Day: setembro 30, 2020

Especialistas apontam desafios e indicam rumos para gestão de municípios

Cristovam Buarque, Arnaldo Jardim, Jackson De Toni e Felipe Sampaio participaram da abertura do ciclo de debates A reinvenção das cidades, no lançamento da Política Democrática

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Falta de proporcionalidade na distribuição de recursos por parte da União, baixa qualificação de servidores, deficiência no saneamento urbano e insegurança da população estão entre os principais desafios a serem enfrentados na gestão de municípios brasileiros. A análise é de especialistas que participaram, na noite desta quarta-feira (30), da abertura do ciclo de debates online A reinvenção das cidades, mesmo título da 55ª edição da revista Política Democrática impressa, publicada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em parceria com a Tema Editorial, e lançada na ocasião.

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Mediado pelo sociólogo e diretor da FAP Caetano Araújo, que também é professor da UnB (Universidade de Brasília), o primeiro dos cinco debates online também apontou caminhos para os gestores municipais planejarem seus governos. O evento foi transmitido no site e na página da FAP no Facebook, nos quais o vídeo ficará disponível para internautas, que também podem conferir a discussão dos especialistas no canal da entidade no Youtube.

O economista Jackson De Toni, doutor em Ciência Política e mestre em Planejamento Urbano e Regional, disse que a situação dos municípios do país é dramática não só por causa da pandemia do coronavírus, que agravou ainda mais a crise econômica, mas pela trajetória que o país construiu nas últimas décadas. “As cidades refletem e são muito sensíveis aos índices econômicos, especialmente aos que se referem ao nível de renda e desemprego”, afirmou, para acrescentar: “Ser gestor municipal hoje no Brasil é, mais do que nunca, um ato de coragem”.

Assista ao vídeo!



De Toni, que é autor do texto “Gestões municipais: dilemas e desafios pós-crise”, publicado na revista, ressaltou que “existe um apagão muito sério” na capacidade de gestão e qualidade dos servidores públicos dos municípios. Ele citou pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada em 2012, segundo a qual 38% desses profissionais tinham somente o nível médio de escolaridade no ano anterior. Na época, outros 32% haviam concluído o nível superior ou pós-graduação.

Outra preocupação apontada por De Toni é que apenas a metade dos municípios brasileiros tem planos diretores, necessários para direcionar a gestão dos municípios no médio e longo prazos. Além disso, segundo ele, o modelo federativo no país “ainda não deu conta do problema de transferir recursos de modo que guarde certa proporcionalidade lógica”. “O que acontece, via de regra é estrangulamento dos municípios”, analisou, ressaltando que 20% do PÌB (Produto Interno Bruto) do país está concentrado em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

‘Monstrópoles’
O ex-senador Cristovam Buarque e ex-governador do DF (Distrito Federal), autor do texto “Pequeno dicionário para uma cidade ideal”, publicado na terceira parte da revista, listou as características que devem existir no que ele chamou de “cidades do futuro”. De acordo com ele, serve como um pequeno manual de “como transformar monstrópoles em cidades”.

A análise de Cristovam, detalhada de forma minuciosa em seu texto e com licença poética, mostra que as cidades precisam ser aconchegantes, bonitas, pacíficas – e, mais do que isso, seguras –, saudáveis, sustentáveis, educadas, eficientes e inteligentes. “São palavras que não aparecem muito em textos técnicos de urbanismo”, disse ele, que também é presidente do Conselho Curador da FAP.

Relator da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que completou 10 anos em agosto, o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) publicou, na nova edição da revista Política Democrática,  análise sobre saneamento, saúde e qualidade de vida. No debate online, ele destacou o desafio de fazer das cidades um espaço de acolhimento em seus diferentes aspectos. “É repensar o jeito que está hoje”, disse.

Jardim ressaltou que as gestões dos municípios e toda a sociedade devem estar atentas ao papel da água, que é “um desafio permanente”, à drenagem urbana e aos resíduos sólidos. Ele lembrou que mais de 390 mil pessoas sobrevivem da atividade de catador no país. “Temos condições de avanços tecnológicos formidáveis e alcançar lixo zero”, afirmou, em outro momento, acrescentando que é preciso divulgar os conteúdos do debate como instrumento para qualificar e subsidiar os candidatos nas eleições municipais.

Valores democráticos
Secretário-executivo de Segurança Urbana do Recife e ex-assessor especial dos ministros da Segurança Pública e da Defesa, Felipe Sampaio afirmou que a confiança da população no Estado sustenta a democracia. “Valores democráticos se materializam nas ruas das cidades para que as pessoas percebam que é preciso vivenciar, efetivamente, os valores que defendem, como liberdade, liberdade de imprensa e direitos humanos”, exemplificou.

Sampaio, que é autor do texto sobre urbanismo, segurança e democracia, publicado na primeira parte da revista Política Democrática, explicou que as pessoas perdem confiança no Estado se não confiarem nas políticas públicas, o que, segundo ele, “fragiliza a sustentabilidade democrática”. “Se trabalhar segurança urbana de maneira sistêmica, integrada, do ponto de vista de políticas públicas urbanísticas, e a prefeitura como articuladora junto aos outros níveis de Estado, melhora muito”, afirmou. “Com cidade segura e pessoas felizes, que confiam no Estado efetivamente, está garantida, ou prorrogada, a sustentabilidade democrática”.

