William Waack

El País: Morte de Paulo Gustavo catalisa ódio contra Governo Bolsonaro por má gestão da pandemia

Joana Oliveira, El País

“Paulo Gustavo não morreu de covid-19. Paulo Gustavo morreu de Brasil.” Essa é uma das milhares de mensagens que têm circulado nas redes sociais desde a noite de terça-feira, quando o país recebeu a notícia do falecimento do humorista de 42 anos, que deixou o marido, Thales Bretas, e dois filhos de um ano e nove meses. Ele estava internado em um hospital do Rio de Janeiro para se tratar da doença desde 13 de março e tornou-se uma das mais de 411.000 vítimas fatais da pandemia no país, mortas por “uma doença para a qual já existe vacina”, como não deixaram de lembrar os fãs do artista. A morte de Paulo Gustavo, um ator e humorista de personagens icônicos, como Dona Hermínia, que fazia rir e era apreciado nos mais diversos lados do espectro político, catalisou a dor coletiva e o ódio pela perda de quase meio milhão de brasileiros. A avaliação mais frequente é que ao menos parte das mortes seriam evitáveis caso o Governo Federal, sob comando de Jair Bolsonaro, tivesse adotado as medidas necessárias na gestão da pandemia, como a compra em massa de vacinas já no ano passado.

O humorista querido pelo país faleceu no mesmo dia em que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta deu testemunho da política negacionista de Bolsonaro durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos em depoimento de estreia da CPI da covid-19. A CPI já levantou que o Governo brasileiro recusou pelo menos 11 ofertas formais de fornecimento de vacinas contra essa doença —levando em conta os episódios em que há provas documentais da omissão governamental. Nesses casos, o Ministério da Saúde simplesmente ignorou as ofertas, sem dar resposta aos fornecedores. Nesse pacote estão, por exemplo, 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer que poderiam ter sido compradas entre agosto e setembro do ano passado.

“Hipócrita”, “verme”, “canalha”, “maldito”, “desgraçado”, “genocida”, “assassino”. Esses foram alguns dos termos usados por famosos, políticos da oposição e anônimos para responder ao presidente após ele publicar nas redes sociais uma mensagem de condolência pela morte de Paulo Gustavo. “Meus votos de pesar pelo passamento do ator e diretor Paulo Gustavo, que com seu talento e carisma conquistou o carinho de todo Brasil. Que Deus o receba com alegria e conforte o coração de seus familiares e amigos, bem como de todos aqueles vitimados nessa luta contra a covid”, escreveu Bolsonaro.

Em meio aos adjetivos nada elogiosos, surgiam comentários que lembravam muitas das vezes em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia, a demora para firmar acordos para a compra de vacinas, as aglomerações que ele promoveu e das quais participou, sua recusa em usar máscaras, a falta de adoção de medidas restritivas e de promoção do distanciamento social, a propaganda da cloroquina como tratamento precoce contra covid-19, mesmo sem eficácia cientificamente comprovada, e uma longa lista de discursos e ações. Na CPI que investiga a gestão da pandemia, Mandetta disse ter a impressão de que o Governo Bolsonaro apostava na teoria da imunidade de rebanho ―que supõe a proteção de uma comunidade quando um percentual da população já tem anticorpos― para superar a pandemia.

O escritor Paulo Coelho, mundialmente reconhecido, foi um dos que, sem citar nomes, responsabilizou diretamente o presidente e seu Governo pela morte de Paulo Gustavo. “Assassinos de Paulo Gustavo: quem dizia ‘é só uma gripezinha’; ‘não passa de 200 mortes’; ‘cloroquina resolve’; ‘gente morre todo dia’; ‘lockdown destrói o país’; ‘máscara nos faz respirar ar viciado’; ‘eu obedeço o comandante’. E por aí vai. Canalhas da pior espécie”, publicou em uma rede social.

Nesta quarta-feira, a jornalista e apresentadora Fátima Bernardes deu voz em seu programa matinal Encontro com Fátima (Rede Globo) à raiva que acompanha a tristeza pela morte do humorista, uma morte que reaviva a dor da perda das outras mais de 400.000 pessoas. “Hoje é um dia de luto pelo Paulo Gustavo, mas também por todos os outros que se foram por conta dessa doença terrível que é a covid-19. E pela forma como essa pandemia vem sendo administrada, infelizmente, aqui no nosso país. Dói muito saber que muitas pessoas, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Cadê a vacina, o respeito ao distanciamento, ao uso de máscara? Cadê uma campanha forte e firme de alerta e informação da população?”, questionou ela. “Nós não estamos só tristes, estamos indignados, nós estamos revoltados. É muito ruim quanto a tristeza e a indignação se misturam à raiva”, acrescentou.

Enquanto a CPI avança no Senado, onde o Governo enfrenta as pressões da oposição, a frustração borbulha nas redes e, em menos de 24 horas, começaram a surgir comentários sobre a organização de protestos na rua contra Bolsonaro. Os administradores do perfil Qual máscara?, uma iniciativa que recompila e distribui informações baseadas em evidências sobre proteção contra a covid-19 e que soma mais de 200.000 seguidores no Instagram e no Twitter, comprometeu-se a distribuir máscaras PFF2 (de alta proteção) para manifestações ao ar livre, a fazer um material informativo para os atos e arrecadar doações para que eles aconteçam.

