Day: novembro 25, 2020

El País: Biden lança um Governo para enterrar a era Trump: “Os EUA estão de volta, prontos para liderar o mundo”

O presidente eleito delineia um Gabinete antagônico ao ideário do republicano, embora, por enquanto, sem gestos à ala esquerdista do Partido Democrata

O processo de transmissão de poderes começou formalmente nos Estados Unidos, com um Donald Trump finalmente derrotado pela realidade, que concordou em colocar em movimento a maquinaria da transferência, e um presidente eleito, Joe Biden, imerso na criação de sua equipe de Governo. O perfil do Gabinete que começa a tomar forma em Washington ainda não tem gestos para a ala esquerdista do Partido Democrata, aposta em veteranos da Administração de Barack Obama, mas deixa clara sua missão: enterrar a era Trump. “Os Estados Unidos estão de volta e prontos para liderar o mundo”, disse Biden, ao apresentar seus primeiros escolhidos.

As nomeações conhecidas até agora representam uma espécie de emenda a toda a estratégia externa de Trump e sua guinada isolacionista. Um adeus ao ‘América primeiro’ que caracterizou a doutrina do republicano. Antony Blinken, nomeado chefe da Diplomacia, é um paladino do multilateralismo; como Jake Sullivan, que trabalhou para Hillary Clinton no Departamento de Estado e será assessor de Segurança Nacional. Antigos membros da Administração de Barack Obama, ambos encarnam a doutrina, ou melhor, o estilo, que na época um funcionário democrata resumiu como “liderar por trás” no caso da Líbia e que muitos de seus detratores usaram como argumento de crítica. A própria criação de um czar do meio ambiente ―o ex-secretário de Estado John Kerry― é o sinal definitivo de que a era Biden tentará reverter boa parte das políticas de Trump, que por sua vez desmantelou os planos ambientais de Obama.

“Esta é uma equipe que manterá nosso país seguro e é uma equipe que reflete que os Estados Unidos estão de volta. Prontos para liderar o mundo, não para se retirar dele. Prontos para enfrentar nossos adversários, não para rejeitar nossos aliados e prontos para defender nossos valores”, destacou Biden durante a cerimônia de apresentação de seus primeiros indicados, em Wilmington (Delaware), a cidade do presidente eleito, de onde desenha o futuro Governo. De fato, acrescentou o democrata, “nas conversas por telefone que tive com líderes mundiais desde que venci as eleições, fiquei surpreso com o quanto esperam que os Estados Unidos recuperem o papel histórico de líder mundial”.

As intervenções posteriores ressaltaram essa vocação. Blinken defendeu que os Estados Unidos devem se comportar com “humildade e confiança” no mundo. Humildade, disse ele, porque eles não podem “resolver os problemas sozinhos e que é preciso cooperar com outros países”. E confiança porque, apesar disso, os Estados Unidos, na sua melhor versão, “são o país com maior capacidade de unir o resto para enfrentar os desafios do nosso tempo”. Alejandro Mayorkas, que será o primeiro hispânico a dirigir o Departamento de Segurança Interna, disse que os Estados Unidos devem “avançar” em sua “orgulhosa história” como país de “boas-vindas”. Kerry prometeu que Biden “confiará em Deus”, mas “também na ciência”. “E a afro-americana Linda Thomas-Greenfield, nomeada embaixadora nas Nações Unidas, proclamou: “O multilateralismo está de volta. A diplomacia está de volta. Os Estados Unidos estão de volta”.

Voltar, regressar. Esses foram alguns dos verbos mais repetidos. Até agora os nomes apontam mais para a restauração de uma era do que para o início de outra. Nenhum dos altos cargos tornados públicos significou uma integração dos setores mais progressistas do Partido Democrata, embora haja nomeações pendentes. O círculo do senador esquerdista Bernie Sanders fez saber que o veterano político de Vermont gostaria de ser secretário do Trabalho e outras fontes fizeram circularam neste outono a candidatura da senadora Elizabeth Warren como possível secretária do Tesouro, embora a própria Warren tenha comemorado a nomeação de Janet Yellen.

O Gabinete de Biden deve ser referendado pelo Senado, que atualmente tem maioria republicana, e perfis demasiado inclinados à esquerda enfrentariam dificuldades. Marco Rubio, senador da Flórida e candidato à presidência em 2016, adotou um tom trumpiano de crítica, agitando a bandeira antiestablishment. “Os escolhidos por Biden para o Governo frequentaram as universidades da Ivy League [de elite], têm bons currículos, vão às conferências certas e serão educados cuidadores do declínio dos Estados Unidos”, escreveu em sua conta de Twitter Rubio, que se apresenta como aspirante a manter o legado trumpista para 2024. “Apoio a grandeza dos Estados Unidos e não tenho interesse em voltar à ‘normalidade’ que nos deixou dependentes da China”, acrescentou.

