Day: junho 20, 2020

Marcus Pestana: Estabilidade política e superação da crise

Para o sucesso do país na superação da pandemia e no enfretamento da grave recessão que se desenha no horizonte, um fator é fundamental: a estabilidade política. Por vezes, parece que estamos inacreditavelmente engolfados numa verdadeira marcha da insensatez em meio a uma tempestade quase perfeita.

Os últimos acontecimentos parecem fazer parte de um roteiro de thriller político povoado de fantasmas e ameaças, que tendem a intranquilizar a população, espantar investidores, desestabilizar a economia e tornar ainda mais complexa uma situação já dificílima.

Mantida a marcha atual dos acontecimentos podemos cair no buraco negro de um impasse. Todo impasse requer solução. E não há solução à vista. Seriam quatro os cenários possíveis de desdobramento da crise política.

O primeiro, o fantasma do autogolpe reproduzindo processos que ocorreram na Venezuela, Peru, Itália e Alemanha. Não me parece factível dada às reiteradas manifestações das Forças Armadas em torno da defesa da Constituição e da democracia. O próprio Presidente Bolsonaro, em solenidade recente, reafirmou o compromisso com a estabilidade constitucional, apesar de suas permanentes inquietações retóricas e de espírito.

O segundo seria o impedimento do Presidente pelo Congresso Nacional como ocorreu com Collor e Dilma, revelando a rigidez do sistema presidencialista. Não me parece que esta alternativa esteja na ordem do dia. A caracterização inequívoca de crime de responsabilidade não é questão trivial, não há maioria parlamentar a favor do impeachment e a não há ainda o necessário apoio popular a esta alternativa.

Em terceiro lugar, poderia ocorrer o afastamento do Presidente por via judicial como desdobramento dos inquéritos abertos na órbita do STF ou dos processos em análise na justiça eleitoral. Também não acredito nesta solução imediata. Os processos judiciais são longos e creio que o Judiciário, exceto se for encontrada nas investigações alguma fratura exposta, não apostará numa confrontação definitiva.

Resta o impasse no impasse, na falta de alternativa viável e factível, o quarto cenário seria um empurrar com a barriga até 2022, aos trancos e barrancos, com crises semanais a serem administradas, e sem um rumo claro na economia e nas diversas políticas públicas. Hoje – porque a história é feita também de acidentes de percurso - é o cenário mais provável. Mas o Brasil suportará?

Precisamos rapidamente atrair investimentos para reverter a profunda recessão que se avizinha e alavancar a retomada do crescimento, gerando empregos e renda para a população. O setor público encontra-se mergulhado em profunda crise fiscal, situação agravada com a pandemia, e não será o investimento público que protagonizará a retomada.

A retomada virá necessariamente do investimento privado. Mas não bastam bons fundamentos macroeconômicos, o sucesso nesta empreitada depende do ambiente institucional gerar confiança, expectativas positivas, noção de que há um rumo, segurança jurídica e estabilidade legal, regulatória e contratual. Isto está muito longe em nosso enredo de thriller político assustador.

Por hora, cabe a todos nós construir a maior convergência possível em torno da defesa da Constituição, de suas instituições democráticas e da democracia ameaçada. Não é tudo, mas já é muito.


José Roberto Batochio: A democracia convoca seus defensores

Inoculado o mal, o remédio para tantas ofensas a ela será sempre a resistência

“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”
Benjamin Franklin, no ‘Almanaque do Pobre Ricardo’

Uma das inteligências mais portentosas de seu tempo, Benjamin Franklin não só dominou a eletricidade como iluminou o caminho do homem pela saga virtuosa da liberdade. De suas numerosas contribuições ao progresso da humanidade há a destacar a colaboração para o texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, um dos documentos-síntese da grande marcha humana pela igualdade, fraternidade e liberdade, que, avant la lettre, 13 anos depois inspiraria a Revolução Francesa. Um dos brasileiros que mais se identificaram com Franklin em sua época, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, foi além ao afirmar que “a liberdade é um bem que não se pode perder senão com a vida”.

A democracia evoluiu desde então, com salvaguardas que garantem a vida comunitária ao mesmo tempo livre e em segurança. Porém, como todo núcleo e toda fonte de valores civilizatórios, o sistema democrático está sempre exposto à corrosão do mal – com a particularidade de, malgrado sua enorme resistência, estar sujeito a recaídas. Nem sempre se imuniza como um corpo resiliente, isto é, não retorna imediatamente ao estado original depois de sofrer ele uma ação deformadora. Daí, como diz o bordão, a necessidade da eterna vigilância.

Nossos tempos e costumes estão repletos de tais abusos e usurpações. Levantamento do V-Dem, o Instituto de Variações da Democracia, observatório da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, registra que pela primeira vez no idealizado século 21 a democracia se mostra em minoria no mundo. Enquanto 87 nações vicejam no regime democrático, 92 definham sob o tacão autoritário – e o Brasil corre o risco de passar do primeiro para o segundo grupo.

Se há turbas nas ruas dispostas a cair na armadilha denunciada por Benjamin Franklin, é também a vez de os democratas de raiz se inspirarem em José Bonifácio e defenderem o Estado Democrático de Direito. Depois da redemocratização de 1985, ingressamos no período mais longo de amplas liberdades democráticas de nossa História, mas hoje corremos o risco de retroceder a um obscuro autoritarismo. A grosseria antirrepublicana que cultiva a autocracia galgada pela facção fundamentalista encastelada no Poder Executivo almeja a concentração da autoridade quando agride outros Poderes, pisoteia a Constituição, malversa a lei como expressão da vontade comum e exclui do aparelho de Estado a legalidade administrativa.

A usina de irregularidades age em moto-contínuo, forjando deformidades como medidas provisórias restritivas da liberdade, redução da transparência nos assuntos de Estado, concessão a agentes públicos do direito de matar impunemente – e os acontecimentos de Minneapolis mostram o perigo dessa licenciosidade. Assistimos ainda ao desvio de função das instituições republicanas à vista de interesses de familiares, intimidação de correligionários e perseguição de adversários, anúncio de formação de milícias, hostilidade à imprensa profissional e incentivo à horda robótica que inventa e calunia à sorrelfa no submundo digital, agressões a minorias, celebração de episódios e figuras ditatoriais do passado, tendo como ápice dessa trajetória insana o confronto com o Judiciário, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, em ações de desprezo e afronta ao ordenamento jurídico nacional típicas de republiquetas de banana. A disrupção antidemocrática em nossos dias é um processo de mil tentáculos, tecido lentamente, não mais abrupto como no tempo dos tanques inopinadamente amanhecidos ante a Nação surpreendida.