Nesta mesma quarta-feira, Bolsonaro voltou a menosprezar o uso de máscaras contra a propagação do coronavírus. Durante um ato para falar sobre a inauguração de obras no país, criticou os jornalistas que, segundo ele, “se preocupam apenas em dizer que o presidente está circulando sem máscaras”. “Já encheu o saco isso, pô!”, arrematou.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-05/morte-de-paulo-gustavo-catalisa-odio-contra-governo-bolsonaro-por-ma-gestao-da-pandemia.html


William Waack: Dona Hermínia no Planalto

Sentada na cadeira do presidente no Palácio do Planalto, a personagem Dona Hermínia, criada pelo genial Paulo Gustavo, falaria assim sobre a covid-19. “É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês.”

Dona Hermínia gostaria e ao mesmo tempo se cansaria de lidar o tempo todo com seu principal auxiliar, o ministro Paulo Guedes, em quem daria broncas como fazia com o ex-marido Carlos Alberto ou a empregada Valdeia. “PG, pode sair e ganhar dinheiro por aí, mas não me tira poder.” Mas, por ser tão mãezona, Dona Hermínia admitiria que às vezes tem de negociar. “Obviamente, com o passar do tempo, vou dando minhas peruadas no Paulo Guedes e ele vai dando na política para mim.”

Quando ficasse brava, Dona Hermínia explodiria rápido e não toleraria ser contestada, especialmente por jornalistas, gente que ela teria certeza de que não serve para muita coisa a não ser criticá-la injustamente. “Vontade de encher tua boca de porrada.” É um tipo de desejo que, seguramente, Dona Hermínia expressaria também em relação a senadores que tentassem encher o saco dela com CPIs. “Vou ter de sair na porrada.”

Pessoas que não sabem ficar dentro do seu cercadinho, como ministros do STF, levariam Dona Hermínia a lembrar a educação que deu aos filhos – impondo limites, sabendo dizer “não”, aplicando uma coça de vez em quando. Seus filhos sempre baixaram a crista quando avisava “que estão esticando muito a corda, e já está bem esticada”. Dona Hermínia acha que as pessoas entenderiam muito bem o que poderia acontecer quando ela decidisse “baixar um decreto para garantir o direito de ir e vir, e não ouse contestar”.

Para o lado dela Dona Hermínia teria certeza de que a corda não iria arrebentar, graças ao “seu” Exército. Que lhe obedeceria sem piscar os olhos, principalmente para proteger o povo de gente malvada como governadores e prefeitos que não pensam em outra coisa senão prejudicá-la gastando o dinheiro que Dona Hermínia mandou para eles combaterem a pandemia e agora sabe-se lá que fim essa grana levou. “Meu Exército não vai às ruas agir contra o povo”, diria Dona Hermínia.

Mas Paulo Gustavo se foi, ceifado como outras centenas de milhares de brasileiros por uma tragédia sem precedentes de saúde pública, agravada em primeiro lugar por documentada incompetência governamental, mas também – é obrigatório que se diga – por irresponsabilidade coletiva, num país que carece de líderes. A perda é grande, pois o humor é a melhor autocrítica da qual possa dispor uma sociedade, e a brasileira vai se despedindo rápido daquilo que sempre gostamos de chamar da malandragem simpática do brasileiro, da sua irreverência, do seu sorriso aberto.

A Dona Hermínia de Paulo Gustavo que conquistou o coração de milhões de pessoas é, no fundo, um personagem carinhoso, solidário, engraçado no melhor sentido da palavra, que criou entre todos nós uma profunda identificação pelas suas dúvidas, suas incertezas, suas dificuldades em entender o mundo. Mesmo a acidez e palavras duras mal disfarçavam o coração enorme e mole de mãe. Atrás dos palavrões, das ameaças e do sarcasmo da personagem está uma figura doce, divertida, amiga, preocupada com o mundo e as pessoas que a cercam.

Infelizmente, não há mais chances de Dona Hermínia ocupar o Palácio do Planalto.

Fonte

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dona-herminia-no-planalto,70003705566


William Waack: O milagre da permanência

Jair Bolsonaro está ganhando fácil a corrida para saber qual ocupante do Palácio do Planalto conseguiu perder mais rápido o capital político conquistado numa eleição direta e plebiscitária. É curioso observar como ele mesmo “trabalhou” para criar um vácuo político imediatamente ocupado.

De fato, nunca o Executivo brasileiro foi tão controlado, contido ou encurralado pelo Judiciário e Legislativo. Têm razão os generais de pijama que cochicham a Bolsonaro que STF e Congresso extrapolaram suas competências. Mas não se trata, como pretendem Bolsonaro e seus seguidores (em diminuição acentuada) de uma “conspiração”.

A principal responsável é a atuação do próprio Bolsonaro e sua extraordinária incompetência política. No momento em que enfrentar a crise da pandemia e suas consequências para a economia demandaria uma altíssima capacidade de liderança, coordenação e foco estratégico, o “centro” do poder está ocupado por uma curiosa aliança tácita, volátil e fluida de juízes e parlamentares.

