Day: março 11, 2020

Elio Gaspari: Economia ensina que esperança não é estratégia

Guedes deve ter seus motivos para estar tranquilo, mesmo que seja um dos poucos com essa serenidade

A Bolsa de Nova York teve a maior queda desde a crise de 2008, a de São Paulo suspendeu o pregão, fechou com um tombo de 12% e o dólar bateu em R$ 4,73. Diante desse quadro, o doutor Paulo Guedes disse que "estamos absolutamente tranquilos", pois sua equipe "é serena, experiente". Nada contra, salvo os precedentes.

Em 2008, Lula disse que a grande recessão americana chegaria ao Brasil como uma "marola". Deu no que deu. Em 1979 e 1980, diante de uma alta do petróleo e dos juros americanos, o governo brasileiro (e o FMI) garantiam que a dívida externa seria administrável. O país quebrou, entrando na sua década perdida. Em 1973, quando o mundo sofreu o primeiro choque do petróleo, o Brasil era apresentado com uma "ilha de tranquilidade".

Paulo Guedes deve ter seus motivos para estar tranquilo, mesmo que seja um dos poucos ministros da Economia com essa serenidade. Seus antecessores acreditaram que crises podiam ser mitigadas com otimismo. Como ensinou Tim Geithner, o ex-diretor do Federal Reserve Bank de Nova York e ex-secretário do Tesouro americano, que toureou a crise de 2008, "esperança não é estratégia".

Ninguém explicou a origem do pânico financeiro das últimas semanas. Atribuí-lo ao coronavírus é pouco. Se for só isso, a economia mundial tomará um tombo em 2020. Em 1973, quando os países exportadores de petróleo começaram a aumentar o preço do barril, poucos se deram conta do tamanho da encrenca. Seis anos depois, quando o aiatolá Khomeini derrubou o Xá do Irã e provocou a segunda alta do petróleo, muita gente achava que ele era um velhinho bondoso de barbas brancas. Em 2008, quando o economista Nouriel Roubini previa a crise bancária, chamavam-no de "Doutor Fim do Mundo". Ele virou profeta e, na segunda-feira (9), diante da queda do preço do petróleo somada ao coronavírus, tuitou: "recessão e crise à vista".

A serenidade de Guedes inquieta quando ele diz que "a democracia brasileira vai reagir, transformando essa crise em avanço das reformas". Uma coisa tem muito pouco a ver com a outra. Viu-se isso com o pibinho que se seguiu à reforma da Previdência. Essa e todas as propostas de Guedes podem melhorar a situação da economia, mas são mudanças de médio prazo. Democracia não reage, apenas existe ou deixa de existir. Misturando-se banana com laranja consegue-se apenas travestir um mau cenário econômico, fantasiando-o como questão política.

A crise de 2008 deveu muito a um clima de festa da banca, mas quando um sujeito é responsável pela administração de uma economia deve conhecer seus limites. Em março daquele ano, quando a banca não falava em crise, o presidente George Bush submeteu ao seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, um discurso no qual diria que o governo não salvaria empresas. Paulson surpreendeu-o pedindo-lhe que cortasse a afirmação. Em setembro o mundo caiu. Ele conhecia o mercado e evitou que o presidente dissesse algo que poderia obrigá-lo a desmentir-se.

O Fed de Nova York tem hoje uma caçadora de encrencas potenciais no comportamento e nas certezas dos banqueiros. Ela se chama Margaret McConnell e ensina: "Nós gastamos tempo procurando pelo risco sistêmico, mas é ele quem tende a nos achar."


Fábio Alves: Copom sob fogo cruzado

O vaivém do BC causa ruídos. O Fed adotou uma sinalização firme, concorde-se ou não

A próxima decisão do Copom sobre a taxa Selic se transformou num debate polêmico e acirrado acerca do dilema que a autoridade monetária enfrenta neste momento de crise internacional, deflagrada pelo impacto do surto do novo coronavírus na economia global e pela guerra de preços do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita.

O dilema do Banco Central é o seguinte: cortar a Selic, colocando pressão sobre o dólar ao reduzir o diferencial de juros entre o Brasil e o exterior, em particular as taxas praticadas nos Estados Unidos, ou manter os juros inalterados em 4,25% e não desancorar o câmbio, mas deixar de injetar um necessário estímulo em meio à desaceleração da economia global e à resposta coordenada de redução de juros pelos bancos centrais mundiais.

Se há uma disputa ferrenha entre analistas e investidores sobre o Copom cortar ou não os juros, na reunião marcada para o próximo dia 18, a culpa é, em grande parte, do próprio BC, que vem emitindo sinais contraditórios sobre os próximos passos da política monetária, tornando a calibragem das expectativas confusa.

Basta lembrar que, no comunicado da sua última reunião, em fevereiro, o Copom sinalizou que interromperia o ciclo de corte de juros.

Em meio ao pânico com o coronavírus, no dia 3, logo depois que o Federal Reserve (Fed) fez um corte emergencial dos juros americanos em 0,50 ponto porcentual, o BC divulgou uma nota dizendo que “o impacto sobre a economia brasileira proveniente da desaceleração global tende a dominar uma eventual deterioração nos preços dos ativos financeiros”.