Não bastassem tantos despautérios, salta aos olhos o flagrante despreparo do governo para conduzir um país de tamanhos complexidade e desafios. Assim como lhe falta um atributo que confere a regimes autoritários algum apoio popular, ou seja, a forja de crescimento econômico que anestesia a liberdade em parcelas da população, como aconteceu no nazi-fascismo na Europa e, entre nós, no Estado Novo e em fases da ditadura de 64. Ao contrário, aumentam a precarização da economia, o obsoletismo da indústria, a devastação do meio ambiente, a hostilidade a importantes parceiros comerciais, o descrédito internacional, a desconfiança dos investidores e, de quebra, a desigualdade social e indigência de amplas parcelas da população – chaga agravada pela pandemia, minimizada como “gripezinha”. As patas do cavalo de Átila não fariam maior estrago.

Inoculado o mal, o remédio para tantas ofensas à democracia será sempre a resistência, como, por sinal, indicou a Declaração da Independência americana, que Franklin ajudou a redigir e inspirou Bonifácio, no Brasil. Ainda ecoa eloquente seu alerta de que na vigência de uma forma de governo abusiva e usurpadora dos princípios da ordem e da liberdade “cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo”.

Com a palavra, os verdadeiramente democratas.

*José Roberto Batochio é advogado criminalista, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado pelo PDT-SP.


Bolívar Lamounier: Pensando o impensável

Resultado mais provável da ruptura da ordem parece-me ser um longo período de anarquia

Um momento histórico que eu gostaria de ter presenciado aconteceu no dia 1.º de novembro de 1944: um breve encontro entre o ministro da Justiça, Marcondes Filho, e o general Eurico Dutra. O relato está no ótimo livro de Paulo Brandi Vargas: da Vida para a História (Zahar, 1985, pág. 178).

Desde a entrada do Brasil na guerra contra o fascismo, Getúlio pressentia que não conseguiria manter sua ditadura. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros desafiou a censura e escancarou o debate sobre a redemocratização. A presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, com apoio dos Estados Unidos, apontava para um ponto sem retorno. Nos meses seguintes, a pressão contra Getúlio alastrou-se rapidamente nas Forças Armadas. No final de outubro os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra procuraram-no para insistirem na convocação de eleições. Getúlio aquiescia sem aquiescer. Cogitava de transitar para um regime híbrido, cujo comando permanecesse em suas mãos. Foi nessa altura que se deu o encontro de Marcondes Filho com o general Eurico Dutra.

O ministro havia rascunhado um projeto de lei eleitoral de teor corporativista, ou seja, baseado na representação por categorias profissionais, formato característico da tradição fascista. Foi quando, respondendo a Marcondes Filho, Eurico Dutra disse-lhe, curto e grosso: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo…”.

O referido momento parece-me assinalar com clareza a opção das Forças Armadas por uma identidade propriamente de Estado, impessoal, baseada na hierarquia e na disciplina, com a consequente rejeição do modelo de uma guarda pretoriana, ou seja, de uma milícia a serviço de um caudilho qualquer.

Mas tal modelo não era isento de problemas. Nos anos 30, sob a decisiva influência do general Góes Monteiro, ganhou corpo o modelo de uma organização tutelar, destinada não somente à defesa externa do País, mas legitimada para também atuar sponte sua no plano interno.

Os apontamentos acima ajudam a compreender o artigo 142 da Constituição de 1988, que alguns juristas chegam a interpretar até mesmo como uma autorização para as Forças Armadas atuarem como um Poder Moderador, dirimindo impasses entre os três Poderes. Não chego a tanto, mas, de certa forma, vou além, pois, no trecho a seguir, tal artigo me parece virtualmente ininterpretável: “…(as Forças Armadas) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O trecho grifado admite a esdrúxula hipótese de as Forças Armadas – no tocante à manutenção da lei e da ordem no plano interno – serem convocadas por dois ou até pelos três Poderes ao mesmo tempo. Considerando, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, instância última, portanto, da legitimidade política, cabe a ele esclarecer quando e em que termos as Forças podem ser convocadas – uma rima que em nada melhora o soneto.

A questão acima suscitada parece-me assumir contornos graves no presente momento, visto que agora não se trata de um imbróglio constitucional em abstrato, mas de uma conjuntura que muitos têm descrito como uma “tempestade perfeita”: em meio a uma terrível epidemia e a uma crise econômica sem precedentes, temos tido frequentes atritos entre os Poderes e um presidente da República pouco propenso a observar os limites e a liturgia do cargo que ocupa. Como se não bastasse, as Forças Armadas assumiram uma presença excessiva no Executivo, emprestando-lhe, por conseguinte, uma legitimidade que cedo ou tarde reduzirá a estima em que são tidas pela sociedade brasileira.

Acrescente-se que o protagonismo apaziguador do Legislativo esbarra em severos limites no presente momento, uma vez que a composição do Congresso Nacional ainda deixa a desejar, não obstante as reformas que se tem tentado fazer.

Por último, mas não menos importante, é preciso levar em conta o clima de radicalização, acentuado a partir das eleições de 2018, e os frequentes apelos que certos setores têm feito no sentido não só de tumultuar, mas efetivamente de solapar o regime democrático, exigindo alguma forma de intervenção militar. Um ponto fundamental que tais setores não parecem compreender é que o Brasil de 2020 é muito diferente do de 1964. Naquele ano, bastou às Forças Armadas prender umas poucas centenas de pessoas para assumirem o controle do País. Hoje a população brasileira é muito maior, está concentrada em grandes cidades e é muito mais diversificada, politizada e atenta. Mercê dos meios eletrônicos de comunicação, consegue se mobilizar com extrema facilidade. Tais mudanças não necessariamente conferem vantagem a algum dos grupos que se digladiem num hipotético confronto, até porque o resultado mais provável de qualquer ruptura da ordem parece-me ser um prolongado período de anarquia, ao fim da qual tudo estará mais ou menos na mesma, só que muito pior.

  • Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultores e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Julianna Sofia: Criar meta para dívida pública é diversionismo

Guedes e seu time oscilam entre respostas escalafobéticas e ausência de planos

A equipe econômica segue obstinada em dar sinais aos investidores de que não arreda o pé de sua cruzada fiscalista. Em apuros para cumprir os parâmetros que hoje regem a gestão das contas públicas, propõem os defensores do pensamento único --e liberal-- criar mais uma regra para orientar a política fiscal. O plano é definir meta para a dívida do setor público.

Indispensáveis, os gastos para atenuar o impacto da pandemia na vida das famílias e das empresas devem levar o endividamento a quase 100% do PIB. Nada que não esteja ocorrendo mundo afora. Mas o raquitismo crônico da economia brasileira e a instabilidade política alimentada diariamente pelo ocupante do Palácio do Planalto completam o vórtice a nos tragar.

A proposta ventilada pelo Ministério da Economia é estabelecer gatilhos para redução da dívida a partir de 2021, fixando patamares em escadinha. A venda de ativos e de parte das reservas internacionais garantiria o abatimento inicial.

