Day: abril 29, 2020

‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

Em artigo na revista Política Democrática Online, cientista política aponta Bolsonaro transmite ‘mensagem de guerra’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

 O cientista político Marco Aurélio Nogueira, professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista), critica a falta de postura de Jair Bolsonaro condizente para o cargo que ocupa. “Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia [do coronavírus]”, escreveu, em artigo produzido para a nova edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). “Bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”, afirma, em outro trecho.

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Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados de graça no site da entidade. De acordo com cientista político, o presidente só se preocupa em mobilizar o seu próprio clã. “O presidente fala, e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo”, critica.

De acordo com Nogueira, Bolsonaro não pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. “Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder”, lamenta. “Os olhos esbugalhados apontam para 2022, e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha”, afirma.

Na avaliação do professor da Unesp, conforme artigo publicado na revista Política Democrática Online, outra articulação, benéfica, mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. “Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional”, observa.

Nogueira destaca que “o bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”. “Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é ‘antipetista’, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de ‘olavismo’, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática”, analisa o professor da Unesp.

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‘Governos vivem crise’, diz Felipe Oriá em nova aula da Jornada da Cidadania

Planejamento no poder público, proteção da intimidade, monitoramento das redes e engajamento de voluntários são abordados

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“No mundo inteiro, governos vivem uma crise. É cada vez maior a distância entre as expectativas dos cidadãos e a entrega dos serviços públicos”, afirma o cientista político Felipe Oriá, mestre em políticas públicas e cofundador do Movimento Acredito, no novo pacote de aula multimídia da Jornada da Cidadania. O curso de formação política disponibiliza, a partir desta quarta-feira, (29), conteúdos para o aluno, com destaque para a videoaula sobre planejamento no poder público e políticas públicas.

As aulas podem ser acessadas por meio da plataforma de ensino a distância totalmente online, interativa e com acesso gratuito, direcionada exclusivamente a alunos matriculados com login e senha. Em um mundo de problemas crescentes e complexos, é preciso uma forma de encarar as políticas públicas. Sair do planejamento para a implementação. De soluções prontas para experimentação e aprendizado. Por isso, a aula apresenta uma abordagem contemporânea para políticas públicas e problemas complexos, baseando-se em soluções adaptativas.

“Governo que cuida de saúde, educação e programas sociais é muito recente. Problemas mais complexos foram exatamente o que não conseguimos resolver”, afirma Oriá. “Não só o Brasil, mas um grande número de países conseguiu quase universalizar a educação básica, só que pouquíssimos países conseguiram transformar presença na escola em aprendizado”, destaca ele.

De acordo com o cientista político, outro problema parecido tem a ver com pobreza. “Vários países têm avançado na redução da pobreza, mas são poucos os países que conseguem resolver o problema da desigualdade”, lamenta. “O velho método de se pensar política pública, como processo linear para chegar a um resultado, não dá conta num mundo que é cada vez mais rápido e em que as pessoas estão conectadas. Como pensar políticas públicas de forma diferente?”, questiona. Na aula, Oriá vai abordar o que ele chama de problemas simples, complicados e complexos.

Os alunos também poderão conferir uma videoaula sobre ser ético em casos de proteção da intimidade e vida privada, ministrada por Lairson Geisel, especialista em mídias interativas. Além disso, em seguida, também terão à disposição conteúdos sobre engajamento e valorização de voluntários, em videoaula ministrada por Renato Diniz, diretor de treino e desenvolvimento da empresa Ideias Radicais.

A importância de monitoramento das redes pela prefeitura é o assunto de outra videoaula ministrada por Sergio Denicoli, pós doutor em comunicação pela Universidade do Minho (Portugal). Antes de responder ao questionário da aula e à pesquisa de satisfação, os alunos terão de ler o texto “Solucionando problemas complexos? Desafios da implementação de políticas intersetoriais”, de Renata Bichir e Pamella Canato, que é parte do livro “Implementando desigualdades: Reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas”. Em seguida, deverão ouvir um podcast sobre inovação no setor público.

 

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Monica De Bolle: Flexibilizar o teto, já

A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página

Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso.

Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016.

No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda.

Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto da vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade.

Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Vinicius Torres Freire: Epidemia voltou a piorar no Brasil?