Idealizadora da publicação, a jornalista Beth Cataldo, mestre em Comunicação pela UnB e editora responsável da Tema Editorial, destacou a relevância da publicação, especialmente, por ser lançada às vésperas das eleições municipais. “É um livro denso e pleno de esperança”, disse. Ela, assim como Caetano Araújo, terá participação permanente em todos os quatro próximos encontros online do ciclo de debates A reinvenção das cidades, que serão realizados todas as quartas-feiras.

Ficha técnica
Título: A reinvenção das cidades – Revista Política Democrática edição 55
Número de páginas: 282
Projeto gráfico e diagramação: Rosivan Pereira
Revisão textual: Mariana Ribeiro
Preço versão impressa: R$ 45,00
Publicação: Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Tema Editorial

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Míriam Leitão: Renda cidadã e o senador sem noção

Por Alvaro Gribel (interino)

Míriam Leitão está de férias

Desde que apresentou o programa Renda Cidadã, o senador Márcio Bittar (MDB-AC) tem defendido a proposta como um cidadão sem noção. Em inúmeras conversas e entrevistas nos dois últimos dias, Bittar tem deixado de cabelo em pé seus interlocutores, sejam eles jornalistas, economistas ou investidores do mercado financeiro. Sem nenhum constrangimento, é capaz de afirmar na mesma frase que “atraso no pagamento de dívida não é calote”, para depois acusar de “hipócritas” aqueles que entendem o contrário. Quanto mais Bittar fala, menor parece a chance de aprovação do novo programa de renda mínima.

“O governo brasileiro está renegociando sua dívida”, justifica. Em qualquer lugar do mundo, o nome disso é calote, especialmente quando é feito de forma unilateral, sem negociação. No caso dos precatórios, o governo atrasará o pagamento mesmo após decisão judicial. Mas Bittar não se deixa abalar e complementa: “Você vai pagar praticamente um terço do que deve e dizer ao credor: O mundo entrou em uma crise e nós não saímos dela ainda, vamos ter que equacionar.” A fala contraria não apenas os bons costumes econômicos, como demonstra que a recuperação não é tão rápida quanto diz o governo, já que o Renda Cidadã só entraria em vigor no ano que vem.

Bittar disparou indiretas ao aliado Paulo Guedes. Disse que “o mercado não é Deus” e que em uma reunião com o governo fez questão de dizer “a um ministro” que se os investidores fossem tão inteligentes não teriam apoiado governos de esquerda no Brasil. Ainda assim, dividiu o ônus do projeto com a equipe econômica. “Não apresentaria uma proposta que não estivesse chancelada pela equipe econômica do governo do presidente Jair Bolsonaro, através do ministro Paulo Guedes.”

Bittar já havia chamado atenção no ano passado quando apresentou um Projeto de Lei ao lado do senador Flavio Bolsonaro para acabar com a Reserva Legal. Se fosse aprovado, as propriedades rurais ficariam liberadas para o desmatamento de vegetação nativa. O PL não foi adiante, mas não antes de os senadores afirmarem que “o aquecimento global era discurso apocalíptico para barrar o progresso” e que os EUA eram mais ricos que o Brasil porque derrubaram suas florestas a favor da agricultura.

Ontem, irritado com uma pergunta da jornalista na Globonews, Bittar a chamou de “querida”, para depois confundir Nelson Rodrigues com Nelson Gonçalves e afirmar que “a vida é como ela é”. Queria dizer que o governo enfrentaria resistências caso tentasse cortar gastos para financiar o programa, e que por isso buscou outro caminho. Como todo sem noção, não percebeu que confessava naquele momento o truque da contabilidade criativa.

Brasil fica para trás

Enquanto a bolsa brasileira está em último lugar na comparação com outras seis economias emergentes (veja ao lado), com perdas de 42% em dólar este ano, o principal índice da Coreia do Sul tem valorização de 4,85%. Curiosamente, o país asiático foi dos que melhor controlou a pandemia, com testes em massa, rastreamentos e isolamento social. No Brasil o governo deixou o vírus correr solto, ao mesmo tempo em que abriu a torneira dos gastos. O resultado foi desvalorização da moeda e queda da bolsa, que em reais também não voltou ao nível pré-pandemia.

Locador X locatário

O Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP) já fez as contas para o reajuste dos aluguéis tendo como referência o IGP-M. O índice calculado pela FGV disparou 17,94% nos 12 meses até agosto e pode dar dor de cabeça aos inquilinos. Mas para o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, não faz sentido usar esse indicador, que tem forte influência do dólar e está fora da realidade: “O mercado está do lado do inquilino. Fora locais específicos, não é hora de ficar com imóvel vazio”, afirmou.


Cristiano Romero: O que está por trás da “pedalada cidadã”

Estímulo oficial injetou o equivalente 9% do PIB na economia

A crise econômica provocada pela pandemia fez o Produto Interno Bruto (PIB) do país encolher 11,9% no primeiro semestre, desempenho equivalente ao dos países menos impactados pelo novo coronavírus. O mergulho poderia ter sido muito mais profundo se o governo e o Congresso Nacional não tivessem concordado em aprovar, rapidamente, o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, entre abril e agosto, a milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade e a concessão de estímulos fiscais a empresas.