Na realidade, o vínculo dos futuros membros do Governo, além de Biden, com a nata da educação universitária norte-americana ―seja este um sintoma melhor ou pior― é um dos poucos elementos de continuidade entre a era Trump e a que Biden começa a esboçar, pelo menos por enquanto. O secretário de Estado da atual Administração republicana, Mike Pompeo, formou-se em Harvard; o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, também, e o procurador-geral William Barr, em Columbia, por exemplo. O próprio presidente Trump estudou na escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, membro do seleto grupo de oito universidades que fazem parte da Ivy League.

Com a transferência de poderes finalmente iniciada, o dirigente republicano cumpriu nesta terça-feira um dos últimos ritos presidenciais que o aguardam, o perdão de dois perus por ocasião do Dia de Ação de Graças, que se comemora nesta quinta-feira. Um Trump ciente de que o fim está próximo aproveitou o discurso para lançar um apelo a favor da “América primeiro” que marcou o seu tempo e que, disse ele, “não deveria ser abandonada”.

Embora continue sem aceitar publicamente o resultado eleitoral e ameace uma nova intentona nos tribunais, sua sorte está decidida. Se havia alguma dúvida, basta ver como a Bolsa de Valores de Nova York reagiu na terça-feira à luz verde que o republicano acabou dando na noite anterior para que todos os protocolos de transição de um Governo a outro fossem finalmente ativados. O Dow Jones, um dos índices de referência de Wall Street, bateu recorde impulsionado pelo cenário de estabilidade que se abre na maior potência mundial depois de vários dias de otimismo com as notícias sobre as vacinas contra o coronavírus. Enquanto isso, Pensilvânia, Nevada e Carolina do Norte se juntaram aos Estados que já confirmaram os resultados. A era Trump começa a se desfazer.


Cristiano Romero: Luta contra racismo é a reforma mais importante

Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda

O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.

A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas - mais amplas e efetivas que as já previstas em lei - precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.

Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão - usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses - impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.

É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.

Combater o racismo deveria tornar-se a rotina de todos os cidadãos brasileiros, mesmo que uns não queiram fazer isso. Muitos formadores de opinião, integrantes das elites do Brasil (empresarial, financeira, política, cultural, sindical, da máquina administrativa e estatal), não percebem que o que está em jogo é a sobrevivência da democracia e, portanto (atenção, “farialimers”), da economia de mercado.

Democracia prescinde de igualdade de oportunidades, assim como economias de mercado, de concorrência entre as empresas. Neste imenso país, a população negra e pobre não chega nem ao ponto de avistar oportunidades - sua ambição, antes de mais nada, é viver, existir, sair cedo de casa e voltar vivo. Não há regime democrático, República, portanto, economia saudável, que sobreviva a essa tragédia ad infinitum. Basta ver o desafio pelo qual nossa jovem democracia passa neste momento.

Para quem considera uma mistificação, seguem alguns dados aterradores sobre o extermínio cotidiano a que estão submetidos os negros no Brasil, principalmente, os jovens entre 15 e 24 anos (os dados são do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

  1. Em 2018 (último dado disponível), 57.956 brasileiros foram assassinados;
  2. do total das vítimas, 75,7% eram negras;
  3. o risco de a vítima ser um negro, na pesquisa de 2018, foi 74% maior para homens negros e 64,4% maior para as negras;
  4. do total de mortos, 30.873 (53,3% do total) eram jovens (atenção, economistas que se debruçam sobre os baixos índices de produtividade da economia brasileira!); o país assiste, passivamente, ao “assassinato” de seu futuro;
  5. em 2018, homicídio respondeu por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,2% na faixa entre 20 e 24 anos; e 43,7% das mortes os jovens entre 25 e 29 anos.

O Estado brasileiro, evidentemente, precisa ser reformado para cumprir a Constituição, que, admitamos, encerra um projeto de nação. Todos sabemos que, mesmo tornando o enfrentamento do racismo a prioridade do país por décadas, levaremos gerações até chegar a um lugar menos injusto.

O desafio é enorme, mas tudo indica que a pandemia, ao escancarar o racismo, as desigualdades sociais, a inaceitável concentração de renda, acordou parte da sociedade. Não as elites, com raras exceções. O que se vê por parte de muitas empresas, ainda que se reconheça o aumento da filantropia nesta terrível crise sanitária, são ações marcadas por estratégias de marketing, destinadas, portanto, a valorizar as marcas das empresas num momento de perda e dor para milhares de famílias. Isto, sem mencionar o sofrimento decorrente do empobrecimento brutal provocado pela recessão na qual a pandemia jogou o PIB.

Filantropia deveria ser uma virtude realizada em silêncio, do contrário, soa a oportunismo. Ademais, as doações não deveriam ser abatidas do Imposto de Renda das companhias. Mas, filantropia no momento em que vivemos é muito pouco perto da crise social vivida pela maioria dos brasileiros.