Foi a deixa para o mercado interpretar que o Copom cortaria juros em março, ficando a dúvida se a redução seria de 0,25 ou 0,50 ponto. Mas, na segunda-feira, o diretor de política monetária do BC, Bruno Serra, disse ser “importante reforçar que o atual estágio segue recomendando cautela para a política monetária”, o que alguns viram como um recuo da nota emitida na semana passada. Mais tarde, Serra voltou a amenizar o tom ao afirmar que, em relação a outros países, o BC brasileiro tem a vantagem de poder usar a política monetária.

Esse vaivém do BC causa ruídos. O Fed decidiu adotar uma sinalização firme de afrouxamento monetário, concordando-se ou não com a sua decisão.

Os que defendem a manutenção da Selic dizem que um corte de juros vai exacerbar a escalada do dólar, ao reduzir o fluxo de capital externo em busca de retornos mais elevados. E uma depreciação cambial pode colocar pressão de alta na inflação. Até agora, não se viu um repasse cambial indesejável aos preços.

Os que defendem um corte de juros argumentam que o diferencial de juros já está maior desde que o Fed fez o corte da taxa básica, para a faixa entre 1,0% e 1,25%. Além disso, são crescentes as apostas de que o Fed vai reduzir os juros em 1 ponto, para zero, na sua reunião também no dia 18.

Essa corrente de analistas diz que a redução do diferencial de juros explica apenas uma pequena parte da recente alta do dólar, com fatores domésticos (como a frustração no crescimento do PIB e o embate entre Jair Bolsonaro e o Congresso, minando as perspectivas para as reformas) e externos (valorização global do dólar) tendo influência maior.

Um renomado economista diz que sua projeção atual de crescimento do PIB brasileiro neste ano, de 1,5%, deve ser revisada para baixo por conta do impacto do coronavírus. Ele não descarta um crescimento de apenas 0,5% neste ano. Para ele, um corte da Selic, de 0,5 ponto, se faz necessário, uma vez que o governo não tem espaço fiscal para estimular a economia.

O choque do coronavírus, com a queda nos preços de commodities, em especial o tombo do petróleo, terá um efeito desinflacionário, ou até deflacionário, para o Brasil. Sem falar que, desde que a crise se agravou, houve um aperto considerável nas condições financeiras do País, o que pode contaminar os canais de crédito.

Se o Copom não cortar a Selic, estará endossando esse aperto num momento de desaceleração da economia. Quanto à disparada do dólar, a culpa não é dos juros: o BC precisa agir mais energicamente e anunciar uma intervenção cambial mais ampla.


Paulo Delgado: Mecânica do poder

Nosso slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar

Tem sido difícil ajudar o Guedes, é o que se houve aqui e ali entre intelectuais vinculados às atividades econômicas. Na área acadêmica a antipatia é esperada, pela linguagem coercitiva e disciplinar característica do governismo atual. Presume-se que a defesa do liberalismo não visa unicamente a mudar as habilidades no trato da política pública, mas a fazer um pensamento econômico mais obediente, quanto mais útil, à mecânica do poder.

Do lado dos simpáticos, mas críticos, mesmo sabendo que a política é um jogo de espaços, as maneiras do governo revelam uma natureza ligada a uma imodéstia que pouco ajuda. Uns lembram que em tudo há uma arte, até mesmo para cortar as pedras. Com o continuado cenário de incerteza, com forte característica de risco e a má conduta da economia, melhor não exagerar e pedir ao País que se comporte como adulto por um tempo infinitamente excessivo. Pois adversário do melhor ambiente de negócios tem sido a compulsão do governo por selfies e lives, explorações infantis de si mesmo. Fogo de artifício que costuma queimar o fogueteiro.

O presidente quer construir um campo de provas desconhecido para operar seu governo. A convocação dos desfiles de domingo – com tanta antecedência não é uma manifestação – continua tendo objetivos ocultos e visa a compensar a dispersão administrativa. A ideia de renovação por crise permanente sugere levar o atrito institucional ao limite para mudar peças na anatomia do poder. Convidando militares da ativa para se tornarem ministros, a digital das Forças Armadas na política já é fato.

O resultado econômico não produz convicção e revela um paradoxo. Como a economia perde giro, ao contrário do que se pensava após as reformas da Previdência e trabalhista, além de o governo não saber explicar por que os investidores não aparecem, a expectativa se ancora cada vez mais na política. Isso só reforça a crise institucional e joga risco excessivo num governo especialista em enredos secundários. Como a equipe econômica é teórica, insensível à desigualdade social, subestima a política e tem certa má vontade com dificuldades, a confusão prospera. É exemplar a entrelinha da questão dos dois PIBs. Traduzindo: o Estado não é mais o País, mas um setor da sociedade cujo PIB ruim bota a economia para baixo. O discurso moral que brota daí incluí escolha ficcional envernizada para fazer a propaganda do PIB bom, o privado, o que bota a economia para cima. Conclusão: não há necessidade de reforma para o País crescer 3%.

