Day: outubro 6, 2018

Congresso em Foco: Exército faz pacto para garantir a ordem institucional

Há um pacto entre os integrantes do Alto Comando do Exército para garantir a ordem institucional, independente do resultado das eleições

Pedro Paulo Rezende, Especial para o Congresso em Foco

O Alto Comando do Exército vai garantir a ordem institucional e não permitirá qualquer aventura promovida por inconformismo ideológico de candidato, seja qual for o resultado das eleições. Segundo um oficial que integra o colegiado, há um compromisso moral dos integrantes do organismo com o comandante da força terrestre, o general de exército Eduardo Villas Bôas. É um pacto que está acima da preferência política individual dos oficiais superiores, forjado pelo respeito a alguém que colocou como missão final de vida assegurar a transição da Presidência da República a um eleito dentro da normalidade constitucional.

Villas Bôas sofre de uma doença degenerativa motora grave. Os sintomas assemelham-se aos da esclerose lateral amiotrófica (ELA), ou "doença de Lou Gehrig". A síndrome desencadeia um processo de paralisia progressiva, que repercute na respiração, na fala e na deglutição, mas mantêm inalteradas as condições mentais do paciente.
O Alto Comando do Exército concentra os 16 oficiais de posto mais alto na organização (incluindo o comandante), o de general de exército, mais popularmente conhecido como general de quatro estrelas. Cabe a eles assessorar o comandante, estabelecer as políticas e resolver os temas comuns da força terrestre.

No último mês, todos os candidatos a presidente foram convidados a visitar os comandos militares. A rotina dos encontros abrangia uma exposição dos programas de cada força (incluindo também a Marinha e a Aeronáutica). No caso específico do Exército, era sempre reiterada a garantia de que o resultado das urnas será respeitado. Para o general Villas Bôas, a doença exigia um esforço extra para participar dessas reuniões.

General Villas Bôas
Hoje, as condições de saúde do comandante do Exército são tão graves que começaram a afetar os seus despachos com os oficiais do Alto Comando, que para poupá-lo passaram a tomar algumas decisões sem consultá-lo nos assuntos mais rotineiros. Quando há necessidade de sua presença em solenidade ou para receber alguma autoridade estrangeira ou nacional, a medicação é reforçada para suportar o sacrifício extra.

Democracia sob tutela militar
Os militares ganharam força no atual governo e não há qualquer exagero na afirmação de que as Forças Armadas hoje tutelam a frágil democracia brasileira. Vários fatores contribuíram para esse processo, que também colocou o comandante do Exército no papel de fiador da continuidade de Michel Temer na Presidência da República.

O primeiro deles veio do processo de impeachment de Dilma Rousseff. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, manteve contato estreito com o comandante do Exército até a cassação da chefe de Estado e a condução definitiva de Temer para o Palácio do Planalto. O objetivo era impedir confrontos entre os partidários contra e a favor do governo.

Depois, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, solicitou a abertura de dois inquéritos contra o presidente recém-efetivado. Embasou seus pedidos a partir de gravações feitas com consentimento do Ministério Público, por Joesley Batista, executivo da JBS, em uma visita fora da agenda, no meio da noite, ao Palácio do Jaburu. Um assessor de Temer, Rodrigo Rocha Loures, ainda foi preso em flagrante com R$ 480 mil em notas marcadas entregues por Batista.

Temer distribuiu benesses no Congresso e escapou. A Câmara negou autorização para que ele fosse investigado, o que o obrigaria a deixar o cargo, alegando que ele responderá pelos seus atos criminalmente após deixar o Planalto. Durante toda a polêmica sobre o assunto, Temer contou com as bênçãos de Villas Bôas. A razão era simples: para os militares, era melhor ter um governo fraco do que governo nenhum.

Até junho deste ano, o general Villas Bôas manteve uma rotina semanal: compartilhar e analisar os dados obtidos pela inteligência da força sobre a conjuntura institucional com a cúpula do Exército em Brasília e, por meio de teleconferência, com os comandantes de área. O objetivo desses encontros era avaliar os fatos na perspectiva do papel constitucional das Forças Armadas, que inclui “a defesa da pátria” e a “garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem”.

Nessas reuniões forjou-se o consenso – e aí está o “pacto” – de que uma ação de intervenção militar só se justificaria em um quadro de completa falência das instituições nacionais. A informação de que tal possibilidade chegara a ser cogitada pelo Exército nacional era um segredo que veio a público em 15 de setembro do ano passado, em uma conferência do secretário de Economia e Finanças, general de exército Antonio Hamilton Martins Mourão, na Loja Maçônica Grande Oriente de Brasília.

A quebra do pacto de silêncio foi o primeiro sinal de dissenso na força. Mourão passou para a reserva em fevereiro, depois de perder o comando militar do Sul e passar um tempo em um cargo importante, mas burocrático. Hoje, ocupa o posto de vice na chapa do candidato do Partido Social Liberal (PSL), o deputado Jair Messias Bolsonaro.

Apoio envergonhado
Dentro do Alto Comando, Bolsonaro é considerado um “mal menor”, mas enfrenta certas restrições. Os generais de exército não perdoam seus pecados de juventude. Por outro lado, alguns temem que um eventual governo do Partido dos Trabalhadores (PT) leve à radicalização da esquerda.

— Não vamos deixar que o país se transforme em uma Venezuela — disse um integrante do colegiado ao Congresso em Foco.

Os quatro-estrelas não esquecem que, quando estava na ativa, Bolsonaro planejou explodir bombas em quartéis da Vila Militar do Rio de Janeiro e destruir a Adutora do Guandu para protestar contra os baixos salários dos militares. Condenado em 1987 a 15 dias de cadeia pelo Conselho de Justificação (primeira instância da Justiça militar) e expulso da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, ele pediu passagem para a reserva e iniciou sua carreira política.

O general Leônidas Pires Gonçalves, que chefiava o Ministério do Exército, enviou o processo para o Superior Tribunal Militar (STM) solicitando o agravamento da pena por indisciplina e deslealdade. Ele queria expulsar e cassar a patente de capitão de Bolsonaro. Em 1988, o pedido foi negado, por falta de provas, por 9 a 4 votos. Os ministros seguiram o parecer do relator, general de Exército Sérgio Ary Pires, que considerou a punição aplicada pelo Conselho de Justificação correta.

Ary Pires era desafeto de Leônidas e se empenhou em minimizar as acusações. Em depoimento ao Centro de Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, o tenente-brigadeiro Cherubim Rosa Filho, que participou do julgamento, confirma a punição por indisciplina dada pela primeira instância.

Contra esse passado transgressor do candidato do PSL, porém, os generais contrapõem a questão da corrupção nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, revelada pelo escândalo do mensalão e pela Operação Lava Jato. O atentado contra Bolsonaro em Juiz de Fora, no dia 6 de setembro, acirrou ainda mais a rejeição ao PT e à esquerda em geral. Em resposta, Villas Bôas convocou uma reunião do Alto Comando, que deixou claro o repúdio da força terrestre ao ato.

A partir daí militares da reserva que integram a campanha de Bolsonaro, como o general Augusto Heleno, que tem bom conceito entre os ex-colegas de farda, começaram a se aproximar do colegiado. Apesar disso, a cúpula manteve o pacto de silêncio em respeito ao comandante do Exército. O general de Exército Geraldo Antônio Miotto, comandante militar do Sul (CMS), é um dos principais defensores dessa atitude de ponderação, e aos poucos, sua ascendência se torna mais forte entre os colegas, principalmente diante da ausência, cada vez maior, do comandante da força.