Sabe-se que milhões de brasileiros e milhares de micro e pequenas empresas, principalmente no setor de serviços, não viram a cor do dinheiro oficial. Ainda assim, o desembolso feito pelo governo federal foi significativo. A economista Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional e atualmente chefe da equipe macroeconômica do banco Santander, calcula que os estímulos injetaram cerca de 9% do PIB na economia.

“A principal medida de apoio às famílias, o auxílio emergencial, chegou a 67 milhões de beneficiários, ou 64% da população economicamente ativa, com valor médio de R$ 845 por beneficiário entre abril e agosto”, diz Ana Paula em relatório enviado a clientes.

Nos dois primeiros meses da pandemia, as projeções de bancos e gestoras de recursos previam queda de até 9% do PIB neste ano. Agora, é difícil encontrar alguém ainda prevendo essa queda. No boletim Focus, do Banco Central, a mediana das expectativas do mercado para o PIB em 2020 está em 5,04%, sendo que, há quatro semanas, estava em 5,28%.

Ana Paula Vescovi e sua equipe no Santander revisaram sua projeção de PIB para este ano de -6,4% para -4,8%. Para uma economia que amargou recessão longa e profunda entre 2014 e 2016 e, na sequência, cresceu pouco mais de 1% entre 2017 e 2019, o cenário atual continua trágico, mas melhor do que se esperava há dois meses.

Além dos estímulos oficiais, outros fatores ajudaram a diminuir o tombo da economia brasileira. “O primeiro fator surpresa foi o setor externo. As exportações se sustentaram de certa forma, ajudadas pela safra recorde, e com demanda firme e preços elevados de produtos agropecuários. Os preços de internacionais do petróleo, inicialmente atingidos pela guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita, voltaram a se recuperar”, observa o relatório do Santander.

O índice CRB, que reflete os preços de commodities agrícolas, minerais e metálicas, teve desempenho acima do esperado entre agosto e setembro, tendo já retornado ao patamar anterior ao da pandemia. Foi crucial, nesse aspecto, o fato de a China, primeiro epicentro da crise sanitária, ter controlado o avanço do novo coronavírus mais cedo, permitindo a reabertura mais rápida de sua economia, a segunda maior do planeta.

“Com estágio anterior em termos de contágio, China, Europa e Estados Unidos vêm demonstrando recuperação mais acentuada que o inicialmente previsto. O Brasil segue na mesma direção”, compara o relatório da equipe chefiada por Ana Paula Vescovi.

“Em função de uma expectativa de queda um pouco menos acentuada na demanda doméstica este ano (-5,4%, contra -7,6% anteriormente), revisamos nossa projeção de superávit em transações correntes de 0,1% do PIB para um déficit de 0,6% do PIB em 2020, ainda próximo ao equilíbrio, e convergindo para um déficit de 1,6% do PIB em 2022, patamar menor relativamente ao do pré-crise”, prevê o relatório do Santander.

Com a reação surpreendente dos setores “tradable” (de bens comercializáveis) e com a extensão do auxílio emergencial com valor reduzido à metade (R$ 300) até dezembro, Ana Paula projeta recuperação mais gradual a partir de 2021, com o nível de atividade voltando ao período anterior ao início dos casos de covid-19 não antes do segundo trimestre de 2022.

“O consumo vem impulsionando a recuperação da atividade, com o avanço dos canais de vendas digitais e com o aumento de renda (as transferências) nos grupos com maior propensão ao consumo de bens. As vendas do varejo (no conceito ampliado, que inclui automóveis) praticamente já voltaram ao patamar pré-crise”, informa o relatório do Santander. “A recuperação do setor de serviços tende a ocorrer mais gradualmente, na esteira da reabertura da economia e da volta dos serviços prestados às famílias, especialmente de educação, saúde, turismo, lazer, entre outras.”

E o que acontece de agora em diante? O corte à metade do valor do auxílio emergencial a ser pago entre este mês e dezembro reduzirá substancialmente o dinheiro que a classe menos favorecida de brasileiros vinha jogando na economia. As transferências implicam expansão da massa ampliada de salários, calcula a equipe de economistas do Santander, em 3,9% neste ano, face a 6,0% de queda se o auxílio não tivesse sido concedido.

Ainda assim, o desemprego alcançará 17 milhões de pessoas no seu pico, em maio de 2021, devendo cair gradualmente para 16 milhões no fim de 2022. Taxa de desemprego registra o número de pessoas à procura de ocupação. Durante a pandemia, por motivos óbvios, trabalhadores desempregados não tinham como buscar vagas.

“A taxa de desemprego sustentar-se-á no patamar acima de 15% até o fim de 2022, por causa da volta gradual de um contingente de trabalhadores procurando emprego após a pandemia”, explica o relatório do Santander. É evidente que vem daí a preocupação do presidente Jair Bolsonaro, da área política de seu governo e de seus aliados no Congresso. A turma já está preocupada com 2022 e, por isso, cometeu o desatino de propor financiar o Renda Cidadã com dinheiro (precatório) que não pertence à Viúva, mas a contribuintes - uma pedalada de fazer corar de inveja o ex-secretário Arno Augustin…

Bolsonaro assumiu o poder em com planos para desidratar o Bolsa Família, programa de transferência de renda bem-sucedido, dotado de aspectos incomuns a esse tipo de iniciativa e desenvolvido genuinamente no Brasil, resultado da colaboração inédita dos entes da Federação - União, Estados e municípios - e de diversos órgãos públicos e copiado em mais de 60 países. Um programa barato - R$ 32 bilhões (menos de 0,5% do PIB) por ano - que vai além da renda básica.