Quem está acordando para a dura realidade é a periferia das grandes cidades, habitantes de Estados de exceção, governados por milicianos e o crime organizado. Em oportuno artigo intitulado “É preciso derrubar o apartheid brasileiro”, Paulo Sérgio Pinheiro indaga: “Por que se sucedem esses horrores em supermercados e shoppings? Porque a instituição da democracia, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiu debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra, agora maioria de 56% no Brasil”, disse ele. “Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e torturados nas prisões; ausentes de todos os lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público; recebendo salários inferiores aos brancos; sendo alvos de racismo no quotidiano.”


Elio Gaspari: Os comandantes e o tenente Andrea

Violência policial se manifesta também nos motins de PMs que recebem o beneplácito de hierarcas

A cena, gravada em setembro num quartel da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, está na rede. O segundo-tenente André Luiz Leonel Andrea derruba e espanca uma mulher algemada (pelo menos sete socos e dois chutes). Outro PM segura a senhora enquanto ela é esmurrada, até que uma policial militar contém o oficial. O comando da corporação diz que só soube do episódio semanas depois e tirou o tenente do comando do pelotão da cidade de Bodoquena. Quanto à senhora, explicou o comando, era uma desordeira, estava bêbada e desacatou os policiais. Era por isso que estava detida e algemada. Admitindo que essa versão é verdadeira, só faltava que apanhasse porque foi comprar cloroquina.

Também está na rede outro vídeo, de março. Nele, o tenente Andrea explica à população de Bodoquena as regras do toque de recolher imposto pela pandemia. É outro homem. Fala pelo menos 15 vezes em leis ou decretos, cita a Constituição e, em 13 ocasiões, pede bom senso a todos. Vendo-o, sente-se uma ponta de orgulho pelo agente da lei.

A Polícia Militar não tem generais, mas há muitos deles na cúpula de um governo que estimula a violência do Estado num país de maricas. A eles e aos coronéis das Polícias Militares, cabe cuidar da ordem dentro de suas corporações. Qual tenente Andrea querem formar? O que fala em leis e bom senso ou o que esmurra uma mulher algemada?

Na tarde de 31 de março de 1964, o tenente Freddie Perdigão Pereira tinha 28 anos e comandava os tanques mandados para os portões do Palácio das Laranjeiras para proteger o governo do presidente João Goulart. Tornou-se um torturador do DOI e esteve nas cenas da prisão do deputado Rubens Paiva, em 1971, e do atentado do Riocentro, dez anos depois. Perdigão era um tipo alterado, mas virou o que virou pela tolerância e pelo estímulo dos comandantes militares da ocasião.

Passou o tempo, mudou o regime, e todo o entulho dos crimes praticados pela ditadura foi para a biografia de tenentes, capitães e majores. Fritaram a gaveta de baixo. Quando muito, disseram que os ampararam “sub-repticiamente”.

A violência policial já foi terceirizada com milícias particulares de empresas cujos diretores circulam em Davos dando aulas ao mundo. Na estrutura da segurança pública, ela continua no cotidiano das periferias das cidades ou em salas de delegacias e de quartéis como o de Bodoquena. Há anos ela se manifesta também nos motins de policiais militares que recebem o beneplácito de hierarcas e são invariavelmente perdoados por anistias votadas pelo Congresso ou pelas Assembleias Legislativas.

Será difícil convencer um jovem tenente a respeitar um preso se seus superiores levam semanas para examinar um vídeo gravado no quartel e protegem-no dentro do limite do possível.

Faz tempo, um oficial que fez fama num DOI caiu num comando do general Antônio Carlos de Andrada Serpa, e ele lhe disse que aquela função poderia trazer problemas para sua carreira. Em 2014, o oficial relembrou: “Eu respondi que fiz tudo direito, só recebi elogios e fui condecorado, portanto o Exército cuidaria de mim. Ele me disse: ‘Deus queira que você tenha razão’. Hoje eu me dei conta de que ele sabia do que falava”.


Roberto DaMatta: Americanização do Brasil

Estados Unidos ‘brasilianizados’ seriam marcados por ruidosa desigualdade

Quando falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.

A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.

Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.

É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.

Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.

Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.

Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com “O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.

Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.

Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos; menos, é claro, para quem se acha…

Como é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?

E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?

Lá, o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.

P.S.: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão — esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.

*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’


Marco Aurélio Nogueira: A nova política dos jovens

Pautas identitárias e desejo de renovação põem a juventude paulistana em campanha

Vera Magalhaes acertou em cheio em sua coluna de hoje, no Estadão, quando constata que há um “degrau geracional” separando as candidaturas que disputam a Prefeitura de São Paulo.

É um problema geral, embora se manifeste de forma particular em cada parte do País. Está latejando forte na capital paulistana.

Guilherme Boulos, do PSOL, é o candidato dos jovens entre 16 e 34 anos, que formam uma massa numericamente expressiva e têm lhe dado impulso para ameaçar sobrepujar o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), na reta final.