Villas Bôas, o El Cid
Um oficial do Alto Comando comparou a obstinação de Villas Bôas à do mítico herói espanhol El Cid Campeador, alcunha de Rodrigo Diaz de Vivar, herói da reconquista espanhola. Ele se tornou um símbolo do guerreiro cristão na luta contra os mouros.

Conta a lenda que, ferido de morte, El Cid manifestou seu desejo de continuar combatendo. Sua mulher, a princesa Ximena Díaz, vestiu o corpo do marido com sua melhor armadura, colocou-o sobre o cavalo para que, mesmo depois de morto, ele comandasse suas forças contra os inimigos da cristandade. A realidade foi bem menos romântica. Ele morreu em 1099, de causas naturais, e logo em seguida os mouros retomaram o Principado de Valência que El Cid conquistara e governou.

Neste ponto, Villas Bôas ultrapassou o famoso herói. Semiparalisado, ele continua como fiador da ordem institucional e não há quem o substitua, dado o imenso prestígio do comandante nas tropas do Exército. Elas veem com maus olhos os generais que deixam comandos militares e seguem para a Esplanada dos Ministérios.

Enquadram-se nessa categoria o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen; o ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna (visto como um subordinado do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann); e o assessor da presidência do Supremo, Fernando Azevedo e Silva, escolhido pelo ministro Dias Toffoli para ser a interface entre os militares e o Judiciário.

* Pedro Paulo Rezende, um dos jornalistas brasileiros com maior experiência na cobertura da área militar, já trabalhou nos jornais O Globo e Correio Braziliense e foi o correspondente brasileiro da mais importante publicação jornalística do setor, a Jane's Defence Weekly. É colaborador dos sites DefesaNet e Congresso em Foco.


El País: A prolongada e incômoda sombra dos militares nas eleições brasileiras

Exército retoma protagonismo no maior país da América Latina pela primeira vez em 30 anos de democracia

Por Afonso Benites, do El País

Pela primeira vez em 30 anos o Brasil vive uma campanha eleitoral sob a desconfortável sombra dos militares, que se tornaram, novamente, protagonistas na esfera pública. Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, encabeça as pesquisas para o primeiro turno das eleições presidenciais, que serão realizadas no domingo. Se vencer, seu vice-presidente será o ex-general Hamilton Mourão, que defendeu os torturadores da ditadura militar (1964-1985) e um novo golpe como solução para a crise política brasileira. Apesar de suas declarações controversas, em fevereiro deste ano ele deixou o Exército elogiado pelo comandante e general Eduardo Villas Bôas. Este também foi o ano em que o presidente Michel Temer tirou da cartola o general Walter Braga Netto para ser o interventor federal no Rio de Janeiro para controlar a descontrolada segurança pública do Estado e o general Joaquim Silva e Luna, nomeado como ministro da Defesa, o primeiro militar em 20 anos a ocupar esse cargo.

Há um ano o cenário era diferente: "as instituições brasileiras melhoraram. No passado estávamos sempre pensando nos generais. Agora não sabemos o nome de nenhum general, mas todo mundo conhece todos os ministros do Supremo Tribunal Federal", dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) em entrevista ao EL PAÍS em setembro do ano passado. Em muito pouco tempo, as coisas mudaram.

O comandante Villas Bôas se tornou um dos protagonistas deste ano eleitoral. Um dia antes de o Supremo Tribunal decidir sobre o futuro judicial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores, PT), em abril, ele publicou dois tuítes nos quais pressionava os juízes, repudiava a impunidade e dizia estar atento a suas "missões institucionais". Poucos meses depois, convidou todos os candidatos à Presidência para uma conversa incomum sobre questões nacionais, em um momento de dificuldades e cortes orçamentários, mesmo nas Forças Armadas. - Questionado, o Exército afirmou que as reuniões procuraram “discutir o tema Defesa Nacional, atinentes ao Exército Brasileiro, e ressaltar a importância da adoção de políticas que garantam o avanço indispensável dos programas estratégicos da Força”.

À beira de eleições imprevisíveis, o comandante chegou a dizer, em entrevista dada após o atentado sofrido por Bolsonaro, que o presidente eleito nas eleições poderia ter sua "legitimidade questionada", cruzando novamente, para muitos, uma linha vermelha em seus comentários políticos. Tudo isso em um contexto em que Bolsonaro afirma que só aceitará o resultado das eleições se for o vencedor, embora tenha moderado a ameaça na última semana.

O que o Exército fará? Esta questão não fazia parte do debate público brasileiro desde a transição democrática dos anos 80.

Os alarmes voltaram a disparar depois que o novo presidente do Supremo Tribunal, José Antonio Dias Toffoli, nomeou o general Fernando Azevedo e Silva como seu assessor com o beneplácito do todo-poderoso Villas Bôas. Azevedo e Silva também fez parte, de acordo com vários relatórios, da equipe que elaborou as propostas do governo de Bolsonaro.

Na segunda-feira, durante uma conferência, Toffoli disse que prefere o termo "movimento de 64" para se referir ao golpe que estabeleceu uma ditadura no país e atribuiu a intervenção militar à disputa política daqueles anos entre a direita e esquerda. Diz basear-se nos estudos do consagrado historiador Daniel Aarão Reis, mas o súbito exercício do revisionismo histórico em plena campanha lhe valeu duras críticas. "Toffoli, como muitos outros, tenta apaziguar a extrema direita com piscadelas conciliatórias. É um erro: historicamente os extremistas avançaram sobre concessões inconsistentes que os fortaleceram", analisa para El País o próprio Aarão Reis.

O aumento da presença militar nas eleições também se dá na esfera legislativa. Houve, neste ano, um aumento no número de candidatos que se declaram militares. São 932 nomes vinculados às Forças Armadas, às Polícias Militares ou aos Bombeiros Militares. Na eleição de 2014, eram 842.

Olhar para o passado
Para entender como o Brasil chegou até aqui, é preciso olhar para o passado. Durante quase um século, desde que o marechal Deodoro da Fonseca proclamou a república brasileira em 1889 até o final da ditadura militar (1964-1985), o Exército funcionou como uma espécie de "partido de uniforme" — como o catalogou o excelente historiador Boris Fausto— ou como um poder moderador. Os militares intervieram ativamente na política, mesmo como candidatos. E, quando necessário, foram mais longe, como aconteceu em 1956, quando evitaram que o presidente Juscelino Kubitschek fosse impedido de assumir o poder.

Com a Constituição de 1988, que consagrou a Nova República brasileira, os militares retornaram aos quartéis, sob as ordens de seu comandante máximo, o presidente da República civil eleito pelo povo. A presença militar foi reduzida pouco a pouco. Sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, os ministérios militares foram extintos e o Ministério da Defesa foi criado, ocupado até este ano por civis, uma tradição que Temer rompeu ao nomear este ano o general Silva e Luna.

Uma comissão da verdade criada durante o mandato de Dilma Rousseff (2011-2016) investigou os crimes da ditadura militar, mas o Brasil, ao contrário da Argentina e do Chile, nunca julgou os comandantes do regime autoritário. Mesmo depois de serem retirados do poder, os militares nunca chegaram a reconhecer os crimes da ditadura ou a pedir desculpas à sociedade. E sempre houve aqueles que continuaram a exaltar publicamente a "Revolução de 64" e sua "luta contra o comunismo e o terrorismo". Agora, pela primeira vez na democracia, eles têm um porta-voz de peso: o extremista Bolsonaro.