Tudo pode ser intensificado na medida em que o governo, ambíguo, acusa o Congresso pelos acordos que lhe dão vitória. Na dúvida, melhor falar a verdade e dizer como negocia, reconhecendo a legitimidade do Parlamento. Ou continua fora do tom e do foco, ampliando a insegurança geral.

Esse confronto com a política, assim como o baixo desempenho econômico e a dificuldade de gerir uma pasta tão grande é que podem estar provocando estresse extremo no ministro. Que não tem o que reclamar do presidente Rodrigo Maia, seu maior fiador e apoio para acalmar o Congresso e o mercado. Em suma, o presidente precisa ajustar o caminho este ano se quiser um terceiro ano diferente, em que o País possa colher os resultados que o governo prometeu. Mas como este ano temos eleições municipais e ele parece indiferente a elas, para seus adversários é agora que começa a sucessão de 2022.

O governo precisa se livrar do tempo perdido e diminuir a agenda de enfrentamento com o Legislativo e o Judiciário para não parecer que põe a culpa nos outros por interesse próprio. E, finalmente, ter criatividade para parar de rir do PIB e liberar recursos para investimento, mantendo a âncora fiscal. Sem se esquecer de que tem de enfrentar a responsabilidade de obedecer a todo o rito formal para isso. Por exemplo, em infraestrutura, só se pode falar em parcerias público-privadas (PPPs) e concessões depois de os recursos alocados percorrerem os longos passos burocráticos – estudo, audiência, Tribunal de Contas da União, edital, leilão e contrato.

Muita coisa para um governo que convoca um humorista para responder sobre o baixo crescimento do PIB e apresenta o fato como galhofa – o humor sempre foi o outro lado do trágico, uma forma de lidar com o mal-estar. Rir em velório tanto pode ser incongruência como transgressão. Há quem ria por submissão quando ameaçado por algo que parece dominante. Mas rir do abismo pode ser um desejo de amortecer a queda. Um alerta à equipe econômica, que está cada vez mais sem fio terra e indiferente ao potencial energético do chão.

Nesse cenário de sombras, parece ilusionismo achar que ao governo importa a aprovação da reforma tributária ou mesmo a administrativa neste ano. Especialmente se se repetir a pior das tradições do Parlamento e deputados e senadores decidirem disputar eleições municipais para manterem seu poder local. Assim, se surgirem mais de 20% de candidatos a prefeito ou vice, o ano acaba em julho.

Por tudo o que se vê, “é a economia, estúpido” não é nosso slogan. O slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar.

*Sociólogo


Rosângela Bittar: Palácio em reforma

Estaria no Planalto a ferramenta para romper o impasse da governabilidade

Na gestão Jair Bolsonaro, por incrível que pareça, ainda existem pessoas que pensam estrategicamente. Isto significa, na crise permanente em que prefere atuar o chefe do Executivo, isolar no campo da propaganda eleitoral sua maneira excêntrica de exercer o poder. É indispensável evitar que a falta de lógica transborde e contamine a todos.

Enquanto o presidente faz política (a seu modo), enfrenta delírios persecutórios e arremessa bombas verbais nas instituições, sua retaguarda precisa oferecer condições objetivas de trabalho.
Retaguarda na política e, em especial, no Palácio do Planalto, pois a economia segue orientada. A urgência está em construir um canal de diálogo para votar as reformas enquanto o presidente se comporta como quiser. Estaria no Palácio do Planalto a ferramenta para romper o impasse da governabilidade.

Todos já sabem como atua o presidente e não adianta pensar em mudanças de personalidade. Por exemplo: ano passado, nesta mesma época, mas com epicentro em maio, o presidente convocou seus eleitores a irem às ruas, também contra o Legislativo e o Judiciário. Foram momentos decisivos do primeiro ano de mandato que ele repete agora e certamente triplicará no ano que vem, mais perto da campanha de reeleição.

Bolsonaro funciona testando limites. Este ano disputa com o coronavírus o título de quem pode mais. Se seus apoiadores destemidos enfrentarem aglomerações, o presidente colherá êxito total. Para não desestimular a tropa, já está, inclusive, provocando o adversário por exageros do alarme.

Sem base no Congresso, fortalecer o Palácio é a solução buscada para este momento.

A demissão do deputado Onyx Lorenzoni da Casa Civil foi um dos primeiros resultados dessas reflexões. Segue-se uma limpeza da equipe que o agora ministro da Cidadania levou para o Palácio. Com sua substituição pelo general Braga Netto (deu conta da intervenção no Rio, espera-se que dê conta da intervenção no Planalto), a expectativa é de que a Casa Civil adquira densidade administrativa e traquejo político para somar na negociação com o Congresso.

O sucesso do novo general do Planalto dependerá do tamanho da corda que o presidente lhe der. Seu currículo de sucesso nada valerá (o general Santos Cruz pagou para ver e perdeu), se o vereador Carlos Bolsonaro, derrubador de ministros, tiver algum dos seus interesses contrariados.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está vivendo uma espécie de crise, não identificada publicamente, a cuja existência seus próximos se referem quando os rompantes causam estranheza, como foi o ataque recente a deputados e senadores. Mas não vai sair. Visto como um estabilizador de humor de Bolsonaro, explode antes do presidente, neutralizando as reações do chefe. Permanecerá com o mesmo papel.

