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Vladimir Safatle: O golpe de Bolsonaro começou

Uma insurreição nunca precisou da maioria da população para impor sua vontade. Ela precisa de uma minoria unificada e intimidadora

Vladimir Safatle / El País

Quem conhece a história do fascismo italiano sabe a quantidade inumerável de vezes que Mussolini, em sua ascensão ao poder, foi dado como politicamente morto, isolado, acuado, fragilizado. No entanto, apesar das finas análises de comentaristas da vida política italiana, apesar das sutis leituras que pareciam ser capazes de pegar as mais inusitadas nuances, Mussolini, o bronco Mussolini chegou onde queria chegar. Isso ao menos deveria servir para lembrarmos da existência de três erros que levam qualquer um a perder uma guerra, a saber, subestimar a dedicação de seu oponente, subestimar sua força e, por fim, sua capacidade de pensar estrategicamente.

O mínimo que se pode dizer é que a oposição brasileira é exímia em praticar os três erros contra Bolsonaro e seus adeptos. Ela parece animada pela capacidade de tomar seus desejos por realidade, de justificar sua paralisia como se fosse a mais madura de todas as astúcias. Agora, a isso ela acrescentou uma patologia que, nos antigos manuais de psiquiatria, chamava-se “escotomização”, ou seja, a capacidade de simplesmente não ver um fenômeno que ocorre na sua frente. Mesmo tendo 600.000 mortes nas costas por negligencia de seu governo em relação à pandemia, Bolsonaro conseguiu um 7 de setembro para chamar de seu, com mais de 100.000 pessoas na Paulista e quantidade semelhante na Esplanada dos Ministérios.

Ele se colocou como o líder inconteste de uma singular sublevação do governo contra o estado, afirmando que não reconhece mais a autoridade do STF. Ou seja, ele assumiu para o mundo que está em rota de colisão com o que restou da institucionalidade da vida política brasileira. Seus apoiadores saíram desse dia com sua identificação reforçada e compreendendo-se como protagonistas de uma insurreição popular que de fato está a ocorrer, mesmo que com sinais trocados. Uma insurreição que mostra a força do fascismo brasileiro.

De nada adianta falar que essa manifestação “flopou”, que estavam presentes apenas 6% do esperado. Uma insurreição nunca precisou da maioria da população para impor sua vontade. Ela precisa de uma minoria substantiva, aguerrida, unificada e intimidadora, pois potencialmente armada. Bolsonaro tem as quatro condições, além do apoio inconteste das Polícias Militares e das Forças Armadas, que por nada nesse mundo, mas absolutamente nada irá deixar um governo que lhe promete salários de até 126.000 reais.

Aqueles que se comprazem acreditando que o verdadeiro apoio de Bolsonaro é 12% são os que normalmente fazem de tudo para que nós não façamos nada. Mas para quem quiser de fato encarar o que está a ocorrer no Brasil, não há nada mais a dizer do que “o golpe começou”. A manifestação do 7 de setembro marcou uma clara ruptura no interior do governo Bolsonaro. De fato, acerta quem diz que o governo acabou. Mas isso significa apenas que Bolsonaro pode agora abandonar a máscara de governo e assumir a céu aberto o que esse “governo” sempre foi, desde seu primeiro dia, a saber, um movimento, uma dinâmica de ruptura que se serve da estrutura do governo para ampliar-se e ganhar força.

Assim, ele pode fortalecer seu núcleo duro, transformar eleitores em fieis seguidores sem precisar ter entregue nada que um governo normalmente entregaria, sequer a proteção contra a morte violenta produzida por uma pandemia descontrolada. Nunca um presidente falou ao povo, em seu momento de maior tensão, que partilhava abertamente o desejo de romper e ignorar uma institucionalidade que é simplesmente a representação dos clássicos interesses oligárquicos das elites brasileiras.

Infelizmente, que o “povo” em questão era a massa dos que sonham com intervenções militares, que amam torturadores, que abraçam a bandeira nacional para esconder sua história infame de racismos e genocídios, isso era algo que poucos poderiam imaginar. Por outro lado, por mais que certos setores do empresariado nacional simulem desconforto com sua presença, o que realmente conta é que Bolsonaro entrega a eles tudo o que promete, sabe preservar seus ganhos como ninguém, luta por aprofundar a espoliação da classe trabalhadora sem temer o que quer que seja.

Não por outra razão, seu 7 de setembro foi precedido por manifestos de empresários defendendo a “liberdade”: nova senha para o “direito” de intimidação e de ameaça. Enquanto isso, a oposição brasileira acha que ainda estamos no terreno dos embates políticos. Ela prepara-se para eleições, finge sonhar com frentes amplas esquecendo que, desde o fim da ditadura, sempre fomos governados por frentes amplas e vejam onde chegamos. Todos os governos eram alianças “da esquerda à direita”. Não foi por falta de frente ampla que estamos nessa situação. O cálculo simplesmente não é este. A esquerda precisa entender de uma vez por todas a natureza do embate, ouvir aqueles mais dispostos ao confronto, esses que não tiveram medo de ir para a rua hoje, e assumir uma lógica de polarização. Isso implica que ela precisa mobilizar a partir da sua própria noção de ruptura, em alto e bom som. Uma ruptura contra outra. Não há mais nada a salvar ou a preservar nesse país. Ele acabou. Um país cuja data de sua independência é comemorada dessa forma simplesmente acabou. Se for para lutar, que não seja para salvá-lo, mas para criar outro.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-08/o-golpe-comecou.html


Do direito inalienável de derrubar estátuas

Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” de um país composto por uma nata encastelada em condomínios e uma grande massa que ainda hoje é caçada

Vladimir Safatle / El País

“Quem controla o passado, controla o futuro”. Essa frase de 1984, de George Orwell, é uma das mais importantes lições a respeito do que é efetivamente uma ação política. Toda ação política real conhece a importância de compreender o passado como um campo de batalhas. Ela compreende que o passado é algo que nunca passa por completo. A definição mais correta seria: o passado não é o que passa. O passado é o que se repete, o que se transfigura de múltiplas formas, o que retorna de maneira reiterada. O passado é o que faz CEOs falarem, em 2021, como senhores de escravos do século XIX, que faz transgêneros atualmente em luta falarem como pessoas escravizadas em luta séculos passados. Nosso tempo é espesso. Nas camadas dessa espessura convivem mortos e vivos, espectros, limiares e carne. Só mesmo uma noção pontilhista e equivocada de instante pode reduzir o presente ao “agora”. O “agora” é apenas uma forma, politicamente interessada, de bloqueio do presente. Pois quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.