Uma boa campanha no segundo turno explica parte da situação, mas não explica tudo. O decisivo é que Boulos está conseguindo falar com os jovens, que são sempre dispostos a contestar e buscar coisas novas, além de não gostarem de obedecer. Têm sido eles o motor de sua ascensão. Boulos não entrou nas periferias pobres da cidade, mas está bombando entre os jovens de todos os extratos de renda.

É compreensível que a campanha de Covas não empolgue a moçada mais jovem. O atual prefeito não é midiático, não se atirou nas redes, sua propaganda é fria, ele age como um executivo e, para complicar, é suscetível a muitas “lacrações”: sofre o desgaste de quem está no cargo, é ligado a Dória, o terrível, pertence a um partido considerado “velho”, tem um vice visto como problemático pelo reacionarismo. Até sua doença, um câncer em fase de remissão, é vista como fator de rejeição.

Covas vai bem entre os extratos de maior idade, mais “leais” e chegados à moderação. E seus votos estão distribuídos em todos os distritos da cidade. Mas, se os velhinhos decidirem não votar por receio da Covid, por exemplo, o prefeito poderá perder a eleição.

Os jovens querem movimento, dinamismo, novidade. Estão cansados da mesma lengalenga tucana onipresente em São Paulo. E não se preocupam muito em ligar a eleição paulistana ao futuro do País, ou seja, às urnas de 2022. Não se perguntam, por exemplo, se a vitória de um ou outro candidato ajudará em maior ou menor medida a luta contra o bolsonarismo mais adiante. São majoritariamente contrários às baixarias e ao regressismo de Bolsonaro, não ligam muito para esquerda vs. direita, aderiram para valer às pautas ditas “identitárias”, não só as de gênero e etnia, mas também as ambientais, as da sustentabilidade, da cidade com menos automóveis, da coleta seletiva do lixo, do consumo consciente. Tais pautas são o modo como agem no mundo.

É uma linguagem que não tem sido praticada pelos políticos. E que Boulos soube capturar, ao menos em parte.

Há que considerar que os jovens de hoje não são militantes como foram os seus pais. Não querem saber de comandos partidários, ordens unidas, chefes e agendas rígidas. Engajam-se de modo tópico, seletivo, espasmódico. Não sacrificam a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referenciam por líderes ou ideologias. São multifocais, abraçam várias causas simultaneamente. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.

Numa época de crise da política e da democracia, a exigência de militância, de causas a serem defendidas, permanece. Os engajamentos estão mais próximos da “política-vida” do que da “política-poder”. É uma época com mais “coração” do que “cabeça” politica. As sociedades estão fragmentadas e individualizadas. Há um desencanto com as instituições.

Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias, ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado.

Em particular os jovens (mas muitos não tão jovens também) são social e culturalmente hiperativos, movem-se pela necessidade de se autoexpressarem e não são ligados a lutas por poder em sentido estrito. Olham torto para os políticos que só se preocupam em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, que são rotineiros, previsíveis. Gosta-se mais daquilo que não se conhece.

Pouco importa que os mecanismos concebidos para a deliberação (um mutirão, um orçamento participativo, consultas populares) produzam resultados precários O importante é que sirvam para extravasar indignação, carências, desejos, opiniões.

O problema – sempre há um problema – é que o ativismo jovem pode não ser suficiente para que se consiga estabelecer equilíbrios e consensos que articulem um sistema alternativo. A nova “zona de ação política”, por ser pouco organizada e mais individualizada, estar marcada pela movimentação contínua, por pressões antissistêmicas erráticas, produz uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.

Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.

O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que souber se articular com o “velho ativismo” e considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, produzirá ruído e efervescência, mas perderá em termos de efetividade.

A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.


Fábio Alves: Guedes sob pressão

Se ministro conseguir entregar alguma reforma, reputação ficará menos arranhada

Paulo Guedes chega ao fim do seu segundo ano no cargo com a credibilidade seriamente abalada perante analistas e investidores do mercado financeiro, público que foi um dos primeiros eleitores a abraçar a campanha do então candidato presidencial Jair Bolsonaro, em 2018, em razão do apoio irrestrito ao seu escolhido para ministro da Economia.

Mas a imagem de Guedes no mercado passou de respeito e admiração para ceticismo nas palavras do ministro ou até mesmo chacota. Nos últimos dias, corre em mensagens de grupo de WhatsApp entre economistas e investidores a figurinha de Guedes, dedo indicador em riste e um leve sorriso no rosto, com a seguinte legenda: “Semana que Vem”, numa alusão ao histórico do ministro de prometer entregar propostas da agenda econômica sempre para um futuro próximo.

Outra figurinha mostra um posto Ipiranga em chamas, numa referência ao fato de que o mercado deixou de acreditar que Bolsonaro ainda dá a Guedes carta branca para resolver e decidir todos os assuntos da área econômica, ao contrário da campanha presidencial, quando Guedes era chamado de “Posto Ipiranga” pelo agora presidente.