Ritmo de aumento do número de novos casos vinha caindo até a semana passada; não mais

O número de mortes por Covid-19 no Brasil e em São Paulo parecia crescer mais devagar até o começo da semana passada, por aí. Até então, com todas as ressalvas de praxe, parecia haver uma despiora, como vinha acontecendo em países grandes da Europa, no que diz respeito à redução do ritmo do avanço do número de casos e mortes, considerados dias equivalentes de duração da epidemia.

Desde a semana passada, embatucamos. O ritmo parou de diminuir.

O que houve? Há mais registros de casos e mortes porque há mais testes ou notificações mais rápidas? Ou há um problema na contenção da doença, programa que mal e mal parecia funcionar?

Como está claro, epidemiologistas e outros estudiosos da doença estão com dificuldades ou indisposição de avançar opiniões, que dirá análises ou projeções. Mas alguns deles dizem temer que a desordem no distanciamento social possa ter abalado a tendência de despiora no ritmo de avanço da doença. Mas esperariam mais uma semana, pelo menos, antes de assinar o comentário.

As medições disponíveis de isolamento caíram, cidades reabrem a atividade econômica ou jamais as fecharam de fato, há propaganda federal contra o isolamento. Pessoas mais pobres, sem auxílio, procuram meios de ganhar vida, as pessoas em geral começam a se cansar do isolamento e fogem. Para piorar, ainda estamos muito longe de ter um sistema amplo e ágil de rastreamento de doentes e possíveis contaminados.

Temos ainda problemas com os dados mais elementares. Não sabemos quando as pessoas ficaram doentes (com sintomas) ou morreram. As notificações diárias são de confirmações de casos que podem ter ocorrido faz dias.

O problema vai, pois, muito além da subnotificação, que sempre há e haverá. E subnotificação do quê? De infecções em geral, de doentes leves, de casos hospitalares, de mortes? De resto, uma subnotificação mais ou menos constante permite que se acompanhe o ritmo da progressão da doença, embora não o nível do número de casos.

Há agora uma corrida para saber da subnotificação _é útil, ajuda a pressionar os governos a fornecerem dados melhores. Vários dados indicam subnotificação, mas não dizem muito mais do que isso.

No estado de São Paulo, o número geral de mortes em março de 2020 superou a média dos últimos quatro anos em 1.481. O número oficial de mortes por Covid-19 naquele mês foi de 731, mas várias mortes ainda estavam pendentes de confirmação ainda em abril (os dados de mortalidade de abril ainda são imprestáveis, por vários motivos).

O que podemos concluir? Nada além do óbvio. Existem mais casos, não se sabe bem quantos, quando e em que ritmo de notificação ou sub.

Além do risco do fetiche do número da subnotificação, falta qualidade nos dados elementares da doença. Parece que o país se cansou de falar no assunto, saiu de moda, embora o problema esteja explodindo. Ainda não temos informação precisa de UTIs, ventiladores, testes, detalhamento da gravidade dos casos e da evolução desses números.

Compramos mais, produzimos mais, temos mais equipamentos?

Deveria haver equipes supervisionando isso com precisão, de modo a tentar evitar mais desgraça. Que essas informações não existam ou que os governos se recusem a divulga-las, COMO TEM FEITO, é um escândalo que deveria ser objeto de campanha, talvez campanha do Ministério Público.

É uma zorra criminosa.


Elio Gaspari: Guedes herdou a carta branca de Moro

Teatrinho do Pró-Brasil revela apenas um governo desorientado

Fica combinado que “o homem que decide a economia” no Brasil é Paulo Guedes. Afinal, Sergio Moro tinha carta branca e a política do toma lá dá cá com o centrão era coisa do passado. Cartas brancas não existem, e as tais bancadas temáticas que substituiriam as negociações com os partidos eram um delírio. Assustado com a ruína de seu governo, Bolsonaro bateu à porta do centrão. Repete Dilma Rousseff e Fernando Collor.

A fé de Bolsonaro em fantasias é inesgotável. Pena que a capacidade de Paulo Guedes de criar debates inconsequentes seja incontrolável. Diante de uma epidemia, de uma recessão e do teatrinho do lançamento do Pró-Brasil, Paulo Guedes resolveu encrencar com os servidores:

“Precisamos também que o funcionalismo público mostre que está com o Brasil, que vai fazer um sacrifício pelo Brasil, não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia e assistindo à crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego.”

Boa ideia. Que tal um programa de sacrifícios gradativos, começando pelos magistrado e procuradores que embolsam acima de R$ 30 mil por mês? O general da reserva Augusto Heleno já disse que tinha vergonha do seu salário de R$ 19 mil líquidos.