O candidato de direita deu um impulso fundamental àqueles que, na reserva, se juntaram a grupos de direita e anti-PT que, em 2015, começaram a ocupar as ruas para exigir o impeachment de Rousseff. Nesse contexto, as redes sociais se tornaram um importante canal de comunicação entre cidadãos e militares, e a travessia culminou com vários ex-militares se candidatando a governador ou deputado. Eles se apresentam como a reserva moral da nação em um momento de revolta contra políticos e instituições, e aproveitam o fato de que os cidadãos continuam a confiar principalmente nas Forças Armadas, de acordo com as pesquisas. Na democracia, o único ex-militar que se tornara político até agora era o próprio Bolsonaro, deputado federal há 28 anos.

São justamente os uniformizados que compõem o primeiro círculo de poder da equipe do atual candidato à presidência do país mais populoso e poderoso da América Latina. O conhecido general da reserva Augusto Heleno, que comandou a missão de paz da ONU no Haiti, se reúne duas vezes por semana com técnicos e outros militares para discutir temas como segurança pública, infraestrutura ou a questão indígena. Por sua vez, o general Aléssio Ribeiro Souto —que em uma entrevista recente disse que "os livros de história que não dizem a verdade [sobre o golpe militar] devem ser eliminados"— ajuda com as diretrizes para as políticas de educação e ciência. E há também Mourão, o poderoso candidato a vice-presidente de Bolsonaro, que se mostrou a favor de uma comissão de especialistas para redigir uma nova Constituição e defendeu, uma vez mais, que o presidente poderia dar um "autogolpe" em caso de "anarquia".

Os mais assombrados não param de fazer comparações diretas com o contexto do golpe militar dos anos 60. O historiador Aarão Reis enfatiza que são momentos distintos, especialmente no cenário geopolítico mundial. Mas, assinala, algo une os dois períodos: "Em ambos existe a força emergente da extrema direita, com a explicitação de nostalgias de um governo forte e até ditatorial, como alguns propõem".

Para a cientista política da Universidade de Brasília, Flavia Biroli, os militares assumem posições mais centrais ou expressivas no debate público, na medida em que existe uma abertura maior para se trazer a memória e o protagonismo no regime de 64 como algo aceitável na disputa política. "“No debate público, no modo de conformação do poder público, houve uma limitação da participação de militares na composição de governos, eles começam a demandar um lugar de fala mais forte depois que a Comissão Nacional de Verdade é implementada. A reação deles à comissão já apresentava registros que estão presentes de forma mais aberta no debate político-eleitoral”.

Biroli diz que os militares buscam fazer um revisionismo da história. “Os militares não aceitam que exista uma visão crítica e democrática, responsabilizando os militares e o Estado por crimes que ferem os direitos humanos”.

 


Demétrio Magnoli: Fux e as crianças

Imerso em sua arrogância, ministro diz que protegerá os cidadãos

Luiz Fux é um homem de muitos princípios — tantos, que seleciona o mais conveniente para cada circunstância. O juiz chegou ao STF quando sugeriu a José Dirceu que absolveria os réus do mensalão (“eu mato no peito”).

Já ministro, entre a lei e a palavra empenhada, optou pela primeira, condenando-os. Mais tarde, empurrou a lei para um bueiro e escolheu o corporativismo, estendendo o auxílio moradia a toda a magistratura. Agora, tritura a Constituição para reinstalar a censura prévia, proibindo a realização e a publicação de entrevistas com o presidiário Lula.

No seu despacho, o principista invoca os limites legais à propaganda eleitoral para justificar seu veto ao trabalho jornalístico, confundindo deliberadamente assuntos desconexos. Ele sabe que viola a lei. Mas o faz porque quer e pode, operando no terreno da desinstitucionalização do país e da anarquia judiciária.

A confirmação da liminar fuxiana pelo presidente da corte, Dias Toffoli, acelera a “autofagia” do Supremo (apud ministro Marco Aurélio). Mas, sobretudo, sedimenta um precedente: de direito dos cidadãos, a liberdade de imprensa fica rebaixada à concessão de uma reinventada “Divisão de Censura Federal”, que passa a funcionar clandestinamente no gabinete dos ministros do STF.

O episódio guarda um segredo. O pedido de liminar oriundo do Partido Novo — uma igrejinha de auto-intitulados liberais sempre prontos a apelar pelo veto de candidaturas e pela censura à imprensa — foi encaminhado ao presidente do STF, que estava no país, mas desviou-se misteriosamente até o colo de Fux. A decisão do Censor, derrubada por Lewandowski, acabou reimposta por um Toffoli ressurgido da noite escura. A triangulação entre o partido e dois ministros que fazem tabelinha tem os contornos clássicos de uma ação entre amigos. A exposição do segredo é, porém, menos relevante que o exame das bases filosóficas da restaurada censura prévia.

Num artigo recente, publicado pela Revista de Jornalismo ESPM, Eugênio Bucci e Carlos Eduardo Lins da Silva identificaram a emergência do “jusbonapartismo” — o poder bonapartista de um Judiciário que se ergue acima da lei. Eis a chave para decifrar o ato de censura prévia. Fux argumenta que a “relativização excepcional da liberdade de imprensa” (isto é, a censura prévia) destina-se a evitar a “desinformação do eleitor”, a “confusão do eleitorado”.

É direito criativo em estado puro: a fabricação expressa de uma Constituição alternativa. Imerso no lago de sua arrogância, o Censor declara que protegerá os cidadãos de si mesmos. A nação, formada por crianças, será tutelada por um ente de consciência paternal, que é ele mesmo.

Desde o mensalão, o PT clama aos céus pela implantação do “controle social da mídia”. No núcleo do conceito petista, encontra-se a noção de que uma representação da “sociedade” deve exercer a prerrogativa de censura, a fim de presevar os cidadãos indefesos de ideias venenosas propagadas pela “mídia”. Ironicamente, é Fux, esse militante improvável, quem realiza o sonho do partido. Só que no lugar de “conferências” “conselhos” ou “comitês populares” gerados pelo governo (isto é, de fato, pelo Partido), o ministro atribui ao STF o papel de Poder Tutelar.

Num tuíte de agosto, Trump referiu-se do seguinte modo aos jornalistas: “De propósito, eles causam grande divisão e desconfiança. Eles também podem provocar guerra! Eles são muito perigosos e doentes!”. O arco do “controle social da mídia” abrange correntes ultranacionalistas de direita nos EUA e na Europa e regimes autoritários de esquerda, como os de Cuba e da Venezuela. No Brasil, funciona como ponto de encontro do lulismo (“mídia golpista”) com o bolsonarismo (“mídia vermelha”). Fux, o Censor, não proíbe a entrevista de Lula por divergir do lulismo, mas por concordar doutrinariamente com ele.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Daniel Aarão Reis: O que fizemos da democracia?

Principais forças reformistas, PT e PSDB não foram capazes de se articular em torno de programas de mudanças

O que fizemos para chegar a este ponto? Ter de escolher entre o péssimo e o menos mal?