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Seria útil lembrar disso no Brasil, ou seja, nesse país que se especializou em procurar não falar de seu passado devido a uma certa crença mágica de que, se não falarmos dele, o passado irá embora e nunca mais voltará. Os apóstolos do esquecimento deveriam lembrar que foi assim que criamos o país da compulsão contínua de repetição. País que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964, no qual uma política catastrófica de anistia permitiu que as Forças Armadas preservassem seus responsáveis por crimes contra a humanidade até que eles voltassem a ameaçar a sociedade. O esquecimento é uma forma de governo. A tentativa de exilar os sujeitos no presente puro é o seu braço armado mais forte. Deveríamos partir daí se quiséssemos efetivamente entender o que é o o Brasil.

Dito isto, não é motivo de espanto ver alguns a criticarem uma das mais importantes ações políticas desse últimos meses, a saber, a queima da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Quem acha que isso é apenas um ato “simbólico” deveria pensar melhor a respeito do que compreende por símbolo e como são eles que, muitas vezes, impulsionam as lutas mais decisivas e as transformações mais impressionantes. Quando caiu, a Bastilha não era mais que um símbolo. Mas foi a queda do símbolo, foi um ato simbólico por excelência, que abriu toda uma época histórica. A modificação na estrutura simbólica é modificação nas condições de possibilidade de toda uma era histórica. Aqueles que fazem profissão de fé de “realismo político”, de “materialismo”, talvez estejam a esconder certo receio de que estruturas simbólicas fundamentais desçam as ruas e sejam queimadas.

Pois uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: “assim foi e assim deveria ter sido”. Um bandeirante com um trabuco na mão e olhar para frente é a celebração do “desbravamento” de “nossas matas”. Desbravamento esse que não é abertura de nada, mas simples apagamento de violências reais e simbólicas que não terminaram até hoje. Pois poderíamos começar por se perguntar: contra quem essa arma está apontada? Contra um “invasor estrangeiro”? Contra um tirano que procurava impor seu jugo ao povo? Ou contra aquelas populações que foram submetidas à escravidão, ao extermínio e ao roubo? Um bandeirante era um caçador de homens e mulheres, ou seja, a encarnação mais brutal de uma forma de poder soberano ligado à proteção de alguns e à predação de muitos. Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” que, necessariamente, realiza-se em um país composto por uma nata de rentistas encastelados em condomínios fechados e uma grande massa que ainda hoje é caçada, que desaparece sem rasto nem traço.

Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia. Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá. Quem faz o papel de carpideira de estátua acaba se tornando cúmplice dessa perpetuação. Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.

Quando a ditadura militar criou o mais vil aparato de crimes contra a humanidade, dispositivo de tortura de Estado e assassinato financiado com dinheiro do empresariado paulista, não por acaso seu nome foi: Operação Bandeirante. Sim, a história é implacável. Como disse no início, o passado é o que não cessa de retornar. Borba Gato estava lá, nas câmaras de tortura do DOI-Codi, encarnado, por exemplo, em Henning Albert Boilesen: empresário dinamarquês presidente da Ultragaz e fundador do CIEE, que se deleitava em inventar máquinas de torturas (a pianola Boilesen) e assistir a torturas e assassinatos. Por isso, quando as estátuas começarem a cair, é porque estamos no caminho certo.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Vladimir Safatle: Uma revolução molecular assombra a América Latina

O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.

A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.

De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

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Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante 10 anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago: são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos 10 anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios a mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Mas há um momento em que a repetição acaba por gerar uma mudança qualitativa. Dez anos depois, ela ocorreu e foi possível de ser vista no último domingo, no Chile.

No último domingo, o Chile elegeu uma nova Assembleia Constituinte. Depois de manifestações massivas em outubro de 2019 que fizeram as ruas chilenas queimarem até o Governo parar de matar sua própria população e aceitar convocar um processo constitucional, o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.

O caráter absolutamente único do processo chileno encontra-se no fato de ele se produzir como institucionalização insurrecional. Ele foi resultado de uma insurreição que exigiu imediatamente uma nova institucionalidade. Os islandeses tentaram isso, quando a crise econômica produziu profundas mobilizações populares que terminaram por produzir uma nova constituição. No entanto, o Parlamento não reconheceu a nova carta, abortando o processo.

Tal excepcionalidade andina deve ser compreendida à luz do que foi a via chilena para o socialismo. O Governo de Salvador Allende (1970-1973) procurou realizar um programa marxista através de uma mutação progressiva da vida social que preservava largas partes da estrutura da democracia liberal. Muitos criticaram tal estratégia depois do golpe, mas há de se lembrar de suas razões. Era a maneira dos chilenos e chilenas impedirem a militarização da vida social, como normalmente ocorreu em todos os processos revolucionários até agora. Havia uma questão real que o Chile procurou resolver inovando.

De certa forma, esse processo interrompido retoma agora 47 anos depois. Desde as revoltas estudantis no Governo Bachelet, o Chile viu lideranças estudantis se tornarem deputados e deputadas para arrancar do Congresso uma reforma que tornava gratuito o sistema público de ensino. Agora, eles fizeram o movimento inédito de só saírem das ruas com uma constituinte nas mãos, o que os tunisianos só conseguiram anos depois da formação do primeiro Governo pós-ditadura. Ao acoplar os dois processos, o Chile permitiu que o entusiasmo insurrecional comandasse o processo constitucional, institucionalizando sua revolução molecular.

O espectador que vê tudo isso do Brasil pergunta-se o que ocorre conosco. No entanto, erram aqueles que pensam que tal dinâmica não chegará no Brasil. Ocorre que ela encontrará uma situação muito mais dramática. Pois o Brasil é o país no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. São setores expressivos da população que foram e irão às ruas pedir golpe militar e defender o fascismo de quem nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, à diferença de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular. Por isso, o cenário tendencial entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição. Uma revolução fascista contra uma revolução molecular dissipada. Melhor seria estarmos preparados para tanto.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html


Vladimir Safatle: A segunda fase do regime militar

O Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenções, a saber, um regime militar sem golpe. Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário

O Brasil tem certa vocação para a invenção. Fomos um país criado a partir de um experimento econômico: o latifúndio escravocrata primário exportador. Em nenhum outro lugar do globo tal experimento foi desenvolvido em tão larga escala. 35% de todos os sujeitos escravizados na África e direcionados às Américas aportaram aqui. Fomos também os responsáveis, no século XIX, pela junção singular entre escravismo e economia integrada ao “liberalismo concorrencial”. Mais próximo, conseguimos criar uma ditadura militar primorosa na arte de durar. A mais longa ditadura militar da América no ciclo que começa nos anos 60, capaz de entender que só duraria se preservasse algum nível de pantomima democrática. Tínhamos eleições, partido de oposição, Congresso em funcionamento na maior parte do tempo, tortura, livros de Marx vendidos nas bancas, corpos desaparecidos, estupros de opositoras, censura. Tudo ao mesmo tempo.