Guedes tomou uma bolada nas costas e partiu do oficialismo a pecha de que ele é um “inimigo dos pobres”. Teria surgido até uma banda “desenvolvimentista” no Planalto. Isso é falso por três razões.

Primeiro, porque o Pró-Brasil é apenas teatralista, como o foram seu pai — o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — e seu avô, o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Também porque esse desenvolvimentismo seria encarnado pelo ministro Rogério Marinho. Como secretário para Previdência e Trabalho de Guedes, o doutor teve a ideia de taxar os desempregados que recebem um seguro do governo. Justificando a tunga, disse que com isso o desempregado continuaria na Previdência Social. Só não explicou por que a medida seria compulsória. Se fosse voluntária, tudo bem.

Finalmente, porque o teatrinho do Pró-Brasil nunca foi coisa nenhuma. Revela apenas um governo desorientado. Quando Bolsonaro diz que Paulo Guedes é “o homem que decide a economia”, isso significa que, quando for o caso, poderá ser descartado, com a mesma argumentação usada para defenestrar Sergio Moro.

Até o mês passado Paulo Guedes queria reformar a economia brasileira com 40 milhões de invisíveis e 11 milhões de desempregados. Na segunda-feira ele reafirmou a vitalidade de seu projeto e encrencou com a geladeira dos servidores.

Na recessão americana de 1929 o secretário do Tesouro, Andrew Mellon, também viu um renascimento a partir da ruína e propôs ao presidente Herbert Hoover: “Liquide os sindicatos, liquide o papelório, liquide os fazendeiros, liquide o mercado imobiliário. Isso purificará a podridão do sistema. (...) As pessoas trabalharão mais e levarão uma vida com mais moral”. Felizmente, Hoover não o ouviu.

Em 1933, Franklin Roosevelt assumiu a Presidência, olhou para o andar de baixo e mudou a cara dos Estados Unidos.

Em tempo, o andar de cima americano nada tem a ver com o de Pindorama: Andrew Mellon doou ao povo o prédio da National Gallery de Washington e mais de mil peças de sua coleção. Coisa de dezenas de bilhões de dólares em dinheiro de hoje.


Bernardo Mello Franco: A República do "E daí?"

Bolsonaro quer transformar o Brasil na República do “E daí?”. Seu desejo é viver num país em que o governante pode ignorar as leis e não precisa prestar contas do que faz

Num só dia, o Brasil recebeu três más notícias sobre a pandemia do coronavírus. O país registrou um novo recorde de mortes: 474 em apenas 24 horas. Isso fez o total de vítimas superar a marca dos cinco mil. Para completar, o Brasil ultrapassou a China no ranking de países com mais mortos pela Covid-19.

Diante desses fatos, qualquer presidente razoável se sentiria obrigado a reconhecer a gravidade da situação. Mas os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, que preferiu fazer piada com a tragédia. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, ontem à noite.

A mistura de indiferença e deboche virou marca das declarações do presidente. No domingo, ele foi questionado por uma eleitora sobre a decisão de entregar o comando da Polícia Federal a um amigo dos filhos.

“E daí? Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem”, ele respondeu, numa rede social. Em seu idioma particular, o capitão queria dizer que conheceu o delegado antes dos herdeiros. Mesmo assim, ele não se julgou obrigado a esclarecer o conflito de interesses.

Hoje o presidente fez questão de reforçar que Alexandre Ramagem foi presenteado com o cargo porque “passou a ser um amigo”. “Tomava café junto, leite condensado no pão, tá? E daí? Eu devo escolher uma pessoa que eu nunca vi na vida?”, questionou.

Bolsonaro quer transformar o Brasil na República do “E daí?”. Seu desejo é viver num país em que o governante pode ignorar as leis e não precisa prestar contas do que faz. Por isso, ele detesta a imprensa e incentiva ataques ao Congresso e ao Judiciário.

Nesta segunda, a Justiça Federal atendeu a um pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” e determinou que o presidente apresente o resultado de seus exames para a Covid-19. A informação é de interesse público, mas o presidente se julga no direito de sonegá-la.

Questionado sobre a ordem judicial, ele voltou a fazer graça. “Daqui a pouco querem saber se eu sou virgem ou não. Vou ter que apresentar o exame de virgindade. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham?”, perguntou, na porta do Alvorada.