Tudo começou lá atrás, quando as grandes maiorias resolveram silenciar sobre um tempo que findava. Já acontecera depois do Estado Novo, quando um manto foi jogado sobre os crimes do varguismo. Os resultados não foram edificantes — elegeu-se como presidente o general Dutra, ex-simpatizante do nazismo. Em seguida, o próprio ex-ditador retornou ao governo “nos braços do povo”. Nos anos 1980, prevaleceram orientações análogas: olhar para a frente, ignorar o espelho retrovisor. Na alegria da abertura, falar dos crimes da ditadura civil-militar era quase uma atitude de mau gosto. As consequências apareceram na Constituição de 1988.

Mesmo registrando avanços e inovações consideráveis nas áreas dos direitos civis, políticos e sociais, eram visíveis os legados densos —do período anterior. Permaneceu inalterado o modelo de sociedade construído — ou reforçado — pela ditadura: a hegemonia do capital financeiro; a predação do meio ambiente; as desigualdades sociais; a civilização do carro individual nas megalópoles hostis à vida; as empreiteiras e suas obras faraônicas; o agronegócio concentrador de terras e de rendas; a centralização do poder num Estado gigantesco; a mídia monopolizada; a preeminência das Forças Armadas, “garantidoras da lei e da ordem”, replicando tendências históricas, onde os funcionários públicos uniformizados transformam-se em tutores da nação, com suas corporações fechadas, fora do controle da sociedade.

O pior ainda viria.

As principais forças políticas reformistas, o PT e o PSDB, não foram capazes de se articular em torno de programas de mudanças. Preferiram o atalho das alianças com grupos conservadores, desfigurando-se e se corrompendo no sentido próprio da palavra, o que se evidenciou no abandono do que tinham de melhor —suas intenções originais e promessas de renovação. A que se associaram as bandalheiras em nome da Realpolitik e a mixórdia das cumplicidades com o mundo dos negócios.

É certo que nem tudo foram espinhos. Houve o controle do dragão da inflação, que parecia imbatível. E os anos eufóricos dos mandatos de Lula, a autoestima nacional lá no alto, os mais confiantes falando num país que poderia ser modelo civilizacional para o mundo. Como nos tempos sorridentes e democráticos de JK. (É triste saber que também houve euforia, vigiada embora pela repressão, nos anos prósperos da ditadura de Vargas e nos do milagre econômico sob o sinistro e popular general Médici).

A decantação do otimismo veio mais rápido do que se esperava.

Os êxitos não resistiram ao impacto da crise econômica, mostrando as mazelas cobertas pelos véus do otimismo: o caráter aristocrático e corrompido do sistema político. As desigualdades sociais. A massa dos desempregados. A concentração de renda e de poder. A insegurança das pessoas comuns. A falência dos projetos reformistas. A expectativa ainda depositada no PT e no PSDB tornou-se mais resultado da nostalgia do que houve de melhor em seus anos de governo do que de propostas de mudanças. No vácuo criado pela inapetência autocrítica destes partidos, no caldeirão de contradições em que se tornou o país, ganharam força apelos salvacionistas e autoritários, nostálgicos de regimes ditatoriais. É verdade que se formou em torno deles uma nebulosa conservadora, mais amarga e desesperançada do que “fascista”. No entanto, são assustadoras suas promessas e práticas intolerantes.

Resta-nos a opção do menor mal. Contudo, o voto só ganhará sentido caso a escolha seja apoiada no compromisso com o aperfeiçoamento das instituições. Este objetivo será alcançado não apenas através de eleições, mas da auto-organização das gentes e de sua participação permanente. As passeatas das mulheres indicaram um caminho. Sem negar as eleições, complementando-as, conferiram vitalidade e força a uma democracia que se quer renovada e não destruída.


Míriam Leitão: O debate e o silêncio da lei

Candidatos se submeteram ao contraditório, mas Bolsonaro deu entrevistas a escolhidos, ficando acima da lei, sob o silêncio do TSE

O debate da TV Globo teve embates isolados e uma grande anomalia, que o petista Luiz Dulci definiu numa rápida conversa comigo, “é uma polarização com um dos polos ausente”. Era isso, mas pior. O anormal da eleição ficou ainda maior porque Jair Bolsonaro, o líder das pesquisas, tem feito o que quer. A violência que ele sofreu não revogou as leis eleitorais, mas o TSE tem se mantido numa inquietante aquiescência. É preciso dar, principalmente na televisão, espaços equânimes aos candidatos. É o que diz a lei. Bolsonaro está acima da lei falando com quem bem entende, sem que certos veículos estendam aos outros candidatos o mesmo espaço.

Os candidatos se submetiam ao contraditório, enquanto Bolsonaro falava para uma emissora na qual o chefe, o bispo Edir Macedo, já declarou seu voto nele. Esse é o centro da anomalia. Por isso as críticas de que ele “amarelou” fizeram sentido. Ele certamente tem limitações físicas pela violência de que foi vítima, mas não pode usá-las para escolher apenas ambientes sob seu controle, enquanto os oponentes se expõem diariamente.

No debate, Marina perguntou se Fernando Haddad faria uma autocrítica. Ele não fez. Ciro construiu pontes com quem pôde. Haddad ressaltou o que pode ser elogiado nos governos petistas. Alvaro Dias provocou. Meirelles teve seu melhor momento quando saiu do econômico e criticou a ausência de Bolsonaro. Alckmin falou o de sempre, mas com mais ênfase em alguns momentos. Guilherme Boulos deu o tom certo da emergência vivida no país ao defender com sinceridade pungente o legado da democracia.

Todos juntos perderam tempo demais em escaramuças laterais, quando normalmente o que acontece em qualquer debate final antes do primeiro turno é escolher como alvo o líder das pesquisas. Sua ausência o protegeu em grande parte do tempo. O pior momento de Fernando Haddad foi tentar mais uma vez refazer a polarização PT x PSDB, que teve um envelhecimento súbito nesta eleição. Durante seis disputas presidenciais, essa foi a clivagem no país, mas desta vez a incapacidade de crescer de Geraldo Alckmin revogou esse padrão. Era para Haddad ter deixado claro que a briga era contra outro adversário, mesmo sendo criticado por vários ali.

Faz sentido gastar os parcos minutos de um debate para falar que a dívida pública cresceu no governo Fernando Henrique e caiu no governo Lula? Até porque a história que eu acompanhei muito bem como jornalista pode ser resumida assim: o endividamento cresceu no governo Fernando Henrique, mas em grande parte pelos velhos passivos que não estavam contabilizados, os esqueletos. Depois, caiu no governo Lula porque ele manteve a política de superávits primários e adotou um bom ajuste fiscal nos primeiros anos. Voltou a subir no governo Dilma.

Mas o mais importante não era essa briga olhando o espelho retrovisor, mas o caminhão vindo na direção contrária. Fora daquele ambiente havia um candidato com 39% dos votos válidos, e uma campanha na qual exaltou torturadores, ditadura, exclusão e preconceito.

Ciro Gomes mostrou no debate que lutaria até o fim para ser a terceira via, e o ânimo na sua equipe estava alto, apesar da estagnação nos números da pesquisa que tinha acabado de ser divulgada. Nesta eleição em tudo insólita, a rejeição de Bolsonaro é de 45% e a de Haddad é de 40%. Um número avassalador de brasileiros rejeita um dos dois favoritos para o segundo turno. Por isso, foi o dia de construção de pontes.

— As palavras de Marina são sábias e eu as repetiria — disse Ciro.

Ela falara contra a polarização que dominou esta eleição e que acabou por transformá-la na pior disputa que Marina já participou. Ela, que nas duas últimas disputas cresceu muito em percentual de votos, desidratou em poucas semanas. Mas fez uma boa participação.

