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Zeina Latif: Sinais perturbadores

A falta de perspectivas de reformas enfraquece os alicerces da economia

Choques econômicos produzem mudanças de preços nos mercados. Os chamados preços relativos são importantes válvulas de ajuste para levar a economia para seu novo equilíbrio de forma eficiente. Porém, há algo maior ocorrendo na crise atual. Alguns preços exibem dinâmica que denunciam problemas na política econômica.

Quando ocorre uma quebra de safra, por exemplo, o aumento de preços agrícolas permite eliminar o excesso de demanda em relação à menor oferta. Ações governamentais para conter altas de preços podem trazer alívio aos consumidores no curto prazo, mas desestimulam a produção, contratando um problema maior adiante.

Muitas vezes, há rigidez de preços, como nos salários, o que dificulta o corte da folha de empresas que enfrentam queda no faturamento. Com leis trabalhistas flexíveis, o ajuste é mais rápido e o novo equilíbrio será com menos desemprego.

Nesta crise, teria sido importante reduzir adicionalmente as amarras nas relações trabalhistas, ao menos durante a calamidade pública, para permitir cortes de salários fora do programa de sustentação do emprego do governo. Um tema que, certamente, demandaria muito diálogo com o STF e o Congresso.

A taxa de câmbio é um importante preço na economia. Com a piora das condições econômicas e a busca de portos seguros por investidores, a cotação do dólar sobe. Como resultado, há uma melhora do saldo comercial, suavizando o ciclo econômico.

A pressão cambial nos últimos meses, no entanto, não reflete mais o choque da pandemia, sendo muito mais uma reação aos equívocos do governo, principalmente na falta de compromisso crível com reformas fiscais estruturais, que se tornaram ainda mais urgentes com a crise. O real descolou-se muito do patamar e da tendência média de moedas de países emergentes. Não se trata de mero ajuste a um choque transitório, mas sim uma pressão mais perene, que denuncia problemas na política econômica, o que impacta a inflação.

A ideia de muitos analistas de que a deterioração fiscal não geraria qualquer risco inflacionário, devido à fraqueza da economia, mostrou-se precipitada. Por outro lado, é curioso que alguns vejam o câmbio e a inflação como parte do ajuste fiscal.

É verdade que, diferentemente do passado, quando a alta do dólar agravava o quadro fiscal, agora ocorre o oposto. A dívida líquida do governo cresce menos com a alta do câmbio, pois o valor das elevadas reservas internacionais em reais aumenta. E alta da inflação no atacado, puxada pelo câmbio, ao inflar o PIB nominal (a inflação da economia como um todo sobe mais que a inflação ao consumidor), reduz a dívida como proporção do PIB. Em um exercício simples, a cada 10% de depreciação cambial, com Selic (por ora) estável, a dívida líquida/PIB cai em torno de 1pp. Há, portanto, um pequeno “refresco” de curto prazo, mas, sozinha, a depreciação não impede o crescimento da dívida ao longo do tempo.

Alguns acreditam que a inflação mais elevada ajudaria a reduzir o déficit público, em uma alusão ao passado, quando a inflação corroía as despesas e preservava a arrecadação. Não mais, pois há elevada indexação de despesas. Em 2019, as despesas corrigidas, direta ou indiretamente, pela inflação chegaram a 68% do total.

Além disso, a aceleração da inflação aumenta o desafio para cumprir a regra do teto, pois o teto de despesas no orçamento é calculado com base na inflação anual em junho do ano anterior, enquanto boa parte das despesas é indexada ao salário mínimo, corrigido pela inflação (INPC) do final do ano.

Reações equivocadas ao choque fazem com que ajustes da taxa de câmbio sejam mais intensos, atrapalhando a superação do próprio choque, por conta da inflação e da elevada volatilidade cambial. Não estamos diante apenas de um quadro de ajuste transitório para um novo equilíbrio da economia, mas, sim, de algo mais preocupante: o enfraquecimento dos alicerces da economia pela falta de perspectiva de reformas.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Os muitos pontos de não retorno

Não se sabe ao certo quando uma mudança brusca nos padrões comportamentais será atingida no País

Várias áreas do conhecimento utilizam o conceito de ponto de não retorno (tipping point) para designar fenômenos em que, uma vez atingido uma massa crítica ou ponto crítico, dispara-se uma mudança brusca de padrões de comportamento. É a gota d’água.

As ciências sociais utilizam o conceito para explicar mudanças de costumes da sociedade, como a moda e novos valores. Na saúde, para designar quando uma curva normal de contágio se transforma em epidemia.

O conceito tem sido empregado na questão ambiental. Alguns modelos experimentais preveem a substituição em grande escala da floresta amazônica por vegetação semelhante à savana até o final deste século. Uma vez atingido um certo nível de desmatamento, reduzem-se o ciclo de chuvas e a umidade da floresta, ampliando ou produzindo incêndios. Aumentam os eventos climáticos e o ritmo de degradação acelera, não sendo possível regenerar o bioma.

O cientista Carlos Nobre acredita que a floresta amazônica está chegando no ponto de não retorno, pelas secas prolongadas, pela temperatura média mais elevada e pelo comportamento das espécies – as mais adaptadas ao clima seco prosperam, enquanto as de clima úmido morrem em ritmo recorde.

Também se usa esse conceito na criminalidade urbana. A julgar pelo crescimento das milícias no Rio de Janeiro e também em São Paulo, há razões para temer a existência de um ponto de não retorno. Pesquisadores apontam a atuação das milícias em todo tipo de atividade: de proteção a serviços públicos. Áreas verdes são desmatadas para loteamento e construções. Há sinais de infiltração em instâncias do poder público e associação com o narcotráfico.