Se norma ou meta fossem solução, as contas do país resplandeceriam no azul anil. Há teto de gastos, resultado primário e regra de ouro, todas a perigo.

Na falta de diagnósticos claros e de previsões realistas frente à crise que arrasta o planeta, Paulo Guedes e seu time oscilam entre respostas escalafobéticas e ausência de planos, enquanto entoam o mantra das reformas liberalizantes.

Em março, o ministro traçou como cenário mais dramático para o PIB um avanço de apenas 1% com a pandemia. Seus auxiliares chegaram a dizer que o calor brasileiro conteria a propagação do vírus. Hoje, o ministério projeta retração de 4,7%, enquanto há consenso sobre um mergulho além de 7%.

"Estamos finalizando os nossos programas emergenciais e voltando para as reformas. E nos próximos 60, 90 dias, vamos acelerar", disse nesta semana. Para o ministro, sem o avanço das mudanças estruturais, o Brasil caminhará para uma depressão.

Não há de ser por falta de metas.


Demétrio Magnoli: Cooptação em massa de oficiais da reserva ameaça fragmentar dique institucional

"Vai ter golpe?", indagou-me um amigo dileto pouco tempo atrás. Retruquei com uma negativa convicta: a geração atual de comandantes das Forças Armadas aprenderam com a história e não repetirão, como farsa, a tragédia de 1964.

"Vai ter putsch?", meu amigo pergunta agora. Respondi-lhe com mais um "não", acompanhado por argumentos razoáveis. Contudo, pensando melhor, acho que perdi uma parte da paisagem.

Putsch é um intento golpista fadado, de antemão, ao fracasso. No célebre Putsch da Cervejaria de Munique (1923), Hitler e seus seguidores não obtiveram o esperado apoio de setores do Exército ou da polícia da Baviera.

Mas aquela escória nazista, forjada no caldeirão fervente da derrota alemã na guerra europeia, mostrou-se disposta a combater e morrer de verdade. Já a escória de fanáticos bolsonaristas é feita do material lânguido fabricado pelas redes sociais. Deles, nada surgirá, exceto ameaças anônimas digitadas a distância ou fogos de artifício numa esplanada deserta.

A fuga de Weintraub rumo a uma bem remunerada diretoria inútil do Banco Mundial comprova, para quem ainda nutria dúvidas, que esses cachorros barulhentos não mordem. A parte que perdi da paisagem é outra. Até que ponto o bolsonarismo conseguirá limar a disciplina militar?

O fenômeno mais saliente é a ação ininterrupta das redes bolsonaristas nos quartéis. A cooptação de militares e policiais para a militância antidemocrática ganhou alento com as publicações de manifestos golpistas de altos oficiais da reserva e a difusão de mensagens dúbias oriundas dos generais do Planalto.

Contudo, paralelamente, desenrola-se um novelo menos visível, mas talvez ainda mais relevante: a militarização extensiva dos altos e médios escalões da administração pública federal. O Ministério da Saúde, ocupado de alto a baixo por militares, ilustra uma tendência generalizada. Nesse passo, generais e coronéis passam a desempenhar funções de intermediários de contratos e compras governamentais. Abrem-se, assim, de par em par, as portas para a incorporação dos militares no ramificado negócio da corrupção estatal.

Dinheiro, muitas vezes, pesa mais que ideologia. No Egito, Hosni Mubarak consolidou seu poder pelo loteamento do aparelho administrativo e das empresas estatais entre os comandantes militares. Quando o ditador tornou-se um fardo político pesado demais, o sistema ditatorial reciclou-se, substituindo-o por Abdel Fatah al-Sisi. Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika operou de modo similar, entregando ao Exército as chaves da economia para estabilizar, por duas décadas, seu regime autoritário.

A ferramenta funciona à direita e à esquerda. Maduro não caiu porque, seguindo a receita cubana, transferiu às Forças Armadas os setores mais lucrativos de uma economia em ruínas: comércio exterior e distribuição de alimentos. Na Bolívia, prova inversa, Evo Morales nunca incluiu o Exército no jogo do capitalismo de estado, o que acabou decidindo seu destino.

O Brasil não é o Egito, Argélia, Cuba ou Venezuela. Por aqui, não se verifica uma transferência das chaves da economia às Forças Armadas. A instituição militar segue separada do governo, circunscrita às suas missões profissionais definidas pela Constituição. Mas a cooptação em massa de oficiais da reserva para a administração pública, elemento do projeto de politização dos homens em armas conduzida pelo bolsonarismo, ameaça fragmentar o dique institucional.

Lá atrás, os generais estrelados cederam à ilusão de que seria possível conciliar o apoio político dos militares ao governo Bolsonaro com a preservação da neutralidade institucional das Forças Armadas. Hoje, quando se fecha o cerco judicial à subversão bolsonarista, a tensão entre esses objetivos incompatíveis atinge temperatura insuportável. Não vai ter golpe. Reúnem-se, porém, as condições para um putsch.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Míriam Leitão: A escalada do vírus entre nós

O Brasil chegou a um milhão de infectados disputando o campeonato de pior país do mundo no combate a pandemia

Um milhão é um número assustador e sabemos que ele é apenas o que está registrado. O Brasil superou esse número de infectados pelo novo coronavírus sem uma luz no fim do túnel. Foram pouco mais de três meses de intensidade vertiginosa, de erros colossais, de tumulto extra produzido pelo próprio presidente da República. O mundo inteiro está aprendendo com a pandemia, alguns países mais rapidamente do que outros.

Para se ter uma ideia da velocidade, e de como a pandemia nos pegou despreparados, um integrante da equipe econômica me disse no começo de março, quando o Brasil tinha quatro infectados, que o país seria pouco afetado. A tese era que o Brasil é fechado, do ponto de vista econômico e comercial. É, de fato, país de muitas barreiras ao comércio e pouco integrado às cadeias globais de produção. Ainda assim tem uma intensa relação com o mundo, muitos voos internacionais, e tem na China o seu maior parceiro comercial.

Talvez baseado nesse diagnóstico, o ministro Paulo Guedes chegou a falar numa entrevista à revista “Veja”, no dia 13 de março, quatro dias antes da primeira morte, que “com R$ 3, R$ 4, R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus. Porque já existe bastante verba na saúde, o que precisaríamos seria de um extra. Mas sem espaço fiscal não dá.” Na semana seguinte, no dia 17, o governo pediu ao Congresso que reconhecesse o estado de calamidade pública. O pedido foi publicado no Diário Oficial do dia 18 e aprovado no Senado no dia 20. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, propôs um “orçamento de guerra”.