A figurinha mostra o posto em chamas porque o ministro se envolveu em disputas públicas com a ala política e desenvolvimentista do Palácio do Planalto em temas como investimentos, teto de gastos e fontes de financiamento de programas de transferência de renda, sofrendo alguns reveses.

“Ele está desacreditado”, sentencia um gestor estrangeiro. “Faz um papel de distrair de um lado, enquanto o Congresso impõe sua vontade, de outro.”

Esse gestor diz que para a credibilidade do ministro ser mantida requer alguma entrega de resultados. “Quais ele entregou, objetivamente?”, indaga. “A reforma da Previdência aconteceu mais a despeito dele do que por causa dele. Lembra a capitalização?”

O problema, na visão desse gestor, é o tempo perdido em não se aprovar reformas que aumentem a produtividade, reduzam desigualdades e controlem o gasto público. “Falta visão de futuro: ele vê mais as árvores do que a floresta. E ela continua pegando fogo”, diz.

O que tem causado bastante desconforto no mercado é a quantidade de ruído nos preços dos ativos, em particular na cotação do dólar, devido a constantes declarações de Guedes em eventos ou em entrevistas à imprensa.

A mais recente aconteceu na semana passada quando o ministro disse que fará “o que for necessário” para reduzir a dívida pública (que deve superar 96% do PIB neste ano) e citou a possibilidade de “até vender um pouco de reservas”.

Um renomado investidor em juros e câmbio critica duramente a fala do ministro, dizendo que Guedes confunde estoque (o que o governo tem de dívida) com fluxo (que é o que o governo tem de resultado – receita menos despesa – no ano).

“Ao vender parte das reservas internacionais para diminuir a dívida bruta, lembrando que as reservas já têm efeito sobre a dívida líquida, Guedes está diminuindo a dívida bruta, a líquida se mantém estável e ele perde um seguro essencial – como são as reservas – diante da delicada situação fiscal do Brasil”, observa o investidor acima. “Mas ele não cuida do maior problema, que é o fluxo, o qual, para ser resolvido, precisa de reformas a fim de diminuir o tamanho do Estado (custo) e aumentar o PIB potencial (receitas).”

Já o economista-chefe de um importante fundo de investimentos diz que é preciso dividir em dois períodos a avaliação de Guedes. “No primeiro ano no cargo, o desempenho dele foi muito bom, com uma participação fundamental na aprovação da reforma da Previdência e uma narrativa de modernização do Estado e continuidade da agenda de reformas, que manteve o tema em voga no Congresso”, explica. “Mas, já no fim do ano passado, as dificuldades em coordenar projetos e negociar consensos parece que começou a pesar contra. Tudo isso foi sendo agravado com a crise política e a pandemia do coronavírus.”

A questão agora é que as promessas de Guedes encontram ouvidos moucos no mercado, especialmente quando se trata de privatização. O ministro agora quer vender os Correios, o Porto de Santos, a Eletrobrás e a Pré-Sal Petróleo (PPSA) até o fim de 2021. Pouca gente leva fé nisso.

Mas se o ministro conseguir entregar alguma reforma em 2021, como a PEC emergencial, sua reputação ficará menos arranhada.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai congelar aposentadoria para recriar auxílio emergencial?

Até para achar um dinheirinho para o 'renda básica' será necessário corte duro

Imaginem a seguinte manchete: “Bolsonaro quer congelar aposentadorias do INSS”. A seguir, viria outra, mais ou menos assim: “Governo propõe corte de salários de servidores do Brasil inteiro”.

Antes de discutir se tais ideias prestam ou o que significam, suponha-se o que Jair Bolsonaro vai achar disso, ainda mais se as notícias da baixa de sua popularidade em grandes capitais se confirmarem pelo resto do país.

Essas são algumas ideias em discussão para que se arrume algum dinheiro para o “Renda Brasil”, Bolsa Família encorpado, o nome que se dê, algo que substitua o auxílio emergencial. Além de todos os problemas fiscais, técnico-legais, de disputas no Congresso e de pressões dos donos do dinheiro, há o fator Bolsonaro. Olhando as pesquisas de popularidade de dezembro, vai tomar qual medida?

Vai haver dinheiro para atenuar a pobreza e a miséria que virão com o fim do auxílio emergencial e a persistência do desemprego? Lembrete: antes da epidemia, havia 92 milhões de pessoas ocupadas no país. Os dados recentes não são muito precisos (nem recentes), mas a população ocupada deve andar pela casa de 83 milhões ou 84 milhões. Vai haver emprego para 8 milhões de pessoas até janeiro? Não. Para as pessoas que chegaram ao mercado de trabalho neste ano? Não. A renda do trabalhador informal miudinho vai se recuperar com a epidemia ainda fervendo? Não.