Míriam Leitão: Suspensão da posse de Ramagem é a defesa dos princípios legais

A decisão do ministro Alexandre de Moraes mostra como as instituições têm que funcionar. A suspensão da posse de Alexandre Ramagem na Polícia Federal defende os princípios legais para a escolha do diretor-geral. O próprio presidente deu demonstrações públicas de que estava quebrando o princípio da impessoalidade, ao nomear Ramagem para o cargo. Jair Bolsonaro o tratou como amigo próximo de sua família.

A PF é uma polícia judiciária. Não cabe esse tipo de intimidade com o chefe do Executivo. Eventualmente, o presidente ou pessoas ligadas a ele podem ser investigadas pela Polícia Federal.

A decisão de Moraes reacendeu outra discussão. Há uma divisão grande no Supremo sobre os limites de uma intervenção nos atos de um outro poder. Mas nesse caso o que está sendo ferido é um princípio constitucional. É preciso proteger a Polícia Federal como uma instituição do estado brasileiro. O país conheceu o valor de uma PF independente. O próprio ex-ministro Sergio Moro admitiu o acerto no governo Dilma, que não teria interferido na PF ainda que investigasse companheiros de partido da ex-presidente.

Moraes, com a decisão, dá uma salvaguarda a um princípio constitucional sobre a coisa pública. Ele supera também a discussão sobre a interferência em outros poderes. O presidente tem o direito de nomear o diretor-geral da PF. Mas ao mesmo tempo ele tem a obrigação de seguir determinados princípios. Por isso Moraes tomou a decisão. Não foi para tirar um direito do presidente, mas para restabelecer os critérios com que Jair Bolsonaro escolherá o diretor-geral da Polícia Federal.


Merval Pereira: Homicídios voltam a crescer

Situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano

No momento em que o presidente Bolsonaro se envolve em mais uma polêmica armamentista, revogando portarias do Exército que instituíam normas mais eficazes para controle e rastreamento de armas e munição, o governo vai se deparar com a notícia de que os homicídios voltaram a crescer em todo o país.

Dados de janeiro e fevereiro analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram a tendência de crescimento. Os números não estão fechados ainda, mas a situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano.

O envolvimento do Exército em questões políticas, pois o presidente Bolsonaro anunciou pelo Twitter a decisão de mandar revogar as portarias, atendendo a pressões da indústria armamentista apoiada pela bancada da bala na Câmara, já incomoda ala de militares, que consideram que o trabalho técnico do Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados interessa à proteção da sociedade como um todo, e não a um grupo especifico, como disse em sua carta de despedida o General de brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota, que foi para reserva logo depois do cancelamento das portarias.

Rastreamento de armas e marcação de munições para que possam ser identificadas interessa ao Judiciário, para esclarecimento de crimes, interessa ao combate às milícias. Num país em que 80% das mortes são por armas de fogo, é fundamental que o Estado tenha capacidade de rastrear armas e munições.

Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal quer incluir o caso no inquérito que foi aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as denúncias do ex-ministro Sergio Moro sobre interferências ilegais do presidente Bolsonaro na Policia Federal. Esse seria um outro exemplo de interferência, desta vez no Exército. Aliás, Bolsonaro acusou Moro de ser “desarmamentista” no seu pronunciamento sobre sua demissão.

O maior problema que os críticos vêem é a repolitização dos quartéis com a chegada ao governo de vários oficiais-generais, alguns inclusive da ativa, como Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo e o almirante Flavio Rocha na Secretaria de Assuntos Estratégicos. O fato de oficiais-generais da ativa fazerem parte do governo é simbólico dessa mudança, e grande número de militares em vários escalões do governo, indicam que o Exército voltou ao centro da política.

Recentemente, houve um princípio de desentendimento entre a ala de militares com gabinete no Palácio do Planalto e o ministro da Economia Paulo Guedes, em torno do programa Pró-Brasil, uma proposta incipiente de retomada econômica feita sem a participação da equipe de Guedes.

O ministro da economia aparentemente venceu o primeiro round, depois de estar quase fora do governo, mas terá ainda que enfrentar resistências da política. Os partidos que formam o centrão estão interessados no plano dos militares de retomada de obras públicas, e se incomodam com a insistência de Guedes de manter o controle dos gastos dentro do possível na situação de crise social em que vivemos devido à pandemia da Covid-19.

A tese de que o momento é de o governo gastar é tentadora para políticos fisiológicos, e faz sentido para militares com uma visão estatista da economia. A mistura de militares nacionalistas com políticos da estirpe de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto é outro estranhamento para os que não vêem com bons olhos a participação de militares na atividade politica. O pragmatismo prevalece na saída de Sergio Moro, que tinha o apoio dos militares.