Bolsonaro tinha uma grande pauta de mudanças e reformas logo que assumiu que hoje se resume em permanecer onde está. Cedeu instrumentos de poder real e efetivo (como o controle do Orçamento) e foi obrigado a respeitar limites de atuação política (estipulados pelo STF) pela mesma razão: não ter visão, capacidade de condução e muito menos entender o que é a política, embora tivesse passado 27 anos no fundo da Câmara dos Deputados.

Ele sabe muito bem, por outro lado, que o jogo dos donos do poder em Brasília obedece aos fatores de longa memória, a saber: compadrio, patrimonialismo, corporativismo, teias de laços pessoais e oligárquicos, acomodação de interesses à custa dos cofres públicos, clientelismo. Nessa rede que se revelou indevassável (que o diga a Lava Jato) Bolsonaro está manietado, pessoal e politicamente.

Sua mais recente “cartada” é jogar o jogo dos donos do poder no Judiciário, por meio das nomeações que terá de fazer para tribunais superiores e na Procuradoria-geral da República. É ocupar por dentro instâncias decisivas de poder político, como tem sido o Judiciário brasileiro (e o MPF). O caminho é o mesmo que movimentos como o chavismo percorreram, por exemplo, até desfigurar o que existia de democracia (a base disso é a lealdade ao chefe e não à lei ou instituições).

No caso do Brasil o perigo dessa “marcha por dentro das instituições” é muito menor. O chamado “sistema” continua intacto. E, ao contrário de outros “ismos” da nossa história política (varguismo, ou lulismo), o bolsonarismo é um conjunto de propostas e ideias sem definição clara, rumo definido, coordenação eficaz e com escasso domínio dos instrumentos clássicos de poder ou coerção. Bolsonarismo é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa.

Talvez a única “base social” nítida do bolsonarismo seja a ligação de seus expoentes políticos com as denominações políticas e religiosas evangélicas – mas, aqui, cabe lembrar aos seguidores do “mito” (um atributo que está resvalando para o ridículo) que o conjunto de forças evangélicas é fracionado, dividido entre si e alguns de seus principais nomes apoiaram todos os governos anteriores e provavelmente o farão no futuro. Não acham que devam “lealdade” ao presente chefe.

Por último, esse “estado de espírito” bolsonarista – o da polarização, defesa da ignorância, intolerância e boçalidade política geral – está construindo depressa no grande e movediço terreno das atitudes das pessoas um movimento contrário caracterizado por indignação, cansaço, tristeza e falta de esperanças nesse “mito” e, por enquanto, em qualquer outro candidato (o que inclui Lula).

Mas esse candidato surgirá: a demanda foi criada por Bolsonaro, assim como ele mesmo atendeu a uma clara demanda. Segue convencido de ter sido beneficiado por um milagre (sobreviveu à facada) e que só Deus pode tirá-lo de onde o colocou. Ignora-se se as forças diversas do chamado Centrão, às quais Bolsonaro entregou seu futuro político, o fazem por acreditar em desígnios divinos. O fato é que, no momento, acham mais conveniente deixá-lo por lá.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-milagre-da-permanencia,70003697470


William Waack: Sem projeto e sem maioria

Preso a conspirações fantasmagóricas, Bolsonaro aumenta número de inimigos

O novo ministro da Defesa é um general que passou os últimos dois anos pelos gabinetes e corredores do lugar mais estranho do Brasil: o Palácio do Planalto. É o hábitat de seres vivos que, por sua vez, são dominados por fantasmas criados por eles mesmos. Por vezes parece efeito da ingestão de algum bagulho muito doido.

O general discursou com o jeito de quem não sabe qual é a “punchline” de um texto escrito a muitas mãos. Mas, ao exigir que se “respeite o projeto escolhido pela maioria”, o novo ministro da Defesa repetiu a confusão fundamental dos fantasmas que habitam cabeças no palácio. O verdadeiro respeito devido é à Constituição, à qual tem de estar subordinado qualquer projeto de qualquer maioria. 

Talvez por ter sido assessor do presidente do Judiciário, seu antecessor no cargo não se arriscou a insinuar em público o que o novo ministro da Defesa disse de maneira mal disfarçada: que o STF é a causa de desequilíbrio entre os poderes. De fato, é impossível fugir à constatação da judicialização da política e da politização do STF, mas o fantasma que falou pela boca do general abordava outro aspecto.

Reiterava a noção de que o STF não deixa governar pois teria se aliado a uma fantástica conspiração de corruptos, comunistas, bagunceiros e perdedores que não querem respeitar o projeto escolhido por uma maioria. Pode-se debater se o tal projeto escolhido pela maioria consistia em consolidar o poder do Centrão, explodir a dívida pública, manter a economia estagnada e transformar o País em pária internacional do ponto de vista da política ambiental e de saúde pública, mas isso seria ampliar demais o foco.

Os fantasmas do palácio sussurram que os problemas para governar são sempre causados por outros, apesar da explicação para os evidentes fracassos do governo ao enfrentar economia e pandemia constar dos textos lidos por quem passou por boas academias militares. Ali se aprende que não se governa com eficiência se faltam planejamento, estratégia, definição de objetivos, rumos e meios – para não falar da incapacidade de liderança e da subordinação de tudo ao objetivo político da reeleição.

