil, mas todos concordam, os sindicatos também, de que os recursos fiscais são limitados e de que nem é preciso uma PEC do Teto, ela está embutida no inconsciente de todos. Tanto quanto na Finlândia os políticos não precisam priorizar educação.

Apesar de que no Brasil a responsabilidade fiscal veio pela esquerda social-democrata de Fernando Henrique e foi mantida pelo governo petista de Lula, o populismo está presente e hoje une PT e Bolsonaro. Impossível imaginar no Chile a aprovação de R$5,7 bilhões para a farra eleitoral, mesmo sabendo da tragédia fiscal que nosso país atravessa. A grande lição chilena é que Boric vai ter condições de dar um salto civilizatório no Chile, graças a seu compromisso social progressista, contando uma base fiscal sólida. O Chile tem meio século de responsabilidade fiscal, atravessando governos de direita ou esquerda. A seriedade no uso do dinheiro público está entranhada nos políticos, empresários e sindicalistas.

A mentalidade responsável permitirá ao novo governo definir prioridades, ter recursos para investimentos, sem quebrar o equilíbrio fiscal, sem provocar inflação, sem aumentar dívida pública e nem os juros.

Esta será a maior lição do Chile: a orientação social progressista usando finanças públicas sólidas permitindo uma esquerda progressista, contemporânea, democrática e responsável.

Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/as-licoes-do-chile-por-cristovam-buarque


Em sua mensagem de Natal, papa Francisco critica polarização

DW Brasil

Em sua mensagem de Natal neste sábado (25/12), o papa Francisco lamentou a crescente polarização nas relações pessoais e entre líderes internacionais e afirmou que apenas o diálogo pode resolver conflitos, que vão desde rixas familiares até ameaças de guerra.

Na tradicional mensagem "Urbi et Orbi" (para a cidade e para o mundo), ele exortou indivíduos e líderes mundiais a conversarem, já que o distanciamento tem se agravado com a pandemia de covid-19.

Ao longo do discurso de pouco mais de duas páginas, o pontífice usou a palavra "diálogo" 11 vezes.

"A nossa capacidade de relacionamento social está sendo duramente testada. Há uma tendência crescente de nos afastarmos, de fazermos tudo por nós mesmos, de deixar de se esforçar para encontrar os outros e fazer coisas juntos", disse o papa da varanda central da Basílica de São Pedro.

"Também a nível internacional, corre-se o risco de evitar o diálogo, o risco de que esta complexa crise conduza a atalhos em vez de caminhos mais longos de diálogo. No entanto, só esses caminhos podem conduzir à resolução de conflitos e à benefícios duradouros para todos", afirmou o pontífice.

Conflitos sem fim

Francisco, que completou 85 anos na semana passada, listou conflitos, tensões e crises na Síria, no Iêmen, em Israel, em Territórios Palestinos, no Afeganistão, em Mianmar, na Ucrânia, no Sudão, Sudão do Sul e outros lugares.

O papa destacou que esses conflitos "parecem nunca ter fim" e que, a essa altura, "mal os notamos".

"Estamos tão acostumados com eles, que imensas tragédias passam agora em silêncio. Corremos o risco de não ouvir o grito de dor e angústia de tantos de nossos irmãos e irmãs ", disse a um número reduzido de espectadores, em razão das restrições da covid-19.

Ele pediu a Deus que "dê serenidade e unidade às famílias", elogiando aqueles que se esforçam para mantê-las e as comunidades unidas em tempos de tanta divisão.

"Peçamos-lhe força para estar aberto ao diálogo. Neste dia festivo, imploramos-lhe que desperte no coração de todos o desejo de reconciliação e de fraternidade", afirmou.

O papa também pediu que as pessoas não sejam indiferentes à situação dos migrantes, refugiados, deslocados, presos políticos e mulheres vítimas de violência e pediu aos líderes que protejam o meio ambiente para as gerações futuras.