Há os que consideram que os militares estão desfazendo um trabalho de 30 anos, em que foram “o grande mudo”, granjeando respeito da opinião pública. Inicialmente, os militares que aderiram mais diretamente à candidatura de Bolsonaro achavam que ele, por ser popular, abriria espaço para os militares voltarem à vida pública com um selo de legitimidade da eleição presidencial. O problema é que funções de governo são essencialmente políticas, e as Forças Armadas são instituições de Estado, de acordo com a Constituição. Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pelo outro.


Rosângela Bittar: Entre chiquês e glacês

Integrantes do Centrão podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes

Sai o impeachment, temporariamente retirado das hipóteses de trabalho da oposição (PSDB, MDB, DEM), entra a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro, medida que, antes de chegar ao Congresso, ganha arrazoado no Supremo Tribunal Federal.

A aposta de solução para içar o País da crise, agora, é judicial. Informado, o governo intensifica a articulação de defesa, cuja operação mais radical, que abalou instituições como a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, foi a investida sobre o controle dos inquéritos e relatórios policiais.

Diante disso, a oposição reage, apressando-se em definir sua forma de atuação.

Os processos que se seguiram às denúncias do procurador-geral da República contra o ex-presidente Michel Temer, todos derrubados pelo Congresso, são os modelos na expectativa de governo e oposição.

Esta é a principal inspiração na mudança do pensamento do presidente quanto às alianças políticas. O caminho das pedras é a conquista do Centrão, grupo de partidos que fazem as votações do Legislativo penderem para o norte ou para o sul, sem explicações.

Cerca de 70 votos, se tanto, é a avaliação da atual bancada de Bolsonaro na Câmara, como demonstrou recente votação do interesse dos Estados e municípios. A oposição formal ou eventual, contando com os partidos que há décadas dominam de fato o jogo no Parlamento, somados a alguns da esquerda, poderá chegar a pouco mais de 100. Ficariam os demais, em torno de 200 das duas Casas, sob a liderança do Centrão. Que não é um só, são muitos.

Dividem-se os parlamentares centristas em muitas alas. O forte eixo Nordeste é liderado por Ciro Nogueira (PI), Arthur Lira (AL) e Aguinaldo Ribeiro (PB), e a sigla dominante é o PP. Embora o alagoano Lira seja atualmente o mais citado por estar em campanha para a sucessão de Rodrigo Maia, é Ciro Nogueira quem organiza o movimento e orienta o carnaval.

Há o “Centrão Chic”, do paulista Gilberto Kassab (PSD), que fala pouco e opera muito. Tanto que, embora formalmente aliado do governador João Doria, negocia com o presidente Jair Bolsonaro. Está caracterizado até mesmo um “Centrão Glacê”, ala que contribui com nuances da esquerda, na qual se situa, por exemplo, o deputado Orlando Silva (PCdoB). Sem aceitar cargos no governo, os parlamentares deste grupo evitam o isolamento, articulando-se com os mais numerosos para fazer política no Congresso.

O ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP) foi, durante muito tempo, uma espécie de logotipo do Centrão. Ainda controla seu partido com firmeza e tem fama de cumpridor de acordos. O PRB, “Centrão dos Bispos”, saiu um pouco da cena depois do revés do grupo na CPI dos Sanguessugas, mas se recuperou com Bolsonaro.

Já o DEM, agora um caso à parte, é o “Centrão Sofisticado”. Criou uma boa imagem e persegue a posição que já teve um dia, de legenda com um projeto político próprio.

Os motivos do governo para obter o apoio do Centrão, todos sabem: criar um lastro de apoio no Congresso para, em alguns momentos, aprovar projetos do seu interesse. Em outros, como agora, evitar a queda.

E o Centrão? Oferecer aos seus membros meios de sobrevivência. Um lema-síntese, colecionado por político criativo para fugir ao clichê, revive um refrão do cancioneiro do cangaço: “o Centrão é ‘tu me ensina a fazer renda que te ensino a namorar’”.

O governo se obriga a entregar a mercadoria negociada. Por exemplo, o Centrão sempre está de olho em duas casas bancárias da Esplanada dos Ministérios, a Funasa, na Saúde, e o FNDE, na Educação.

Não existe a hipótese de enganar o Centrão. Diante dos dribles, seus elementos de significativa base parlamentar podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes.