Há de se admirar essa engenharia brasileira do terror de Estado. Ela conseguiu preservar todas as peças do dispositivo empresarial-militar, mesmo durante trinta anos de período pós-ditadura. Ela conseguiu ainda preservar toda a força de terror administrada pelas polícias e suas milícias contra as populações vulneráveis em sua guerra civil cotidiana. Elementos fundamentais do aparato jurídico institucional criado sob ditadura continuaram vigentes. O Brasil mostra como nenhum outro país que desenvolvimento capitalista é outro nome para guerra de espoliação máxima, de medo e de depredação contra uma natureza que não se submete facilmente à condição de propriedade privada.

Dentro dessa tecnologia de poder, o Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenção, a saber, um regime militar sem golpe militar. O que temos atualmente é algo muito próximo a um regime militar que não usou golpes militares clássicos para ser implementado. Entenda-se por “clássico” nesse contexto, ocupações de poder feitas através do deslocamento de tropas e uso explícito da violência.

Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário. Por mais que a narrativa vendida seja outra, Jair Bolsonaro é a encarnação direta do ideário militar nacional. Para além dos mais de 7.000 militares na gestão do Estado, desde o Ministério da Saúde, até as Comunicações e a Petrobrás, temos o deslocamento das Forças Armadas para o centro do poder com o intuito de garantir as condições para um processo brutalizado de acumulação primitiva, de espoliação de terras e concentração de renda.

O Brasil assiste a uma nova fase de concentração de renda, e a ameaça de sublevação popular que normalmente acompanha tais momentos, exige das Forças Armadas sua presença direta no Estado, a fim de intensificar a guerra civil contra populações vulneráveis. Essa concentração volta em seus moldes tradicionais, como o colonialismo interno que leva a predação da natureza, escondida sob a capa do desenvolvimento, para espaços cada vez mais amplos. Colonialismo que intensifica os incêndios contra povos originários e florestas.

Processo que, por sua vez, exige a mobilização contínua da perseguição e pressão de setores com potencial de sublevação, no que vemos a utilidade da eterna luta contra o comunismo (o único inimigo que, no século XX, efetivamente foi capaz de usar a guerra contra quem gerencia a guerra civil social). Por fim, as Forças Armadas ocupam o Estado tendo em vista a militarização da vida social, seja através da generalização extensiva de “formações militares” (segundo o projeto de paulatinamente transformar escolas públicas em escolas militares), seja através da organização armada e generalizada de grupos paramilitares de apoio.

Mas isso que nos anos sessenta obrigou a organização de um golpe clássico de Estado foi imposto agora através de uma lógica extremamente astuta de “custo menor”. São sucessões de operações relativamente regionais que, paulatinamente, deslocam o poder para o horizonte gerencial militar, fazendo com que ele avance mesmo que pareça não estar lá. Como já se disse mais de uma vez, uma das maiores astúcias do diabo é levar-nos a acreditar que ele não existe.

Primeiro, era necessário impedir que a eleição de 2018 ocorresse. O custo de uma simples suspensão de eleições presidenciais seria enorme, arcaico, desnecessário. Mas havia algo mais astuto: um tuíte, um simples tuíte das Forças Armadas ameaçando o Poder Judiciário caso o candidato indesejável pudesse concorrer. Além do tuíte, um processo jurídico “contra a corrupção” capaz até mesmo de anexar depoimentos de pessoas que nunca deram depoimento algum. Um processo incensado por setores hegemônicos da imprensa e seus interesses inconfessos pela radicalização do processo de acumulação primitiva da classe trabalhadora espoliada. Assim, a eleição estaria assegurada no bom e velho modelo da República Velha onde os embates já estavam decididos de antemão. Afinal, para que um golpe clássico se a possibilidade de preparar resultados favoráveis está à mão?

Mas a ocupação do Estado exigiria o abandono dos aliados que acreditavam que seriam convidados para sentar à mesa principal da gestão do poder. Como na ditadura militar, quando os civis descobriram que haviam se tornados atores secundários através do veto a Pedro Aleixo ocupar a presidência da República, todos aqueles que pavimentaram esse caminho foram enterrados sob o asfalto que eles mesmos esquentaram. De Eduardo Cunha aos degenerados da Lava Jato, da própria imprensa ao “centro democrático”: todos foram deixados para trás até que acordássemos em um regime militar em pleno século XXI.

Ainda na lógica do “custo menor” havia dois problemas a resolver. O primeiro era a censura. Mas “censura” é, mais uma vez, algo arcaico, custoso e, principalmente, desnecessário. O poder só procura censurar quando teme a força da palavra. Melhor seria operar através de uma “usura” da palavra. Tirar a força da palavra, criar paralisia em seu uso, ao invés de simplesmente censura-la. Uma paralisia criada pela inversão constante de seu significado. Usar “liberdade” para descrever a indiferença em relação ao genocídio de Estado diante da pior pandemia da história recente, usar “ditadura” para descrever exigências mínimas de solidariedade social diante da catástrofe, usar “coragem” quando se quer mostrar o descaso com quem não pode ter acesso ao sistema privado de saúde para sobreviver, usar “doutrinação” onde outros falam de pensamento crítico. Há de se lembrar que era George Orwell quem fazia os habitantes da Eurásia gritarem: “ignorância é força, liberdade é escravidão”.

Se 30% da população participasse dessas estratégias de usura da palavra o processo político estaria paralisado. E não seria difícil contar com esses 30%. Quem conhece a história brasileira sabe que eles nunca faltariam ao seu dever. Enquanto isto, o resto perderia seu tempo a espera de “frentes amplas” que nunca aconteceriam (basta ver quem foi apoiar o candidato do governo nas eleições para a presidência da Câmara) ou discutindo eliminações do BBB na semana em que o Banco Central ganharia sua “autonomia”, ou melhor, sua definitiva servidão aos interesses mais brutais da elite rentista, esses mesmos interesses que são a base da realidade material que sustenta o eixo das formas gerais de espoliação (imaginar que nossa emancipação viria sob formas administradas pela indústria cultural e sua estrutura monopolista articulada aos interesses maiores da elite empresarial ... isso talvez explique o que ocorre quando conceitos como “indústria cultural” são abandonados em prol de práticas que se recusam a problematizar os meios de enunciação).