Também não se sabe ao certo se fazia parte do projeto escolhido pela maioria comprar brigas por toda parte, mas é a ordem que os ocupantes do palácio parecem ter recebido dos fantasmas. O conflito mais recente é particularmente perigoso: Bolsonaro foi avisado pessoalmente por um governador amigo (por quanto tempo ainda?) de que acabou criando 23 opositores entre os 27 chefes dos Executivos estaduais. É uma massa política que não se deve negligenciar.

A gota d’água para transformar os últimos governadores amigos em inimigos foi a “esperteza” de utilizar a ambição por uma cadeira vitalícia no STF por parte de ocupantes de altíssimos cargos do MPF para convertê-los à narrativa palaciana de que o governo federal tudo fez no combate à pandemia. Onde houve desastre foi culpa dos governadores e prefeitos – portanto CPI e Ministério Público neles – que desviaram verbas e recursos da Saúde (além de decretar medidas restritivas) em busca de armas na conspiração contra o projeto escolhido pela maioria.

Neste ponto seria injusto atribuir falta de visão do bem público e do interesse da coletividade exclusivamente a Bolsonaro, dominado ou não por seus fantasmas. Esse desinteresse pelo bem comum já era a característica primordial de forças políticas do Centrão, as que hoje estão no poder. É também a de ministros do STF tomando decisões “exóticas” levando em consideração apenas seus interesses ou simpatias políticas imediatas. Característica agora exibida de forma escancarada pelos integrantes da cúpula do MPF que, esfalfando-se por chegar a cargo no STF, ajudam a desmoralizar a instituição. 

Quanto ao “projeto” a ser defendido, qualquer que seja, está se dissipando junto com a maioria.


William Waack: Mentalidade do cercadinho

Mesmo as ameaças do presidente estão perdendo credibilidade

Por ser o STF uma instância política, preocupada com política, e tomando decisões políticas, não é surpresa que esteja dando aulas de política para Jair Bolsonaro, aquele que assumiu recusando-se a fazer política. O próprio Bolsonaro acha que não, que está fazendo política, atividade que ele confunde com esbravejar declarações desconexas para grupelhos de apoiadores, proferir bobagens em lives e postar falsidades em redes sociais, além de vociferar ao telefone com senadores.

Algumas decisões do STF são para lá de exóticas (para se usar linguagem diplomática) e geram enorme insegurança jurídica, mas o ponto principal é que o conjunto da Suprema Corte tem um entendimento mais apurado do que Bolsonaro do que é o jogo institucional, o papel dos seus atores, seus limites políticos e legais. É esse jogo que o voluntarioso Jair disse que ia liquidar no gogó. Não conseguiu, e está perdendo de lavada do STF, mas não só.

Alguns feitos políticos de Bolsonaro são notáveis – pela ironia dos fatos. Ao seguir adiante com um Orçamento inexequível, mas que negociara com o Congresso, pois precisa gastar para se reeleger, acabou permitindo que os profissionais do Centrão carimbassem na testa do ministro que já foi estrela, Paulo Guedes, a expressão “fura-teto”. Outra ex-estrela, Sérgio Moro, o paladino da luta anticorrupção, Bolsonaro já tinha empurrado para uma espécie de vala comum de malfeitores (sob aplausos de ministros do STF, no único elogio que destinam a Bolsonaro).

Há dúvidas se Bolsonaro se deu conta do “golpe” que o Centrão lhe aplicou na esteira dessa ainda não resolvida confusão do Orçamento. O Centrão se recusou a votar uma PEC que, para acomodar interesses, declararia algumas despesas como fora dos limites hoje vigentes. O Centrão declarou que não aprova medidas “fura-teto”. Mas o motivo principal para a recusa é outro, e se constitui em mais uma aula de política: o Centrão não quer abrir mão de suas prerrogativas de determinar alocação de recursos via Orçamento, um clássico instrumento de poder que o presidente cedeu.

A dor de cabeça de uma CPI no Senado é real, porém pequena se comparada à dor de cabeça de uma economia que teima em não deslanchar. O problema para o governo é que não adianta dizer, como Guedes insiste, que o “Brasil estava decolando” e a economia “se recuperava em V” quando ocorreu uma segunda onda do vírus. Os fatos na cabeça das pessoas são preços em subida, inflação voltando, desemprego persistente, e economia andando devagar.

Nem todos os acontecimentos da economia são negativos para os planos do governo e o País, conforme atesta o sucesso dos leilões de concessão de portos, ferrovias e aeroportos. Porém, a inequívoca aposta de investidores na obtenção de bons retornos via concessões é coisa de longo prazo, e as questões emergenciais de pandemia e economia são no curtíssimo – as consequências políticas idem. A confiança de varejo, indústria e setor financeiro está sendo demolida pelo cenário político de instabilidade e imprevisibilidade.