Vera Magalhães: Sem saída imediata

Curva de casos mostra que não será simples reativar a economia

É muito mais deletério do que conseguimos mostrar em texto de análise política o efeito que pregações irresponsáveis como as do presidente Jair Bolsonaro contra as estratégias de distanciamento social provocam no efetivo combate à pandemia do novo coronavírus.

Essa influência perniciosa não só atiça a natural e justificável ansiedade das pessoas por retomar suas vidas “normais”, como se fosse possível prever qual será o novo normal a partir de agora. Ela também, é possível perceber agora, acabou por criar nos governadores e prefeitos, mesmo naqueles conscientes dos riscos reais da pandemia, uma pressão para dizerem quando e de que forma reabririam comércio, escolas e outros estabelecimentos, o que se deu, desde a semana passada, de forma claramente irrefletida, precipitada e inócua.

Os casos de contaminação e as mortes continuam em ritmo acelerado, sem que nenhuma das condições necessárias para que se comece a falar em saída das quarentenas esteja dada.

Não começamos a testar de forma mais sistemática e massiva, para ter números mais fiéis a refletir em que momento da epidemia estamos, a ocupação dos leitos de hospitais e de UTIs não está em curva decrescente na maior parte do País, os casos (mesmo esses que conseguimos confirmar, uma fração ínfima do total) não estão estabilizados e, mais assustador de tudo, mesmo os países que fizeram tudo certo e começaram a abrir estão experimentando más notícias.

É ilusório imaginar que em São Paulo, que na terça-feira, 28, conheceu um novo e sinistro recorde de casos e de mortes, 224 em 24 horas, perfazendo mais de 2 mil óbitos em pouco mais de um mês, vai voltar a funcionar, ainda que parcialmente, a partir de 10 de maio.

Se a ocupação dos leitos e a progressão do contágio continuarem no ritmo dessas duas semanas, ao contrário, é muito provável que o governador João Doria Jr. e o prefeito da capital, Bruno Covas, tenham de anunciar restrições ainda mais severas, e não relaxamento do distanciamento social. Foi assim em Milão, Nova York e outras cidades com as características de São Paulo.

Mesmo lugares de populações e circulação mais restritas e controláveis, como Brasília, talvez tenham relaxado as regras cedo demais. Afinal, basta que a capital do País volte a receber fluxos de viajantes, a começar dos políticos, de outros Estados para que uma nova onda de contaminação seja não apenas possível, como provável.

Basta ver que países que chegaram a ser citados como exemplos de combate à covid, como Cingapura (que testou massivamente) e Alemanha (que tinha proporção confortável de leitos de UTI por milhões de habitantes e fez um isolamento social rigoroso), tiveram ou terão de anunciar a volta de medidas restritivas porque os casos voltaram a subir.

Diante de um quadro tão grave e imprevisível, é ainda mais bizarro que o presidente do Brasil esteja dedicado única e exclusivamente a aparelhar ministérios e cargos públicos, demitir ou desautorizar os poucos ministros que passariam num psicotécnico e em confronto aberto com as instituições.

Desde que trocou Luiz Mandetta pelo desarvorado e desanimado Nelson Teich, Bolsonaro parece ter esquecido que há um vírus matando seus governados aos milhares. Não fala mais sobre coronavírus (o que pode até ser bom, dado o nível de patacoada que ele costuma dizer a respeito) nem cobra ações efetivas para achatar uma curva que ameaça colapsar o País tanto no plano médico-sanitário quanto no tão temido aspecto econômico.

Não vai dar para reabrir o Brasil na marra, como a essa altura até Teich já deve ter conseguido se dar conta. Que os governadores parem de ficar com medo do bafo quente das ruas e ajam com responsabilidade. De irresponsável já basta um.


Lourdes Sola: A política da não política em tempos de covid

A linha de transgressão está ultrapassada em várias frentes, pondo à prova nossas instituições

Diante das escolhas que a pandemia impõe aos gestores e trabalhadores da saúde, aos formuladores de política pública e aos governantes, as noções que até aqui dominaram o debate público ganham novos significados, mais dramáticos. A questão distributiva, antes equacionada em termos de desigualdade socioeconômica, de acesso à educação, à Justiça e à saúde, assume a forma de arbitragem entre quem sobrevive e quem morre. Ao mesmo tempo, a variação nas respostas dos países cria um campo de comparação fértil não só para os epidemiologistas, mas também para os cientistas sociais detectarem a influência de padrões socioculturais, demográficos, econômicos e políticos na abordagem da pandemia. É um campo aberto à análise comparada das políticas públicas adotadas “entre as névoas da guerra” - e põe à prova os critérios pelos quais se avalia a qualidade das lideranças políticas.