O país que não tinha espaço fiscal, três meses depois está com a projeção oficial de déficit de R$ 800 bilhões em 2020. Tudo se precipitou. Os especialistas em políticas sociais alertaram que era preciso criar um programa de renda de emergência, e economistas que sempre defenderam o controle do gasto público disseram que era hora de ampliar, e muito, as despesas. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, numa entrevista que me concedeu no dia 16, havia dito que o governo deveria decretar — como o fez no dia seguinte — calamidade, como o previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

O mundo inteiro foi na tentativa e erro diante desse inimigo desconhecido, invisível, contagioso. Alguns países erraram mais. Nós disputamos o campeonato do pior do mundo, infelizmente. Esse é o preço que o país está pagando pelo negacionismo do presidente.

Bolsonaro fez o que pôde para tornar a vida do país mais difícil na pandemia. Está no terceiro ministro da Saúde desde que ela chegou ao país. Entrou em rota de colisão com o então ministro da Justiça Sergio Moro, que saiu atirando. Os tiros viraram um inquérito no STF em que o presidente é investigado por tentar interferir na Polícia Federal. Participou de manifestações que defenderam o fechamento do Congresso, do Supremo, e um novo AI-5. Uma dessas em frente ao Exército em Brasília, que virou outro inquérito. Fez uma calamitosa reunião ministerial em abril, quando o país já tinha quase três mil mortos, e ele já havia demitido o primeiro ministro da Saúde. Nela, ele não mostra qualquer preocupação com a pandemia, mas sim em armar a população para a luta contra as medidas restritivas impostas por governadores. Criticou todas as regras de prevenção, exibiu-se sem máscara, subestimou os riscos da doença, tentou manipular os dados, estimulou a invasão de hospitais e na última quinta-feira disse que o número real de mortes é 40% menor, baseado em nenhuma evidência.

A revista “Economist” trouxe ontem uma reportagem dizendo que o Reino Unido tem o governo errado para esta doença. Entendo o que quer dizer. Governo faz toda a diferença. Um estudo da Economist Inteligence Unit, sobre os países da OCDE, fez um ranking do desempenho na pandemia. A Alemanha está entre os melhores países, o Reino Unido, entre os piores.

O mundo ainda não sabe o que fazer. Ontem, a Apple anunciou que voltará a fechar 11 lojas em quatro estados americanos. A China teme uma segunda onda, com o aparecimento da doença em Pequim. No Brasil, os governadores começaram a abrir a economia, com maior ou menor grau de precipitação. Alguns já recuam. O país está numa enorme crise institucional, como se não bastasse ter um milhão de infectados por um vírus que a humanidade ainda não sabe como vencer.


Ascânio Seleme: Um homem cada vez mais só

Este é o momento de maior isolamento de Jair Bolsonaro desde o dia 18 de fevereiro de 2018, quando iniciou sua caminhada para a solidão com a demissão de seu primeiro ministro, Gustavo Bebiano da Secretaria-Geral da Presidência. Aos poucos, mas com uma determinação impressionante, que parece um auto flagelo deliberado, o presidente foi construindo muros e destruindo pontes de modo a ficar praticamente ilhado. Hoje, além dos seus três zeros, de alguns ministros que se identificam ideologicamente com ele, dos puxa-sacos habituais e dos que ganharam uma boquinha no governo, Bolsonaro não tem com quem contar. Nem com os seus generais.

Não vale citar a turma desvairada das redes sociais. Muita gente ali nem gente é, todos sabem como funcionam os robôs do bolsonarismo, e com que velocidade. Os alucinados que vão às ruas com cartazes contra o STF e o Congresso tampouco importam neste cálculo. No Congresso, o centrão se aproxima, mas basta um vento leve para fazê-lo mudar de direção. O pragmatismo desse agrupamento político é que o orienta. Vai sugar o que for possível do governo, mas sem se comprometer com o seu fracasso.

O presidente nem partido tem. Ao romper com o PSL, arrumou uma dúzia de novos desafetos com mandatos federais. Está cada vez mais claro para quem faz política partidária que não vai ser fácil para Bolsonaro recompor sua base, que já era pequena, mesmo distribuindo ministérios, diretorias de estatais e de autarquias, contrariando frontalmente a sua mais importante promessa eleitoral, de não entrar no jogo de troca cargos por apoio político. No caso, aliás, o que Bolsonaro busca não é apoio para governar, mas sim para não cair antes do fim do seu mandato. Para governar, o presidente precisaria do apoio de 257 deputados. Para barrar seu impeachment, bastam 172.

Bolsonaro perdeu esta semana a cumplicidade dos generais do Palácio. Embora continuem no governo, dando suporte administrativo ao presidente, Heleno, Braga e Ramos não topam defender os malfeitos dos filhos. A prisão de Fabrício Queiroz disparou o alarme. O caso é grave e tem desdobramentos que podem chegar ao presidente, embora legalmente ele seja inalcançável. Mesmo que ele e sua mulher sejam incriminados em razão do dinheiro que Queiroz depositou na conta de Michelle, o crime terá sido cometido fora do mandato e Bolsonaro só terá de se explicar à Justiça depois de terminado o seu mandato. Ainda assim, os generais preferem não se misturar com essa bagunça.

Com a prisão de três dos 30 que se intitulavam 300, sumiram os parcos apoiadores mais barulhentos. Restam os que rasgam dinheiro e carregam faixas pela intervenção militar, mas estes também são poucos e, como já dito, importam tanto quanto uma garrafa vazia. Bolsonaro tem ainda as milícias. Estas serão suas enquanto ele estiver ajudando. Embora sejam agradecidas por portarias como a que suspende as normas de rastreamento de armas no país, as milícias podem se afastar do capitão caso ele se torne um problema tão grande que acabe jogando luz sobre a sombra em que praticam suas atividades ilegais. Outra vez o alarme de Queiroz.

Finalmente, pesquisas mostram que o presidente tem 30% de apoio popular. Este é o número mágico no qual ele se agarra para tentar provar que vai bem. O problema é que do outro lado estão os 70% que não o apoiam. Bolsonaro está se isolando na medida em que permite absurdos como os cometidos por Abraham Weintraub, que foram esquentando e aumentando até que sua permanência no ministério se tornasse insustentável. A situação do presidente é muito grave, e ao final ele pode não ter com quem contar.

Quem É o manda-chuva?
A pose arrogante e desafiadora de Abraham Weintraub diante de um Jair Bolsonaro contido e visivelmente desconfortável aparentemente queria mostrar quem manda na casa. O anúncio da demissão do estrupício do Ministério da Educação foi feito pelo próprio. Ele disse também que vai preparar a transição para um novo ministro, que ainda não sabe se será permanente ou interino, e avisou que vai para o Banco Mundial, com salário de R$ 100 mil por mês. Como no vídeo o demitido parecia ser Bolsonaro, o ato apenas serviu para explicitar quem é o manda-chuva. Trata-se do chefe do estorvo, que nunca foi Bolsonaro, mas sim Olavo de Carvalho, o terraplanista de Richmond que deve indicar o substituto.