Mas havia um segundo problema a resolver. Um regime militar não aceita ser deposto. E este ponto volta agora em sua tensão efetiva, principalmente depois da possibilidade de Lula concorrer à presidência novamente. O Brasil conhece atualmente um conflito entre o que poderíamos chamar de “direita oligárquica” (a saber, esse grupo dirigente que deriva das oligarquias locais e seus representantes, a começar pela oligarquia paulista) e uma “extrema-direita popular” (que vem da longa história do fascismo brasileiro). O horizonte convergente de interesses permite a esses dois grupos sentarem-se à mesma mesa quando necessário. Mas tomado o poder, eles também entram em choque, como se mostrou ao longo da história nacional.

deslocamento de Lula para o centro do jogo eleitoral não foi exatamente resultado de uma pressão popular irresistível, de um clamor irrefreável, mas de uma manobra arriscada de setores da direita oligárquica no poder para conter Bolsonaro em sua escalada fascista, como fizeram em junho quando Queiroz foi enfim “encontrado” em um sítio em Atibaia e o primeiro “enquadre” foi dado.

Com a vitória de Bolsonaro pelo controle da Câmara e do Senado e com sua liberdade absoluta de operação, era necessário um segundo enquadre, e ele foi dado através da ressurreição do único político com estatura eleitoral compatível com Bolsonaro e que parecia capaz de fazer, efetivamente, uma aliança de centro no Brasil com alguma estabilidade. Exatamente nesse momento, o poder Judiciário brasileiro “descobriu” que, afinal, o processo contra Lula era uma aberração jurídica e que ele nunca teve direito efetivo de defesa. Lula apareceu como o único capaz de fazer uma efetiva aliança de centro porque os outros fazem apenas acordos entre oligarcas sem muita densidade popular. Já ele opera por uma versão do “sindicalismo de resultados” que parecia poder funcionar no começo desse século. Por isso, falar em “polarização” chega a ser um desrespeito à inteligência nacional. Lula é a última figura capaz de tentar operar políticas de grande aliança no Brasil. Ele é exatamente o contrário de toda e qualquer “polarização”. Seu governo não nos deixa mentir.

No entanto, como foi dito anteriormente, um regime militar não aceita ser deposto. Em manifestações inéditas na vida política nacional, o dia seguinte ao anúncio de possibilidade de Lula concorrer foi marcado por declarações de militares dizendo ver a volta do ex-presidente como algo inaceitável. O que demonstra como caminhamos para um cenário de confronto e tensão. Quando a ditadura militar foi implementada em 1964, o “centro democrático” (sempre ele) se preparava pela eleição nos próximos anos: Juscelino era o nome principal nessa operação. Tal eleição nunca veio. Sessenta anos depois, os militares aprenderam a fazer isso muito melhor. Eles descobriram que o vocabulário da “inexistência” é muito mais sutil, se habilmente manipulado. Há de se estar preparado para isto.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Vladimir Safatle: Este Governo tem que cair. Preservá-lo é ser cúmplice

Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la

Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.

O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.

Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.

Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.

Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.

Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.

Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.

Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.

A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.


Vladimir Safatle: A república oligárquica precisa morrer

O processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador

Os resultados das eleições do último domingo evidenciaram duas linhas principais de confronto a animar a política brasileira. Não seria mero exercício retórico afirmar que nosso destino a curto e médio prazo depende do desdobrar de tais linhas.

A primeira delas indica a resiliência da República oligárquica brasileira. Os números mostram com clareza a hegemonia eleitoral de uma constelação na qual encontramos representantes tradicionais do aparato econômico e da chamada “direita de sobrenome”, ou seja, esse setor da elite política que tem relações históricas e familiares com o poder, espalhado em múltiplos níveis regionais e locais. Tal grupo há muito conseguiu se consolidar como verdadeira “casta” política e é marcado por práticas políticas conhecidas, nas quais se misturam brutalidade policial e racista, guerra contra pobres, ausência de qualquer formulação de fortalecimento do espaço comum, assim como submissão aos múltiplos interesses imobiliários e concentracionistas em operação em nossas cidades.

Esse grupo conseguiu se vender, ironia maior do Brasil contemporâneo, como “anteparo de racionalidade” contra o “extremismo” do Governo federal, como retorno da “política” contra o “populismo”. Na verdade, essa foi sua estratégia para reconstituir a balança do poder diante da ascensão de outro grupo, a saber, uma extrema direita popular, composta por setores que eram normalmente sócios menores e subalternos dos consórcios do poder. Setores compostos por: milicianos, representantes do aparato repressivo policial, agitadores midiáticos de extrema direita e pastores. Normalmente, eles eram servidores da direita oligárquica que conseguiram, nesses últimos anos, subir ao primeiro time, amparado pela força histórica das tendências fascistas na sociedade brasileira.

Esta direita oligárquica, que comunga com a extrema direita o mesmo projeto econômico de espoliação e concentração, a mesma brutalidade social e indiferença no uso da violência de Estado, mas que sabe usar melhor planilhas de CEO, conceitos acadêmicos e sabe onde fica a Avenue Foch, viu-se em meados deste ano a ponto de ser definitivamente afastada do poder dentro de uma escalada pré-golpe. Como a arte da sobrevivência lhe é um traço inerente, ela soube reordenar suas forças, capitanear chamados a “frente ampla e redentora contra o fascismo e em prol da defesa da democracia” para simplesmente repactuar uma divisão provisória de poder. Agora, ela soube se vender nas eleições como uma espécie de “volta à normalidade”, mesmo que essa normalidade seja o verdadeiro nome da catástrofe brasileira.

Ela tentará agora colocar em circulação estratégias aprendidas observando o comportamento de sua matriz, a saber, a direita oligárquica norte-americana encarnada no Partido Democrata. Nas últimas décadas, o Partido Democrata em seu eixo Clinton-Obama procurou compensar a aliança incondicional com políticas militaristas e de preservação do capitalismo financeiro de Wall Street com um “rosto mais humano” expresso na tentativa de integração de representantes dos setores mais sistematicamente violentados da população (pretos, LGBT’s , mulheres), sem mexer em praticamente nada nas engrenagens de espoliação, de precarização e sujeição socioeconômica que lhes afetam mais diretamente. Afinal, não é possível nomear Timothy Geithner (representante maior dos interesses dos sistema financeiro) secretário do Tesouro na administração Obama e fingir que se está a lutar pela transformação estrutural contra as múltiplas formas de sujeição social. A pobreza é a matriz das piores violências.