O congelamento das aposentadorias valeria apenas para benefícios com valor maior do que um salário mínimo (Bolsonaro havia vetado o congelamento geral do valor de aposentadorias e outros benefícios do INSS). “Congelamento” significa que os benefícios não teriam reajuste nem pela inflação. Dos 35,8 milhões de benefícios pagos por mês, 11,7 milhões valem mais de um salário mínimo, cerca de um terço deles (que absorvem 53% da despesa, porém). Parece o suficiente para causar sururu político.

Reduzir jornada e cortar salário de servidor (não apenas os federais) é um plano do Ministério da Economia desde o final do ano passado e uma medida prevista pelas normas do “teto” de gastos, as quais precisam de regulamentação, no entanto. Bolsonaro tem vetado medidas que afetem os servidores atuais.

De novo, veio a conversa de cortar subsídios: isso não permite mais despesa (por causa do teto), a não ser que se trate de subsídios de crédito, em que Bolsonaro não deve mexer, pois daria problema com seus amigos e renderia pouco, de resto.

Ou Bolsonaro aceita os cortes de despesa para financiar algum (pequeno) “Renda Qualquer Coisa” ou Bolsa Família gordo, ou não terá nada. Nada a não ser que adote a gambiarra da extensão do auxílio emergencial, que dependeria da extensão do período de calamidade, o que Paulo Guedes disse não querer, exceto em repique maior da epidemia. Nem Guedes nem Rodrigo Maia, presidente da Câmara, gostam da ideia. Mas o centrão gosta.

Em resumo, a discussão está praticamente na mesma de agosto e setembro, quando Bolsonaro vetou cortes de despesas sociais e os credores do governo elevaram as taxas de juros por causa da ameaça dos “fura teto”. Desde então, apenas ficou mais claro que o dinheiro que houver para auxílio, dados os impasses, será bem pequeno.

Com auxílio ou “renda básica” pequenos, tende a haver problema político-social e alguma desaceleração no consumo. No trimestre junho-agosto, o pagamento médio mensal dos auxílios foi de R$ 45,3 bilhões por mês. Em setembro, de R$ 24,2 bilhões. Em janeiro, quase nada. É problema.


Monica De Bolle: A transição

Começo da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e vão

No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.

O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.

Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele – para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a “Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.

O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.

Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.

Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.

A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Fernando Exman: A dura vida da equipe econômica na Câmara

Seja qual for o futuro presidente, cenário será desafiador

Segue indefinida a disputa pela presidência da Câmara, corrida encabeçada pelo blocão do líder do PP, Arthur Lira (AL), nome preferido do Palácio do Planalto, e o grupo do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ). Os próprios envolvidos no duelo alertam: quem se arriscar a cravar um prognóstico do resultado da eleição está mal informado ou deliberadamente mal-intencionado, querendo passar uma visão distorcida da realidade para influenciar o jogo. Já se pode projetar sem medo de errar, contudo, que o cenário será desafiador para a equipe econômica, seja qual for o vencedor.

Nas últimas semanas, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem aproveitado eventos públicos para reiterar seu plano de voo. Enquanto tenta abrir espaço na agenda legislativa para a tramitação das reformas, trabalha para dar um impulso definitivo à votação de propostas que visam melhorar o ambiente de negócios, como o projeto que garante autonomia ao Banco Central, marcos regulatórios setoriais capazes de atrair investimentos e a nova Lei de Falências. Dia sim outro também, insiste em destravar as privatizações de Eletrobras, Correios, Porto de Santos e PPSA, a estatal que representa a União nos contratos de partilha do setor de petróleo - uma pauta louvável consagrada nas urnas em 2018, mas que até agora não emocionou os congressistas.

Para conseguir abrir espaço abaixo do teto de gastos, integrantes da equipe econômica reforçam a necessidade de se implementar a tal agenda “3D”, composta por iniciativas que desobrigam, desvinculam e desindexam o Orçamento. São ações que já estão sob a análise do senador Márcio Bittar (MDB-AC) e podem até prosperar no Senado, mas enfrentam resistências de autoridades do próprio Executivo, na oposição e entre parlamentares da base aliada na Câmara. Bolsonaro em pessoa já as descredenciou num passado não tão remoto. O presidente ameaçou dar um cartão vermelho para quem defendesse não assegurar a reposição da inflação para a Previdência e o salário mínimo, mas acabou guardando-o no bolso depois que o assunto deixou as manchetes dos jornais.

A ideia, no entanto, nunca foi abandonada totalmente. Na percepção de integrantes do Centrão, Bittar está disposto a enfrentar os debates mais impopulares e até mesmo incluir em seu relatório medidas que podem causar preocupações no mercado, como fez quando defendeu usar recursos dos precatórios para ajudar o governo a erguer um programa social que substitua o Bolsa Família.

O relator do Orçamento e da chamada PEC do Teto de Gastos também estaria disposto, de acordo com interlocutores, a defender a tributação de lucros e dividendos ou prever o fim de isenções tributárias. Em outras palavras, aceita resolver os problemas do governo tanto do lado das receitas quanto no das despesas, desde que tenha respaldo dos partidos aliados, do Ministério da Economia e, principalmente, do Planalto. Com razão, temeria ser abandonado no plenário. A articulação entre os líderes governistas tem um histórico de desencontros.