Geraldo Alckmin teve bons momentos, como quando defendeu a reforma trabalhista, lembrando que muitos dos 17 mil sindicatos viviam do imposto sindical. Depois de uma campanha em que declamou os mesmos argumentos, ele se permitiu sair um pouco do script. Houve momentos em que ele falou coisas sem sentido, como ressaltar que reduziu os impostos de “biscoito sem recheio”. Das críticas feitas a Jair Bolsonaro, nada soou mais forte, claro e direto, do que a bela defesa da democracia feita por Guilherme Boulos, do PSOL. Ele deu ao tema a dimensão que ele merecia ter.


Merval Pereira: Efeitos, não causas

Se tivesse escolhido Doria, PSDB talvez não desse a chance de Bolsonaro se apropriar do antipetismo que domina o país

Mais uma das esquisitices desta eleição é a evidência de que os dois candidatos que lideram as pesquisas eleitorais ou não representam a maioria dos seus apoiadores, como é o caso de Bolsonaro, ou são meros prepostos do verdadeiro líder, o caso de Fernando Haddad.

Nenhum deles estaria com um pé no Palácio do Planalto por méritos próprios, mas são consequência de uma situação política que não controlam.
Bolsonaro foi beneficiado pelo desmonte dos partidos políticos tradicionais, que deveriam ter canalizado o desencanto do brasileiro para apresentar soluções menos traumáticas.

Especialmente o PSDB, que perdeu a conexão com a sociedade ao se converter a um pragmatismo que o colocou no mesmo rol dos partidos fisiológicos.

Todo o mundo político sabia que o fisiologismo do MDB colocava em risco seus parceiros e, no limite, a democracia, mas o PT não se furtou a chamá-lo duas vezes para vice de Dilma, assim como o PSDB formou a base de apoio do novo governo.

Ao apoiar o impeachment da ex-presidente Dilma e, em consequência, a assunção de Temer ao poder, o PSDB estava atuando dentro da democracia, da mesma maneira que fez no governo Itamar. Mas quando Temer perdeu sua legitimidade, em consequência da revelação da conversa nada republicana com o empresário Joesley Batista, os tucanos deveriam ter debandado, colocando-se como oposição a um governo fisiológico, refém de um passado comprovadamente corrupto, que não se emendou.

Da mesma maneira que o PT, os tucanos passaram a mão na cabeça de seus membros envolvidos em escândalos de corrupção, e carregaram o peso das negociações secretas de seu ex-presidente Aécio Neves com o mesmo Joesley, ou com o presidente Temer nas noites do Palácio da Alvorada, ou ainda da condenação de outro ex-presidente do PSDB, o ex-deputado Eduardo Azeredo.

Se não tivesse se descredenciado como representante de uma parte ponderável da sociedade brasileira, inclusive com votações demagógicas, como quando apoiou o fim do fator previdenciário, o PSDB poderia ser o receptáculo dos votos de quem buscava soluções para nossas mazelas.

Sem uma alternativa viável, com projeto menos radicalizado que o de Bolsonaro, esse eleitor ficou sem opção par atentar impedir a voltado PT ao governo, ainda mais agora que o ex-ministro José Dirceu explicitou o plano de “tomar o poder ”, não apenas ganhar a eleição. Até mesmo a definição de Alckmin como candidato à Presidência da República demonstra uma miopia em relação ao momento político que vivemos.

Se tivesse escolhido o ex-prefeito João Doria, não por seus méritos ou defeitos, mas por seu perfil antilulista, mais coadunado coma exigência de uma batalha política radicalizada, talvez não tivesse dado a chance de Bolsonaro se apropriar do antipetismo que domina a sociedade brasileira.

Provavelmente, Bolsonaro ficaria confinado a ser um candidato nanico, representante do baixo clero, se grande parte do eleitorado que hoje vota nele tivesse outra opção, mais civilizada.

Da mesma maneira, o PT errou ao escolher seu candidato de acordo com os caprichos e vontades de seu grande líder, o ex-presidente Lula, imaginando que ele, mesmo estando na cadeia, e com vários processos em andamento, comandaria as massas.

Comandou o partido, mantendo sua candidatura até a undécima hora, e designou Fernando Haddad para representá-lo nas urnas, imaginando que o simples fato de saberem que Haddad é Lula levaria a uma vitória retumbante.

Uma parte dos votos que supostamente Lula teria —chegou ater 39% nas pesquisas—foi para Haddad, mas, diante da rejeição maciça que o lulismo provoca, hoje não dá nem mesmo para afirmar que Lula, acossado por tantas denúncias, ganharia fácil a eleição.

É claro que não se deve subestimar o carisma do ex-presidente, e sua capacidade de comunicação, mas a rejeição a Haddad se deve a Lula. Provavelmente, o erro de Lula foi não ter apoiado Ciro Gomes como candidato, numa coalizão do PT como PDT. Ao não abrir mão de liderar a esquerda brasileira, sem dar espaço dentro do PT, nem em outras agremiações, para novas caras, Lula manteve sua liderança incontestada, sua hegemonia pessoal. Mas pode ter sido o responsável pela derrota da esquerda que se avizinha.

Se, numa reviravolta, conseguir eleger seu preposto, se consagra.

Se tivesse escolhido Doria, o PSDB talvez não desse a chance de Bolsonaro se apropriar do antipetismo que domina o país.


João Domingos: Constituição ameaçada

Estado democrático de direito foi testado inúmeras vezes. Continuará a sê-lo. Resistirá?

Ao longo de seus 30 anos, completados ontem, a Constituição brasileira e seus valores democráticos foram testados um sem-número de vezes. Dos quatro presidentes da República eleitos pelo voto popular de 1989 para cá, dois – Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff – responderam a processo de impeachment e tiveram os mandatos cassados. O então líder do governo Dilma, Delcídio Amaral, foi preso no exercício do mandato, por suspeita de obstrução aos trabalhos da Justiça. O ex-presidente Lula, o mais popular líder vivo do País, está preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Uma legião de seguidores tentou impedir que a ordem de prisão fosse cumprida.

Do lado oposto, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) sofria em Juiz de Fora (MG) um atentado à faca que o tirou fisicamente da campanha. A Polícia Federal foi acionada, iniciou suas investigações, tirou suas conclusões, indiciou o autor do atentado, Adelio Bispo, na Lei de Segurança Nacional, uma lei remanescente da ditadura militar, e a vida seguiu seu curso. Apesar das crises, o estado democrático de direito não sofreu abalos significativos.

O próximo presidente da República, é praticamente certo, será ou Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad (PT). Vença quem vencer, a Constituição continuará a ser testada. Ambos já manifestaram o desejo de substituí-la. Ou, no mínimo, de emendá-la com mais força do que as atuais 105 emendas (99 emendas normais e seis de revisão, prevista pela própria Carta para quando fizesse cinco anos). O vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, defende a ideia de que uma comissão de notáveis faça uma nova Constituição, em substituição à atual. O programa de governo do PT fala na convocação de uma Constituinte que teria como finalidade “restabelecer o equilíbrio entre os Poderes da República e assegurar a retomada do desenvolvimento, a garantia de direitos e as transformações necessárias ao País”. Cobrado por Ciro Gomes (PDT), no debate da TV Record, Fernando Haddad respondeu que a ideia é “modernizar o texto, deixá-lo mais enxuto e refazer o sistema tributário que penaliza gravemente os mais pobres, além de reafirmar os direitos estabelecidos pela atual Constituição”.