O general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, está desequipado para realizar a tarefa que lhe cabe oficialmente, a de articulador político. Caiu na rede de Carlos Bolsonaro, de um lado, e ficou com fama de descumpridor de acordo, do outro. Sua situação no Planalto já é de sobrevivente. Se ficar, deve aumentar a equipe política que o assessora.

O Planalto tem hoje um homem forte, que permanecerá: o ministro Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral. Ele coordena, por dentro, a Presidência e boa parte do governo. Tem acesso a Bolsonaro, já trabalhou no Congresso. É, hoje, quem melhor responde às expectativas das partes em conflito.

Mesmo com as mudanças pontuais em cogitação, continuará faltando o maestro, um coordenador dos coordenadores. Está aí o nó da reforma do Planalto. A questão é que Bolsonaro é permanente, não suscetível de substituição, e não gosta do papel que lhe cabe, com exclusividade.


Vera Magalhães: Distopia bananeira

O que Bolsonaro quer ao afirmar que eleição foi fraudada? Inviabilizar a próxima?

O Brasil e o mundo já viveram crises combinadas antes, de diferentes naturezas e gravidades. Em 2008, a crise dos subprime nos Estados Unidos engolfou as economias de vários países ao redor do globo. No Brasil, a Lava Jato e a reeleição de Dilma Rousseff provocaram um vórtex de recessão econômica, corrupção sistêmica e inviabilidade política de um governo, levando ao impeachment.

Mas o que está em curso em 2020, aliás, desde o advento Jair Bolsonaro, tem características inéditas e com pitadas de surrealismo.

Não serei a primeira a comparar o atual governo do Brasil a um regime digno das distopias literárias e cinematográficas mais conhecidas, mas, agora, é como se os roteiristas tivessem resolvido forçar a mão para além da verossimilhança.

Ao mesmo tempo há pitadas de filme-catástrofe, com uma epidemia, a do novo coronavírus, que se espalha pelo planeta sem que se saiba ao certo sua gravidade e duração, e uma crise econômica também global, associada ao surto. Para fechar o clichê distópico, o Brasil tem no comando (sic) dessa situação caótica um presidente disposto a avançar dia a dia no propósito de implodir as instituições. Não há Posto Ipiranga que dê jeito numa pane dessas proporções.

Bolsonaro, apenas nesta Quaresma, mandou vídeos convocando para os atos a favor de seu governo, mentiu em rede nacional ao negar tê-los enviado, colocou um humorista no carro oficial para distribuir bananas a jornalistas e se esquivar de responder sobre o PIB insuficiente de 2019, fez discurso num púlpito para convocar para o ato que negara estar inflando, mandou três projetos de lei do Congresso (PLNs) para o Legislativo como parte de um acordo para ter seu veto mantido, depois exortou o Congresso a rejeitar os mesmos PLNs que mandou, excluiu um jornal de uma cobertura e, como se já não fosse demais, disse que a eleição vencida por ele há menos de dois anos foi fraudada.

Não há como examinar tal portfólio e não enxergar que ele está testando a aceitação de parte da população que lhe dá suporte a um arreganho golpista. E a resiliência ou o temor dos demais Poderes e das outras instituições a essa ameaça.

É por isso que são francamente insuficientes e acovardadas as reações dos comandantes dessas instituições a tamanha ousadia autoritária.

Não adianta Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre ou Dias Toffoli argumentarem que cabem a eles ter frieza, pregar o diálogo e não agravar ainda mais a situação.

Tal receita faz sentido num ambiente de normalidade civil, mas não em um em que o presidente, em pessoa ou por meio de ministros de Estado, familiares, parlamentares e milicianos digitais, está emparedando a democracia um pouco a cada dia.

Estrangular a imprensa, militarizar a política ao mesmo tempo em que politiza os meios militares, ignorar os riscos de uma epidemia mundial em nome de guerra política e colocar em xeque a lisura do próprio sistema eleitoral não são brincadeirinhas de um presidente humorista, mas, sim, golpes desferidos sistematicamente em pilares do estado democrático de direito.

Se as lideranças nacionais que têm a responsabilidade de frear os ímpetos imperiais de Bolsonaro não cumprirem seu papel, ele logrará êxito em seus intentos. Os atos do dia 15 colocarão mais lenha na fogueira em que arde a credibilidade do Legislativo e do Judiciário. Podem, de quebra, impulsionar um surto até aqui razoavelmente bem contido do novo coronavírus.

E a narrativa mentirosa da fraude eleitoral, se não for desmontada com vigor até aqui não visto em notas protocolares, pode ameaçar a realização dos próximos pleitos. E aí os cruzados bolsonaristas terão derrubado os portões da cidadela e chegado ao castelo a partir do qual pretendem tomar a democracia de assalto.