Missa do Galo

Na sexta-feira, durante a Missa do Galo, Francisco apelou por um maior cuidado com os desfavorecidos e para que os católicos tenham um olhar especial para as pequenas coisas da vida.

Na homilia, o papa lembrou que Jesus nasceu como "um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores".

"É aí que Jesus nasce: perto deles, perto dos esquecidos das periferias. Ele vem onde a dignidade humana é posta à prova", destacou.

Francisco ressaltou que Jesus pede para redescobrir e valorizar as pequenas coisas da vida.

"Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós", afirmou.

Francisco oficiou a missa na Basílica de São Pedro, no Vaticano, diante de cerca de dois mil fiéis. Outras centenas acompanharam a missa do lado de fora, por telões. No ano passado, devido às restrições impostas por causa da pandemia de covid-19, ela foi restrita a pouquíssimas pessoas, a maioria funcionários do Vaticano.

O papa destacou, ainda, que as pessoas que são indiferentes aos pobres ofendem a Deus e exortou todos a "olharem além de todas as luzes e enfeites" do Natal.

 "Nesta noite de amor, tenhamos apenas um medo: ofender o amor de Deus, ferindo-o ao desprezar os pobres com a nossa indiferença", disse.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/em-sua-mensagem-de-natal-papa-francisco-critica-polariza%C3%A7%C3%A3o/a-60255523


Marco Aurélio Nogueira: Tempo de assimilações e luta

Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo

Não se deve forçar a ideia, pois há processos de longa duração em curso, mas se pode dizer que 2021 foi um ano de assimilações: incorporamos novos processos aos nossos cálculos existenciais. Recuperamos convicções que pareciam esquecidas. Com mais informação e melhor entendimento, distanciamo-nos da aceitação passiva dos problemas que nos desafiam.

A pandemia nos obrigou a retomar cuidados básicos e a lutar por uma vacinação que se projetou como principal via de escape, mas que foi rejeitada, banalizada e desprezada pelo governo federal. O sistema de saúde, com isso, perdeu articulação. Mas o SUS resistiu bravamente, as vacinas chegaram à população, juntamente com o uso de máscaras e a percepção da necessidade de uma vida social menos aglomerada. Ficamos cientes da importância de mecanismos de controle e vigilância sanitária, base de sistemas de proteção e combate a vírus e patógenos.

A assimilação não atingiu a todos. Houve quem seguiu a vida como se não houvesse amanhã. Negacionistas mantiveram-se ativos, a começar pelo presidente da República. 

Houve imunização biológica, que nos protegeu da covid, mas perdemos em termos daquilo que o filósofo Peter Sloterdijk chama de “imunidade jurídica e solidária” e de “imunidade simbólica”. O governo Bolsonaro corroeu as defesas sociais em muitos terrenos, reduzindo nossa capacidade de sobrevivência comum e com dignidade.

A pandemia reforçou o home office, com repercussões intensas na família, no sindicalismo e na empregabilidade. Compras pela internet, delivery intensificado, trabalho precário e “empreendedorismo”, uma explosão de pequenos negócios e empresas de novo tipo. Parece improvável que se volte ao padrão anterior. O trabalho em casa ainda engatinha, mas já se fixou na escala de valores de trabalhadores e empresários, como aceitação da flexibilidade, do equilíbrio entre vida profissional e vida familiar, de atividades menos desgastantes, sem perda de produtividade.

Também tivemos de assimilar o governo Bolsonaro, com suas figuras toscas e sua permanente disposição de agredir e fazer tudo errado, confrontando a opinião pública, o bom senso e a segurança nacional. Perdemos um tempo enorme tentando decifrar a chegada à Presidência da República de um personagem desqualificado e envolto em trevas. Hoje compreendemos que, em 2018, uma inflexão de extrema direita pegou desatentos a população, a sociedade civil e os partidos políticos. Pagamos alto preço por isso.