Foi péssimo, mas pode piorar
Weintraub foi o pior ministro da Educação de todos os tempos. Nunca na História desse país viu-se tamanho disparate na gestão da Educação brasileira. O ministro demitido foi um zero, um nada, um coisa nenhuma. O setor passou os últimos 14 meses paralisado com Weintraub, ultrajado pelos seus métodos, estupefato pela sua ignorância e pelo tamanho da sua incapacidade. Já que no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, não custa esperar pelo seu substituto. E como quem deve nomeá-lo é o homem que mandou Bolsonaro enfiar suas medalhas naquele lugar, é bom estar preparado para qualquer coisa.

‘Armistício patriótico'
Talvez o objetivo do novo ministro das Comunicações, Fábio Faria, tenha sido sensibilizar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal. Com certeza foi essa a impressão que deve ter causado em Bolsonaro, seus zeros e sua turma mais próxima ao pregar um “armistício patriótico”. Agora, francamente, o que Congresso e Supremo poderiam fazer para atender ao pedido do ministro? O STF teria de suspender todas as ações contra os criminosos amigos e familiares do presidente? Ou o Congresso precisaria abaixar a cabeça e deixar passar todas as barbaridades oficiais, como a MP dos Reitores? A recomendação de Faria, na verdade, só cabe ao presidente da República. Mesmo assim, parece que a sugestão chegou tarde. Bolsonaro já cometeu crimes demais para assinar qualquer armistício.

Que isso, doutora?
A delegada Denisse Dias Rosas deve ser afastada do grupo que investiga as ações dos bolsonaristas determinada pelo STF. Será o mínimo que a instituição pode fazer por causa do pedido que ela fez ao ministro Alexandre de Moraes para “postergar” uma ação contra o grupo para não trazer “risco desnecessário à estabilidade das instituições”. Uma delegada tem todo o direito de sugerir alternativas ao juiz de uma causa por questões objetivas, nunca em razão de uma reflexão política. Pode recomendar o adiamento de uma operação por ter recebido dados de inteligência que recomendam cautela ou pela falta desses dados. Ou por causa da chuva. Mas não porque o presidente está irritado com a PF e a hora não é boa. Convenhamos. A delegada deve seguir a carreira sentada atrás de uma mesa no almoxarifado da corporação.

Demissão exemplar
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, não é mocinho. Não se pode dizer que é bandido, ainda é cedo, mas mocinho ele não é. Feita essa ressalva, é preciso aplaudir o governador pela demissão do coronel Sérgio Luiz Ferreira de Souza, subcomandante que ocupava o comando da PM do DF em razão da ausência do titular hospitalizado. O militar se omitiu, segundo Ibaneis, ao não impedir que os cretinos do grupo 300, que nunca passaram de 30, soltassem rojões sobre o STF. É preciso colocar algum freio nas PMs nestes dias, impedir que um viés ideológico se infiltre e acabe influenciando decisões de segurança. A demissão do coronel foi exemplar.

Avisa a mãe
Coisa mais fofa. Preso, Fabrício Queiroz usou o seu direito de dar um telefonema para ligar para casa. Falou com a filha, disse que foi preso e deu a orientação: “Avisa a mãe”. Claro que se tratava da uma senha. Poderia ter dito “avisa a mãe que me ferrei e manda ela fugir”. Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, é “bem conectada” e pode estar longe uma hora dessas. O Ministério Público, segundo O GLOBO, baseou seu pedido de prisão de Queiroz e Márcia nas negociações da mulher com a milícia do Rio para um plano de fuga dela e do marido. Aliás, já foi dito aqui, a milícia é uma das poucas “forças” que ainda não abandonaram Bolsonaro, seus filhos e seus amigos.


Merval Pereira: Malabarista chinês

Que a vaca foi para o brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular a distância do brejo e a velocidade da vaca

O silêncio eloquente do presidente Bolsonaro sobre a prisão de seu amigo de longuíssima data Fabrício Queiroz explicita a gravidade da situação. A depender do que os investigadores da Polícia Federal encontrarem nos celulares e documentos apreendidos em Atibaia, a situação pode levar a crise institucional a um desfecho que se prevê desde os primeiros escândalos do governo Bolsonaro.

O caminho para o impeachment parece ser inevitável, já está marcado no GPS político, só não se sabe a velocidade em que isso se dará. Que a vaca foi pro brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular a distância do brejo e a velocidade da vaca. O centrão é especialista nesses cálculos, e tudo indica que seus membros vão partir com mais sede ao pote para aproveitar o que resta do governo.

Engano achar que alguém compra o centrão. Só aluga, e sem multa rescisória. Foi assim com Dilma, quando a situação ficou insustentável do ponto de vista político e econômico. O governo Bolsonaro caminha para essa impossibilidade diante da tragédia econômica de uma queda do PIB de 10%, cuja recuperação exigirá um esforço nacional de anos seguidos, impossível de se obter em um governo beligerante e errático como o que temos, com um presidente incapaz de unir até mesmo os seus.

A partir da crise, após a reforma da Previdência, as demais reformas perderam o timing político, ainda mais em ano de eleição. A situação é tão difícil que nem mesmo as condições mínimas para implementar um novo pacote social existem. Os governantes anteriores ao PT já haviam criado diversos programas sociais, e a união de todos eles no Bolsa Família, sob o comando das prefeituras, foi uma jogada eleitoral proposta pelo então ministro Patrus Ananias, para substituir o fracassado Fome Zero, coordenado por Frei Betto, que tinha uma visão menos eleitoral e mais de ativismo político, uma tentativa de empoderar os líderes comunitários em substituição aos políticos locais.

O potencial dessa união de programas, que Ruth Cardoso preparava com o cadastro único e sem concessões políticas, alavancou o petismo, especialmente no Nordeste. Bolsonaro anseia agora criar o Renda Brasil, que seria o seu Bolsa Família ampliado, o que certamente daria uma alavancada em seu projeto político, mas a pandemia da Covid-19 estragou seus planos.

A distribuição da renda complementar de R$ 600,00 sustentou sua popularidade que começava a decrescer. Mas somente o Renda Brasil permanente pode lhe garantir a fidelidade desse eleitorado que não é dele. Mas a crise econômica dificilmente dará espaço para tal. Seria preciso um malabarista chinês para conseguir deixar no ar sem cair pratos tão diferentes no peso e no tamanho quanto centrão, acampamento 300 do Brasil, milicianos, rachadinha, economia liberal, democracia, militares, populismo. Bolsonaro é mais parecido com um rinoceronte em casa de louças.

Os apoios encarecem de um lado, e dão certo medo de outro. O risco ficou maior porque o presidente está fragilizado e a caminho de um impedimento. A investigação sobre Queiroz não vai parar no esquema de rachadinha, mas avançar para outras questões, como a relação com milicianos.