Na economia há também aplicação do conceito de ponto de não retorno. Mudanças bruscas de expectativas dos agentes econômicos podem ocorrer em função de alguma informação nova ou nível crítico atingido por alguma variável econômica relevante (threshold).

Ataques especulativos contra a moeda de um país – como os da década de 1990 no Brasil, quando o câmbio era controlado –, podem decorrer de avaliação de investidores de que o estoque de reservas internacionais atingiu nível crítico e o banco central não teria mais como defender a moeda.

No início do processo de impeachment de Dilma, houve relativamente rápida reversão de tendência e alívio de expectativas inflacionárias e de confiança de empresários, por conta da perspectiva de correção da política econômica.

No contexto atual, a percepção sobre o compromisso com a disciplina fiscal pode ser gatilho para mudanças bruscas de expectativas. As projeções de inflação e taxa Selic estão bem comportadas – 3,1% e 2,75%, respectivamente em 2021 –, e refletem o cenário básico dos analistas, que certamente têm como hipótese central a manutenção da regra do teto. É provável que estejam reduzindo a probabilidade desse cenário, em função dos sinais de baixa convicção de Bolsonaro com a disciplina fiscal. Se, por alguma informação nova, se convencerem que o teto será furado, atualizarão suas projeções e utilizarão um cenário alternativo. As mudanças nas projeções poderão ter saltos.

O mesmo vale também para a disposição de investidores de financiar a dívida pública, que poderá se reduzir mais rapidamente.

Não à toa o Banco Central faz seus alertas sobre o problema fiscal. Mudanças de cenários podem ser bruscas.

Não se sabe ao certo quando um ponto de não retorno será atingido. Geralmente se percebe quando é fato consumado, pela mudança de regime. Correções de rumo tornam-se mais difíceis ou mesmo impossíveis.

Em vários aspectos, o Brasil está em situação crítica. A falta de informações e de transparência – não há dados confiáveis sobre o dano ambiental e não há dados consolidados e amplos de segurança pública – e a negação dos problemas pelo poder público sugerem que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados.

É necessário um ponto de não retorno também da sociedade, mudando seu comportamento e dando um basta.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Sem meias palavras

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem

Faz parte da nossa cultura buscar sempre um lado positivo em tudo. Temos baixa tolerância a más notícias. Não é incomum os noticiários na televisão terminarem a edição com algum assunto ameno, provavelmente para não perder audiência.

É possível que esse traço cultural atrapalhe o enfrentamento de problemas. Ao negá-los ou atenuá-los, a busca por soluções tende a ser protelada. A reforma da Previdência saiu porque paramos de dourar a pílula.

O momento atual pede o enfrentamento da dura realidade fiscal, que se agravou. A recomendação de muitos de fazer tudo que fosse possível na pandemia, sem se preocupar com a qualidade e calibragem dos gastos, foi imprudente. Gastamos muito em comparação aos emergentes e não tão bem, como já discutido em outro artigo.

A PEC do orçamento de guerra poderia ter incluído a possibilidade de redução de jornada e vencimentos do funcionalismo, que tem estabilidade. De acordo com o IBGE, foi o grupo que mais reduziu as horas trabalhadas na pandemia. Em julho e agosto, elas foram em média 75% do habitual, ante 85% no setor privado e 81% nos informais.

Foram transferidos em torno de R$125 bilhões aos Estados, entre recursos diretos e suspensão de dívidas. No entanto, as contrapartidas exigidas foram tímidas. O congelamento de salários do funcionalismo por um ano e meio é muito pouco, até porque muitos Estados já haviam feito reajustes este ano.

A pandemia anestesiou os problemas nas finanças dos Estados, pois os pagamentos de serviço da dívida à União foram suspensos, o auxílio emergencial puxou a volta da arrecadação (+5,5% em setembro na variação anual) e a transferência de recursos da União ajudou a honrar a folha. Os problemas voltam todos em 2021.

Não por outra razão, a Câmara está propondo um novo projeto de socorro a Estados e municípios. Será crucial inserir boas contrapartidas e garantir sua manutenção, diferentemente do que ocorreu no acordo de 2016, quando a maioria foi derrubada no Congresso, como a suspensão de ajustes salariais e a redução de incentivos tributários (representam em média 17% da receita do ICMS). Ficou apenas o estabelecimento de uma regra do teto por dois anos, sem que instrumentos para seu cumprimento fossem previstos. O teto não foi atendido por 11 Estados e outros 9 não assinaram o aditivo. Para inglês ver?

As regras atuais que regem os orçamentos estaduais dificultam e até inviabilizam o cumprimento do teto, como aponta Cristiane Alkmin, pois geram crescimento automático das despesas obrigatórias. É o caso dos gastos com a folha de ativos e inativos, as vinculações de gastos de saúde e educação à receita corrente líquida (e não à variação do IPCA, que corrige o teto) e o piso do magistério (204% de ajuste desde 2009 ante uma inflação de 83%).

As contrapartidas são essenciais, portanto, inclusive para fortalecer politicamente o ajuste fiscal de governadores. Caso contrário, não sairemos da armadilha de frequentemente renegociar as dívidas de Estados.

A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem, como os crescentes precatórios, que afetam as 3 esferas de governo.

A reação dos mercados ao risco fiscal em alta – só não é maior por conta do teto de gastos – é didática para alertar a classe política. Ajuda a conter retrocessos e equívocos, como na proposta de adiar o pagamento de precatórios para financiar o Renda Cidadã.

Porém, não se pode depender do mau humor dos mercados para avançar com a agenda fiscal. Os investidores não costumam mapear bem os riscos. Tanto é assim que se encantaram com as promessas liberais de campanha. Muitas vezes, as reviravoltas no mercado acabam ocorrendo quando o quadro já é muito grave, como em 2015. Além disso, a pressão dos mercados não faz milagre quando não há plano estruturado a entregar.