Dedicado dia e noite a acelerar e piorar o que sozinha já seria uma tempestade perfeita, Jair Bolsonaro está perdendo a credibilidade até quando faz ameaças do tipo “aguardo sinal do povo para tomar providências”. O PT foi apeado do poder quando achava que era dono das ruas, mas não era. Vivendo na bolha peculiar de sites, portais e redes sociais amigas, Bolsonaro confunde esse tipo de espuma em meios digitais com “povo”. 

A expressão “mentalidade do bunker” se consagrou para descrever o governante que perde a noção da realidade, pois vive distante dela. No caso de Bolsonaro, deveria ser trocada por “mentalidade do cercadinho”. Fica do mesmo jeito em um outro universo, paralelo.


Wlliam Waack: O vírus piorou o que já era ruim

O vírus agravou a perda de autoridade pública e de poder de decisão

A catastrófica situação da pandemia no Brasil agravou dois problemas preexistentes: a insegurança jurídica e a degradação da autoridade pública. Os dois fenômenos dividem entre si um fator comum, que é a ausência de lideranças respeitadas além de grupos consolidados nos extremos do espectro político. E explicam boa parte da paralisia decisória do governo central e a imensa dificuldade em lidar com a crise econômica e de saúde pública – que estão se retroalimentando.

Já bem antes da pandemia era o STF uma das principais fontes de insegurança jurídica do País. Nossa Corte Suprema foi totalmente consumida na batalha pelo controle das instâncias políticas, uma das grandes expressões da Lava Jato. E, diante da ineficácia do nosso sistema de governo (talvez o pior do mundo), passou a legislar e a tomar decisões levando em conta sobretudo as consequências políticas. No caso da pandemia, por exemplo, o STF acabou escalando um de seus integrantes como virtual ministro da Saúde.

Diante da propagação do vírus os ministros também se comportaram em função do embate político – situação escancarada pelas decisões sobre a abertura ou fechamento de igrejas e templos. Esse debate não foi provocado pela necessidade de se assegurar liberdade de religião, mas, sim, pelos interesses pessoais de candidatos a uma vaga no STF e por articulações para favorecer forças políticas que ocuparam uma parte do Legislativo, um pedaço importante do Executivo e estão chegando ao topo do Judiciário: as correntes evangélicas.

O fato de o STF ter de decidir quem decide o que sobre a pandemia expressa o segundo problema agravado pelo vírus: o da degradação da autoridade pública. Para isto foi fundamental a contribuição do atual presidente da República e seus traços característicos de personalidade (desequilíbrio emocional, traços de paranoia e de sociopatia). A “figura institucional” de Bolsonaro nunca entendeu a verdadeira natureza do poder do chefe do Executivo brasileiro, que não reside na caneta, mas, sim, na capacidade de ditar a agenda política.

Isto vale tanto para a economia como para a pandemia, com as quais não está sabendo lidar. Formalmente os poderes de Bolsonaro já vinham sendo encurtados pelo Legislativo e pelo Judiciário. Talvez ele nem tenha percebido que um instrumento clássico do presidente brasileiro – a alocação de recursos via orçamento – foi passada agora para um conjunto de forças políticas amorfas e regionalizadas, conhecida como Centrão, que conquistaram um posto vital dentro do próprio Palácio do Planalto. Ou seja, o Centrão aboliu intermediários. 

A ironia contida nesse fato é cruel: o Centrão manda, sem assumir qualquer ônus. Impõe limites e demissões de ministros ao presidente, sem qualquer responsabilidade por agendas, como acontece no parlamentarismo clássico. Diante da incapacidade do presidente de liderar e comandar, além da ausência de pensamento estratégico e definição clara de objetivos (além de se reeleger), a autoridade pública se diluiu. No caso da pandemia, está se dissolvendo numa corrida desesperada cuja melhor definição é, infelizmente, a do vire-se e salve-se quem puder.

Assim, a iniciativa privada está forçando e conseguindo ir adiante na compra de vacinas. Os governadores estão forçando e conseguindo contratar suprimentos onde seja possível, se necessário relegando a Anvisa ao papel de carimbar pedidos. Um número nutrido de decisões judiciais em várias instâncias criou uma confusão perigosa entre o que vale ou não vale não só em questões de medidas restritivas, mas, também, quanto ao ritmo de vacinações, grupos prioritários e quais entidades têm a liberdade de adquirir imunizantes.

Um quadro de contornos caóticos como esse sugere que em algum momento ocorrerá uma ruptura, até mesmo institucional. Mas não está “escrito” que acontecerá. Como foi dito acima, a pandemia apenas agravou o que já existia. Depois dela, é bem possível a acomodação aos padrões de comportamento político e social de sempre, caracterizados, de forma geral, pela ausência da preocupação com o bem-estar comum e o senso de coletividade. Estagnação é também um poderoso anestésico.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


William Waack: Não ao mais do mesmo

A comoção nacional em torno da pandemia é o grande obstáculo à reeleição de Bolsonaro

Jair Bolsonaro ocupou a crista de duas ondas de grande amplitude política e social. A primeira o levou ao Planalto, num fenômeno que surpreendeu a ele mesmo. A segunda está muito próxima – se é que já não atingiu – do ponto de repetir em relação a Bolsonaro o que ocorreu na cabeça dos eleitores em 2018 diante de um candidato que representava Lula: a maioria não queria repetir mais do mesmo.