Após a prisão de Fabricio Queiroz, o presidente Bolsonaro está claramente na defensiva. Para se ter uma ideia das dificuldades, uma pergunta básica que não quer calar em Brasília: se Queiroz não estava sendo perseguido, por que estava escondido?

Um comentário povoa as investigações: quando foi encontrado, parecia estar em cárcere privado. Três inquéritos no Supremo Federal (STF) são direta ou indiretamente ligados a ele e agora as investigações sobre a ligação com Queiroz com sua família. Vai aparecer uma série de informações que formarão um quadro muito perigoso para qualquer pessoa, ainda mais para um presidente da República. O quebra-cabeça está ganhando forma, e nada ajuda Bolsonaro. Mesmo que não possa ser julgado por atos cometidos antes do mandato, as revelações que as investigações possam revelar vão deixa-lo enfraquecido politicamente, na popularidade e no apoio no centrão que, quando chega na beira da cova, não salta junto com o caixão


Jornada da Cidadania faz formatura online da primeira turma neste sábado (20)

Solenidade será realizada por meio de aplicativo de videoconferência, com transmissão no site e na página da FAP no Facebook

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Alunos da primeira turma da Jornada da Cidadania participam, neste sábado (20), às 11 horas, da formatura de conclusão por videoconferência do curso online de formação política realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. A entidade também vai fazer a transmissão ao vivo em seu site e em sua página no Facebook.

Além de alunos dos 26 Estados e Distrito Federal, monitores e professores, participam da solenidade online o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o presidente do Conselho Curador da FAP, professor Cristovam Buarque; o diretor-geral da FAP, Luiz Carlos Azedo; e o coordenador pedagógico da Jornada, Marco Marrafon.

Assista ao vivo!

https://www.facebook.com/jornadadacidadania/videos/626591014613675

A equipe da Jornada da Cidadania informa que enviou, por e-mail e whatsapp, convite de participação aos alunos que concluíram todas as 14 aulas em formato multimídia. Eles participarão diretamente da cerimônia por meio de um aplicativo de videoconferência.

Os conteúdos em formato multimídia foram disponibilizados de 12 de fevereiro a 15 de junho deste ano, na plataforma de educação a distância totalmente online, interativa e com acesso gratuito, mas com ampla segurança de dados. No total, o curso teve 36 horas de duração.

Ao longo da Jornada da Cidadania, os alunos tiveram acesso a diferentes conteúdos divididos em cinco pilares: ética e integridade na ação política; comunicação eficaz; fundamentos de teoria política e democracia; comunicação eficaz e casos de sucesso. Cada pacote de novo conteúdo incluiu videoaulas, leituras obrigatórias, podcasts e indicação de filmes.


Raul Jungmann e Mauro Marcondes Rodrigues: Um presidente americano no BID?

A terça-feira, dia 16 de junho de 2020, pode ficar marcada na história pela ruptura de um acordo não escrito entre os países latino-americanos e caribenhos e os Estados Unidos, para a condução de uma das instituições financeiras multilaterais mais importantes para os países da Região.

Neste dia, a administração Trump decidiu indicar um cidadão americano, Mauricio Claver-Carone, diretor de assuntos latino-americanos no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID.

Embora semelhante ao Banco Mundial, o BID, fundado em 1959, fruto de uma muito bem-sucedida negociação com os americanos, foi estruturado com base numa arquitetura institucional e de governança equilibrada entre os membros beneficiários dos empréstimos (latino-americanos e caribenhos) e os EUA, Canadá e demais membros não regionais.

Os latino-americanos e caribenhos detém, em conjunto, a maioria do capital do BID (50,015%) e, pela regra não escrita desde sua criação, indicam seu Presidente, enquanto os EUA, com 30% do capital votante, sempre ocuparam a posição de Vice-Presidente Executivo da Instituição.

Para se ter uma ideia do porte do banco, consta do seu Relatório Anual de 2019, empréstimos ativos no montante de US$ 96,7 bilhões, sendo quase US$ 13,0 bilhões de novos empréstimos aprovados no ano passado, principalmente para o setor público, mas também para empresas privadas.

São projetos de desenvolvimento em diferentes setores: transporte, saneamento, saúde, reforma e modernização do Estado, desenvolvimento urbano e habitação, educação, ciência e tecnologia, investimento social, energia, agricultura e desenvolvimento rural, meio-ambiente e turismo sustentável. Para os países menos desenvolvidos da Região, o BID oferece empréstimos não reembolsáveis e apoio através de cooperação técnica.

No caso do Brasil, o banco possui uma carteira ativa de 77 operações de empréstimo no valor de US$10,7 bilhões, muitos deles concedidos para Estados e Municípios, constituindo-se numa fonte importante de crédito de longo prazo para esses entes da Federação.

Nos 60 anos de existência, o BID teve quatro presidentes, todos latino-americanos. O primeiro foi o economista chileno Felipe Herrera (1960-971), seguido por outro economista, o mexicano Antonio Ortiz Mena (1971-1988). Em 1988, o Presidente Ortiz Mena teve um desentendimento com o Tesouro americano e saiu do Banco.

Mesmo naquele momento de crise, foi encontrada uma solução dentro do marco pactuado entre os EUA e os latino-americanos e caribenhos. Foi nomeado o economista uruguaio Enrique Iglesias, que liderou o BID por 17 anos (1988-2005), numa fase de importante expansão e mudanças operativas. Em 2005, assumiu a Presidência do BID o cidadão colombiano Luiz Alberto Moreno que encerrará seu terceiro mandato em outubro deste ano.

Desde 1959, o banco passou por várias transformações e cresceu não só em termos de capacidade de concessão de empréstimos e de outros instrumentos de apoio à região, como na incorporação de novos sócios, notadamente não regionais.

A presença de um latino-americano na presidência do BID jamais foi impedimento na obtenção de recursos para o banco cumprir seu papel no apoio ao desenvolvimento dos nossos países. Além disso, um presidente latino-americano sempre foi fator de equilíbrio entre os sócios regionais e não regionais e, em especial, na mediação entre os interesses e posicionamento dos EUA e dos demais sócios regionais. Outro aspecto importante da presidência latina é a garantia da proximidade com os países beneficiários do apoio do banco e a melhor compreensão de suas demandas.

Por óbvio, os Estados Unidos não estão isolados nesta empreitada de ter um americano na presidência do BID. E não devem ser com os europeus, pois se a moda pega os americanos podem querer assumir o FMI. Pelo que se sabe, contam com o apoio, entre outros, do segundo maior acionista, o Brasil (11,354%).