Quando o Executivo está desarticulado, prevalecem os interesses difusos do Congresso. O primeiro antídoto contra isso é não negar os problemas.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: A insegurança jurídica grita a ouvidos moucos

É necessário liderança e vontade política para enfrentar a insegurança jurídica

Segurança jurídica significa estabilidade das relações judiciais, não havendo mudanças arbitrárias de leis e regulamentos, e nem de sua interpretação. Trata-se de um alicerce do bom funcionamento da economia. Quando as regras do jogo mudam sem critério e inesperadamente, a economia não floresce.

O Brasil sofre do mal da insegurança jurídica. Exemplo recente é a disputa judicial entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a concessionária da Linha Amarela. No ano passado, o prefeito Marcelo Crivella mandou destruir cabines de pedágio após cancelar unilateralmente o contrato de concessão, por julgar o pedágio abusivo. O TJ do Rio concedeu liminares em favor da empresa. No mês passado, o STJ, em decisão monocrática, as derrubou.

Esse é um exemplo de populismo que penaliza a todos ao final. Reduz o interesse por investimento em infraestrutura e pressiona as tarifas, que tendem a ser mais elevadas para remunerar riscos regulatórios.

A insegurança jurídica tem raízes históricas: um Estado que nasceu autoritário, estabelecendo regras de funcionamento da economia de forma arbitrária e beneficiando grupos específicos, mas ferindo o bem comum. O resultado é a desconfiança em relação a governo, instituições e outros cidadãos. A sociedade desconfiada reage de duas formas. Por um lado, aumenta a demanda por regulação estatal para conter perdas. Um exemplo é a legislação trabalhista engessada – agora menos por conta da reforma de 2017 –, que embora bem intencionada, prejudica a produtividade do trabalho e a geração de empregos, com ônus elevado para o empregador e indiretamente para o empregado. Por outro lado, desrespeita as leis e regulações estatais, como na sonegação de impostos.

Essa é uma característica de países emergentes com democracia tardia. As pesquisas indicam, no entanto, que o Brasil está no extremo de disfuncionalidade nesse balanço de menor confiança da sociedade e maior regulação estatal. Destoamos pela maior insegurança jurídica.

Para acomodar tantos interesses em um país complexo, com muitas demandas dos diferentes segmentos da economia e da sociedade, a regulação estatal acaba sendo não apenas excessiva, como também ambígua e complexa, o que alimenta a judicialização. Ao final, a desconfiança é generalizada, incluindo a dos órgãos públicos em relação a empresas e indivíduos. Na dúvida, autua-se.

Os problemas se retroalimentam. O País parece preso em uma armadilha. Um Estado instado a agir, mas que se torna onipresente pelas minúcias da regulação e arbitrariedades. Uma sociedade que clama por ação estatal, mas ressente dos seus efeitos colaterais. Há também desvios éticos da sociedade quando há oportunismo de litigantes e da advocacia fomentando a judicialização. Fazemos parte da confusão, sem nos darmos conta.

O Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico aponta que o Brasil responde por 98% das ações cíveis contra companhias aéreas no mundo. Há até startups que ajudam os passageiros a processarem as empresas. Pena a criatividade mal direcionada. Decisões questionáveis criam jurisprudência, como a indenização de passageiros mesmo em caso de condições meteorológicas adversas e sem devida comprovação de dano moral.

O tamanho do contencioso tributário nas três esferas de governo estava em 73% do PIB em 2018, segundo Lorreine Messias, Larissa Longo e Breno Vasconcelos, sendo 16,4% do PIB o contencioso administrativo da União, contrastando com a média de 0,19% de Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica e México. Além de elevado, o contencioso tributário é crescente e a conclusão de um processo demora quase 19 anos em média, segundo o ETCO.

Além da ineficiência econômica, há riscos fiscais envolvidos. As demandas judiciais contra a União classificadas como perda possível estavam em 113% das despesas primárias em 2018 ante 48,5% em 2015.

É possível enfrentar a insegurança jurídica, mas é necessário liderança e vontade política. Não parece uma preocupação deste governo.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Castelo de areia

O fim do auxílio emergencial é uma decisão correta, mas não indolor no curto prazo

É surpreendente a velocidade de recuperação da atividade econômica, ainda que não exatamente em forma de “V”. Como não existe milagre em Economia, é importante entender as causas e compreender os riscos adiante.

Vale repetir que há uma boa dose de artificialismo no aumento do consumo, puxado pelas classes populares, por conta do generoso Auxílio Emergencial. Além disso, a volta é bastante heterogênea entre os setores. O isolamento social redireciona recursos que iriam para o dispêndio com serviços para o consumo de alguns produtos associados ao maior tempo em casa.

Os dois fatores acima explicam, em boa medida, a performance das indústrias de alimentos, bebidas e bens duráveis (excluindo automóvel), que tiveram crescimento de 6%, 12% e 13%, respectivamente, em agosto na comparação anual. Na mesma toada, a produção de insumos da construção (+4%) se beneficia do “consumo formiguinha” (varejo), que subiu 23%.

Não é só isso. Há o efeito da balança comercial, ainda que menos importante. Do lado das exportações, pessoalmente, eu não esperava uma volta tão rápida das encomendas da China. O fato é que o país se defendeu bem da doença e, dentro do esperado, pisou no acelerador das políticas de estímulo, gerando aumento das importações (+11% em volume em julho na comparação anual). Enquanto isso, a volta do comércio mundial tem sido mais rápida do que na crise global de 2008-09, quando o crédito ao comércio secou.