Com o tempo, Bolsonaro tornou-se mais perigoso e deletério, mas assusta menos, como acontece quando nosso organismo assimila um veneno e passa a purgá-lo. 

Perdemos algumas ilusões. Melhoramos a percepção de que o Brasil terá de suar sangue para ser um País no qual estejam debelados a miséria, a fome, a desigualdade, a baixa produtividade, o Estado engessado. Demo-nos conta da extensão de nossos desertos, do vazio de lideranças públicas, de nossa gana por improvisações e desperdícios. Descobrimos que nossa imagem no mundo é muito ruim, antagônica aos arroubos patrioteiros internos. 

Compreendemos melhor o valor da democracia e, ao mesmo tempo, a dificuldade de fazer com que ela prevaleça. Construções democráticas são exercícios permanentes, que precisam ser repostos dia após dia. São processos difíceis, sujeitos à instabilidade e sempre combatidos pelos que pregam a autoridade tirânica, a ordem imposta pela violência, a disseminação de valores que intimidam e restringem a liberdade. 

Luzes de esperança estão acesas, mas não surgiu uma proposição política e democrática maiúscula, que indique com clareza a rota a ser seguida para a recuperação do País. O bolsonarismo se decompõe e perde espaço, há bons postulantes democráticos à Presidência, mas faltam articulação, diálogo horizontal, cooperação. Navegamos sem mapa, em um tempo de urgências.

Sem luta paciente, esforço coletivo e determinação cívica, o buraco permanecerá a nos engolir. Os políticos precisarão assumir suas responsabilidades, mas a população e a sociedade civil também terão de atuar com vigor, exigindo propostas de qualidade e programas factíveis. 

2021 foi um ano de transição, assim como havia sido 2020. Há perigos por todos os lados, oportunidades que se abrem e se fecham. Estamos aprendendo a viver sob pressão. Novos abismos se anunciam e ainda não dispomos das pontes para atravessá-los.

A entrada em uma nova era mexe com estruturas existenciais, estados de espírito e convicções. Gera medo e insegurança. Destroços precisam ser assimilados. O meio ambiente conhece a destruição acelerada das reservas naturais e, de abrigo da vida, está sendo convertido em hospedeiro de desgraças e doenças. A agenda do futuro terá de destacar as pautas ambientais, a sustentabilidade econômica, a eliminação das desigualdades obscenas.

Não é um cenário otimista. Mas é em situações assim que a capacidade de reação dos humanos se manifesta, como luta pela vida, pela liberdade, pela democracia.

Boas-festas e um feliz 2022 para todos.

*Professor titular de teoria política da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,tempo-de-assimilacoes-e-luta,70003934885


Legado de Chico Mendes continua atual, 33 anos depois de sua morte

Evanildo da Silveira / BBC News Brasil

Nunca um tiro de espingarda ecoou tão longe e continua lembrado por tanto tempo. O que matou o seringueiro Chico Mendes, na boca da noite do dia 22 de dezembro de 1988, quando ele se preparava para tomar banho nos fundos de sua casa em Xapuri, uma pequena cidade na floresta amazônica no Acre, reverberou pelo planeta inteiro.

Quase instantaneamente, virou manchete nos principais jornais e destaque no noticiários da TVs de todo mundo.

Morto uma semana depois de seu aniversário de 44 anos, ocorrido no dia 15 - teria completado 77 anos neste ano -, Chico Mendes era um dos pioneiros da defesa da preservação da floresta amazônica e deixou um legado político e ambientalista que ainda perdura.

"Ele colocou a Amazônia no centro do debate e chamou atenção do mundo para sua preservação", diz o hoje advogado e membro do Comitê Chico Mendes, uma organização não governamental ambientalista, Gomercindo Rodrigues, o Guma, que o conheceu em 1984, se tornou seu amigo e foi uma das últimas pessoas fora da família a ver o seringueiro com vida, poucos minutos antes de seu assassinato.