Isso vem ganhando corpo no Senado, porém na Câmara Guedes ainda não tem total apoio do Centrão para adotar medidas impopulares. Ele mesmo sabe disso, embora espere e torça para que o bloco abrace sua pauta, até como suposta estratégia para limpar a imagem de fisiologismo. Um influente parlamentar do grupo, no entanto, mostra que esse sonho não será fácil e já alerta que muitas das articulações mais fiscalistas conduzidas pelo ministro com Maia não reverberam entre os deputados governistas.

Inspirada pela frase de Bolsonaro segundo a qual sua administração não vai tirar nada do pobre para dar ao paupérrimo, a própria base aliada não quer aprovar qualquer iniciativa que acarrete perdas aos que estiverem da classe média para baixo na pirâmide sócio-econômica. “Em tempo algum”, sublinha um influente líder.

Não se trata, portanto, apenas de um problema de “timing” da política, como o ministro da Economia costuma falar, ou uma preocupação pontual dos parlamentares com as eleições municipais.

O problema de Guedes é que até mesmo o presidente Jair Bolsonaro resiste a algumas das suas ideias. Assim, um presidente da Câmara eleito com um empurrão do Planalto não iria assumir uma postura contrária à defendida pelo chefe do Poder Executivo, em favor do ministro. Ele certamente estaria disposto, inclusive, a tentar provar ao mercado que pode garantir estabilidade e previsibilidade aos agentes econômicos, mesmo sem atender todas as demandas da equipe econômica.

Do outro lado, o presidente Rodrigo Maia tem sido cada vez mais pressionado a decidir quem será seu candidato na disputa. Dependendo do nome escolhido, Guedes terá mais ou menos espaço para conversar, por exemplo, a respeito da criação de um novo imposto sobre transações financeiras ou de medidas que contrariam interesses setoriais e são consideradas fundamentais pela ala liberal do governo. Baleia Rossi (MDB-SP) já se mostrou aberto a tratar de uma nova CPMF, diferentemente de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). Ex-ministro do Desenvolvimento, Marcos Pereira (Republicanos-SP) é interlocutor frequente do setor produtivo e sensível às queixas do empresariado.

O grupo político de Maia também tem negociado com a oposição, que possui cerca de 130 votos na Câmara e pode influenciar a eleição - sobretudo se votar unida. Isso quer dizer que um candidato deste campo pode ter que acolher algumas das bandeiras da esquerda, o que tem gerado na equipe econômica o receio de que as privatizações podem continuar empacadas.

A campanha ganha corpo e tudo o que Bolsonaro não quer é ver Maia fazendo seu sucessor. A sinalização do presidente de que pode se filiar a algum partido em março, caso não consiga mesmo viabilizar a criação do Aliança pelo Brasil, deve entrar nessa equação e acabar desequilibrando o jogo. Isso pode favorecer um candidato governista, mas está claro que não é garantia de que Guedes terá uma vida mais fácil a partir de fevereiro.


Ruy Castro: Procura-se Pazuello, o zero bala

O ministro da Saúde teve Covid. Mas não sabemos a quantas anda e nem sequer se já sarou

Devo estar mal informado, mas, então, o Google também estará. Ao ver ontem o general Eduardo Pazuello sendo chamado a se explicar sobre os 6,8 milhões de testes de Covid mofando num galpão federal em Guarulhos (SP), ocorreu-me que ele é o ministro de Saúde. Ocorreu-me também que, desde que contraiu o vírus —sim, Pazuello pegou a doença, lembra-se?—, mal ouvimos falar dele. E que, sendo o responsável pela saúde de 212 milhões de brasileiros, sua própria saúde é ou deveria ser do interesse nacional.

Pazuello foi diagnosticado com Covid no dia 21 de outubro. Internou-se num hospital de Brasília, onde seu chefe Jair Bolsonaro o visitou expressamente para desmoralizá-lo, desautorizando a sua compra da vacina Coronovac. Pazuello engoliu a ofensa, disse-se "zero bala" e se mudou para um hospital militar. Teve alta no dia 3 seguinte e foi para casa, mas só retomou as "atividades presenciais" no dia 11. Em entrevista, admitiu "ainda não estar completamente recuperado" e atreveu-se a chamar a Covid de "doença complicada". E, a partir dali, sumiu do noticiário —até ontem. Digitei "Pazuello e Covid" no Google para saber se ele estava mesmo "zero bala". Nada sobre esse assunto.

Gostaria de saber de Pazuello como foram seus sintomas, doença, tratamento, recuperação e sequelas. Terá sido entubado? É tudo mesmo um horror? Teve medo de morrer? Foi salvo pela cloroquina ou, como diz a ciência, tomá-la ou passá-la nas costas dá na mesma? Como foi, afinal, que pegou o vírus? Era sempre testado? Não acredita em testes?