Em que pé estamos nós? A tomar como referência a Organização Mundial da Saúde (OMS), os padrões científicos adaptados ao nosso contexto, o saber acumulado por nossos cientistas e profissionais da saúde, o governo insiste em dobrar uma aposta arriscadíssima com o futuro do Brasil. Ao contrapor o distanciamento social horizontal, indispensável para prevenir o colapso da rede hospitalar, à economia, abstém-se de enfrentar os trade-offs necessários para uma saída ordenada da crise. Na raiz dessa aposta há um paradoxo: é a política da não política num cenário em que os desafios de governança democrática obrigam a enfrentar escolhas de altíssima densidade política. Cabe aqui considerar três: a forma que assume a questão distributiva entre nós hoje, os requisitos para o exercício da liderança política em conjunturas críticas e a recapacitação do Estado.

Pesquisa realizada na Universidade de Chicago (Valor, 11-13/4) indicou que o desafio distributivo nas regiões mais pobres assume a forma adicional de acesso à rede hospitalar também por jovens e adultos. Com base nas características demográficas e patogênicas da população brasileira, num cenário em que 30% das pessoas fossem infectadas, os 66% com necessidade de internação teriam menos de 65 anos: 34% entre 45 e 64 anos, 28% na faixa entre 18 e 44. Para esta última, a necessidade seria tanto maior quanto mais jovem a população e menor o PIB per capita, ou seja, o Norte e o Nordeste: da ordem de 76% no Amazonas e Amapá, quase isso em Tocantins, Roraima e Acre.

A tragédia observada em Manaus indica que o distanciamento social nessas regiões era e é tão indispensável quanto no Sul e no Sudeste, mais envelhecidos, dadas a menor capilaridade do SUS nessas regiões e as características patogênicas da população jovem (por investigar).

Como registra o professor Delfim Netto (Estado, 27/4), a pandemia obriga a rever os critérios definidores de soberania nacional, de modo a incluir a saúde - e os investimentos na rede de proteção do SUS - entre os objetivos estratégicos do Estado.

Tudo o que sabemos sobre o exercício de uma liderança política em conjunturas críticas, em democracias, pode ser resumido numa sentença. Aplica-se ao governante que, diante de uma encruzilhada, é capaz de gerar novos recursos de poder a partir das instituições dadas - um atributo indispensável para legitimar a criação/recriação de novas instituições necessárias para confrontar a crise. São as características de um empreendedor político, com animal spirits suficientes, no caso, para recapacitar o Estado a redefinir suas funções e exercer os novos papéis que a conjuntura requer. Governar o Brasil nessas condições requer a construção de maiorias em dois eixos: o parlamentar, território do Congresso; e o federativo, dos governadores e prefeitos.

Em contraste com esses requisitos, as decisões presidenciais evidenciam um impulso de desconstrução sistemática das maiorias forjadas até aqui. A começar pela opinião pública, que se manifestara favorável à opção temporária pelo distanciamento social nos moldes propostos pela equipe de Mandetta. Para compor o quadro paradoxal dois alvos móveis têm sido objeto da metralhadora presidencial: as maiorias duramente forjadas no Congresso por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre em torno da agenda de reformas do governo e a maioria suprapartidária inédita forjada pelos governadores antes mesmo da pandemia em apoio ao governo do Ceará. Se a reconstrução da economia e do Estado importa, não seria esse o caminho?

A desconstrução de lideranças leva o presidente e seu círculo a forjar maiorias com os partidos que no passado participaram do processo de captura do Estado por interesses particularistas. A tentativa de desconstrução da PF, da Lava Jato e da imagem do ex-ministro Moro compõe o quadro. A linha de transgressão está ultrapassada em várias frentes. É nelas que a resiliência de nossas instituições é posta à prova: na reativação das barreiras institucionais situadas no sistema de Justiça, nos eixos federativo e parlamentar; e nos critérios de recapacitação político-econômica do Estado com foco estratégico nas políticas de saúde e na árdua reconstrução da economia.