De acordo com outra amiga de Chico Mendes, a antropóloga Mary Allegretti, que o conheceu em 1981, quando era professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e fazia pesquisa para seu doutorado, como continuidade da que havia realizado para o mestrado em seringais do Acre, ele antecipou a relação entre sociedade e meio ambiente ao mostrar que as pessoas protegem este quando dependem dele para viver.

"Se no passado, essa constatação era aplicada às populações tradicionais que viviam desses recursos, hoje as mudanças climáticas estão mostrando que toda a humanidade depende da natureza para sobreviver", diz.

Para o biólogo e doutor em Ecologia Paulo Brack, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da coordenação do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), o seringueiro do Acre teve um papel fundamental em dar maior visibilidade às causas comuns ambientais com a temática social, em especial das comunidades locais que sofrem das mesmas causas de um modelo econômico em grande parte degradador dos recursos naturais.

"Ele foi um exemplo de esforço pela unidade nas lutas comunitárias de grupos sociais, que desejam manter seus modos de vida digna, um bem viver talvez utópico, em maior harmonia com a natureza, desapegados da loucura pela acumulação reinante", explica.


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Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, nasceu em um seringal chamado Porto Rico, no município de Xapuri, pertinho da fronteira do Acre com a Bolívia, a 68 km da cidade mais próxima daquele país, Cobija.

Filho de seringueiro, seringueiro é - pelo era menos naquela época. Ele passou sua infância e juventude ao lado do pai colhendo látex da Hevea brasiliensis, o nome científico da seringueira.

Embrenhado na mata, sem escola num raio de quilômetros, Chico foi analfabeto até os 16 anos. O encontro que viria a mudar isso e a história posterior da sua vida ocorreu em 1956, quando ele tinha 12 anos.

Foi aí que ele conheceu o refugiado político Euclides Fernandes Távora, que havia participado, junto com o líder comunista Luís Carlos Prestes do chamado levante comunista em 1935, uma tentativa de golpe contra o governo do presidente Getúlio Vargas.

Fugindo da polícia, Távora se refugiou na floresta no Acre, justamente na região em que Chico vivia. O contato e a amizade com o ativista lhe abriram as portas do conhecimento, que, posteriormente, o levou à militância política e ambiental. Távora o alfabetizou e passou a ele ideias sobre o comunismo e noções sobre a história e a realidade social do Brasil.

Chico Mendes
Chico Mendes foi morto em 22 de dezembro de 1988

Depois disso, mais instruído que seus companheiros seringueiros, Chico Mendes passou a pensar e se questionar sobre os problemas da sua região e, principalmente, de seu trabalho, baseado na extração da borracha, uma atividade econômica que historicamente sempre havia gerado conflitos e miséria na Amazônia.

Ela era alicerçada no chamado "aviamento", isto é, na troca do látex coletado pelos seringueiros por produtos e mercadorias industriais. Era uma relação desigual, na qual os extrativistas sempre ficavam devendo.

Foi nesse contexto que começaram a serem criados os primeiros sindicatos de seringueiros no Acre, história na qual Chico esteve envolvido desde o começo.

Já em 1975, ele passou a integrar a diretoria do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Brasiléia, o primeiro criado no Acre, e que era presidido por Wilson Pinheiro.

Um ano depois, esse sindicato criou a estratégia dos chamados "empates" das derrubadas, nos quais os seringueiros desmontavam os acampamentos e paravam as motosserras dos peões dos fazendeiros encarregadas de derrubar floresta.

Como era de se esperar, essas ações desagradaram os proprietários dos seringais. Por causa de sua atuação à frente do sindicato, Pinheiro foi assassinado em 21 de julho de 1980.

Sua liderança não ficou vaga por muito tempo, no entanto. Em 1983, Chico Mendes foi eleito presidente do STR de Xapuri e continuou e intensificou a luta pelos direitos dos seringueiros, além da luta em defesa da floresta e contra a ditadura.