Claro que, não sendo médico, Pazuello não tem ideia do que lhe aconteceu. E muito menos do que a Covid já fez, faz e ainda fará com o Brasil.

Pazuello nos deve um minucioso relatório pessoal. Afinal, somos nós que pagamos —em solidão, desemprego, falência e vidas humanas— a conta que ele e Bolsonaro estão apresentando ao país.


Bruno Boghossian: Formação de frente contra Bolsonaro surge como experiência em Fortaleza

Associação de candidato com presidente empurrou líderes de PT, PSDB, DEM e PSOL para campanha

A dez dias do primeiro turno, Jair Bolsonaro abriu espaço em sua transmissão nas redes e pediu votos em Capitão Wagner (Pros) para a Prefeitura de Fortaleza. “Parece que é minha segunda cidade do Brasil”, disse o presidente. O candidato chegou ao segundo turno, mas agora enfrenta um consórcio político interessado em derrotar essa aliança.

A disputa na capital cearense exibe os traços de uma experiência para a formação de uma frente antibolsonarista. A associação entre Wagner e o presidente empurrou líderes de siglas como PT, PSDB, DEM e PSOL para a campanha de José Sarto (PDT), candidato de Ciro Gomes.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL) deu o tom dessa coalizão ao declarar apoio a Sarto, na semana passada. “É muito importante derrotar o candidato do ódio, o candidato da mentira, o candidato do medo, o candidato do Bolsonaro”, afirmou o parlamentar, em vídeo que foi divulgado numa página de Ciro.

Na segunda-feira (23), o pedetista levou ao ar em seu programa de TV, manifestações de petistas e de Rodrigo Maia (DEM). “Ninguém governa sozinho”, disse o presidente da Câmara para justificar a participação da sigla na chapa do candidato.

Sarto também exibiu uma declaração do senador cearense Tasso Jereissati (PSDB), que já foi chamado por Ciro de “picareta-mor”. Depois de um longo afastamento, os dois ensaiaram uma reaproximação.

A formação desse tabuleiro carrega as marcas do cenário nacional. Líder de um motim da PM, Wagner rejeita o selo de afilhado de Bolsonaro, mas é um nome identificado com suas bandeiras. O alinhamento parece um mau negócio: 47% dos eleitores de Fortaleza consideram o presidente ruim ou péssimo; 26% dizem que seu governo é ótimo ou bom.

Alianças locais seguem as circunstâncias políticas de cada município, mas a disputa na capital cearense sugere que alguns personagens podem esquecer divergências políticas quando têm objetivos comuns –algo que o próprio Ciro se recusou a fazer no segundo turno de 2018.


Bernardo Mello Franco: Disputa na lama

A disputa pela prefeitura do Rio desceu até o nível do pré-sal. Nos últimos dias de campanha, Marcelo Crivella e Eduardo Paes travam um duelo de agressões e ofensas. O comportamento dos candidatos ajuda a rebaixar a cidade, que já sofre com a pandemia, a crise econômica e os sucessivos escândalos de corrupção.

Em apuros nas pesquisas, Crivella apelou à tática da guerra santa. Num vídeo dirigido a eleitores evangélicos, ele disse que Paes implantaria a pedofilia nas escolas. Não foi a única baixaria protagonizada pelo bispo da Igreja Universal.

Sua campanha imprimiu 1,5 milhão de panfletos em que Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo. Além de emporcalhar as ruas, a peça difunde mentiras. Acusa os dois de defenderem legalização do aborto, liberação das drogas e “kit gay” nas escolas.

Crivella investe no fundamentalismo e na desinformação. A legislação sobre drogas e aborto é federal, nada tem a ver com as atribuições de um prefeito. O “kit gay” nunca existiu. É uma ficção usada por políticos reacionários para tapear eleitores religiosos.

O bispo parece descontrolado diante da perspectiva da derrota. No debate da Band, ele disse que o adversário “não gosta de mulher”. Ontem faltou à tradicional sabatina da rádio CBN. À noite, sua propaganda afirmou que Paes estaria prestes a ser preso por corrupção. O discurso já foi usado por um certo ex-juiz, hoje mais perto de Bangu do que do Palácio Laranjeiras.

Com 42 pontos de vantagem, Paes poderia ignorar as ofensas e fazer uma campanha propositiva. Não é o que se vê na TV. Para rebater a sujeirada de Crivella, o ex-prefeito também resolveu chafurdar na lama. Ontem à noite, ele não deu as caras no próprio programa. Foi representado por uma atriz que chamou o outro candidato de “falso pastor”, “mercenário” e “traíra”.

No rádio, o ex-prefeito disse ser contrário à educação sexual nas escolas. “Isso deve partir de dentro de casa, do seio da família”, afirmou. O ensino demonizado por demagogos ajuda a prevenir doenças e gravidez precoce. Na corrida pelo voto religioso, Paes se curvou ao obscurantismo do rival.