Mas há um problema que faz essa equação não fechar muito bem. A revolta vinda desses setores é potente, explosiva, assim como é real seu desejo de transformação. As tentativas de vampirizar sua força pela direita oligárquica equivalem a tentar domar, com velhos truques de mágica, processos com verdadeiro potencial de mudança. Ou seja, a tendência de que esse arranjo se quebre é grande e chegará uma hora que o espantalho de “todxs contra o trumpismo” não funcionará mais. De toda forma, o trabalho do Partido Democrata é relativamente facilitado porque eles não têm, por enquanto, nenhuma força à sua esquerda com quem se confrontar. Esse não é, felizmente, o caso do Brasil.

É nesse ponto que encontramos a segunda linha principal de confronto que emerge do primeiro turno das eleições. Se a primeira se resume às estratégias de preservação das oligarquias locais contra a extrema direita de matriz integralista, sob fundo de concordância geral, a segunda diz respeito à paulatina incorporação de novos processos coletivos de exercício do poder popular. Por isto, essas eleições foram também o início de um novo embate que começa, não por acaso, no centro econômico e financeiro do país: São Paulo.

São Paulo é uma das representações mais bem acabadas do poder das oligarquias. O Estado é governado de forma ininterrupta, há quase quarenta anos, pelo mesmo grupo e suas divisões internas. De Montoro a Doria, a linha é reta e constante. Diante de tanta continuidade há de se imaginar que São Paulo deva ostentar resultados robustos de políticas inovadoras nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação, saneamento ou qualquer outra área. Mas a mediocridade dos resultados das políticas públicas do Estado só é ofuscada pela tranquilidade olímpica com que sua oligarquia dirigente se vê exercendo algo como um direito divino de mando entregue por deus em pessoa desde a época dos cafezais e dos bandeirantes caçadores de homens.

Há de se admirar os representantes dessa casta a falar, sem tremer, da “experiência” que porventura teriam na arte de “ser gestores”. Alguém poderia, nesses momentos, perguntar: experiência exatamente em relação a o quê? A como tentar despoluir um rio por 30 anos, como o Tietê, sem sucesso gastando 1,7 bilhão de reais só nos últimos noves anos? A como tentar passar ração humana como merenda escolar? A como implantar políticas de combate a pandemia enquanto obrigava mais de 2 milhões de pobres a pegarem transporte público lotado? A construir Rodoanéis que nunca terminam e eivados de processos por corrupção que, milagrosamente, caem no esquecimento? Talvez haja um dialeto ainda não identificado nessas terras onde “experiência” significa algo oposto ao seu sentido trivial em português castiço.

Contra isto, novas forças lutam por mostrar que “governar” pode significar abrir os processos decisórios e deliberativos à inteligência coletiva dos movimentos sociais e profissionais, à inteligência coletiva dos artistas, à inteligência coletiva das universidades. É isto que se está a defender em São Paulo, contra a falácia de um saber tecnocrata que sempre foi apenas a gestão em nome da preservação dos interesses oligárquicos de sempre. Esse processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador. Diferente dos norte-americanos, esses setores não precisam lidar aqui com as travas impostas pela realidade política bipartidária. Por isso, eles têm campo para declinar sua potência de transformação no espaço estendido dos embates econômicos, políticos e sociais, como vimos ocorrer na sublevação popular do Chile, com seus resultados surpreendentes. Se bem sucedido entre nós, esse processo pode ser o início de uma abertura do campo político à energia de tudo aquilo que a oligarquia temeu e procurou apagar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo


Vladimir Safatle: não falar

Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho

A ideia inicial era escrever outro artigo. Depois de meses envolto em questões sobre pandemia e escalada autoritária, a ideia era falar de algo outro., qualquer coisa de outro. Mas é possível que em situações parecidas o dito de Adorno “Não é possível fazer poesia após Auschwitz” ganhe certa atualidade e se imponha em sua força. Um dito arquiconhecido, é verdade, mas que talvez queira dizer algo muito preciso e por vezes esquecido. Claro que não significava que a poesia era agora coisa do passado. A poesia não tem passado, nem presente e muito menos futuro. Só que Adorno procurava dizer que, para escrevê-la a partir de então, haveria de se sentir o impossível de uma língua que não quer mais voltar ao normal, que não quer voltar às formas de lírica depois que descobrimos não exatamente a morte industrial, mas a indiferença à morte industrial como funcionamento social normal.

Cada palavra, para ter algum conteúdo de verdade, deveria saber como ressoar esse “não é possível”, deveria deixar claro sua vontade de explodir uma gramática que parecia profundamente cúmplice da violência do que não se pode tolerar. Sorrir, dizer “cuide de si”, tocar um acorde perfeito, falar “eu te amo” era apenas outra forma de puxar o gatilho mais uma vez. Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho. 

Por isto, o dito de Adorno talvez devesse ser lido conjuntamente com outra frase, esta vinda de Vladimir Maiakovsky: “Dai-nos uma arte revolucionário que livre a república dessa escória”.  Essa escória que a República se tornou, essa mistura de ritmo de matadouro com lives sobre os desafios da paternidade e ensinamentos sobre “como viver sozinho e permanecer feliz”, que ela se arruíne para sempre. Mas ela só começará a ruir quando nos confrontarmos a uma língua que não queira mais falar como até agora se falou, que se recuse a pactos em todos seus níveis. Que não terá mais o tom dos conselhos psicológicos que damos a deprimidos ou a pessoas que esperam de terceiros alguma descrição sobre o caminho da felicidade, que não confundirá mercadorias da indústria cultural e suas linguagem reificadas como a forma máxima da emancipação racial. Como essa linguagem, com essas falas, com essa naturalização da degradação da língua, não há política alguma. 

Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da “vida normal” que parece voltar em uma letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.   

Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos “desejos responsáveis” que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes “frentes amplas” contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente). Pois esse é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do “diálogo” entre “diferentes”. Do eterno diálogo de cúmplices. O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luis Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante. Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um “eu quero votar para presidente” que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade  ao pacto de paralisia que nos marcará durante os trinta anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes.  Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso “contra o ódio” (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era “revanchismo”).

Agora, foi necessário apenas duas semanas para entender qual era a real função da “frente ampla”. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo. Novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado, e a casta política tradicional. Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais “estável” de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da  chamada “frente ampla”. 

Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pode continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta “democracia geograficamente sitiada” que construímos. Democracia que funciona em um espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada que ameaçava ruir que tais “frentes amplas” foram convocadas.

Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, “dizer é fazer”), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.  

Esse país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais. Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, em um mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein, que: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essa deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto. 


Vladimir Safatle: Acabou, não. Apenas começou

As Forças Armadas são exímias em fazer ouvir a voz de uma minoria aguerrida e fascista, enquanto procuram de todas as formas calar a verdadeira maioria. Essa maioria agora quer voz

“Acabou, porra”. Foi assim, com sua polidez costumeira, que o sr. Jair Bolsonaro reagiu ao fato de seus aliados estarem em investigação por crimes contra a República. No mesmo dia, um de seus filhos (a formulação é sintomática, o referido é conhecido pela população por ser “filho de...”), falou abertamente sobre o golpe de 1964 como pretensa resposta ao “clamor popular” na chamada guerra entre poderes.

Mas se for para falar em “clamor popular”, melhor começar por responder porque a maioria das brasileiras e dos brasileiros está hoje sem voz. Segundo a última pesquisa Datafolha, 43% das brasileiras e dos brasileiros rejeitam claramente o Governo Federal, avaliando-o como ruim ou péssimo. Nunca na história recente deste país um presidente chegou a um ano e meio de seu mandato com tamanha rejeição. Isso em uma situação na qual todas as peças estavam a seu favor. Pois uma situação de pandemia equivale (ao menos do ponto de vista das identificações políticas) a uma situação de guerra e, nestas circunstâncias, a população tende a se unir em torno de seu Governo para lutar contra algo que a ameaça como um todo.

O sr. Bolsonaro poderia ter chamado todos a baixarem as armas, conclamado uma união nacional pela defesa da vida. Ele poderia ter dito que passaríamos todos por momentos muito difíceis na economia, mas que o Governo iria mobilizar seus recursos para fornecer salários para as pessoas ficarem em casa por três meses. Ele poderia fazer um grande acordo para impedir que as empresas demitissem e para obrigar as grandes fortunas e o sistema financeiro a repartir seus rendimentos estratosféricos em um momento de implosão social. Se ele fizesse isto, agora sua aprovação seria recorde. Mas, para isso, Bolsonaro não poderia ser Bolsonaro. Para isso, o Brasil não poderia ser o Brasil. E, para isso, sua elite suicida e escravocrata não poderia ser sua elite suicida e escravocrata.

Ao contrário, e a conta dessa responsabilidade vai para todos os empresários que o apoiam, o Governo preferiu abrir caminho para se transformar no novo epicentro mundial da covid-19. Neste exato momento, morrem mais brasileiras e brasileiros desta doença do que qualquer outra nacionalidade no mundo. Isto levando em conta apenas os números oficiais, com suas subnotificações evidentes e limitações para testagem da população. Esta é a verdadeira face da “responsabilidade para com o país”, do “cuidado da nação” e de outras afirmações com as quais somos bombardeados diariamente. Com uma responsabilidade destas, país algum precisa de inimigos.

Mas um observador da vida nacional poderia se perguntar porque essa maioria que não quer mais o sr. Bolsonaro e sua naturalização genocida das mortes de brasileiras e brasileiros não é ouvida. As Forças Armadas, responsável maior pelo caos no qual estamos, são exímias em fazer ouvir a voz de uma minoria aguerrida e fascista, enquanto procura de todas as formas calar a verdadeira maioria. Essa maioria agora quer voz.

Ela foi pega em uma chantagem perversa do Governo. Sendo o único setor que realmente se preocupa com a vida das brasileiras e dos brasileiros mais vulneráveis, ela ficou em casa, respeitou a quarentena, resumiu sua indignação a panelaços, enquanto via a horda minoritária sair às ruas para zombar das mortes e exigir políticas irresponsáveis que destruiriam de vez o país. Pois uma política madura e responsável de isolamento poderia ter permitido ao país debelar a pandemia em três meses. Agora, seremos a referência mundial em catástrofe, seremos o país contra o qual o mundo levantará um cordão sanitário e, ironia macabra, isso sim irá “destruir a economia”.

Essa maioria teve que ouvir passiva o sr. Bolsonaro blefar em “armar a população” sendo que ele sabe muito bem o que acontecerá se ele realmente armar a população, ao invés de simplesmente armar suas milícias minoritárias. Se ele quer fazer isto, que comece por dar armas aos povos indígenas cujo ocupante atual do ministério da educação despreza a existência ou à classe trabalhadora espoliada por sua política econômica exímia em dar presentes a quem diz que 5.000 ou 7.000 mortes não são nada diante do prejuízo que ele terá por não poder vender hambúrgueres.

Agora, essa maioria vê o sr. Bolsonaro procurar realizar uma operação digna de 1984, de George Orwell. Nesse romance, Orwell lembra, entre outras coisas, que há uma mutação necessária na língua para que um regime autoritário se imponha. Algo parecido tem ocorrido entre nós. Tal como na Oceania de Orwell, somos diariamente submetidos ao exercício de reescritura do sentido de termos que pareciam elementares. No país do bolsonarismo, ignorância é força, liberdade é genocídio.

Pois notem como o discurso sobre a “liberdade” emana tão facilmente da boca daqueles que fazem de tudo para cala-la, que amam torturadores e louvam ditaduras, como a que conhecemos durante vinte anos. Há dias, o sr. Bolsonaro, em uma de suas lives, afirmou: “muito maior que a própria vida, é nossa liberdade”. Bem, deixando de lado a contradição elementar de que uma liberdade sem vida não é liberdade alguma, há algo de interessante nesse tipo de afirmação. Ela ecoa o discurso oficial de que as políticas de restrição a circulação e atividades desenvolvidas para o combate contra a pandemia seriam um “atentado a liberdade”.

Tal discurso ressoa um certo tipo de concepção de liberdade que parte do dogma dos limites sagrados dos indivíduos. Vimos algo parecido quando manifestantes norte-americanos saíram às ruas com um cartaz onde se via uma máscara dentro de um sinal de proibido e se lia “meu corpo, minhas regras”. O mesmo raciocínio serviu de base para manifestantes alemães exigirem o “direito de se infectarem”.

A lógica é clara e não há como negar certa consistência. Sendo “liberdade” algo que alguns compreendem como a propriedade que tenho sobre mim mesmo, ninguém poderia me obrigar a portar uma máscara médica, a ficar em casa, a cuidar de meu corpo, a não ser que ele tenha meu consentimento para isto. Afinal, como disse o sr. Bolsonaro em outra de suas ocasiões de reflexão filosófica: “Se eu me contaminei, é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”.