O “mais do mesmo” é a noção majoritária no público, e com alta probabilidade de se tornar irreversível, de que o governo Bolsonaro é incompetente para tratar da saúde e do bolso das pessoas. Em 2018 o presidente foi capaz de detectar as mudanças de sentimentos na política e como o “momento” se formava em seu favor. Agora, percebeu tarde, mas não entendeu a profundidade e a amplitude das emoções (e política é emoção) trazidas pela angústia, medo e insegurança ligados ao avanço da pandemia.

Uma boa parte da explicação para essa cegueira política está no próprio personagem Bolsonaro, refém de uma paranoica concepção segundo a qual tudo que lhe pareça adverso é resultado de conspirações de adversários reais ou imaginários para apeá-lo do poder e/ou impedir sua reeleição. Aliada a uma visão de mundo tosca e retrógrada, essa característica de personalidade – mais o fato de acreditar só na família – o levou a cometer grave erro político ao operar a troca do ministro da vez na Saúde.

Diante da pressão política e social causada pela percepção generalizada da incompetência governamental para combater a pandemia, Bolsonaro sentiu-se obrigado a sacrificar um peão, o general da Saúde que, involuntariamente, causou o maior dano recente à imagem da instituição à qual pertence, o Exército. Ocorre que essa percepção generalizada assume (corretamente) que os erros partem do próprio presidente, e que a troca de subordinados só teria efeito para inverter a narrativa dominante, fatal para quem quer se reeleger, se indicasse uma vigorosa correção de rumos.

Mas o que ficou no ar é a tediosa sensação de trocar seis por meia dúzia. Pior ainda, essa “mentalidade do bunker” à qual Bolsonaro está preso o levou a se isolar ainda mais na tentativa de aliviar a pressão política e social contra seu governo. Os que ele acusa, erroneamente, de tentar prejudicá-lo (governadores e prefeitos) são, na verdade, os que estão na primeira linha do combate ao vírus e mantêm uma relação direta com os parlamentares do Centrão, por exemplo. Que ficaram de fora.

No atual cada um por si é o Congresso que ocupa mal ou bem um papel central de coordenação de esforços e articulação num salve-se quem puder que está virando comoção nacional. Há forças políticas aliadas ao presidente dizendo a ele e ao público que essa comoção passa com a chegada em massa de vacinas e a esperada inversão das curvas de contaminação, hospitalização e mortes. E que a retomada da ajuda emergencial, mesmo mais tímida, permitiria a travessia do tempo necessário para que reformas como a administrativa (que corta despesas) e tributária (que reduz custos, ainda que não reduza a carga) sejam aprovadas e produzam efeitos.

É a tal janela de oportunidade da qual tanto fala o ministro Paulo Guedes. Em situação de tripla crise já seria uma aposta arriscadíssima, pois supõe que o tempo (e, de fato, falta muito até as próximas eleições) trabalharia a favor. Mas, no atual ambiente político no qual as opções de Bolsonaro estão se estreitando, a autoridade de seu governo se dissolvendo, seus adversários se organizando e a desmoralização da figura política do presidente atingindo avançado estágio de consolidação, virou uma aposta perigosíssima para ele.

Crises políticas e sociais da atual amplitude, abrangência e profundidade produzem em fases agudas respostas que a priori surgem como grandes surpresas, como foi a vitória de Bolsonaro em 2018. O cenário atual não indica que será a mesma resposta em 2022.


William Waack: Vendedores de esperanças

Bolsonaro e Lula vão disputar o mesmo eleitorado, num faroeste sem mocinhos

Nos fenômenos políticos brasileiros dos últimos 20 anos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro exibem uma importante característica em comum: foram vendedores de esperanças frustradas. As diferenças ideológicas e de estilo entre eles empalidecem diante do fato de que assumiram prometendo grandes transformações e acabaram governando com a mesma massa amorfa de forças políticas empenhadas em acomodar interesses setoriais, cartoriais, corporativistas e regionais às custas dos cofres públicos ou de pedaços da máquina pública – plus/minus a roubalheira petista. 

O fator excepcional agora é o alargamento e aprofundamento de crises simultâneas de saúde pública, economia estagnada e liderança política. Elas são causa e consequência ao mesmo tempo do esgarçamento do tecido social (perigo de anomia), da deterioração do equilíbrio dos poderes (Judiciário emasculando os demais) e da incapacidade generalizada de elites econômicas de enfrentar a estagnação de produtividade e competitividade da economia (já nem se fala mais de PIB ruim de ano para ano, mas de PIB ruim de década para década). 

Diante da tragédia da saúde e de seu impacto na economia – claudicante já antes da pandemia –, o problema para Bolsonaro e Lula é qual esperança vão vender. As bandeiras do lulopetismo estão manchadas não só pela corrupção adotada como forma de governo, mas, e ainda mais decisivos, pelo espetacular fracasso no intervencionismo e dirigismo da economia e a incapacidade de resolver mazelas sociais. São graves pois derivam de ideias equivocadas, em boa parte abraçadas por setores das elites empresariais. 