Bruno Boghossian: Bolsonaro prepara terreno para evitar desgaste com fim do auxílio

Presidente lança discurso para os mais pobres e posa de vítima da inação dos políticos

Jair Bolsonaro tentou chutar para o lado a bomba-relógio em que se transformou o auxílio emergencial da pandemia. Preocupado com o impacto que o fim do pagamento deve ter sobre sua popularidade na virada do ano, o presidente fez uma jogada que pode reduzir parte das pressões sobre o Planalto.

O governo havia conseguido a proeza de apresentar um pacote completo de ideias ruins para bancar o novo programa social que deveria atender a uma parte dos beneficiários do auxílio. Depois que todas foram torpedeadas por parlamentares e investidores, Bolsonaro desempenhou seu papel favorito: posou de vítima e encenou um desabafo.

“O tempo está correndo, está o tique-taque aí correndo, está chegando janeiro de 2021. Precisamos de alternativa para aproximadamente 20 milhões de pessoas que não vão ter o que comer a partir de janeiro do ano que vem”, disse, nesta terça (29).

O presidente começou a preparar o terreno para se desviar de desgastes políticos caso a proposta de turbinar o Bolsa Família não saia do papel. Ele reclamou de “críticas monstruosas” aos planos para financiar o novo Renda Cidadã e se queixou da falta de alternativas para o programa –como se houvesse algum outro governo operando na praça.

Na prática, Bolsonaro armou uma cilada para o Congresso. O governo prometeu planos para custear o programa. Depois, apresentou uma proposta fajuta, na forma de um calote disfarçado e de um extravio de verbas da educação. Agora, ele lança a imagem de um presidente que se preocupa com os mais pobres, mas sofre com a inação dos políticos.

É Bolsonaro, no entanto, quem se mostra um mestre na arte de tirar vantagem de sua própria inércia. O presidente abriu mão de discutir as regras o jogo e resolveu mandar recados diretos aos segmentos que ajudaram a impulsionar seus índices de aprovação durante a pandemia. Ele sabe que, entre os brasileiros que fazem a contagem regressiva para o fim do benefício, a origem do dinheiro é o menor dos problemas.


Fernando Exman: A reeleição acima de tudo e de todos

Base aguarda início das nomeações para o primeiro escalão

É perceptível, inclusive para quem vê de fora, quando começa a haver intimidade em um relacionamento. E isso se dá mesmo que a aproximação inicial entre as partes tenha sido conturbada, induzida por costumes ou necessidades momentâneas, e não como um meio de construir uma parceria de longo prazo fundamentada em princípios.

A convivência dá a oportunidade de um lado melhor conhecer as ideias do outro, a forma de agir, os planos. Em público, nem sempre as formalidades são deixadas para trás. Mas, no privado, pretensões individuais abrem espaço para a discussão de projetos comuns, que podem ou não se confirmar no transcorrer do tempo. Eventuais sinais de que o relacionamento se tornará abusivo não tardam a aparecer, para os mais atentos.

O governo Jair Bolsonaro e os partidos aliados vivem um momento assim. Depois de muito desprezar a política, o chefe do Poder Executivo sucumbiu. Percebeu que não teria mais como caminhar sozinho. Ao mesmo tempo, parece querer alguém ao seu lado que aceite se desgastar perante a sociedade em nome de algo maior, o seu governo, assumindo em público responsabilidades naturais do arrimo da família.

O problema do presidente é que a base está acostumada a flertar, lidar com crises e, com frequência, impor sua vontade. Sabe jogar e o vê como mais um político tradicional igual aos seus antecessores. Alguém que também só pensa em sua própria reeleição.

Líderes das siglas aliadas saem das reuniões com o presidente da República e com o ministro da Economia, Paulo Guedes, convencidos de que o governo trabalha neste momento primordialmente para permanecer no poder. Age em função do próximo pleito.

Não da eleição municipal. Em relação a esta, os presidentes e dirigentes das siglas aliadas não nutrem mais expectativas de que poderão contar com uma ampla ajuda de Bolsonaro. Concluíram que ele não irá se arriscar e vincular sua imagem a candidatos que, depois de eleitos, fatalmente enfrentarão severas dificuldades financeiras e operacionais.

Diante da tragédia provocada pela pandemia, as atuais administrações municipais tiveram uma série de dificuldades para combater o novo coronavírus e prover o atendimento aos infectados. A covid-19 se disseminou pelo Brasil e em muitas cidades os serviços de saúde foram testados ao limite.

Por outro lado, os municípios receberam um volume considerável de recursos do governo central. O auxílio emergencial garantiu a manutenção de diversos negócios locais e ampliou a arrecadação dos entes federados.

Isso não deve se repetir, ao menos nos patamares vistos atualmente, a partir de janeiro de 2021. O futuro dos próximos prefeitos é incerto. Bolsonaro não quer, a princípio, colar sua sorte à deles e depois ser cobrado.

Mesmo assim, tem seus candidatos e analisa a possibilidade de entrar para valer pelo menos nas campanhas de São Paulo, Santos e Manaus. Acha que terá capacidade de influenciar a vitória de aliados e minar o poder de adversários. Isso sem falar na publicação nas redes sociais de um santinho virtual do seu filho Carlos, embora neste caso seja difícil saber se a postagem é obra do presidente ou do próprio vereador que tenta a reeleição e possui franco acesso às senhas do pai.