Daí então até seu assassinato, sua atuação e seu prestígio, principalmente no exterior, só cresceram.

A antropóloga Mary lembra que atuação política institucional de Chico havia começado um pouco antes.

"Em 1981, quando o conheci, ele já era vereador [exerceu o cargo de 1977 a 1982, na Câmara Municipal de Xapuri]", conta.

"O Acre vivia um momento crítico de venda de antigos seringais para empresas do sul do Brasil, que passaram a desmatar a floresta e expulsar os seringueiros. Chico liderava o movimento dos empates - impedir as derrubadas e defender o meio de vida dos seringueiros, baseado na coleta de borracha e de castanha."

Hoje, ela diz que ficou "muito impressionada" com o trabalho que ele fazia e com o movimento dos empates, tanto que resolveu ajudá-los.

"Chico queria organizar escolas e cooperativas para tirar os seringueiros do analfabetismo e eu ajudei a implantar o Projeto Seringueiro de Educação, abrindo as primeiras escolas na floresta", relembra.

"Ficamos muito amigos em consequência desse projeto."

Uma das consequências disso foi que, em 1985, os dois organizaram juntos o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília, no qual surgiu a ideia da reforma agrária do seringais - a proteção da floresta sem a divisão de lotes para as famílias, mas como uma grande reserva ambiental.

"Em 1986, criei o Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), em Curitiba", conta Mary.

"Reuni advogados e várias lideranças dos seringueiros e formulamos a proposta de Reserva Extrativista, unidade de conservação de uso sustentável e ajudamos a criar as primeiras unidades. Eu e Chico mantivemos parceria política e amizade até 1988, quando ele foi assassinado. O IEA continua apoiando o movimento dos seringueiros em toda a Amazônia."

Filha e neta de Chico Mendes posam abraçadas
Angélica e Ângela Mendes, neta e filha do seringueiro

O dia daquele ano em que Chico foi morto não sai da memória de Guma.

"Eu estive com ele minutos antes do tiro fatal", conta.

"Ele tinha estado viajando até o dia anterior, participando de um encontro de seringueiros em Sena Madureira [a 144 km de Rio Branco e a 333 de Xapuri], trabalhando na organização regional do Conselho Nacional de Seringueiros. Ele voltou para Rio Branco e por aqui ficou resolvendo a burocracia para liberação de um caminhão que havia sido concedido mediante o empréstimo BNDES para o Conselho Nacional de Seringueiros para ser repassado a cooperativa de Xapuri."

De acordo com Guma, Chico chegou a Xapuri, no dia 21, com o caminhão novo.

"As pessoas estavam admiradas", lembra.

"Mas nem todas positivamente. Havia muito preconceito, de boa parte da cidade, contra o Chico, especialmente por causa das disputas políticas. Ele era um militante político e isso dava uma certa divisão na cidade. Quando ele chegou, eu estava muito preocupado, porque já fazia dias que eu não via os pistoleiros."

Aqui Guma contextualiza sua preocupação. Ele conta que, de maio a dezembro daquele ano de 1988, todos os dias, em frente ao sindicato, dois pistoleiros ficavam postados o dia inteiro.

"Eles ficavam por ali, sentados na praça, na sombra de uma árvore que tinha em frente", explica.

"Além disso, havia sempre dois pistoleiros também em frente ao local onde eu morava, em Xapuri, que ficava a cerca de 200 metros do sindicato, numa outra rua. E de repente eles tinham sumido."

Quando Chico Mendes chegou à cidade, perguntou a Guma como estava a situação. Ele respondeu que estava muito preocupado.

"Eu realmente estava angustiado, coração apertado, e falei para ele que estava muito preocupado, porque eu não estava vendo os pistoleiros", conta.