Se é para reafirmar os direitos da Constituição de 1988, por que não deixá-los lá, como estão? Por si só se reafirmam. O PT costuma defender a ideia de convocação de uma Constituinte, às vezes exclusiva para fazer a reforma política, às vezes exclusiva para outra coisa. É quase que uma ideia fixa. Como é uma ideia fixa dos petistas a criação de um controle social da mídia, tentado desde o primeiro governo de Lula, sem êxito. Em outras palavras, censura prévia ao conteúdo do noticiário jornalístico, o que é vedado pela Constituição.

Do lado de Bolsonaro, além da Constituição a ser feita por notáveis, mais enxuta, menor e mais atual, conforme as palavras do general Mourão, vislumbra-se um cenário estranho pela frente, caso ele vença a eleição. O deputado do PSL já disse que reduzirá o número de ministérios e que, em vez de os entregar para aliados políticos, chamará generais para ocupá-los.

Imagine-se a seguinte situação: um ministro general de determinada área necessita que o Congresso aprove uma lei para que ele possa tomar tal e tal iniciativa. O Congresso rejeita a lei. O que esse ministro fará? Não se sentirá tentado a uma medida mais forte para coagir o Congresso a fazer o que ele quer? Ou, então, imagine-se que o governo, como um todo, espera que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida contrário a uma dessas inúmeras ações que provocam rombos bilionários ao Tesouro e a Corte faça o contrário. O que Bolsonaro e seus generais vão fazer em relação ao STF? Vão deixar tudo por isso mesmo? Esse é o cenário que se vislumbra.


Pedro Doria: E o Brasil se tornou um imenso Facebook

Ao levar para lá nossa conversa sobre política, esta virou destilação de ódio, rancores passados e lacração

Imagine, caro leitor, se Ciro Gomes (PDT) desse uma espetacular arrancada nestes últimos dias, desbancasse Fernando Haddad (PT), e no domingo chegasse ao segundo turno para disputar com Jair Bolsonaro (PSL) a finalíssima desta eleição. Não vai, daqui, nenhuma torcida. Ciro entra no raciocínio por um único motivo: é ele, e não qualquer outro, quem está em terceiro. Estivessem nesta posição Geraldo Alckmin (PSDB) ou Marina Silva (Rede) ou ainda João Amoêdo (Novo), também para eles valeria. Ocorre que é Ciro.

Estatisticamente, nada indica que um movimento destes esteja em curso.

Então, numa arrancada final, Ciro chega ao segundo turno. Com baixa rejeição perante o adversário, e num clima de otimismo daqueles que só nasce quando algo próximo do impossível é feito, muito provavelmente seria embalado rumo à vitória. A verdade, e a gente vê isso tanto nas pesquisas quanto sente em nossas conversas cotidianas, é que tem gente com horror ao PT. E tem gente com horror a Bolsonaro. Há horror a esses dois, mas não aos outros.

Aliás, muitos dos que votam em Haddad votariam noutros; muitos dos que votam em Bolsonaro, idem.

Nós já assistimos a vitórias eleitorais em ambientes de otimismo e generosa expectativa. Foi assim com Fernando Henrique, em 1994. Assim como foi com Lula, em 2002. Um parecia ter terminado com a hiperinflação - e, para quem não viveu, acreditem: era um pesadelo. Vindos da Ditadura, do Sarney e do Collor, parecia que enfim o Brasil iniciaria seu futuro. Com a chegada de Lula não foi diferente. Até o próprio FH era só sorrisos passando a faixa. Tínhamos um país normal, com transições normais, em que grupos políticos são sucedidos por outros.

Sim, os eleitores de Bolsonaro e Haddad poderiam votar em outros — mas não vão fazê-lo. E quem acompanha as conversas das redes sociais - do Facebook ao Twitter, passando pelo WhatsApp - entende logo seu estado de espírito. Eles têm raiva. Petistas querem ir à forra contra o ‘sistema’. Bolsonaristas querem humilhar. É bom ‘jair’ acostumando. Não basta ganhar, é preciso lacrar, deixar o vencido de joelhos. Quando entram num embate, não importa em qual caixa de comentários, é com gana que o fazem. Têm verdades e uma forte carga emocional. Têm, principalmente, não adversários - mas, sim, inimigos.

O clima das redes sociais se tornou o clima das ruas. No domingo, quando formos às urnas para muito possivelmente levar PT e Bolsonaro ao segundo turno, sabemos que estamos criando um embate entre dois pesadelos brasileiros. Nossa história de corrupção, nossa história ditatorial. Não poderemos escolher entre o melhor que o Brasil pode ser. Teremos de suspirar e tentar compreender o que é menos pior.

Que profunda tristeza, esta escolha.

Se o eleitor de Bolsonaro poderia escolher alguém que causaria menos dor aos outros, mas não o faz, ele está mandando um recado. Se o eleitor de Haddad faz o mesmo, passa a mesma mensagem. É isto que têm em comum. A mensagem é: queremos continuar brigando pelos próximos quatro anos. Pois, elegendo-se um ou outro, ao menos metade do Brasil estará profundamente insatisfeita.

A internet das redes sociais produz conversas ásperas. Ao levar para lá nossa conversa sobre política, a política virou destilação de ódio, rancores passados e lacração. Com a diferença de que, aqui fora, não tem como dar block. O Brasil poderia escolher um caminho eleitoral que apontasse uma terceira via, poderia escolher o apaziguamento e buscar otimismo. Mas não é o clima que, coletivamente, escolhemos seguir. Escolhemos seguir brigando.

E assim essa terra cumprirá seu ideal: vai tornar-se um imenso Facebook.

 

 


Flávia Marreiro: As elites que escolhem Bolsonaro colocam em risco as vidas de outros

Não é necessário que o extremista do PSL aprove uma lei, se for eleito. A sua simples ascensão já é uma autorização para humilhar e até matar

Na reta final da campanha do Brasil, está em curso em vários setores das elites brasileiras uma marcha imparável de normalização dos graves riscos de um Governo Jair Bolsonaro. Primeiro, operadores do mercado financeiro, apoios formais das bancadas conservadoras no Congresso, endosso do candidato que foi presidente da poderosa Fiesp. Sem falar do endosso tácito do silêncio. É um processo a jato. Ninguém sério acha que aquele plano de Bolsonaro cheio de exclamações e delírios seja crível, ou que ele tenha equipe, ou que não vá haver turbulências. Mas, seja como for, é melhor já ir se acomodando. Talvez daí a pressa de Xico Graziano, ex-chefe de gabinete do Governo FHC, em declarar apoio ao capitão reformado do Exército, mesmo não concordando "com várias das ideias dele." Vai que sobra um lugar no palácio para os serviços desse tucano de tão boa plumagem?

Graziano é a versão às claras sobre esse cinismo de largos setores das elites políticas e econômicas que pretendem aderir ao bolsonarismo sem nem sequer tapar o nariz. É o que leva Paulo Guedes a balbuciar frases conservadoras sobre educação sexual nas escolas só para tentar parecer mais integrado e menos oportunista, por exemplo. Ocorre, no entanto, que "várias das ideias" de Bolsonaro representam riscos concretos a vidas. Representam muitos passos a mais no aprofundamento da nossa barbárie. As elites devem saber disso, mas ter as mãos sujas de sangue parece ser um dano colateral que já precificado. Não será a deles, desde logo. E pensar que aceitar a mão decisiva e corrompida do (bolsonarista) Eduardo Cunha para tirar o PT do poder – com o apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardosoparecia um capítulo vergonhoso da história recente.