Essa opção dúbia em relação à eleição municipal não deve criar maiores problemas com a base. O que chama a atenção dos aliados é a mensagem passada, pelo presidente e por seus principais auxiliares, de que a política definitivamente passou à frente da economia na fila de prioridades.

As discussões sobre a reforma administrativa ficaram em segundo plano. O Executivo enviou-a ao Congresso depois de grande relutância do próprio presidente, em razão justamente da impopularidade da iniciativa, e agora tenta se desincumbir da missão de aglutinar esforços para aprová-la. Sua promulgação seria um compromisso da classe política com a redução do tamanho e a modernização do Estado, mas é algo sequer cogitado para este ano.

O mesmo ocorre com as conversas sobre a reforma tributária. Com os líderes, os representantes do governo preferem concentrar o diálogo na necessidade de instituição de uma nova CPMF e, claro, na criação do Renda Cidadã.

A meta do governo é se aproximar de uma parcela da população que jamais esteve com Bolsonaro, transformando cidadãos até então invisíveis aos olhos de Brasília em eleitores de carne e osso na campanha de 2022. “Com o pobre, é dinheiro na veia”, acostumaram-se a ouvir os congressistas aliados em reuniões na Esplanada dos Ministérios e nos palácios presidenciais.

A princípio, o plano não desagrada quem está no barco. Em relação ao teto de gastos, o discurso oficial continuará a ser que não haverá flexibilização da âncora fiscal, mesmo que o uso de recursos do Fundeb para financiar o Renda Cidadã seja apontado como um subterfúgio.

O governo acabou dando uma bandeira à oposição, acanhada e desarticulada desde o início do mandato, na defesa da educação. Em contrapartida, pode deixar para a oposição a inglória missão de defender sozinha o pleno respeito às regras fiscais, tanto no Congresso quanto no Judiciário. No passado, PT e outros partidos de esquerda apelidaram a proposta de emenda constitucional do teto de gastos de “PEC da Morte”, mas agora dependem dela para evitar a expansão do bolsonarismo.

Já a base aceita discutir a criação de um novo imposto sobre transações financeiras depois do pleito municipal. Quer ser municiada pelo governo com informações que possam ajudar a atenuar as resistências da sociedade, mas também espera receber alguns regalos. É grande a expectativa com o início da abertura de negociações para as indicações políticas ao primeiro escalão do governo. Líderes esperam que isso ocorra depois da disputa municipal ou, no máximo, após as eleições para as mesas diretoras da Câmara e do Senado.


Rosângela Bittar: O espectador

Jair Bolsonaro é espectador do seu governo. Assiste, sem sinais de compromisso

Uma parábola: naquela noite, sem pandemia, João Carlos, o Bulha, saudoso amigo, acompanhou com o olhar a entrada acintosa de jovens penetras em sua festa de aniversário, no Lago Sul. Com a voz abafada pelo som, batizou-os, às gargalhadas. Os Dezoito do Forte. E abordou o último deles, com a piada pronta. “Isto aqui está uma droga, sabe quem é o dono da casa e onde fica a bebida?” “Não”, respondeu-lhe o invasor, “mas vou saber e te aviso”. E misturou-se, tranquilamente, aos convidados.

Um governo: Jair Bolsonaro é espectador do que se passa em seu governo. Assiste a um espetáculo de palco e picadeiro sem sinais de compromisso. Os ministros se movimentam. Ele aplaude ou critica, desqualifica ou aprova, fecha a cara para um, abre a cara para outro. Aproxima-se de quem julga capaz de modular, afasta-se de quem manifesta opinião própria.

Nada de homogeneidade. Nem de fundamentos teóricos. O governo é uma obra aberta, experimental. O presidente gosta ou não gosta. Para formar opinião, inspira-se nas redes, onde é manobrado por 50 minorias. Daí as incoerências.

Na cena de segunda-feira, viu-se uma performance clássica. A do fiasco técnico sobre como financiar um programa eleitoral de renda mínima com pedalada precatória. Bem como, no mesmo cenário, o adiamento da reforma tributária, que embutia, para ver se colava, aumento de imposto. A ameaça de calote ficou na conta do ministro da Economia; o ônus da reforma, transferido ao Congresso, a quem cabe agora, por decisão do espectador, assumir autoria das maldades fiscais. Bolsonaro, isento de tudo, celebra a popularidade crescente.

Os atores ideológicos continuam seu show. Cenas de quinta categoria. O presidente puxa aplausos aos novos e antigos canastrões. Abraham Weintraub pode exibir contracheques em dólar do Banco Mundial, de onde envia vulgaridades às redes, enquanto o irmão, Arthur, pode acenar aos invejosos com os dois cargos que ganhou da OEA em menos de um mês.
Ficaram para trás o MEC, o quarto ministro e o enredo que salta do drama à tragédia. Descompostura política e impostura administrativa.

Na Saúde, faz-se uma releitura surpreendente da realidade. Com todos os equívocos já produzidos na pandemia, o leigo critica os profissionais ao revelar que a recomendação “fique em casa” não era apelo ao isolamento social, como parecia óbvio. Firmou o absurdo, no discurso de posse, que se tratava de campanha dos seus antecessores para o doente não procurar tratamento. O que, só agora, ele e o novo protocolo aconselham. A todos, a sua dose de cloroquina. Tudo o que o presidente quer.