Apesar disso, os países emergentes não têm reagido, em média, tão bem como na crise anterior, algo esperado diante da natureza da crise atual. De qualquer forma, o Brasil está melhor posicionado para se beneficiar dos ventos favoráveis do comércio exterior: a pauta exportadora é mais concentrada em commodities e pouco depende de derivados de petróleo, e a parceria com a China é grande e cresceu (destino de 50% das exportações ante 38% há um ano). Além disso, os preços de commodities agrícolas e metálicas mostraram-se resistentes, em contraste com a queda livre de preços petróleo e derivados.

Assim, as exportações brasileiras destoam positivamente (+11% em volume na média de junho a agosto), enquanto outros amargam por conta da dependência no petróleo (Colômbia), nos EUA (México) e nas manufaturas (Argentina), inclusive para o Brasil. Não é tanto a alta do dólar que explica o resultado, apesar do benefício à rentabilidade dos exportadores.

Do lado das importações, há boas notícias para a indústria. Nota-se uma reversão na tendência de aumento da participação de importados na economia dos últimos anos. O movimento não se resume à alta do dólar. A excessiva volatilidade do câmbio atrapalha bastante os importadores e ainda ocorrem problemas nas cadeias de suprimento.

Tudo somado, o resultado é que, diferentemente do que ocorreu em 2009, a produção industrial no Brasil tem exibido performance relativamente melhor do que a da média dos emergentes. Na indústria, a recuperação é em “V” e a criação de empregos no setor reage. Muitos celebram, discretamente.

Mas qual será o motor da economia daqui para frente? Aqueles de agora não estarão operando em breve. O fim do Auxílio Emergencial é uma decisão correta, mas não indolor no curto prazo. Mesmo que seja criado o Renda Cidadã, ele poderá custar em um ano o que o Auxílio custa em um mês (em torno de R$ 50 bilhões). Convém cautela em relação ao crescimento da China, que dá sinais de acomodação depois da rápida volta, em meio às conhecidas restrições estruturais. E não há espaço para estímulo fiscal e tampouco para cortes de juros, pelo contrário, diante do elevado risco fiscal. A fatura chega.

Estruturalmente, o País sai mais fraco da crise. Há recuo da taxa de investimento e do investimento direto estrangeiro (com provável queda no “market share” global) e o fechamento de empresas mais sofisticadas (com capital organizacional). Isso em meio à baixa produtividade e ao despreparo de muitas empresas e da mão de obra para as novas tecnologias que se impõem.

Alívio, sim. Visão míope, não.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Melhor não despertar a ira dos investidores

Precisamos, desde já, de um plano de contenção de despesas obrigatórias

Disciplina fiscal significa um país não gerar indefinidamente rombos orçamentários e aumento da dívida pública como proporção do PIB. Caso contrário, cedo ou tarde, vai enfrentar o revide dos credores: inicialmente demandando taxas de juros crescentes e, no limite, desistindo de financiar o governo, por medo de calote. Irão buscar investimentos mais seguros, inclusive fora do País. O resultado é o aumento da inflação.

O espaço para governos esticarem a corda depende da crença dos investidores quanto à sua capacidade e disposição de fazer o ajuste das contas públicas, em algum momento futuro. Dois fatores são chave para essa expectativa: a capacidade do país de crescer de forma sustentada, o que é um selo de qualidade da ação estatal, e a credibilidade do governo, construída pelo respeito a compromissos feitos.

Países ricos conseguem se endividar mais. A dívida pública das economias avançadas estava na média em 104% do PIB em 2018 ante 50% nos emergentes. Em 2000, essas cifras eram 83% e 45%, respectivamente.

Para ajudar na construção de credibilidade, muitos governos adotam regras fiscais para reger as contas públicas. São compromissos com a disciplina fiscal previstos em lei. É comum em países com meta de inflação, pois são regras que se reforçam mutuamente.

As regras precisam ser duradouras para cumprirem seu papel. Não podem ser facilmente contornadas ou alteradas. Já se observam no mercado financeiro as consequências do flerte com a flexibilização da regra do teto, aprovada há menos de quatro anos. A elevada volatilidade de preços de ativos, inclusive da taxa de câmbio, ameaça a recuperação da economia. Além disso, ocorre um encurtamento do perfil da dívida pública, tornando o ambiente mais propenso à saída de recursos.

As regras não podem ser frouxas, deixando de fora muitos itens de despesa, como alguns propõem – a regra do teto já exclui o Fundeb e a capitalização de estatais não dependentes do Tesouro. Por outro lado, precisam ser críveis ou factíveis. Alguns analistas apontam que, por conta da pandemia, a regra do teto tornou-se impraticável diante das demandas por gastos com saúde e socorro de pessoas e empresas, sendo necessário ajustá-la. Vejamos.

A regra já embute uma “cláusula de escape” para o período de calamidade pública, liberando as despesas associadas ao combate dos efeitos da covid-19. Seria então o caso de estendê-lo por mais alguns meses, para autorizar despesas transitórias? O cuidado aqui é haver justificativa forte o suficiente para os créditos extraordinários e a garantia de seu bom uso. Além disso, convém esgotar outras possibilidades, como criar espaço no Orçamento pela redução temporária da folha do funcionalismo, conforme proposto na PEC emergencial, abandonada.

Uma flexibilização do teto para aumentar despesas permanentes seria mais arriscado. Mesmo medidas meritórias, como a Renda Cidadã, deveriam substituir as muitas políticas públicas equivocadas. Nesse contexto, é indefensável a tímida proposta de reforma administrativa, que além de excluir importantes carreiras do funcionalismo, não afeta os atuais servidores. O mesmo vale para a contrariedade do presidente com o remanejamento de recursos de outras políticas sociais proposto pelo time econômico.