Míriam Leitão: Como enfrentar o risco da recessão

Economistas fazem propostas diferentes para sair da crise, mas concordam que o governo Bolsonaro dificulta qualquer solução

O Brasil pode entrar em recessão. É o que acham os economistas Monica de Bolle, do Peterson Institute, e Armando Castelar, da Fundação Getúlio Vargas. Monica defende o aumento do gasto público, como resposta, desde que seja em investimento de infraestrutura com efeito multiplicador.

Armando discorda e argumenta que elevar o gasto público pode trazer mais desconfiança. Os dois concordam que o governo não tem projeto e que o presidente Jair Bolsonaro é parte do problema com sua agenda de geração de conflitos.

O mundo está dividido sobre qual é a melhor forma de proteger a economia nesta crise provocada pelo coronavírus. O governo americano reduziu a zero os custos sobre a folha de salários, o governo da Alemanha disse que não é o caso de usar estímulos fiscais. É difícil saber por onde ir, mas é fácil perceber que o caminho de Bolsonaro está errado. O presidente brasileiro parece viver em outro planeta. Nas últimas horas ele subestimou a crise e, do nada, inventou que houve fraude na eleição em 2018, que ele venceu.

Monica de Bolle disse que não se deve elevar gasto corrente, porque o multiplicador é muito baixo. Por isso, recomenda que o governo inverta a ordem da sua agenda. Deixe as reformas constitucionais para depois e coloque na frente o plano de infraestrutura.

— Têm que ser projetos multiplicadores. O saneamento é importante, porque o país precisa demais e movimenta a indústria do cimento e da construção, mas eu acho que é preciso combinar com muita coisa na área de logística, porque isso melhora as condições de escoamento e reduz o custo industrial — diz.

A economista argumenta que só porque o governo Dilma usou o BNDES da forma errada não se pode ter medo de, neste momento, usar o banco para financiar projetos. Armando acha que as obras vão acontecer apenas se houver melhora no ambiente de negócios.

— O que segura o investimento em infraestrutura é o ambiente regulatório, a dificuldade de fazer projeto, de liberar licença ambiental, a incerteza sobre prazos. Há muitos projetos bons, mas o governo não consegue fazer a sua parte. O concessionário tem dificuldade de saber onde está entrando. Ninguém quer saber mais de dinheiro do BNDES. O retorno sobre o capital das empresas grandes está maior do que o custo de financiamento, mas a incerteza é enorme — diz Armando Castelar.

O grande obstáculo hoje está nas confusões criadas pelo governo.

— Quando se olha em volta, o que se vê é que haverá um protesto contra o Supremo e o Congresso sem se saber bem por quê. O que está travando a gente é isso. Brigar com um Congresso que quer fazer reformas só aumenta a incerteza. É isso que está atrasando o crescimento, tanto é assim que o investimento não se recuperou, está 28% abaixo do que estava há sete anos, apesar de as empresas se financiarem a custos baixíssimos — diz Castelar.

Monica acredita que a reforma da previdência abriu espaço para medidas de estímulo fiscal.

— Ela foi feita para isso e mudou a trajetória da dívida no médio prazo. Outro fator de mudança foi a queda forte dos juros. Os juros podem cair mais porque a inflação não vai subir nem com a alta do dólar. Existe espaço fiscal. Ele não é imenso. Por isso, é preciso saber como fazer uma política de estímulo. Aqui, nos Estados Unidos, está todo mundo falando em recessão. Neste momento o governo não pode ser dogmático — diz Monica.

Nenhum dos dois acredita que basta fazer “as reformas”, que aliás nem foram apresentadas. Armando argumenta que a tributária é importante, mas ela produzirá muita incerteza até ser entendida. Ambos consideram a crise do coronavírus gravíssima, e Monica avalia que no Brasil há pouca consciência da sua gravidade:

— É uma variante da Sars, mesmo a mais branda pode trazer sequelas pulmonares.

Na economia, esta crise tem canais de transmissão diferentes. Em 2008, lembra Monica, houve paralisia nos mercados de crédito que bateu nas empresas, e aí os governos injetaram liquidez.

— Desta vez está parando tudo. Manda todo mundo pra casa, fecha universidade, fecha escola, fecha fábrica, fecha país — lembra Monica.

Do debate entre os economistas pode sair uma boa receita para superar essa conjuntura tão diferente das outras. O problema é que o país está enfrentando a mais complexa crise recente na mão do mais insensato dos governantes.


Bernardo Mello Franco: Diante da crise, Jair age como um Bolsonaro

O cenário de crise exigia um presidente sério e capaz de apontar caminhos. Mas Bolsonaro insiste em estimular a radicalização e o choque entre Poderes

O dólar bateu novo recorde, a Bolsa registrou a maior queda no século e os economistas passaram a falar em recessão. As notícias do início da semana exigiam um presidente sério, equilibrado e capaz de apontar caminhos ao país. Mas Jair agiu como um Bolsonaro. Em vez de se comportar como adulto, voltou a estimular a radicalização e o choque entre Poderes.