Não se trata de dizer que o bolsonarismo é um fenômeno apenas de elites, ainda que ele já estivesse eleito se fossem contados apenas os mais ricos, já que para entrar nos "mais ricos" não é preciso muito no nosso país pobre. A declaração de voto em Bolsonaro se espraia em todas as faixas de renda. Mas o ponto aqui é quem mais vai ganhar e quem mais vai perder com esse arranjo. Quem, no 1% mais rico, mal pode esperar por um experimento com tintas pinochetistas. Vamos pular a parte em que os analistas fingem acreditar que se trata de "dois extremos" em disputa ou que as nossas instituições, mergulhadas até o pescoço no salve-se quem puder da nossa crônica política, serão um muro de contenção. Com um pouco de raciocínio, chega-se à obviedade de que o projeto representado pelo populista de extrema direita Jair Bolsonaro não precisa de lei alguma para fazer dano.

O discurso violento do capitão reformado do Exército é um endosso cruel aos piores problemas que já temos: machismo, intolerância à comunidade LGBTQ+, e, algo transversal a tudo isso e potencialmente explosivo, a violência policial. Não custa repetir que o flerte mais próximo do projeto Bolsonaro não é com Donald Trump, é com Rodrigo Duterte, o presidente "bandido bom é bandido morto" das Filipinas e as milhares vítimas que já deixou. Veja bem, não estamos falando apenas do tristes enfrentamentos entre antifas e racistas em Charlottesville. Nem apenas da indignidade de separar crianças imigrantes de seus pais nos EUA. A nossa escala, num país com 63.000 mortos ao anos, pode ser catastrófica. O outro aqui não é necessariamente o imigrante. O outro, que não merece o mesmo status humano, é só a empregada ou o porteiro da classe média alta de São Paulo depois que ela cruza a marginal rumo às franjas da cidade.

O policial médio brasileiro é jogado em campo sem inteligência ou estratégia, para matar e morrer com outros de sua faixa de renda. Esse policial faz parte da tragédia, nós sabemos, como também sabemos dos sádicos que praticam tortura e gravam e distribuem no WhatsApp. A tortura, herança da escravidão e da ditadura, jamais desapareceu das nossas delegacias e prisões. Agora, aquilo que era tolerado, quase nunca investigado ou punido, para o que se fazia vista grossa, ganha um respaldo, vertical, se irradia. É o torturador que será fortalecido, acalmado em qualquer mal-estar que lhe reste, porque o heroi do candidato a presidente é também um torturador.

Mesmo que o candidato de extrema direita não vença, apesar desse esforço veloz de levá-lo de outsider a campeão do establishment sem escalas em uma semana, o dano já estará feito. Cabe à nossa sociedade saber como lidar politicamente, sem alienar de pronto, com uma parte expressiva do país que vê uma esperança legítima em Jair Bolsonaro.

*Flávia Marreiro é jornalista


El País: Bolsonaro vai de ‘outsider’ a candidato do establishment político em uma semana

Centrão se dilui em bancadas no Congresso para apoiar o candidato do PSL em movimento inédito. Ojeriza aos últimos governos petistas também leva mercado a se posicionar ao lado do deputado

Se havia alguma reserva do establishment brasileiro em relação ao deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), seu crescimento nas pesquisas de intenção de voto na reta final da eleição presidencial vai tratando de dissipá-la. Movido pela ojeriza aos últimos anos dos governos petistas, o mercado fechou os olhos às controvérsias protagonizadas pelo capitão reformado do Exército e sua equipe econômica — e os receios causados por sua retórica autoritária — para se posicionar ao seu lado, o que contribuiu para frear as seguidas elevações do dólar e amortecer as bruscas variações da Bolsa de Valores. Além disso, o Centrão, composto por oito partidos que embarcaram na candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) no início da campanha e que migrava paulatinamente para a campanha de Bolsonaro, se diluiu em bancadas temáticas no Congresso Nacional para aderir de vez àquele que desponta cada vez mais como favorito para assumir o Palácio do Planalto.

"De um lado está a esquerda. De outro, o Centrão. Vou até agradecer Alckmin por ter juntado a nata do que há de pior no Brasil ao seu lado", disse Bolsonaro em julho. Agora, a base do Centrão está com ele, mas sem o inconveniente de levar esse nome. Composta por 261 deputados e senadores, a Frente Parlamentar da Agricultura declarou apoio a Bolsonaro na última terça-feira, "atendendo ao clamor do setor produtivo nacional, de empreendedores individuais aos pequenos agricultores e representantes dos grandes negócios". "As recentes pesquisas eleitorais trazem o retrato da polarização na disputa nacional, o que causa grande preocupação com o futuro do Brasil. Portanto, certos de nosso compromisso com os próximos anos de uma governabilidade responsável e transparente, uniremos esforços para evitar que candidatos ligados à esquemas de corrupção e ao aprofundamento da crise econômica brasileira retornem ao comando do nosso País", diz a nota divulgada pela chamada bancada ruralista.

Esse tipo de manifestação não é usual, segundo Marcos Verlaine, analista político e assessor parlamentar do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). Para o analista, a manifestação ostensiva de apoio se justifica pela afinidade da bancada com a política professada pelo candidato, liberal na economia e conservadora no plano dos costumes. “Não me lembro de apoio formal da bancada em outras eleições. Estas eleições não têm paralelo”, analisa. Outra bancada que promete se posicionar oficialmente a favor de Bolsonaro é a evangélica, que reúne 199 deputados e quatro senadores — os parlamentares podem compor mais de uma bancada, então não faz sentido somar os números brutos de apoiadores de diferentes bancadas.

Presidente da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado Hidekazu Takayama (PSC-PR) lidera o movimento de apoio e promete entregar uma carta ao candidato à Presidência nos próximos dias. "Mais que uma questão natural, é uma questão espiritual. Está acima de qualquer doutrina partidária. É a defesa dos valores da família cristã ", diz trecho da carta revelado pelo Estado de S.Paulo. "Certos de nosso compromisso com os quase 86,8% de cristãos de todo o território nacional, declaramos nosso amplo apoio aos candidatos da Frente em todo o Brasil, bem como o nosso apoio a Jair Messias Bolsonaro. Nosso intuito é evitar que candidatos filiados a extrema esquerda assumam, mais uma vez, a direção do país causando ainda mais crises do que as que atravessamos nos últimos anos”, diz a manifestação de apoio.

Outro apoio projetado, mas não formalizado, é o da chamada bancada da bala. Candidato ao Governo do Distrito Federal e criador da Frente Parlamentar da Segurança, o deputado Alberto Fraga (DEM) começou a eleição atrelado a Alckmin, para manter o deputado e candidato ao Senado Izalci Lucas (PSDB) em sua coalizão, mas nesta semana debandou para o lado de Bolsonaro. "Eu e Bolsonaro temos a mesma coragem para enfrentar quem for preciso e, juntos, vamos colocar o Distrito Federal e o Brasil no caminho certo! O futuro presidente da República vai precisar de um governador que o apoie na capital do País", escreveu Fraga, que, a depender do instituto, ocupa o quarto ou quinto lugar nas pesquisas de intenção de voto, em seu perfil no Facebook nesta quarta-feira.