*Professora aposentada do Departamento de Ciência Política (USP), membro da Academia Brasileira de Ciências, presidiu a Associação Internacional de Ciência Política


Folha de S. Paulo: Alexandre de Moraes suspende nomeação de Ramagem na PF

Nomeação de amigo do clã Bolsonaro para PF gerou resistência no Congresso e ações judiciais

Bruno Boghossian, da Folha de S. Paulo

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para diretoria-geral da Polícia Federal feita um dia antes pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A posse estava marcada para a tarde desta quarta-feira (29).

Moraes atendeu a um pedido do PDT, que entrou com um mandado de segurança no STF alegando "abuso de poder por desvio de finalidade" com a nomeação do delegado para a PF.

nomeação de Ramagem, amigo do clã Bolsonaro que era diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), motivou uma ofensiva judicial para barrá-la, tendo em vista os interesses da família e de aliados do presidente em investigações da Polícia Federal.

Após a saída de Sergio Moro do governo sob a alegação de interferência política na Polícia Federal, a nomeação do novo diretor-geral da corporação virou alvo de uma série de ações na Justiça e de resistência no Congresso.

Bolsonaro oficializou no Diário Oficial da União desta terça-feira (29) os nomes do advogado André de Almeida Mendonça, 47, para substituir Moro no Ministério da Justiça, e do delegado Ramagem, 48, para a vaga de Maurício Valeixo na Diretoria-Geral da PF.

O plano de troca da chefia da PF foi estopim da saída de Moro. O ex-ministro disse que Bolsonaro queria ter uma pessoa do contato pessoal dele no comando da corporação para poder "colher informações" e "relatórios" diretamente.

Diante da nomeação de Ramagem, partidos e movimentos políticos entraram com ações judiciais para tentar impedir a posse, que estava marcada para as 15h desta quarta. Eles alegam "abuso de poder" e "desvio de finalidade" na escolha.

No final da tarde desta terça, havia ao menos seis processos pedindo a suspensão da nomeação de Ramagem, alegando que Bolsonaro praticou "aparelhamento particular" ao indicá-lo para a função. A base dos pedidos é a denúncia de Moro alegando interferência do presidente da República na Polícia Federal.

Diferentemente dos elogios ao nome do novo ministro da Justiça, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que Ramagem terá "dificuldade na corporação, na forma como ficou polêmica a sua nomeação".

"A gente sabe que a Polícia Federal é uma corporação muito unida, que trabalha de forma muito independente. Qualquer tipo de interferência é sempre rechaçado. A gente viu em outros governos que foi assim. Mas eu não conheço [Ramagem]", disse à Band o presidente da Câmara.

Ramagem se aproximou da família Bolsonaro durante a campanha de 2018, quando comandou a segurança do então candidato a presidente depois do episódio da facada.

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) é um dos seus principais fiadores e esteve à frente da decisão que levou Ramagem ao comando da Abin.

Na noite de segunda (27), Bolsonaro disse não haver esquema de notícias falsas. "Meu Deus do céu. Isso é liberdade de expressão. Vocês deveriam ser os primeiros a ser contra a CPI das Fake News. O tempo todo o objetivo da CPI é me desgastar", afirmou Bolsonaro, ao ser questionado sobre possíveis prejuízos que a troca no comando da Polícia Federal traria à investigação sobre as fake news.

A Rede Sustentabilidade também entrou no STF contra a nomeação de Ramagem. O partido apresentou ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) afirmando que conversa por aplicativo entre Bolsonaro e Moro "demonstram de forma inequívoca a vontade de interferência em investigações".

Para o senador Randolfe Rodrigues (AP), líder da sigla no Senado, apesar de preencher os requisitos estritamente legais, a nomeação é "uma tentativa de Bolsonaro controlar e abafar investigações da instituição que envolvem seus familiares e conhecidos".

Randolfe, ao lado do senador Fabiano Contarato (ES), é autor de outra ação no Judiciário. Os parlamentares pediram para que fosse anulada a exoneração de Valeixo e suspensas novas nomeações. A ofensiva, porém, foi rejeitada pelo juiz Ed Leal, da 22ª Vara Federal Cível do DF. Os advogados da Rede avisaram que irão recorrer.

O PSOL, através do deputado federal Marcelo Freixo (RJ), entrou com ação, mas preferiu contestar a nomeação à primeira instância da Justiça. "Não permitiremos que o presidente transforme a PF numa polícia política a serviço da família", afirmou.

A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) ingressou com ação na Justiça Federal em Brasília pedindo para que Ramagem seja proibido de assumir. O coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL), Rubinho Nunes, confirmou que o grupo político também entrou com ação contra a posse.