Logo o Brasil, que teve um papel fundamental na criação do BID. Foi justamente a ação decisiva do Presidente Juscelino Kubitschek, ao enviar uma carta ao Presidente americano, Dwight Eisenhower, datada de junho de 1958, em que o exortava a rever as relações dos EUA com o continente, somada à ideia de criação da Organização Pan-Americana, que viabilizou, como desdobramento das tratativas com o governo americano, a constituição do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID, no ano seguinte.

Em resumo, esta indicação do governo Trump não é positiva para o futuro do nosso principal banco de desenvolvimento regional. Não faz sentido algum se abandonar uma arquitetura institucional e um acordo que contribuíram para uma trajetória de bons serviços prestados para o desenvolvimento dos nossos países, em nome de uma promessa de maior compromisso americano com o BID e os países da região.

O Brasil tem história e presença importantes na instituição. Não pode desconhecer este fato e se alinhar aos interesses imediatos dos EUA, abandonando seus compromissos com os demais países beneficiários, alguns inclusive com candidaturas postas.

Há tempo de se construir consensos em torno de um candidato latino-americano ou caribenho que una a todos e leve os americanos a voltar ao pacto fundacional do BID. Caso contrário, veremos o Brasil dando mais um passo e abrindo mão da sua visão diplomática histórica para se tornar peça da engrenagem diplomática dos EUA.

*Mauro Marcondes Rodrigues – Ex–Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento e ex-Diretor Suplente do Banco Interamericano de Desenvolvimento

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


‘Bolsonaro transformou saúde em território de guerra’, diz Alberto Aggio

Professor da Unesp critica postura do presidente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O historiador e professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio critica o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por minimizar a pandemia do coronavírus. Em artigo publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, Aggio destaca que Bolsonaro “confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia”.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!

“Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo”, diz Aggio. “Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de ‘isolamento social’”, lamenta. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP.

Aggio lembra que, enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. “Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma ‘rebelião armada’ de ‘resultados imprevisíveis’ e seguramente deletérios para a Nação”, afirma o professor da Unesp.

De acordo com o historiador, sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. “Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável”, diz o autor, em outro trecho.

O professor da Unesp observa que, entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. “O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum”, acentua, para continuar: “Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial”.

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Jamil Chade: Na ONU, o Brasil trai seus cidadãos para proteger os EUA das cobranças sobre racismo

Reunião do Conselho de Direitos Humanos previa investigação da polícia norte-americana, mas proposta não foi apoiada pelo |tamaraty. Temor de efeito bumerangue é evidente

Num enorme salão da ONU, com capacidade para mais de 2.000 pessoas, uma reunião convocada em caráter de urgência em Genebra começou na última quarta-feira de uma maneira inusitada para os rígidos padrões de encontros diplomáticos: todos os embaixadores foram convidados a se levantar e respeitar um minuto de silêncio em memória do afro-americano George Floyd, morto nos EUA por um policial. Os embaixadores usavam máscaras. Alguns, por conta da pandemia. Outros, por conta da hipocrisia.

Tratava-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU, um órgão acostumado a lidar com as piores atrocidades do planeta. Desta vez, ainda que o encontro fosse emergencial, o tema era o racismo, tão antigo quanto não resolvido, graças à impunidade que continua a imperar.

A proposta era clara: dar um sinal de basta às violações contra afro-descendentes e aproveitar do clamor das ruas para, finalmente, lidar com a brutalidade das polícias, principalmente nos EUA. Os autores do projeto, os países africanos, pediam a instauração de uma investigação internacional contra o governo americano. Se fosse aprovado, seria a primeira na história por parte de órgão da ONU contra Washington.

O encontro, portanto, ganhava uma dimensão histórica. Fosse pelo assunto sobre a mesa. Fosse pelo resultado que poderia trazer. Enquanto estátuas desabam em ruas e praças da civilizada Europa, era dentro de um prédio testemunha de manobras diplomáticas e da disputa pelo poder que um capítulo importante da luta pela igualdade poderia ser contado.

Antes de a palavra ser passada aos governos, a sala da ONU foi tomada por um segundo silêncio profundo quando o irmão de George Floyd, Philonise Floyd, fez um apelo para que governos “ajudem a trazer justiça” para afro-americanos.

Batendo no peito, ele insistia em mexer com aqueles representantes de todas as cores, credos e origens. “Meu irmão for torturado até a morte, no meio da rua”, disse. “O policial queria dar uma lição: vidas negras não importam nos EUA. Ninguém foi expulso até que protestos ocorreram. E quando protestos ocorreram, foram recebidos por uma polícia brutal. Foram silenciados e mortos”, afirmou Philonise. O mal-estar era evidente entre os engravatados diplomatas e embaixadoras sofisticadas.

Coube ainda a Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, colocar a morte do americano num contexto maior. “O ato de brutalidade gratuita (contra Floyd) passou a simbolizar o racismo sistêmico que prejudica milhões de pessoas de ascendência africana ―causando danos perversos, diários, de vida, geracionais e muitas vezes letais”, disse. “Os protestos de hoje são o culminar de muitas gerações de dor, e longas lutas pela igualdade. Muito pouco mudou, ao longo de muitos anos. Devemos aos que partiram antes, assim como aos que virão, aproveitar este momento, finalmente, para exigir uma mudança fundamental”, defendeu a ex-presidente do Chile. Ela, porém, alertou: condenar atos de racismo não é suficiente. “Devemos ir além e fazer mais”, insistiu. “A paciência se esgotou”, disse.

Um a um, governos tomaram a palavra. Entre frases ocas e prestação de contas para seu eleitorado, vários prestavam sua homenagem às vítimas da violência policial, enquanto outros insistiam como afro-descendentes estão fartos de tanta injustiça.

Resistência

Mas nem todos estavam de acordo com o projeto, principalmente os aliados de Donald Trump ou países que, com ex-colônias, sabiam que poderiam ser alvos de questionamentos também de práticas de racismo. Praticamente todo o grupo ocidental tinha um objetivo: forçar os africanos a abandonar a ideia de mencionar textualmente o Governo dos EUA no pedido de investigação. No lugar de um inquérito contra a polícia americana, a proposta era de que a resolução tratasse apenas do racismo em geral no mundo. Coube aos europeus uma das frases mais infelizes do encontro: “Precisamos olhar para nossas próprias almas”.

Ao ampliar o escopo da condenação, a tática era de transformar a resolução num documento vazio. Seria sobre “todos”. E sobre ninguém. Mas logo chegou a vez do Brasil falar. Seria a vez de escutar um país com uma enorme população negra, com uma profunda dívida social e com um histórico de colocar o combate ao racismo como centro de sua ação na agenda internacional de direitos humanos. À medida que o discurso enviado por Brasília ecoava naquela sala, não conseguia deixar de sentir uma profunda tristeza e náusea diante de um Governo que, uma vez mais, estava traindo seus próprios cidadãos.