A pandemia aumentou a necessidade de reformas. O teto, mesmo se respeitado, não eliminará o rombo fiscal por muitos anos. Flexibilizá-lo significaria cutucar o investidor, já desconfiado, com vara curta. Dilma fez isso em 2015. Deu no que deu.

Na melhor das hipóteses, o governo estaria aumentando a probabilidade de um ajuste forçado das contas públicas por meio de sensível elevação da carga tributária. Um cenário “volta ao passado” penalizaria ainda mais a frágil economia.

Os investidores poderão financiar a dívida pública elevada e crescente, e será possível evitar maior carga tributária e instabilidade econômica. Mas desde que haja plano consistente de contenção de despesas obrigatórias de forma a não apagar a chama já tão fraca da disciplina fiscal.


Zeina Latif: Provocando os contribuintes

As lideranças do funcionalismo precisam buscar o diálogo honesto para proteger aqueles que elas representam

A construção da cidadania iniciou-se tardiamente no Brasil. Em uma sociedade escravocrata e com domínio da oligarquia rural na estrutura econômica e social do País até 1930, não havia espaço para liberdades individuais e participação social ampla na esfera pública.

Além de tardia, a cidadania teve evolução muito lenta, por conta dos ciclos autoritários que marcaram nossa história, quando as liberdades de expressão e de mobilização eram suprimidas.

Da mesma forma que o ambiente era pouco propício à cidadania, o era também para a educação de massas. A ausência de educação básica universal até a década de 1990 é, ao mesmo tempo, reflexo e agravante da cidadania incipiente.

Esse quadro não impediu as várias revoltas populares em nossa história, que eram reprimidas com violência, sendo que o longo período militar deixou marcas. A repressão pode ter contribuído para uma sociedade pouco inclinada à reivindicação.

O resultado é que prevalecem os interesses de grupos organizados na agenda política, enquanto preserva-se muitas vezes o equilíbrio social com populismo e paternalismo. Uma combinação que impede o maior crescimento econômico.

As novas gerações, beneficiadas pela conectividade digital, têm desafiado a “velha ordem” e anseiam por maior participação política – ainda que por vezes as reivindicações sejam injustas. Essa foi a lição dos protestos de 2013.

A crise atual cria um ambiente mais propenso a reivindicações. O distanciamento social e a volta da economia contribuem para a população dar o benefício da dúvida aos governos. Talvez não por muito tempo. A crise ceifa oportunidades de trabalho e de desenvolvimento, gerando insatisfação.

Temas que antes eram pouco presentes no debate público têm ganhado evidências e geram indignação. É o caso das regras que regem o serviço público, com benefícios não disponíveis ao trabalhador do setor privado. A pesquisa Exame-Ideia mostra que 34% dos entrevistados são contra a estabilidade do funcionalismo. Predominam os que são a favor (52%), mas 34% não é pouco, posto que é um debate recente. Além disso, 53% são a favor de a reforma administrativa proposta pelo governo valer também para os atuais servidores, e não apenas para futuros concursados.

Enquanto isso, organizações que representam os servidores públicos mostram-se indiferentes ao sofrimento da população. Falta espírito público a um grupo que deveria servir à sociedade e que conta com estabilidade de emprego e renda.

Os sindicatos de professores recusam o retorno das aulas presenciais, deixando de lado os estudantes e os responsáveis que voltam ao trabalho e sofrem por não ter como cuidar dos filhos. Para a Apeoesp, que representa os professores da rede pública de São Paulo, “voltar às escolas é genocídio” e “o não retorno às aulas presenciais é inegociável”. Deveriam estar discutindo como retomar as aulas presenciais com segurança.

Muitos médicos peritos do INSS relutam em voltar ao trabalho. A associação que os representa, ANMP, obteve uma vitória na Justiça Federal, que suspendeu o retorno presencial, o que impede o governo de cortar o ponto dos faltosos.

Dezenas de sindicatos de servidores se unem contra a reforma administrativa governo. Muitos se acreditam especiais, enquanto o governo falha em sua comunicação.

A elite do funcionalismo, principalmente do sistema judiciário, tem conseguido preservar e até criar novos privilégios. O Ministério Público Federal obteve aprovação para contornar a regra do teto e garantir recursos para o auxílio-moradia. E juízes poderão receber mais 1/3 do salário ao assumir estoque de processos que aguardam julgamento.

Não seria justo generalizar. Não faltam servidores zelosos de suas responsabilidades, sendo que há grande desigualdade de renda dentro do serviço público. As lideranças do funcionalismo, no entanto, precisam buscar o diálogo honesto e resgatar o espírito do serviço público. Na intransigência, não estão protegendo a quem representam. Estão, sim, provocando a ira dos contribuintes.

*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP


Zeina Latif: Já assistimos a esse filme

Guedes enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos

O presidente Bolsonaro sentiu o gosto do impacto do auxílio emergencial sobre sua popularidade. Não será mais o mesmo, o que implica maior risco fiscal daqui para frente.

A sensação é de déjà vu. Uma grave crise justificando políticas de estímulo econômico, em meio a demandas legítimas ou não. Na corrida em que ninguém quer ficar para trás, a classe política se regozija com as frentes de negociação abertas e as benesses a vários grupos organizados. A maioria aplaude; os críticos ora são ignorados, ora taxados de pessimistas, ora acusados de insensíveis. Cedo ou tarde, a conta chega.

A crise de 2008 foi gatilho para uma miríade de medidas de estímulo. Não tardou para excessos serem cometidos, quando já se recomendava a suspensão das políticas. A disciplina fiscal, pilar dos primeiros anos do governo Lula, foi para as calendas. O crescimento de 7,5% do PIB em 2010 foi, em boa medida, artificial. Eleição vencida.