A Cultura abandonou a cortina nazista do holocausto e o conformismo com a ditadura militar para desembocar num acampamento de extraterrestres aduladores. O presidente, homenageado, não se avexa.

Na penúltima de suas expedições contra a natureza, em que condena à destruição restingas e manguezais, o ministro do Meio Ambiente seguiu seu conhecido destino: um passo em falso após o outro. E, nas Relações Exteriores, prossegue-se na predação da arte do Barão do Rio Branco. Com direito a afagos presidenciais.

O espetáculo não flui, também, fora do eixo ideológico. O conflito do INSS com os peritos expõe a degradante situação dos trabalhadores. Minas e Energia sumiu. Infraestrutura está sem meios. E até o agronegócio, produtivo e eficaz, sofre os efeitos da insanidade diplomática. Nem com a reforma da Previdência, conquista única, o presidente espectador se engajou.

O problema é que não se trata de faz de conta, mas de um país e seus 210 milhões de habitantes. Com efeitos especiais e clima de apoteose, Bolsonaro, indiferente aos resultados, pensa apenas na sua razão de governar o primeiro mandato: a reeleição, para ser espectador do segundo.


Vinicius Torres Freire: Pedalada de Bolsonaro acelera a piora das condições financeira do país

Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior

A Bolsa de São Paulo subia pouco antes de o governo anunciar seu projeto ciclístico, na segunda-feira. Desde que se soube da pedalada Bolsonaro-Guedes, a virada do Ibovespa foi de mais 5%. Desde o pico recente de 29 de julho, o principal índice de ações da bolsa perdeu mais de 11%.

E daí? O preço das ações depende também das taxas de juros, em alta desde inícios de setembro e que deram um salto desde o anúncio da pedalada do Renda Cidadã (a moratória dos precatórios e a mão grande no dinheiro do Fundeb). Deram um salto e continuam penduradas no galho. Até as taxas de prazos mais curtos, de um ano, ficaram salgadas.

Em geral, o preço das ações em baixa é um desestímulo para empresas que pensam em vender mais ações ou abrir capital (grosso modo, ninguém quer partilhar sua expectativa de lucros a preço de banana). É a manifestação de um sintoma mais extenso de cautela ou de retranca mesmo. Capital mais caro, é óbvio, desestimula investimentos, expansão dos negócios.

Claro que esses indicadores podem mudar em minutos, para baixo ou para cima. Um dia ou uma semana de remelexos ou mesmo de paniquitos do mercado financeiro não dizem grande coisa. No entanto, uns dois ou três meses de aperto das condições financeiras bastam para começar a engrossar o caldo da economia. “Condições financeiras”: juros, Bolsa, dólar, risco país etc.

Faz um mês que a situação anda malparada. Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior. Quanto mais durar o passeio ciclístico da dívida proposto pelo governismo, mais o caldo engrossa. Como se não bastasse a pedalada, o governo também criou encrenca na reforma tributária. Talvez se desperdice o resto escasso de tempo parlamentar deste ano, que será encurtado em um mês pela eleição, em novembro.

Até a noite desta terça-feira, o governismo (Bolsonaro, Guedes e centrão) estava decidido a tocar a ideia de financiar o Renda Cidadã com a moratória de precatórios, embora já tentassem inventar algum outro malabarismo, o que põe mais lenha no fogão. Dada a rejeição da CPMF de Paulo Guedes, Bolsonaro resolveu melar o jogo da reforma tributária até praticamente dezembro (embora, decidido e organizado como seja, possa mudar de ideia amanhã).

A pedalada e a cera na reforma tributária criaram e criarão mais conflitos na Câmara, que é a única entidade que toca de fato as “reformas”.

É evidente, portanto, o risco de que tenhamos mais dois meses de tensão ou paralisia decisória, se não coisa pior. No que diz respeito às “condições financeiras” tanto faz se a gente é adepta ou adversária das “reformas”. Esse rebuliço ignaro do governo sempre lasca algum crescimento econômico.

As reviravoltas políticas e inépcias do governo em geral balançam excessivamente o barco. O preço do dólar depende um bom tanto de jogatina ou de especulações, mas a tensão das peripécias birutas contribui para a volatilidade. O dólar foi a quase R$ 5,90 em maio, baixou a R$ 4,82 no início de junho e está de volta à casa dos R$ 5,60, variações próximas da ordem de 20% em semanas. Isso não presta.

Taxas de juros de longo prazo mais altas prejudicam o financiamento da dívida do governo, que tem de pagar mais o encurtar o prazo, o que está acontecendo de modo preocupante. Pode até parecer que não esteja acontecendo algo de especialmente grave, para as pessoas normais, que não se ocupam disso no dia a dia. Mas esses problemas são veneno em dose pequena e constante: em um certo momento, iremos para o hospital.


Monica De Bolle: As eleições nos EUA

Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro

Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.

A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.

Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.

A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.

Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?

É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Ruy Castro: Liberdade para se deixar exterminar

Bolsonaro diz que os índios estão cada vez mais iguais a ele. Se for, que destino terrível

Em live na última quinta-feira (24), Jair Bolsonaro declarou que o índio "evoluído" deveria ter "mais liberdade sobre sua terra". Ao seu lado, o destruidor do Meio Ambiente, Ricardo Salles, dava seu aval à ignorância presidencial. Essa fala ecoou uma anterior, de janeiro, em que Bolsonaro disse: "Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer".