Ao menos, tudo isto serve para mostrar o tipo de monstruosidade social legitimada pelo discurso que reduz a liberdade à propriedade de si. Desde que aceitamos essa premissa, as consequências são o discurso do ocupante atual da presidência da República. E de nada adianta afirmar coisas como: “mas o exercício da propriedade que tenho de mim mesmo deve estar submetida a respeito pelo risco a vida do outro”. Pois eles poderão sempre perguntar ( e, novamente, com certa consistência): mas quem decide quais são os “riscos relevantes” ao outro? Por que devo admitir que o estado ou cientistas que se colocam como sábios oraculares decidiram o que é “risco relevante”?

A única maneira realmente consequente é recusar essa liberdade que se realiza no genocídio. Liberdade não é ser proprietário de mim mesmo, mas compreender que estou em um sistema de mútua dependência que exige o reconhecimento da racionalidade de afetos de solidariedade genérica. O corpo que chamo de meu não é simplesmente meu corpo. Ele também é, entre outras coisas, um veículo de contágio, ou seja, ele é a sua maneira uma parte do corpo social e deve também ser tratado como tal. Um afeto dessa natureza é tudo os que sustentam esse Governo e sua indiferença genocida querem que não emerja. Porque ele se realiza na igualdade real e em uma mutualidade que ainda não existe, mas que pode existir.

A maioria brasileira que ainda não tem voz saberá como rejeitar esse individualismo possessivo que é a verdadeira forma de violência. Pois o verdadeiro embate é pela construção de uma liberdade real que nunca aceitará que mais de 28.000 brasileiras e brasileiros mortos é uma fatalidade natural, como a queda das folhas no outono.

Para finalizar, não podemos mais aceitar as chantagens que nos foram impostas. Nossas ações devem ser mais efetivas a partir de agora. Redes de boicotes a empresas que sustentam essa política da morte, manifestações de rua pelo impeachment do Governo que respeitem exigências de segurança sanitária (como vimos em Israel). Pois a queda desse Governo não será apenas a queda desse governo. Será dar a maioria sua verdadeira força de recusa e abrir o caminho para que ela possa começar a criar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Vladimir Safatle: Preparar-se para a guerra

Os últimos dias mostraram com precisão a tese de Freud que o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança. Ou alguém esperava ver, em meio à pandemia pessoas fazendo buzinaço em frente ao hospital?

Em 1939, pouco antes de Hitler atacar a Polônia e iniciar a Segunda Guerra, Freud lança seu último livro, Moisés e a religião monoteísta. Neste livro que trata da constituição de identidades coletivas através de identificações a lideranças, há uma ideia surpreendente, sintetizada em uma pequena frase: “Moisés criou o povo judeu”. Ou seja, não se tratava de afirmar que a liderança era a expressão dos traços de seu povo. Na verdade, o quadro estava de cabeça para baixo. Aquele que ocupava o lugar do poder e prometia uma grande transformação acabava por constituir o povo, por definir os traços prevalentes de sua identidade coletiva. Ou seja, havia uma força produtiva do poder, não apenas uma força coercitiva. Da representação do poder, vinha uma força de identificação que moldava paulatinamente os sujeitos a ela submetidos, que os transformava em seus afetos, em sua estrutura psíquica, em suas ações. O poder molda os que a ele se assujeitam.

Freud não conheceu o Brasil, nem nunca ouvi falar de Jair Bolsonaro. Mas é certo que os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança. Todos estão a perceber essa mutação na qual expressões de desprezo, indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece não ter fim. Ou alguém realmente esperava ver, em meio a uma pandemia, pessoas a manifestar na Avenida Paulista dançando com um caixão, fazendo buzinaço em frente a hospital, zombando abertamente da dor e do desespero de milhares de pessoas infectadas e lutando pela vida em situações hospitalares precárias? Como se fosse o caso de expressar, da forma a mais aberta e brutal, a indiferença em relação aos 2500 corpos mortos até agora, ao menos se confiarmos nos números subnotificados. Como se fosse o caso de repetir os “deslizes”, as “derrapadas”, ou melhor, os traços de caráter de quem ocupa o poder.

Alguns podem dizer que isto sempre esteve aí, na indiferença das classes mais altas ao destino e as chacinas perpetradas contra as classes vulneráveis. Mas o pior erro é não perceber as placas tectônicas se movendo por estar com os olhos submersos na lógica repetitiva do “sempre foi assim”. Não, há algo novo a acontecer. Pois não se trata apenas da conhecida máquina necropolítica do estado brasileiro. Trata-se da explosão de rituais públicos de auto-sacrifício e de violência. Trata-se de uma dinâmica “suicidária”. Erra quem acredita que essas hordas envoltas na bandeira nacional “não sabem do perigo que correm”, são “burras”, como se fosse simplesmente o caso de procurar explicar claramente o que é uma pandemia para todos voltarem para casa.

Diante do fascismo, Adorno e Horkheimer disseram um dia que nada mais estúpido do que tentar ser inteligente. Nossa pretensa supremacia intelectual ainda irá nos matar. Ela nos faz não ver como, no fundo, há uma parte da população brasileira que deseja isto e se dispôs a jogar roleta russa com todos e com elas mesmas. É este desejo que deve ser compreendido. Pois esta será sua forma de se sacrificar por um ideal, mesmo que este ideal não prometa nada mais do que o próprio sacrifício, nada além de um movimento permanente em direção à catástrofe.

Neste sentido, estamos a observar uma mutação impressionante. Mesmo sendo o pior governo do globo terrestre diante da pandemia (comparado apenas a Bielorrusia, ao Turcomenistão, e ao renegado que governa a Nicarágua), o apoio a Bolsonaro não cai. Ele muda paulatinamente. Setores da classe alta vão abandonando-o enquanto ele compensa com adesões nas classes populares, repetindo um movimento que vimos inicialmente com o lulismo. Dificilmente, este número mudará. Ele nem subirá, nem cairá. Mas a qualidade deste apoio mudará. Ele deixará de ser simples apoio para ser identificação profunda e aguerrida. Ao final, teremos um país com 30% de camisas negras dispostos a tudo, pois acreditam estar em um processo revolucionário de ressureição nacional. Este processo não tem mais retorno.

Não será a primeira vez na história que uma dinâmica de afetos e crenças desta natureza ganhou corpo. Esta implosão aberta de qualquer princípio elementar de solidariedade, esse desprezo com os que morrem, esse culto do próprio suicídio como prova de “coragem”, essa violência cada vez mais autorizada até a formação aberta de milícias populares, esta crença em uma revolução nacional redentora, isto tudo tem nome. Costuma responder pura e simplesmente por “fascismo”.