Em Miami, o capitão usou sua tropa para manter a faca no pescoço do Congresso. Ele afirmou que as manifestações contra o Legislativo e o Judiciário vão mostrar quem está afinado com o “interesse do povo brasileiro”. No mesmo discurso, o presidente questionou a lisura da eleição de 2018. Sem apresentar provas, disse que só não venceu no primeiro turno porque teria havido fraude nas urnas eletrônicas.

Ao incentivar as marchas a seu favor, Bolsonaro praticou um ato de chantagem explícita. Ele disse que os protestos vão acontecer “de qualquer jeito”, mas indicou que pode esvaziá-los se os parlamentares abrirem mão de controlar parte do Orçamento. A declaração sobre as urnas foi ainda mais irresponsável. O presidente voltou a jogar seus seguidores contra a Justiça Eleitoral, num teatro da conspiração em que ele interpreta o eterno papel de vítima.

Em tempo de crise, Bolsonaro se mantém em campanha aberta contra as instituições. Seu objetivo é sustentar um clima de tensão permanente para acuar adversários e tumultuar o debate público. Ontem os ministros do TSE foram obrigados a sair em defesa das urnas. Ao questioná-las sem provas, o presidente incentiva a sua claque a desconfiar da democracia.

A ofensiva contra o sistema eleitoral cumpre uma dupla função. No curto prazo, Bolsonaro desvia a atenção da CPI das Fake News, que avança na apuração de suspeitas sobre a sua campanha. A comissão parece estar mais perto de comprovar o uso de disparos em massa para difundir notícias falsas na eleição de 2018. No longo prazo, o capitão começa a projeta uma nuvem negra sobre a disputa de 2022. Ao questionar previamente a legitimidade do pleito, ele abre caminho para contestar uma possível derrota.


Merval Pereira: Alimentando fantasmas

Bolsonaro vive da discórdia, se alimenta de intrigas e deixa por onde passa um rastro de destruição moral

É impressionante a irresponsabilidade do presidente Bolsonaro no trato da coisa pública, comportamento que nunca teve maior repercussão nos seus 27 anos de mandatos populares porque ele nunca teve importância política. Todos os assuntos são tratados com leviandade própria dos que cuidam apenas da próxima eleição.

Afirmar que a pandemia do Covid-19 é um exagero que a “grande mídia propaga pelo mundo” é no mínimo uma imprudência governamental que pode gerar uma crise de saúde pública no país. Tão pernicioso quanto a “marolinha” de Lula na crise financeira de 2008.

Se fosse levado a sério a tempo, o mal teria sido cortado pela raiz. Circulam na internet vários vídeos com barbaridades defendidas por Bolsonaro durante sua carreira de deputado federal, inclusive não pagar impostos, sonegação que se hoje fosse adotada por seus seguidores fiéis quebraria o governo que ele preside.

Essas mesmas barbaridades foram ditas e reditas durante a campanha eleitoral, e ele só chegou com chances no segundo turno porque até o último momento seus adversários acreditavam que acabaria perdendo fôlego.

Não contavam com o acirramento da polarização antipetista, e muito menos com a facada, trágico atentado que até hoje prejudica a saúde de Bolsonaro e, na campanha, protegeu-o dos debates.

Temos então um presidente doentiamente paranóico que não sabe o limite entre o populismo eleitoral e a presidência de uma Nação, que precisaria neste momento de crise mundial de uma liderança equilibrada que investisse na unidade, e não na divisão.

Mas Bolsonaro vive da discórdia, se alimenta de intrigas e deixa por onde passa um rastro de destruição moral. Explora as dificuldades do brasileiro comum culpando sempre outros por seus fracassos, que frustram os que ainda crêem nele.

Sua força política é originária dessa frustração de um povo que, de tempos em tempos, busca um salvador da pátria e invariavelmente encontra pela frente um pilantra político pronto a usá-lo em benefício pessoal.

O caso das emendas impositivas, que dão ao Congresso uma autonomia em relação a parte considerável do orçamento da União, é exemplar da maneira sub-reptícia com que Bolsonaro se movimenta no jogo político, dilapidando a confiança que deveria existir entre o chefe do Executivo e os demais chefes de poderes.

Quantas vezes Bolsonaro foi e voltou nesse debate, ora fazendo acordo com o Congresso, para logo depois anunciar que não fizera acordo nenhum? Quantas negou ter avalizado a manifestação contra o Congresso, para depois assumir essa convocação fingindo que não era contra os políticos, mas a favor das reformas?

Até que assumiu a verdadeira intenção ao sugerir que se o Congresso abrisse mão de comandar a verba de R$ 15 bilhões do orçamento, poderia negociar o cancelamento das manifestações, que ele diz que são espontâneas e sem liderança do governo.

Uma chantagem explícita, em que assume a mesma posição que criticou nos políticos, e também a coordenação tácita das manifestações. Bolsonaro gosta de dizer que não tem controle sobre seus seguidores nos meios sociais, insinuando que essa rede de intrigas e ódio tem vida própria para defendê-lo.