A gente quem, cara-pálida? Nenhum antropólogo digno de seu diploma concordará com uma só de suas palavras. A "evolução" que Bolsonaro atribui ao índio é a de expor-se de vez às mazelas da civilização, como doenças, alcoolismo e mendicância. A "liberdade" que visa conceder-lhe, ao torná-lo "dono da sua terra", é a de deixar-se tapear e exterminar pelos invasores, pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, grileiros, jagunços e outras categorias de quem ele, Bolsonaro, é tão próximo.

Atribuir à ignorância a política mortal de Bolsonaro para o índio é quase um gesto de boa vontade. Supõe que ela se deva apenas ao seu bestial desconhecimento do assunto —um dia saberemos. Mas espanta que os generais que sustentam seu governo tenham esquecido os ensinamentos de um homem que, até há pouco, era um de seus modelos: o marechal Candido Rondon.

"Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir nem aproveitar essa gente", disse Rondon em 1912, pela voz de outro grande brasileiro, Edgard Roquette-Pinto. "Não devemos ter a preocupação de fazê-los cidadãos do Brasil. Índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados, dos indigentes e dos enfermos".

Para Bolsonaro, o índio é "cada vez mais" um ser humano "igual a ele". Se isso for verdade, que destino terrível.

*Ruy Castro, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Elio Gaspari: Mandetta contou quase tudo

Como em todo livro de memórias, ele fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta publicou suas memórias do poder. O livro chama-se “Um paciente chamado Brasil”. Seria mais preciso denominá-lo “Dois pacientes chamados Bolsonaro e Mandetta”.

Mandetta ficou 16 meses no Ministério da Saúde, teve um desempenho estelar durante a pandemia e acabou demitido por suas virtudes e por defeitos alheios. Como em todo livro de memórias, fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal: Bolsonaro, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni, nessa ordem.

Sua análise do comportamento do capitão diante da pandemia é exemplar. Médico, ele pensou em ser psiquiatra e cursou um ano dessa matéria, até se decidir pela ortopedia. Diante da Covid, Bolsonaro passou por três fases de manual. Primeiro a negação (“uma gripezinha”), depois a raiva do médico (Mandetta), finalmente o milagre (a cloroquina). É um retrato perfeito, no qual o médico-ministro tenta mostrar ao presidente o tamanho do problema, não consegue ser ouvido e entra num desastroso processo de fritura. Quando avisava que poderiam morrer mais de cem mil pessoas, os áulicos contavam ao presidente que essa conta era exagerada. Seria coisa de quem queria derrubar o governo. Quem? O embaixador chinês.

O paciente Bolsonaro está exposto com precisão. Já o paciente Mandetta precisa ser decifrado pelos leitores. O ministro Mandetta endossou todos os procedimentos corretos para o controle do vírus, já o ex-deputado Mandetta (DEM-MS) foi temerário, metendo-se onde se meteu.

Entrou para um governo que prometia um ministério técnico, livre de quaisquer influências. Mandetta tinha duas semanas na cadeira quando foi informado de que o palácio queria a cabeça de quatro de seus colaboradores. Vá lá que houvesse motivo, mas ele informa: “Quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”. Basta.

Mandetta conta que, em 2016, o deputado Onyx Lorenzoni gravou uma conversa de parlamentares na casa de Rodrigo Maia. Deve-se a ele essa revelação, indicativa dos métodos do atual ministro da Cidadania. Pela sua narrativa, “ele tirou o celular do bolso e me disse: ‘Ouve isso’ ”.

“Você gravou escondido a reunião?, perguntei. Ele respondeu que havia gravado sem querer.”

Tudo bem, mas por que chamou-o para ouvir o grampo? Mandetta guardou essa história por quatro anos. Lorenzoni estava com o deputado num passeio de barco no final de 2018, quando o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, obteve de Flávio Bolsonaro a promessa de que ele seria o ministro da Saúde. (Os filhos de Bolsonaro são mostrados no livro como patronos do gabinete do ódio, mas pode-se dizer tudo deles, menos que tenham radicalizado suas ideias só depois da eleição do pai.)

O livro de Mandetta é o primeiro retrato da disfuncionalidade do capitão na Presidência e vai além. Mostra Paulo Guedes tonitruante contra o adiamento da remarcação do preço dos remédios (“não admito tabelamento”), sem saber que os fármacos são tabelados. O bate-boca dos dois ministros é um dos bons momentos do livro.

Feitas as contas, Mandetta entrou mal no ministério e saiu bem. Seu sucessor, Nelson Teich, cometeu o mesmo erro, mas conseguiu sair melhor porque foi-se embora em apenas 28 dias.


Bernardo Mello Franco: Soldados de Bolsonaro

Jair Bolsonaro jurou que não se envolveria nas eleições municipais. Bastaram três dias de campanha para ver que essa promessa também ficará pelo caminho.

Embora não tenha conseguido criar seu próprio partido, o presidente já mergulhou nas duas disputas mais importantes do país. No Rio e em São Paulo, vai apoiar candidatos do Republicanos (ex-PRB), sigla do centrão ligada à Igreja Universal.