Dilma dobrou a aposta com estímulos e artificialismos para todo lado. Cruzou o limite da responsabilidade. Vale o dito: remédio demais é veneno. A reeleição foi garantida em 2014 e se adiou uma recessão contratada.

O início daquele filme guarda semelhanças com o momento atual.

Bolsonaro não é afeito a reformas – declarou que fazia a da Previdência a contragosto – e repetidamente freia o Ministério da Economia – como ao evitar reformas que afetam o funcionalismo – e os técnicos do governo – como ao ameaçar demitir quem questionasse o fim do subsídio à energia solar. Seu comportamento influencia o Congresso. Afinal, por que ser mais realista que o rei?

A concorrência na política, um pilar da democracia, se distorce quando o assunto é aumentar gastos. A descrença da sociedade no Congresso exacerba a dificuldade de defender a disciplina fiscal. 

Já nos EUA, há o saudável debate no Congresso sobre a extensão do benefício aos desempregados. E os republicanos, disputando a reeleição de Trump, defendem a interrupção em setembro! Aqui, nem sombra disso.

Como se não bastasse, o presidente está em mutação. Populista e pragmático, ele se molda aos novos tempos. Especialistas, como Maurício Moura, apontam mudanças na sua base de apoio: saem os decepcionados das classes mais favorecidas e entram os estratos mais populares beneficiados pelo generoso auxílio emergencial. Essa nova dinâmica poderá implicar inflexão da agenda econômica.

Faltam fiadores da disciplina fiscal no governo. Paulo Guedes, isolado, enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos. Não falta criatividade para evitar as amarras fiscais previstas em lei. Chegou-se a imaginar uma conta de restos a pagar às avessas: libera-se o recurso para investimento em infraestrutura e habitação este ano, por meio de crédito extraordinário para emergências e executam-se as obras depois. Dupla criatividade: nem seriam gastos elegíveis a crédito extraordinário, nem faria sentido liberar o recurso antes da execução.

A lista de pedidos é extensa, incluindo a capitalização de estatais ligadas ao Ministério da Defesa; vinculação de 2% do Orçamento para as Forças Armadas; prorrogação da desoneração da folha; e criação da renda básica (meritória, desde que bem desenhada). Fora o que já foi aprovado, como a expansão do BPC e o novo Fundeb.

Especula-se estender o período de calamidade pública (implica suspensão das regras) para cobrir as medidas de caráter temporário. E as de caráter permanente? Há cheiro de flexibilização da regra do teto e de aumento de carga tributária (para atender à Lei de Responsabilidade Fiscal) no ar. Não há propostas de contenção de gastos obrigatórios.

Não estamos diante de riscos extremos, com a revogação da regra teto e desrespeito explícito à LRF, a julgar pela reação dos investidores e das instituições de controle (TCU). Seria algo intermediário, tentando preservar as aparências, mas preocupante diante da grave situação fiscal.

É preciso mudar o enredo desse filme.


Zeina Latif: Afundando na armadilha da renda média

A educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média

É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007.

Muitos países conseguiram sair da pobreza por meio de políticas governamentais para elevar o estoque de capital da economia. Foi o caso do Brasil. No entanto, o mesmo receituário não seria suficiente para tornar o país rico, independentemente das restrições fiscais. No século 21 ainda menos, por conta do avanço tecnológico.

As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis.

A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado – envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados – para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta.

Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade. No Brasil não é diferente e, para piorar, o debate técnico ainda não está suficientemente maduro.

Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos. É o que se vê agora no Brasil com a reação contrária de muitos ao fim da desoneração da folha e à reforma tributária. A elite, que não depende da escola pública, também pouco exerce pressão política.

Como resultado, o desenho de políticas públicas de educação acaba sendo mais influenciado por sindicatos e políticos de viés populista.

É nesse contexto, agravado pela omissão do governo, que foi a aprovado o novo Fundeb. O foco principal do expressivo aumento de recursos foram os gastos com a folha, deixando pouca flexibilidade para gestores escolherem a melhor forma para elevar a qualidade do ensino. Esse tema, por sua vez, ficou praticamente de fora.

Em países pobres, com baixo acesso à escola, é crucial elevar os gastos com educação. O Brasil percorreu esse primeiro percurso, mas não de forma eficaz. Há maior inclusão, mas temos o dobro de taxa de evasão escolar em relação a países parecidos. E não seria correto apontar os salários dos professores como explicação para esse resultado. Segundo o Banco Mundial, o piso salarial dos professores está em linha ao de países com renda per capita similar, havendo evolução bem mais rápida na carreira devido a promoções automáticas, além de a previdência ser mais generosa.

Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica.

Perdemos a chance de um debate político amparado tecnicamente sobre como melhorar a educação, aprendendo com os casos de sucesso. Nos agarramos a fórmulas fáceis e que deveriam estar superadas.

Será que teremos de esperar o problema educacional começar a prejudicar investimentos de forma visível, como ocorre na questão ambiental, para o debate ficar mais maduro? Por ora, o que estamos fazendo é nos afundar na armadilha.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Sem ministro e sem rumo

Crise atual aumenta o apelo para soluções populistas e pode afastar medidas mais estruturantes

Muito foco tem sido dado à escolha do próximo ministro da Educação, mas muito pouco se discute sobre as medidas para reduzir o atraso educacional, combatendo a desigualdade de oportunidades e elevando a qualidade da mão de obra. É uma visão míope defender mais recursos públicos.

Nunca é demais repetir que o governo brasileiro gasta com educação mais que a média dos países da OCDE (6,2% do PIB em 2015 ante 5%) e que o aumento de recursos foi considerável na última década (4,5% em 2005).