Sem ideias próprias, Bolsonaro abandonou sucessivamente qualquer conjunto coerente de postulados emprestados por Paulo Guedes, além de deixar para lá ou atuar contra as bandeiras da luta anticorrupção, da reforma e enxugamento do Estado e, de forma também espetacular, parou de se empenhar por destravar a economia do País. Que, ainda por cima, enfrenta o agravamento do sufoco fiscal, questão não meramente conjuntural (gastos com pandemia). 

A tripla crise é particularmente grave para a vida nacional, pois reforça um angustiante estado de paralisia no qual se destaca a percepção generalizada de que nada anda direito – inclusive criar alternativas políticas aos fracassados vendedores de esperanças. Paira um sentimento (sim, coisa subjetiva, mas política é coisa subjetiva também) de que impera por toda parte uma extraordinária hipocrisia: um STF que só toma decisões ao sabor da política, dizendo que não toma decisões políticas. Um Centrão que só pensa nos próprios interesses setorializados, quando fala que defende interesses do País. Um presidente que só pensa na reeleição e na própria família, quando diz falar pela coletividade, cujo sofrimento pouco o comove. 

Por uma desagradável ironia, Bolsonaro e Lula (ou as forças que representam) estão hoje na situação de terem de disputar a mesma parcela do eleitorado mais dependente de assistencialismo, mais arriscada a cair na miséria total se faltar a mão do Estado, mais ignorante e com a situação agravada pela falta de acesso a serviços básicos e educação de qualidade. Quadro piorado pela pandemia. 

É uma dura constatação, mas que até aqui não levou as diversas elites dirigentes brasileiras (entendidas como os grupos “que pensam” na economia, no ambiente cultural no sentido amplo e na condução de agrupamentos políticos) sequer a um diagnóstico comum, quanto mais a linhas de ação. A noção de que “a corrupção” seria a grande causa e a explicação para o nosso atraso relativo foi derrubada agora com o “desmascaramento” da Lava Jato (juntando na mesma trincheira safadeza com defesa de princípios da ordem democrática). “Mais saúde e educação”, as palavras de ordem de 2013 viraram slogans vazios de conteúdo.

Dizer que estamos vivendo um faroeste sem mocinhos é repetir Maquiavel, cuja originalidade estava na afirmação de que em política não se consegue realizar princípios. O problema é quando vira um faroeste sem esperanças.


William Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 


William Waack: Homem convicto

No peculiar mundo político de Bolsonaro pululam as conspirações

Jair Bolsonaro é um homem de convicção. Não se trata de convicção sobre princípios de política ou de economia, mas, sim, da convicção trazida pela percepção de que ele, presidente da República, está perdendo instrumentos de poder. Como o de demitir chefes de estatais, ou de exigir deles obediência ao que Bolsonaro considere melhores políticas – incluindo fechamento de agências do Banco do Brasil ou formação de preços de combustíveis

A convicção de Bolsonaro baseia-se na forte crença de que há sempre conspirações em curso para tirá-lo do poder. Esses processos mentais, não importa a opinião médica que se tenha deles, são fatores importantes para se entender a motivação e as decisões do presidente brasileiro, segundo relatos em “off” de pessoas que acompanharam diretamente como chegou a recentes posturas políticas. No caso da Petrobrás, por exemplo, o presidente acha que a conspiração foi armada via aumentos de preços do diesel para irritar os caminhoneiros que, por sua vez, têm a capacidade de paralisar o País e criar o clima de caos social para prejudicá-lo. 

O mesmo ocorreu no caso do Banco do Brasil. O fechamento de agências, entende Bolsonaro, foi urdido com o intuito de prejudicá-lo entre o eleitorado de pequenas cidades e a pressão que elas exercem sobre deputados de várias regiões. Mesmo a aprovação da autonomia do Banco Central (algo que ele defendeu em público durante a campanha) caiu sob a mesma interpretação: Bolsonaro acha que lhe foi retirado um poder efetivo, o de mandar na taxa de juros. 

Auxiliares têm se esforçado em explicar ao presidente que a formação de preços no setor de energia, a política de pessoal em instituições financeiras públicas e a fixação da taxa de referência de juros obedecem a mecanismos complexos e a fatores entre os quais alguns (como o cenário internacional de juros e preços de commodities) escapam a qualquer controle brasileiro. Mas o presidente, segundo relatos confiáveis, não quer ouvir falar disso. 

O mundo político e pessoal de Bolsonaro, de acordo com interlocutores frequentes, é completamente dominado pelo empenho pela reeleição e a luta para sobreviver às conspirações para tirá-lo do poder e aplainar a volta de Lula. Frases ditas pelo ex-presidente petista em entrevistas recentes, como a importância de se preservar a atuação do Executivo sobre a Petrobrás, são mencionadas por Bolsonaro em conversas privadas como “prova” do que diz ser necessário manter como “instrumentos de poder”. 

A crença em conspirações tramadas por adversários estava presente também na maneira como Bolsonaro reagiu à pandemia. Depois de acreditar que o alarme sobre o vírus não passava de tentativa de desestabilização, o presidente passou a enxergar nas medidas restritivas adotadas por prefeitos e governadores apenas uma tática política de indispor a população contra o poder central. Ele acredita, de fato, que seus adversários continuam tentando criar uma situação de baderna à la Chile por meio do desemprego, miséria e fome. E o que é pior: com o dinheiro que ele, Bolsonaro, está disponibilizando via ajudas emergenciais. 