"O Chico respondeu que no dia seguinte daria uma olhada na situação. Então, no outro dia, 22 de dezembro, já final da tarde, por volta das 18h, eu cheguei na casa dele e o encontrei jogando dominó, um dos seus hobbies, com dois dos policiais que estavam fazendo a segurança dele."

Chico o convidou para participar do jogo, mas Guma preferiu ficar de fora, porque continuava angustiado e preocupado.

Nesse ponto, a segunda mulher do seringueiro, Ilzamar, disse a ele que queria servir o jantar, porque iria começar a novela.

"Era uma quinta-feira, dia do penúltimo capítulo de Vale Tudo, cujo grande mistério era quem havia matado Odete Roitman", lembra o amigo.

"O Chico me convidou para jantar, mas eu recusei, dizendo que continuava preocupado. Ele me falou que também não tinha visto os pistoleiros e que isso era realmente estranho."

Guma disse que daria uma volta pela cidade e Chico reiterou o convite para jantar.

"Ele falou: 'Então, vai, enquanto vou tomar um banho, e volta para jantar'", relembra.

"Com minha moto de 125 cilindradas, andei por todos os pontos, onde os pistoleiros sempre estavam, inclusive numa chacarazinha na qual eles faziam umas festas privês. Não encontrei nada, tudo vazio, tudo às moscas e em silêncio. Eu não sei em que ponto eu estava da cidade quando deram o tiro. Quando fui chegando com a moto, a mulher dele saiu gritando: 'Ô Guma, atiraram no Chico'."

Enquanto socorriam o seringueiro e o levavam ao hospital "num caminhãozinho", Guma foi em casa se armar.

"Peguei um revólver que eu tinha, carreguei, peguei mais duas carga de bala, coloquei numa bolsa a tiracolo e fui até o hospital, mas não me deixaram entrar", conta.

"Então comecei a telefonar paras pessoas, para avisar. Liguei para Rio Branco, Brasília, Rio de Janeiro, para Mary (Allegretti) em Curitiba, enfim, para os amigos, os avisando."

Guma voltou então ao hospital e, desta vez, o deixaram entrar, embora estivesse de bermuda, motivo pelo qual havia sido impedido da primeira vez.

"Quando eu passei do hall de entrada do hospital, numa sala ao lado vi uma maca", recorda.

"O Chico estava nela, estendido só de short - ele ia tomar banho - com o lado direito do peito todo perfurado de chumbo."

O estrago no peito do seringueiro foi feito por um tiro de uma espingarda calibre 20, com cartucho carregado com grânulos de chumbo que se espalham, disparado por Darci Alves, a mando do seu pai, o grileiro de terras Darly Alves, então conhecido por casos de violência em vário lugares do Brasil.

A repercussão mundial foi tamanha que, pela primeira vez, um assassinato em conflito agrário no norte do país foi a julgamento e acabou em condenação dos acusados.

Imagem aérea sobre área da floresta amazônica
Luta pela preservação da floresta é fundamental para pessoas ligadas a Chico

Em 1990, os dois foram condenados a 19 anos de prisão, fato inédito na época.

Em 1993, Darci e Darly fugiram, mas foram recapturados em 1996. Por causa de problemas de saúde, três anos depois o pai conseguiu o direito de cumprir a pena em prisão domiciliar. No mesmo ano de 1999, o filho passou ao regime semiaberto, em Xapuri. Ao final da pena, ele se mudou para Brasília e se tornou pastor evangélico.

A grande repercussão de seu assassinato tem explicações.

"Chico Mendes tinha uma formação política consistente sem ser radical e articulava apoio à luta dos seringueiros com a Igreja, os partidos políticos, a universidade, a imprensa", explica Mary.

"Tinha um pensamento claro a respeito da importância e do valor da floresta e lutava para defender que a floresta em pé valia mais do que derrubada - foi ele quem primeiro expressou essa ideia que hoje todos reconhecem como verdadeira."

Por isso, ele era muito atacado no Acre, principalmente depois que suas ideias passaram a ser conhecidas e respeitadas em nível internacional.