É verdade que o gasto por aluno é bastante inferior (equivale aproximadamente a 41% da OCDE no ensino básico e 88% no superior), mas cabe lembrar que somos mais pobres que a média da OCDE (o PIB per capita do Brasil equivale a 35%) e gastamos mais do que países parecidos. O custo por aluno é sensivelmente maior aqui do que na média da Colômbia e do México, por exemplo (1,8 vez maior no ensino superior e em torno de 1,27 vez no ensino básico).

O aumento de recursos permitiu maior acesso à educação, mas houve avanço insatisfatório dos indicadores de qualidade. O momento atual demanda a melhor gestão e alocação de recursos, reduzindo a ênfase no ensino superior, mais frequentado pela elite.

São menos crianças ingressando na escola, por conta da menor fertilidade, mas ainda há muitas de fora. Apenas 29% das crianças pobres estão em creches e 7,4% delas estão fora da pré-escola. As discrepâncias regionais são elevadas, o que demanda maior flexibilidade nos orçamentos locais e a reprodução de experiências de sucesso.

Em torno de 21,6% dos alunos não concluem o ensino fundamental até os 16 anos, sendo a taxa de conclusão dos mais pobres de apenas 31%.

São 71% dos jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio, mas 35% não o concluem – para os mais pobres, a taxa sobe para 49,8%. A elevada evasão escolar está certamente associada à baixa qualidade do ensino. A taxa de proficiência em leitura no 3.º ano fundamental (dado de 2016) está em 45% (68% entre os mais ricos e 23% entre os mais pobres). Os números para a proficiência em matemática são parecidos.

Na comparação mundial fica ainda mais explícita a baixa qualidade do gasto com educação. As notas do Pisa estão praticamente estagnadas desde 2009 e são inferiores às da Colômbia, que exibiu sensível avanço. A diferença entre ensino público e privado é significativa.

A discussão da renovação do Fundeb será importante teste. A proposta em tramitação no Congresso propõe elevar significativamente a complementação de recursos da União – de 10% para 20%, implicando R$ 170 bilhões a mais em 10 anos. Há vários problemas: não há preocupação com a qualidade do ensino e se engessa ainda mais a alocação de recursos ao não alterar as regras vigentes desde 2009 que farão com que o aumento de recursos se traduza em elevação do piso salarial, já bastante valorizado (204% de ajuste desde 2009 ante inflação de 83%) nas regiões mais pobres.

O MEC não se manifesta, mas deveria ter proposta alternativa, com a manutenção do volume atual de recursos e estabelecendo critérios meritocráticos para a distribuição dos mesmos, levando em conta as diferentes realidades do País, e provendo maior liberdade para sua utilização. Cada administração local deveria definir suas prioridades de gastos.

Há outras tantas agendas importantes no MEC, como a coordenação de esforços regionais, propiciando replicar os vários casos de sucesso na educação.

É necessário introduzir meritocracia na universidade pública, lembrando que 85% das despesas é com pessoal, sobrando pouco para a pesquisa acadêmica.

Especialistas apontam para a necessidade de unificar programas de assistência estudantil para um direcionamento mais eficiente dos recursos, criar mecanismo de devolução de recursos de indivíduos que se beneficiaram de recursos públicos no ensino superior, reduzir a gratuidade do ensino superior para os mais ricos, viabilizar convênios entre as universidades públicas e a rede básica.

A crise atual aumenta o apelo para medidas populistas e pode afastar medidas mais estruturantes. Não podemos cair nessa armadilha.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Vamos falar de trabalho?

Será necessário redirecionar recursos para abertura de novas empresas

O s números do mercado de trabalho preocupam. Houve uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas no trimestre encerrado em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Os informais são, de longe, os mais afetados (menos 5,7 milhões).

As medidas do governo para conter a queda do emprego com carteira, no entanto, ajudaram a evitar um quadro bem pior. O programa de redução temporária de salários e de suspensão de contratos beneficiou 11,7 milhões de trabalhadores até o dia 26 de junho.

Os dados do emprego com carteira do Caged reforçam essa avaliação, pois o 1,4 milhão de vagas líquidas fechadas na mesma comparação decorreu muito mais da baixa geração de vagas do que de demissões.

Comparações mundiais são particularmente complexas, até porque as diferentes legislações trabalhistas têm impacto na flexibilidade para contratar e demitir. Mesmo assim, vale citar que, de uma lista de 32 países com informações disponíveis em maio último, o Brasil está no grupo de países mais preservados em termos de aumento da taxa de desemprego (12,9% ante 12,3%), em que pese o fato de partir de uma base elevada, das piores no mundo, sofrendo as consequências da recessão passada e do baixo crescimento.

Esse resultado, no entanto, camufla uma dura realidade, que é o desalento daqueles que não buscam trabalho, pois sabem que não terão sucesso, inclusive por conta do isolamento social. Não fosse isso, a taxa de desemprego estaria em 20,3%. Isso significa que em um possível cenário de lenta geração de vagas e elevação paulatina da procura por trabalho, a taxa de desemprego poderá subir muito nos próximos meses. Ações são necessárias.

A situação de outros países da América Latina – que também sofrem muito com a informalidade elevada – é bem pior: tiveram alta expressiva da taxa de desemprego, apesar da redução da procura por trabalho até mais forte do que a ocorrida no Brasil. O desemprego na Colômbia está em 21,4% ante 10,5%; Peru, com 13,1% ante 6,7%; e Chile com 11,2% ante 7,2%. Em todos esses casos, a queda de ocupados foi bem mais expressiva do que no Brasil.

Quanto aos informais, mais penalizados, medidas de socorro não têm faltado. O auxílio emergencial de R$ 600 beneficia em torno de 65 milhões de pessoas, cifra sensivelmente acima da soma de informais (40 milhões) e microempreendedores individuais (10 milhões) – nem todos elegíveis.