Quem conversa muito com o presidente afirma que ele só pensa em reeleição e submete qualquer outro tipo de consideração – como “intervencionismo” ou “liberalismo” na política econômica – ao cálculo político-eleitoral de prazo curtíssimo. É o que o faz defender posturas aparentemente contraditórias. Intervir na formação de preços de combustíveis (e a ação vai se estender também ao setor elétrico) fez desabar os mercados, dos quais dependem os humores de investidores, mas energizou seu núcleo eleitoral duro. 

O mesmo vale para a ajuda emergencial imediata, âmbito da ação política na qual Bolsonaro conta com as fortes simpatias do Centrão e sua prática de fazer agrados com o dinheiro do contribuinte. Nas complexas discussões sobre ajuda emergencial e teto de gastos Bolsonaro julga ter chegado ao fundo da questão. As preocupações com a situação fiscal são tidas pelo presidente como pretextos de cínicos gananciosos que não entendem nada de política. “Tudo bem que a tua turma ganha dinheiro, PG”, já disse Bolsonaro mais de uma vez a Paulo Guedes, “mas não me tira poder”. 

Ainda que seja apenas uma, Bolsonaro é um homem de convicção.


William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


William Waack: Tudo dando certo

Cenário internacional ajuda o Brasil e tira senso de urgência para questão fiscal

A julgar pelo noticiário da imprensa especializada internacional (Financial Times, por exemplo), começou um novo ciclo de forte valorização de commodities. A subida de preços abrange 27 tipos que vão do café ao níquel, e incluem produtos agrícolas nos quais o Brasil é campeão mundial. Os investidores ainda indagam se é mais do que uma recuperação em “V” das profundezas da crise da pandemia, mas consolida-se a percepção de que estamos indo para um superciclo, comparável ao do início de 2000.

O Brasil é muito mais dependente das grandes conjunturas externas do que nos é confortável admitir. Por exemplo, é impossível entender o que foi o período do PT sem levar em conta o superciclo das commodities de 20 anos atrás. Ele criou uma bonança que alterou os cálculos políticos. E explicava o surgimento da tal “nova classe média”: não era o “projeto petista”, mas, sim, o crescimento da China, a expansão do comércio exterior (globalização) e a demanda por nossas exportações – sendo que o mesmo volume do nosso minério de ferro passara a comprar muito mais TVs de tela plana.

Junte-se a descoberta do pré-sal, na metade daquela década, quando o barril do petróleo foi para as alturas, e temos a mistura de fatores, sobre os quais não tínhamos qualquer controle, criando uma atmosfera política do “tudo é possível”. Lula nunca entendeu o que aconteceu no grande quadro internacional e talvez pense até hoje ter sido o criador do superciclo – o fato é que a bonança acabou desperdiçada por falta de visão política (abandonaram-se as reformas), irresponsabilidade, corrupção (que não foi inventada pelo PT) e intervencionismo estatal desastroso.

A lição que essa (admita-se) ultrasimplificação da nossa recente história oferece é a de que o surgimento de uma “zona de conforto”, criada por fatores sobre os quais pouco influímos, tem um impacto direto na conduta dos agentes políticos e do setor privado. Em outras palavras, nada fica parecendo tão urgente que não possa ser deixado para amanhã. Aplicado às circunstâncias atuais, o vigoroso movimento de alta das commodities – sim, com jeito de superciclo – talvez ajude a entender a calma com que os mercados reagem especialmente ao que o governo brasileiro deixa de fazer.

A situação fiscal está no limite e a probabilidade de que reformas estruturantes sejam aprovadas este ano é muito reduzida. Porém, a combinação de dois fatores amplos proporciona essa agradável situação, tão ao gosto do Centrão, de que as coisas podem ir sendo empurradas com a barriga, especialmente cortes em despesas. Um fator é a extraordinária injeção de liquidez mundial com juros baixos e a recuperação da China e dos Estados Unidos sob um inédito pacote de incentivos. O outro é a noção de que a vacinação em massa (mesmo com os percalços brasileiros) induz a uma retomada da economia mais acelerada do que se calculava ainda há dois meses.

Com isso, diminui também não só a “pressa” de resolver nossos intratáveis problemas estruturais. Ressurge com ênfase entre agentes políticos a discussão se o reaquecimento da economia e a consequente recuperação da arrecadação não seriam, por si, suficientes para criar o tal “robusto marco fiscal” que permita prosseguir no pagamento do auxílio emergencial – algo vital para a pretensão de reeleição de Bolsonaro. Basta declarar a tal “excepcionalidade temporária” com que as forças políticas no Congresso que capturaram o Planalto pretendem promover a quadratura do círculo (gastar mais e cortar menos).

É possível que esse sopro favorável internacional ajude a consolidar na cabeça de Jair Bolsonaro, sempre inclinado a acreditar no absurdo e no fácil, a percepção de que tudo está dando certo