Mas a CPI das Fake News está demonstrando que a origem dos ataques das milícias digitais está sempre ligada a seus filhos e assessores que formam o já conhecido Gabinete do Ódio instalado no Palácio do Planalto.

E o que dizer da denúncia de que ganhou no primeiro turno em 2018, mas teve que disputar o segundo turno por fraude na contagem dos votos na urna eletrônica? É de uma irresponsabilidade surpreendente até mesmo para os seus padrões.

Ele já havia jogado essa carta durante a campanha, prevenindo-se de um revés que nunca esteve próximo. Hoje, retoma o tema apenas para manter viva a polarização com a esquerda, que supostamente ainda é uma ameaça à democracia brasileira.

Bolsonaro ataca a democracia a pretexto de protegê-la de fantasmas que vai alimentando, ajudando a instabilidade política do país no momento em que uma liderança madura e adulta seria necessária.


Just how to Survive a Broad Admission Ground

They didn't plan to compose an acceptable article. Counterfeit documents are essays where the author brings out the key thesis and abstract of a specific papers, and after that writes an essay in his or her own type. Make your essay energetic and exciting. Don't produce an essay with no intent.Read more


A democracia está em risco? Assista a debate em encontro que reuniu 75 jovens do Brasil

Historiador e professor Marcus Vinicius Oliveira coordenou a discussão em evento realizado pela FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Os riscos à democracia geram bastante preocupação e debate em meio ao acirramento e polarização de ideias na sociedade. Governos de extrema direita, como é o caso do presidente Jair Bolsonaro no Brasil, demonstram cada vez mais posturas contrárias aos ideais democráticos e republicanos e alimentam polêmicas para inflar os ânimos de seus seguidores, conforme analisam cientistas políticos.

Como de costume, a discussão é polarizada. Os pontos apresentados por cada um dos lados envolvidos nessa batalha ideológica são intermináveis e usados como argumento para defenderem o que pensam. Muitas vezes, até a dignidade humana é colocada em xeque. Mas até que ponto a democracia existe no Brasil? É possível e preciso democratizar a democracia? Em que medida a democracia resulta na consciência e prática de direitos e deveres por parte dos cidadãos?

Esses e outros assuntos foram abordados em discussão coordenada pelo historiador e professor Marcus Vinicius Oliveira, durante o IV Encontro de Jovens Lideranças, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Corumbá de Goiás, a 125 quilômetros de Brasília. No total, 75 jovens dos 26 Estados e do Distrito Federal participaram do evento.

» Confira abaixo o vídeo da palestra de abertura ou clique aqui!

https://youtu.be/k7-Wci6OhLc

 

Veja mais vídeos:

» Batalha de poesias ecoa protesto contra preconceitos, violência e criminalidade

» ‘Participação dos jovens melhora o debate’, afirma Benjamin Sicsu

» ‘Nosso objetivo não é fazer doutrinarismo’, diz Luiz Carlos Azedo


Poder espiritual ganha força com sincretismo religioso em Brasília

Buscas por novas experiências move pessoas sem religião no país, que apresenta aumento de evangélicos

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Sincretismo religioso e misticismo movem multidões de pessoas para a região de Brasília, a capital do poder. Toda essa mobilização ocorre em meio ao aumento de número de evangélicos e de pessoas sem religião no país, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O assunto é tema da reportagem especial da 16ª edição da revista Política Democrática Online, editada e produzida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.

» Acesse aqui a 16ª edição da revista Política Democrática Online

Todo o movimento em torno de Brasília, segundo sociólogos e antropólogos, tem relação com o aumento do número de pessoas sem religião no país, que, em 2010, era equivalente a 8% da população. Além disso, em 2022, se mantida a tendência atual de crescimento da quantidade de evangélicos, os católicos devem representar menos de metade da população brasileira. Desde os anos 1990, o catolicismo registra queda significativa no número de fiéis: em 2010, 64% dos brasileiros professavam a religião, contra os 91% registrados em 1970.

No ano 2000, 26,2 milhões de pessoas se declaravam evangélicas, o que representava 15,4% da população. Dez anos depois, esse número saltou para 42,3 milhões de pessoas, o equivalente a 22,2% dos brasileiros. Em 1991, os evangélicos somavam 9% e, em 1980, 6,6% da população brasileira. Todo esse movimento tem reflexo na política. A bancada evangélica hoje tem 91 parlamentares no Congresso Nacional.

As urnas reforçaram a bancada evangélica no Congresso Nacional. Para a Câmara dos Deputados foram eleitos 84 candidatos identificados com a crença evangélica – nove a mais do que na última legislatura. No Senado, os evangélicos eram três e, em 2019, serão sete parlamentares. No total, o grupo que tinha 78 integrantes ficará com 91 congressistas.

O levantamento é do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), com base nos dados disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2014, o Diap identificou 75 deputados seguidores da doutrina evangélica. Em 2010, a bancada tinha 73 representantes na Câmara.

Leia mais:

» Coronavírus: Como epidemia pode afetar crescimento econômico da China e do Brasil?