O comportamento europeu não surpreendia, ainda que fosse lamentável. Mas as palavras do Brasil eram de uma violência profunda ao adotar uma postura de defesa velada do presidente Donald Trump, da polícia e da injustiça. Não houve nenhuma sinalização de solidariedade às vítimas. Nenhuma referência ao motivo do encontro. Apenas clichês sobre como o racismo era algo a ser combatido.

Mas o plano era outro: socorrer o aliado americano e socorrer a si mesmo. “O racismo não é exclusivo a nenhuma região específica”, afirmou a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo. Segundo ela, trata-se de um problema “enraizado em diferentes partes do mundo, afetando uma ampla proporção da humanidade”. “Nenhum país deve ser singularizado nesse aspecto”, disse. Ou seja, não citem os americanos ou qualquer país no texto.

“É nosso dever falar contra o racismo. Espero que possamos fazer de uma forma que nos una e não que nos divida ainda mais, num mundo já polarizado”, defendeu. Fiquei pensando: mas por qual motivo lidar com o racismo nos dividiria? Salvo se a opção for a de ser conivente com o crime.

No Itamaraty, uma ala próxima ao chanceler defendia que o Brasil fosse contrário ao projeto. Pelo menos dois motivos estariam pesando. O primeiro deles se refere à aliança entre Brasília e a Casa Branca. Washington vem pressionando governos a barrar o projeto no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Mas o Governo brasileiro também temia que, se aprovada, a comissão de inquérito também poderia analisar o comportamento da polícia brasileira, alvo de duras críticas internacionais. No Planalto, a ideia de colocar em questão a atuação das forças policiais está fora de questão.

Uma noite de pressão

A reunião que começou na quarta-feira se arrastaria por dias. Durante uma noite de pressões, os autores da proposta foram obrigados a abandonar a ideia de uma comissão de inquérito contra os EUA. A quebra de braço envolvia temas distantes do racismo. A Casa Branca fez questão de chantagear aliados que ousassem votar em apoio dos africanos, inclusive ameaçando cortar recursos para programas de cooperação. A delegação sul-africana não escondia que as ameaças vindas de Washington eram reais.

Na ONU, há um mito: a de que todos os países têm um voto e que eles têm o mesmo mesmo. O que esse mito não conta é como o tal país chega a optar por um voto a favor ou contra uma resolução. Vulneráveis, os mais dependentes de ajuda externa simplesmente sucumbem ao poder dos grandes na hora de um voto determinante.

Por horas, os autores do projeto viveram um impasse. Alguns defendiam a manutenção do texto original, com referências aos EUA. Mas a pressão financeira era insustentável para muitos.

Uma versão intermediária do texto, assim, foi desenhada. Nela, o nome de George Floyd seria mencionado, para salvar a imagem dos governos na votação. Mas a comissão de inquérito seria eliminada. Em seu lugar, apenas um pedido para que a burocracia da ONU elaborasse um “informe” sobre a situação do racismo sistêmico no mundo e a violência policial.

Para a Casa Branca, isso ainda não era suficiente e a pressão continuou, até que o nome do país fosse removido. E assim ocorreu. Quando o texto foi submetido à votação, ele passou a ser ameaçado de se transformar em uma resolução para emoldurar e pregar na parede, sem qualquer impacto real para a vida de milhões de pessoas.

Jamil Dakwar, diretor do Programa de Direitos Humanos da American Civil Liberty Union, não escondia sua indignação. “É absurdo que a resolução final aprovada pelas Nações Unidas não faça menção aos Estados Unidos, onde a polícia mata pessoas, particularmente negros, a taxas alarmantemente mais altas em comparação a outros países desenvolvidos”, afirmou.

“A ONU precisa fazer seu trabalho ―e não ser intimidada― e responsabilizar os Estados Unidos. O país deve enfrentar um escrutínio global independente por sua opressão sobre o povo negro”, disse. John Fisher, da Human Rights Watch, optou pela esperança. “Embora ficando bem aquém do inquérito internacional abrangente exigido por centenas de organizações da sociedade civil, a resolução trará as importantes questões do racismo sistêmico e da violência policial nos Estados Unidos sob escrutínio internacional pela primeira vez, ao mesmo tempo em que abordará o racismo sistêmico e a violência policial em outros lugares”, disse.

Para ele, os esforços dos Estados Unidos para evitar a atenção do Conselho “apenas destacam por que esse exame é necessário, e até onde ainda há que ir para desmantelar as estruturas perniciosas do racismo institucionalizado”.

“Nenhum Estado, por mais poderoso que seja, deve ser isento do escrutínio do Conselho, e a resolução de hoje abre a porta para trazer maior atenção internacional às violações tanto por parte dos EUA quanto de outros Estados poderosos no futuro”, disse.

No Brasil, o tom também foi de esperança por parte dos ativistas, principalmente por conta do papel que a resolução pode ter para garantir que o tema da violência policial seja colocada de uma vez por todas na agenda da ONU. Também foi comemorada a referência explícita ao ressurgimento do neo-fascismo.

Wania Sant'anna, representante da Coalizão Negra de Direitos e vice-presidente do Conselho Curador do IBASE, afirma ter ficado satisfeita por conta dessa perspectiva.

O texto, esvaziado, foi aprovado por consenso. Mas, momentos depois, foi a vez de governos ocidentais tomarem a palavra para alertar que não aceitarão que Bachelet examine o caso de Floyd. A UE, por exemplo, insistiu que não haveria motivo de a ONU mergulhar no assunto se ele já estava sendo tratado nos EUA. O governo da Austrália adotou a mesma postura, indicando que a ONU terá de fazer um exame “amplo”. Ou seja, sem citar países.

Naquela sala, diplomatas se felicitavam por ter chegado a um acordo para salvar a reputação de todos. Os governos africanos diriam que fizeram sua parte. Os Ocidentais usariam o papel para dizer que o combate ao racismo é uma prioridade. Só se esqueceram que o texto corre o risco de nada mudar na vida de milhões de pessoas.

E o apelo do irmão de Floyd por uma comissão de inquérito? Ele pode esperar. Afinal, já esperaram por tantos séculos, golpeados por ataques contra sua dignidade.

O Ocidente e o Governo brasileiro conseguiram aprovar uma resolução para mostrar ao mundo que estavam comprometidos a agir. Mas desidratada o suficiente para não representar uma ameaça imediata.

Contra a força das ruas e as imagens de um assassinato em uma democracia, o Brasil e outros optaram por um apoio velado ao opressor. E, com seu joelho, não apenas deixava Floyd pela segunda vez sem ar. Mas esperam perpetuar o crime contra sua própria população negra, ignorada a cada dia, abandonada em sua suposta alforria e asfixiada pelo discurso diplomático e repleto de brutalidade.

Diante de todo o mundo e com interpretação nas seis línguas oficiais da ONU, Floyd foi uma mais uma vez asfixiado.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.