Na capital paulista, Celso Russomanno iniciou a campanha com uma visita a Bolsonaro no hospital. Ontem usou a primeira agenda de rua para prestar continência ao capitão. Disse que ele foi o único político a “estender a mão” aos pobres na pandemia.

Ao oficializar a chapa, o deputado já havia exaltado o trinômio “Deus, Pátria e Família”. O lema pertenceu ao integralismo e foi ressuscitado pelo bolsonarismo, neto bastardo do movimento de ultradireita dos anos 1930.

No Rio, Crivella já deixou claro que fará de tudo para colar na imagem de Bolsonaro. No fim de semana, ele divulgou uma fotomontagem ao lado do presidente. Ontem sua campanha lançou o slogan “Bolsocriva”.

O truque é uma imitação canhestra do “Bolsodoria”, usado por João Doria na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. Em 2018, a fusão de sobrenomes funcionou. Agora ninguém atreve a convidar governador e presidente para o mesmo palanque.

Derrotar o PSDB de Doria é a obsessão de Bolsonaro em São Paulo. Por isso o presidente montou na sela de Russomanno, que ganhou fama de cavalo paraguaio em eleições paulistanas. Em 2012 e 2016, ele largou na frente e acabou fora do segundo turno. Agora conta com a ajuda do Planalto para se manter no páreo até o fim.

No comitê de Crivella, a aliança é vista como tábua de salvação. Mal avaliado pelos cariocas, o prefeito tentará nacionalizar a disputa e deslocar o debate para temas de comportamento.

Russomanno e Crivella estão longe de serem bolsonaristas de raiz. Os dois apoiaram Dilma Rousseff, e o bispo chegou a ser ministro da ex-presidente petista. O capitão sabe disso, mas precisa de soldados dispostos a defendê-lo.


Merval Pereira: Paulo Guedes em seu labirinto

Aquela cena em que o ministro da Economia Paulo Guedes foi gentilmente retirado de uma entrevista pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos e pelo líder do governo Ricardo Barros revelou, por imperícia dos dois primeiros, a desavença interna entre os assessores mais próximos do presidente Bolsonaro.

Sem se preocupar com as aparências, o líder Ricardo Barros explicitou dias depois, durante a apresentação do desastrado arranjo feito para bancar o Renda Cidadã, como se desenrola o processo de decisão no governo hoje. O ministro Paulo Guedes representa a opinião da Economia, já não a do governo, perdendo formalmente a qualidade de superministro.

Barros e o ministro Ramos negociam com os partidos da base em nome do governo, levando em conta variáveis além da visão econômica. O consenso político é então levado para o presidente Bolsonaro, que bate o martelo. Foi assim que se deu a decisão sobre usar os precatórios e o Fundeb para financiar o Renda Cidadã, e a confusão foi geral.

A perda de prestígio interno de Paulo Guedes é tamanha que foi Ricardo Barros quem conversou com representantes do mercado financeiro para tentar acalmá-los. Não deu certo, claro, porque não há como explicar que truques contábeis não são truques para especialistas em contas. Um dos participantes resumiu a situação trágica: “O líder do governo parece não ter noção da gravidade da situação”.

Nem Barros, nem Bolsonaro, que abriram mão do Posto Ipiranga para assumir uma negociação que não pode ser meramente política, pois envolve o equilíbrio fiscal do país, já sob o escrutínio dos investidores, nacionais e internacionais. A desavença interna no governo foi explicitada ontem pelo secretário do Tesouro Bruno Funchal, que advertiu que a reação do mercado financeiro à proposta de rolar precatórios para financiar o Renda Cidadã é um “alerta” que deve ser considerado na discussão da medida.

Espantoso que já não tivesse sido antes. Para Funchal, a reação dos agentes econômicos em geral à “solução política apresentada” demonstra que será preciso “mostrar o que significa isso, qual é a repercussão que tem”. Uma maneira sutil, mas contundente, de dizer que a solução foi “política”, não econômica, e que a repercussão negativa precisa ser levada em conta no debate.

Já há alternativas sendo consideradas, uma delas seria redirecionar os recursos dos fundos públicos que foram extintos, cerca de R$ 220 bilhões, para o financiamento do Renda Cidadã, e não para o abatimento da dívida pública, como estava previsto. Essa solução também parece não oferecer segurança aos investidores.

Primeiro, porque vai deixar de abater a dívida pública para financiar outro tipo de dívida, de caráter permanente. O governo continuará sem ter uma renda permanente no Orçamento para custear a nova despesa, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como todas as fontes de recursos são eventuais, a única saída do governo seria criar o Renda Cidadã por um período, e tentar renová-lo periodicamente. Seria, no entanto, uma manobra arriscada, pois é praticamente impossível extinguir um programa social desse porte.

O que o governo precisa fazer é uma reforma verdadeira na sua administração para encontrar espaço para financiar programas sociais e investimentos que gerem empregos e renda. Quando o presidente Bolsonaro teve aquele ataque, e foi para as redes sociais dizer que não queria mais ouvir sobre a Renda Brasil, proibindo que a proposta do ministro Guedes de desindexar a economia fosse discutida, perdeu o que parece ser a única saída para a falta de caixa.

O objetivo da desindexação é romper o engessamento do Orçamento de mais de 2/3 dos gastos que são obrigatórios. O debate tendo sido interditado por Bolsonaro, a busca de dinheiro para o novo programa social entra em um labirinto em que Paulo Guedes está perdido, sem o fio de Ariadne.