"No 1º Encontro em Brasília, ele conheceu um diretor de documentários baseado em Londres, Adrian Cowell, que passou a filmar seu trabalho e o recomendou para dois prêmios importantes. Por isso ele ficou conhecido no mundo inteiro antes de ser conhecido no Brasil. Razão pela qual sua morte teve tanta repercussão internacional."

Os dois prêmios a que Mary se refere são o Global 500, concedido a Chico em 1987 pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Inglaterra, e a Medalha de Meio Ambiente da Better World Society, dada em 1988 nos Estados Unidos.

O documentário de Cowell, chamado Eu Quero Viver, foi lançado em 1987.

Com tudo isso, o seringueiro e sua luta passaram a ser conhecidos no mundo todo, o que atraiu jornalistas e pesquisadores para visitar os seringais, difundindo suas ideias pelo planeta.

Se para o mundo e para as questões ambientais Chico Mendes deixou um legado político, para família a herança foi de ensinamentos e de vontade de lutar pelas mesmas causas.

Pelo menos para a filha do primeiro casamento, com Eunice Feitosa Mendes, do qual nasceu a filha única do casal - ele teve mais dois filhos com Ilzamar -, Ângela, que soube que estava grávida de Angélica Francisca Mendes Mamede no dia da missa de sétimo dia do pai.

Para ela, receber a novidade naquele momento foi realmente muito estranho.

"De repente você perde um ente querido, está no maior sofrimento e então descobre que que vai nascer alguém", diz.

"O mundo é muito isso, cheio desses ciclos, que são naturais, mas nunca estamos preparados para perder ninguém. Ao mesmo tempo, a novidade de uma vida traz muita esperança, muita renovação."

Em relação a seu pai, com o qual só passou a conviver na adolescência, Ângela diz que ele tinha qualidades que ela admirava e procurou tomar para ela.

"Uma delas é o espírito de coletividade, de nunca fazer as coisas sozinho, porque elas ganham mais força quando são feitas de forma coletiva", explica.

"Sempre buscar apoio e parcerias, porque desde sempre a luta que se faz pela preservação do meio ambiente, pela defesa da natureza, precisa ser coletiva. Meu pai e seus companheiros já sabiam disso."

Ângela diz que Chico deixou para ela um legado de persistência, de luta, de pensar sempre no próximo e no bem comum.

"É isso assim, de ser uma pessoa que sabe ouvir, e, de uma certa forma, buscar soluções, tentar encontrá-las para possíveis problemas", acrescenta.

"Foram muitos os ensinamentos que ele nos legou, que ele deixou a mim. Eu sinto forte isso, essa coisa de fazer junto."

Para Ângela essas qualidades são imprescindíveis, porque a luta de hoje continua a mesma da época do seu pai.

"É a mesma luta pela conquista dos territórios e pela consolidação deles", explica.

"Apesar de mais de 30 anos depois já terem sido criadas quase uma centena de reservas extrativistas, muitas ainda não foram de fato consolidadas, ainda não têm seus instrumentos de gestão consolidados. Estamos avançando devagar nisso."

Sua filha, Angélica, neta do seringueiro, que é bióloga e doutora em Ecologia e atua como voluntária no Comitê Chico Mendes, diz que seu avô tinha uma frase que ela nunca esquece.

"Ele dizia que primeiro pensou que estivesse lutando para salvar uma seringueira, depois achou que estava lutando pela floresta amazônica e, por fim, ele percebeu que eu estava lutando pela humanidade", cita.

"Hoje mais do que nunca sabemos sabe que essa luta é global, que estamos falando de uma crise climática de todo o planeta, de uma emergência que estamos vivendo. Estamos vendo aí as consequências, como tornados, um monte de secas extremas, eventos de cheias, enfim, estamos vivendo uma desregulação do clima global muito grande. Por isso, a luta dele é muito atual."

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59762838