Fraga não estará, contudo, na próxima Legislatura. Com quanto desse apoio Bolsonaro poderá contar no Congresso Nacional caso eleito? Praticamente todo, segundo as projeções do DIAP. O departamento intersindical prevê renovação de entre 40% e 45% na Câmara, em consonância com as eleições anteriores, o que deve significar a reeleição de cerca de 300 deputados. O levantamento feito em parceria com a empresa Queiroz Assessoria Parlamentar e Sindical indica que "a composição das bancadas da futura Câmara não será muito diferente da atual, com pequeno crescimento da direita e da esquerda e encolhimento discreto do centro".

"O levantamento evidencia também que haverá elevado índice de reeleição e grande 'circulação no poder', com deputados estaduais, senadores, ex-ministros, ex-deputados, suplentes bem votados, ex-prefeitos e ex-secretários se elegendo para as vagas decorrentes de desistência de atuais deputados e da não-reeleição daqueles que tentaram renovar seus mandatos", diz o Diap. O PT deve ser o partido com maior número de parlamentares (entre 55 e 65), mas com um número menor do que os eleitos em 2014 (68). Na sequência das projeções de maiores bancadas aparecem MDB, PSDB, PP, PSD, PR, DEM e PSB. O PSL, de Bolsonaro, deve pular de um deputado eleito em 2014 para até 18 neste ano, e provavelmente ganhará adesões caso o capitão reformado do Exército se eleja presidente.

Segundo Marcos Verlaine, analista do Diap, "se não formalmente, informalmente o PSL deve compor num segundo momento a maior bancada" em caso de eleição de Bolsonaro. "Há mais de 100 deputados de outros partidos que apoiam o Bolsonaro de maneira avulsa", comenta. Cotado por Bolsonaro para assumir a Casa Civil de seu possível governo, o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) disse à Gazeta do Povo que atualmente o candidato do PSL conta com o apoio de 310 deputados e de 27 senadores, apesar de ele não contar com o apoio de todos os parlamentares das bancadas que se manifestaram por Bolsonaro.

Projeções

No Senado, a seguir as projeções do Diap, 16 dos 29 candidatos à reeleição devem conseguir permanecer nos cargos, enquanto 11 deles têm chance de se reeleger e apenas dois estão virtualmente derrotados. Nas 54 vagas em disputa (dois terços do Senado), portanto, a renovação seria de metade. "Tal como na Câmara dos Deputados, a futura composição do Senado Federal pouco difere da atual. O MDB continuará como o maior partido, seguido do PSDB e do PT", diz o departamento intersindical. O PSL tem projetados apenas dois senadores eleitos nesse cenário.

O PSL, que passava até o início deste ano por uma reformulação liberal com apoio do Livres, pode colher muito mais rápido do que se imaginava os frutos da tumultuada decisão de dar uma legenda para a candidatura Bolsonaro. Já o deputado federal que deu a largada na corrida presidencial com uma única parceria, com o inexpressivo PRTB, pode chegar à Presidência com o Congresso Nacional mais coeso dos últimos anos. Isso não quer dizer, todavia, que não terá de enfrentar oposição. No melhor dos cenários para a esquerda projetado pelo Diap, partidos como PT, PSOL, PDT e PCdoB podem reunir até 163 deputados e 18 dos 54 senadores possíveis.


Rogério Furquim Werneck: Plantando vento

Programa do PT parece ideário de agremiação nanica. E Bolsonaro preocupa pelo primitivismo de suas ideias

A se julgar pelas intenções de voto, estamos marchando para uma infausta disputa, em segundo turno, entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, cujo desfecho, seja qual for, dá razões de sobra para temer pelo futuro do país.

Quanto ao PT, é assustador que o partido continue deixando claro que nada aprendeu e nada esqueceu. Apresentou-se à eleição presidencial com um programa econômico completamente irresponsável, na contramão do que precisa ser feito, que mais parece ideário de uma agremiação nanica de oposição do que plataforma de um partido com chance efetiva de ter de governar o país a partir de janeiro.

Rumores de que Haddad estaria pronto a dar o dito por não dito e amenizar aspectos mais alarmantes do programa, talvez até com anúncio de uma equipe econômica supostamente sensata, apenas confirmam a recorrência da surrada artimanha do PT de esticar o discurso populista até o limite do possível, e só abandoná-lo quando passa a ser disfuncional.
O problema é que a insistência nesse velho ardil tem tornado os ditos por não ditos cada vez menos críveis. Ainda mais agora, quando, ao candidato ungido, faltam convicção, estatura, autonomia e ascendência sobre as lideranças do seu próprio partido, para lhes impor a brusca reorientação que se faria necessária no discurso econômico do PT.

Preocupa ainda, e sobretudo, o projeto restauracionista do PT, ao largo de qualquer reconhecimento dos erros que deixaram o partido no centro da Lava-Jato e operações similares. Muito pelo contrário, o que se contempla é um metódico e rancoroso cerceamento dos supostos responsáveis pelas agruras por que teve de passar boa parte da cúpula do PT: mídia, órgãos de controle, Ministério Público e Judiciário. Em entrevista recente ao jornal “El País”, José Dirceu não poderia ter sido mais claro: “...é uma questão de tempo pra gente tomar o poder... que é diferente de ganhar uma eleição.”

Tampouco faltam razões para preocupação com a eleição de Bolsonaro. Do primitivismo de suas ideias à truculência do seu discurso autoritário. Da sua falta de compromisso com a democracia a seu flagrante despreparo para o exercício do cargo de presidente da República.

Para relevar a confessada incapacidade do candidato de juntar três frases que façam um mínimo de sentido sobre qualquer tema relacionado à política econômica, eleitores de Bolsonaro agarram-se à fantasia de que o candidato governará sob a estrita tutela de Paulo Guedes. E apostam no sucesso da catequese que vem sendo feita há meses por Guedes, para extirpar do candidato suas bolorentas convicções clientelistas, nacionalistas e estatizantes e transformá-lo em um paladino do liberalismo econômico.

Os que se esforçam, a todo custo, para acreditar na ideia de que Bolsonaro poderá ser manipulado por Paulo Guedes talvez devam se perguntar se, no precário casamento de conveniência que se estabeleceu entre os dois, o manipulado, por enquanto, não tem sido de fato Guedes, e não Bolsonaro.

Seja como for, caso Bolsonaro seja eleito, não faltará no seu entorno quem queira fazer a cabeça do novo presidente. E as soluções complexas e politicamente custosas contempladas por Guedes logo passarão a enfrentar acirrada concorrência. Como tantas vezes já se viu, ao cabo de outras eleições presidenciais, choverão propostas de remendos, atalhos e soluções fáceis, bem mais condizentes com as ideias equivocadas que o capitão vem acalentando ao longo dos seus 63 anos, e que estão longe de terem sido extirpadas pela catequese de Guedes. Dessa perspectiva, é difícil vislumbrar com clareza o que de fato acabará fazendo Bolsonaro na área econômica. E, quanto a isso, não há autoengano que possa ajudar.

Impermeável a todos esses temores, a maioria do eleitorado, dividida em duas hostes aguerridas, à extrema direita e à extrema esquerda do espectro político, parece firmemente determinada a plantar vento nas urnas de domingo. Sem sombra de preocupação com o que, afinal, poderá ser colhido.

O Brasil não merece tamanha inconsequência.

Leia mais: https://oglobo.globo.com/opiniao/plantando-vento-23127949#ixzz5T9tyPoPw
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