O governo prorrogou por mais dois meses o benefício por conta do isolamento social. Contabilizando os cinco meses totais, o custo do programa deverá ultrapassar R$ 250 bilhões, valor muito além da renda gerada pela metade mais pobre da população, que não ultrapassa R$ 150 bilhões.

A transferência de renda é uma medida relativamente simples de ser implementada e tem grande apelo político, mas não convém perder de vista a necessidade de preparar a mão de obra para o retorno ao mercado de trabalho e estimular a geração de vagas em um quadro de fechamento de negócios. São pautas tecnicamente mais difíceis e menos sedutoras politicamente, mas que precisam ser enfrentadas.

Rever e focalizar os vários programas sociais de transferência de renda entrou no radar do governo. A reavaliação de políticas públicas tornou-se ainda mais urgente.

Não há dúvidas que, mesmo no curto prazo, passado o isolamento social, é necessário ir além da transferência de renda. Não só pelo elevado custo do auxílio emergencial, mas pelo impacto na oferta de trabalho dos indivíduos.

Ricardo Paes de Barros recomenda a “inclusão produtiva”. A renda dos indivíduos decorreria da prestação de serviços, notadamente aqueles essenciais em tempos de pandemia, como os associados a saúde, medidas sanitárias e assistência social. Avalio que também será necessário redirecionar recursos para a abertura de novas empresas e modernização das atuais por meio da redução de renúncias tributárias ineficientes e injustas.

Além disso, deveria se reduzir obrigações que oneram a contratação de trabalhadores, como a contribuição do Sistema S. Precisamos estimular o trabalho. Isso sim.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Zeina Latif: Escolhas arriscadas

Juros baixos foram duramente conquistados; exageros fiscais e monetários podem ameaçar

Convém o Banco Central cortar ainda mais a taxa de juros Selic? Qual o benefício vis-à-vis ao custo?

Para alguns analistas essa pergunta nem deveria ser feita, afinal a taxa de inflação corrente (1,9% aa em maio) e as projeções (1,6% para 2020 e 3,0% em 2021) estão abaixo das metas (4% e 3,75%), em meio à elevada ociosidade de mão de obra e capacidade produtiva. A decisão de corte seria óbvia.

A questão, porém, é mais complexa pelos riscos envolvidos.

Para começar, o “painel de controle” do BC está avariado. Já discuti neste espaço que a queda abrupta da inflação reflete principalmente a restrição ao consumo por conta do isolamento social, não podendo ser tomada como sinalização para o futuro. A inflação de serviços, por exemplo, mais resistente, caiu bastante (de 3,9% há um ano para 2,7%) com a contração da demanda das famílias por serviços (-62% até abril), mas poderá acelerar em breve.

Há também riscos que precisam ser levados em conta, principalmente o fiscal. Ele poderá ser mitigado com a retomada de reformas estruturais. Porém, Bolsonaro não se mostra disposto, por ora, a encarar agendas polêmicas, como a necessária reforma administrativa.

Alguns analistas defendem que a Selic baixa contribui para reduzir o risco fiscal. Porém, se os juros básicos forem percebidos como artificialmente baixos, os juros de longo prazo que remuneram a dívida pública irão subir, pelo risco de uma volta mais rápida da inflação.

Não tem escapatória: inflação bem comportada e juros baixos de forma sustentada dependem do compromisso com a disciplina fiscal ao longo do tempo.

Não se sabe o limite para o corte da Selic, mas certamente está acima do observado em países ricos ou com contas públicas mais saudáveis. Taxas exageradamente baixas podem dar dor de cabeça, pela consequente pressão sobre o dólar. Juros muito baixos em um ambiente de riscos elevados reduzem ainda mais o interesse para investimento no País, de locais e estrangeiros, incluindo o financiamento do governo.

O fato de brasileiros terem ativos no exterior, obtendo ganhos de capital com o real fraco, não implica maior disposição a investir no Brasil.

Alguns argumentam que, em algum momento, a taxa de câmbio encontraria seu novo equilíbrio, produzindo uma melhora das contas externas com a redução de gastos no exterior e o ingresso de recursos atraídos pela queda dos preços de ativos brasileiros quando denominados em dólar (“o Brasil ficou barato”, dirão os investidores). O problema é o acidentado percurso até lá, sendo que volatilidade cambial elevada é veneno para o setor privado. Não é recomendável sobrecarregar o ajuste na taxa de câmbio.

A pressão cambial exacerbada machuca as finanças das empresas nacionais, pois eleva o valor (em real) da dívida externa (para este ano, as amortizações ultrapassam US$ 100 bilhões, sendo que a taxa de rolagem foi baixa em abril) e encarece os preços de insumos (atualmente os importados têm maior participação do que no passado). A valorização do dólar machuca o crescimento do PIB no curto prazo, agravando a crise.

O risco de uma surpresa inflacionária indesejada também aumenta. O baixo repasse do dólar aos preços nos últimos anos não está escrito em pedra.

O BC indica que prefere esticar a corda, aceitando o risco de ter de subir a Selic de forma mais rápida e mais intensa no futuro. Essa não será uma tarefa fácil.

O momento recomenda cautela. Outras políticas mais potentes no momento e focalizadas têm sido eficazes para estimular o crédito, como as medidas administrativas do BC e o socorro às empresas. O consumo tem reagido ao auxílio emergencial a indivíduos, a julgar pelos dados relativos ao uso de cartões de crédito. O montante de R$ 150 bilhões é expressivo à luz da renda gerada pela metade mais pobre do País, de menos de R$100 bilhões em 3 meses, segundo especialistas como Ricardo Paes de Barros.

Juros baixos foram duramente conquistados nas ultimas de décadas. Exageros fiscais e monetários agora poderão ameaçar essa conquista.

*Consultora e doutora em economia pela USP