» Brasil precisa avançar na construção de sistema nacional de educação, diz Ricardo Henriques

» Bolsonaro apoia plano de Trump que favorece Israel em meio à guerra, diz José Vicente Pimentel

» Protesto contra o Congresso? Confira editorial da revista Política Democrática online

» Educação, recuo da indústria e poder religioso são destaques da Política Democrática Online de fevereiro

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática online


José Roberto Batochio: Dois Poderes da República sob ataque

Convocar manifestação contra o Congresso e o STF constitui atentado à democracia

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos” - Winston Churchill, discurso na Câmara dos Comuns em 1947.

Quando pronunciou a frase que se tornaria o mantra da democracia através dos tempos, Churchill era um deputado que acabara de experimentar as agruras desse sistema político, baseado no voto popular. Dois anos antes, a 2.ª Guerra Mundial ainda nem havia acabado, mas o gigante que conduzira a Inglaterra na vitória dos Aliados contra o nazi-fascismo foi derrotado nas eleições e deixou o cargo de primeiro-ministro. Muitos se revoltaram contra o que entenderam ingratidão dos ingleses, porém o estadista não se abalou: “Eles têm o direito perfeito de nos enxotar. Isso é democracia. É por isso que estamos lutando”.

Noutras circunstâncias, quando os inimigos da democracia insistem em atacá-la, os democratas é que devemos arrogar não só o direito, mas o dever de defendê-la. Nossos tempos talvez sejam, desde a grande corrente libertária forjada pelo pós-guerra dos anos 1940, os mais adversos a esse sistema de governo em que o povo detém, pelo voto igualitário, o controle de seu destino político. A democracia representativa, em especial, é submetida a um descrédito que no fundo alveja a política como instrumental de administração e solução institucional dos conflitos na sociedade. A todo instante se escreve o epitáfio da representação política e são, de fato, visíveis os sinais de insatisfação dos eleitores com seus representantes. A pesquisa Barômetro das Américas, realizada de dois em dois anos pela Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, com apoio no Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revelou em sua última rodada, em 2019, que 58% dos brasileiros não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia no País, mas, dando razão a Churchill, um porcentual maior, 60%, acha que ela ainda é a melhor forma de governo. Um hiato autoritário imposto por um golpe antidemocrático conta com a simpatia de 35% dos brasileiros, mas a maioria de 65% rejeita a ideia.

Os dados permitem a ilação de que, por maior que seja o desalento com a democracia, é majoritária a preferência nacional por mantê-la como a melhor forma de governo. Trata-se, portanto, de aperfeiçoá-la, extirpar-lhe os defeitos, que mais se devem aos que estão no topo da representação do que às vicissitudes dos representados. Constitui truísmo observar que as instituições democráticas são maiores do que os homens que as conduzem.

Fundamento básico da democracia é uma Constituição que avalize a isonomia republicana, assim como a clássica separação e independência harmônica dos Poderes, os quais, desempenhando papéis específicos, atuam como contrapesos recíprocos. Como no preceito bíblico, a democracia dá a César e a Deus o quinhão que lhes compete. Daí ser inadmissível que integrantes de um dos três Poderes do Estado, extrapolando suas funções discricionárias, embarque na temeridade de limitar a atuação de outro. Quando disputam a preferência do eleitor, os membros do Parlamento e do Executivo podem até apresentar programas eleitorais contendo tais limitações, mas para aplicá-las, já investidos no cargo, devem observar a liturgia constitucional. E na maioria das vezes, como regra do processo democrático, carecem do concurso do Poder em questão para alcançar seus objetivos reformadores. O que não podem é apelar para as “vozes das ruas” com o fim de se fortalecer e intimidar o Poder que, em avaliação autoritária, lhe nega um quinhão maior do que aquele que lhe está atribuído, invocando a fúria dos 35% que apoiam o hiato autoritário.

Divergências de governança entre os Poderes são naturais, mas cabe ao Executivo, embora igualmente eleito pelo povo, reconhecer que o Legislativo é o poder popular por excelência, porquanto diverso, plural, reunião eclética e sincrética das correntes que pulsam na sociedade, formando um mosaico que a contradição democrática tende a transformar em síntese da vontade nacional. Todo ato que emana do Parlamento, obviamente chancelado pela maioria, é um ato federativo que as minorias são obrigadas a respeitar - e o axioma vale para os demais Poderes, cabendo apenas ao Judiciário escrutinar a conformidade constitucional das decisões.

Quando o Executivo exorta seus acólitos em busca de apoio não propriamente à sua linha política, mas para intimidar os demais Poderes, expõe de forma condenável sua incapacidade de governar segundo a ordem democrática. Tal procedimento é típico de governos que não lograram cumprir promessas de campanha, frustraram eleitores e deram razão à oposição, buscando responsabilizar um “inimigo externo” por seu fracasso. Se a regra era culpar a imprensa, agora agitam as redes sociais. No andar dessa carruagem, a convocação do presidente da República para que seus correligionários venham às ruas, em manifestações contrárias à independência e autonomia do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, constitui um atentado à democracia que faria Churchill novamente ir à luta, como o fez contra o Terceiro Reich.

*Criminalista, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi deputado federal (PDT-SP).