Movimentos desta natureza sempre se aproveitam da fraqueza de seus adversários. Enquanto Bolsonaro moldava uma parte da sociedade a sua imagem e semelhança, havia sempre os especialistas em questões palacianas florentinas capazes de identificar as intrigas que iriam “paralisa-lo”, os erros que indicariam que “acabou para você”. Até pouco tempo, Bolsonaro foi descrito como uma “rainha da Inglaterra”. Isto até ele mandar embora seu ministro da Saúde sem que nenhum cataclismo anunciado realmente ocorresse. Não, não há nada que irá para-lo, nenhum recuo ocorrerá. Um projeto dessa natureza só é parado de forma brutal. Mas esta brutalidade necessária não está na consciência dos atores políticos atuais.

Poderíamos ter começado mobilizações contínuas pelo impeachment há um mês. Mais uma vez, analistas finos diziam que não era a hora, que isto só fortaleceria o discurso persecutório do Governo. Como se o Governo precisasse de nós para alimentar seu próprio discurso persecutório e mobilizar suas hostes. Não, agora eles denunciam um “plano” para derrubar Bolsonaro, sendo que a oposição sequer conseguiu colocar um pedido de impeachment em marcha, sequer permitiu a maioria de gritar por seu nome. No máximo, suas lideranças endossaram um pedido de “renúncia”. Faltou pedir “por favor” a Bolsonaro para que ele caísse em si e se afastasse de bom grado. Como dizia Maquiavel, a audácia é qualidade fundamental diante da fortuna. Mas o único ator que demonstra audácia a altura da situação é o próprio Governo. Em breve teremos uma tentativa de golpe vendida como “contra-golpe preventivo”, sem que a oposição tenha feito nada mais do que abaixos-assinados, petições e cartas públicas. A última a acreditar em uma democracia parlamentar que simplesmente não existe mais.

Acrescente ao quadro, o cálculo macabro que o Governo conseguiu impor a parcelas da população. Para elas, trata-se de escolher entre a bolsa ou a vida, entre a morte econômica certa e a morte física provável. Nesse cálculo, o certo acaba por vencer o provável, ainda mais diante de setores da população submetidos ao extermínio, ao desaparecimento, a chacina. Este é o grão de racionalidade da situação apresentada por Bolsonaro. Ela só se sustenta porque a terceira opção está interditada, a saber, nem a bolsa, nem a vida, mas os dois.

Diante disto, que a sociedade constitua redes de auto-defesa contra o pior que está por vir. Há duas semanas, pessoas que batiam panela em suas casas contra o governo foram vítimas de disparos de balas de espingarda de chumbo. Em manifestações pró-governo, cidadãos e cidadãs oposicionistas foram violentamente agredidos. Quantas semanas ainda faltam para começar os linchamentos e as balas reais?


Vladimir Safatle: A única saída é o impeachment

Esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro

No dia 18 deste mês, três combativos deputados federais (Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim e David Miranda) protocolaram um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Este pedido foi assinado por vários membros da sociedade civil, entre eles por mim. A este grupo, somaram-se mais de 100.000 assinaturas de apoio.

O pedido motivou algumas críticas vindas, inclusive, da própria direção do partido de tais deputados, abrindo um debate importante a respeito das estratégias da oposição neste momento. Por isto, gostaria de aproveitar este espaço a fim de insistir que tais críticas estão profundamente equivocadas e expressam, na verdade, falta de clareza e direção em momento tão dramático de nosso país.

Duas questões se colocam a respeito de tal problema. Primeiro, se devemos ou não devemos lutar pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Segundo, caso a primeira resposta seja afirmativa, há de se discutir quando um pedido desta natureza deveria ser feito.

Sobre o primeiro ponto, normalmente os que recusam a tese do impeachment afirmam que de nada adiantaria trocar Bolsonaro por seu vice, o general Mourão. Tal troca, na verdade, equivaleria a entregar de vez o controle do estado ao Exército, com consequências catastróficas. Há ainda aqueles que dizem ser miopia política e irresponsabilidade administrativa lutar pelo impeachment em meio a maior crise sanitária que o mundo conheceu desde há muito. Melhor seria aproveitar o enfraquecimento de Bolsonaro e levar o estado brasileiro a retomar investimentos no SUS, a revogar o teto de gastos, entre outras ações.

Aos que dizem nada adiantar trocar Bolsonaro por seu vice gostaria de dizer que o foco de análise talvez esteja equivocado. A questão coloca pelo impeachment não é “quem assume”. Antes, trata-se de mostrar claramente que o país repudia de forma veemente quem age a todo momento para solapar os espaços mínimos de conflito político e que demonstrou irresponsabilidade e incapacidade absoluta de gerenciar forças para preparar o país para lidar com uma epidemia devastadora. Bolsonaro é um agitador fascista e um chefe de gangue narcísico que zombou do povo brasileiro e de sua vulnerabilidade no momento em que devia ter baixado as armas, convocado um governo de união nacional, sentado com a oposição e convergido forças para colocar a sobrevivência das pessoas à frente das preocupações econômicas imediatas e das preocupações políticas de seu grupo.

Neste sentido, um impeachment neste momento teria um valor civilizatório, pois deixaria claro que a sociedade brasileira não admite ser comandada por alguém que se demonstra tão inepto e com interesses exclusivos de autopreservação. Bolsonaro demonstrou nos últimos dias como é capaz de produzir ações que desmobilizam as tentativas da sociedade em conscientizar todos da situação em que nos encontramos. Suas ações custam vidas. A questão sobre quem ocupará o lugar de Bolsonaro é um cortina de fumaça que demonstra desconfiança na força destituinte da soberania popular. Este mesmo argumento foi usado quando Michel Temer estava nas cordas, na ocasião da greve dos caminhoneiros. Dizia-se que não fazia sentido troca-lo por Maia. Hoje, Maia é endeusado por alguns como o esteio da racionalidade no Estado brasileiro.

Já aos que afirmam que o momento é de lutar para empurrar o Estado a aplicar políticas de proteção social, eu diria que os últimos dias mostraram que isto é algo da ordem do delírio. Pois o Governo aproveita a situação de caos para permitir às empresas cortarem jornada de trabalho e salários pela metade, permitir licenciamentos sem custos, usar os parcos recursos públicos para salvar empresas aéreas monopolistas especializada em espoliar consumidores e pressionar pelas mesmas “reformas” que destruíram a capacidade do Estado de operar em larga escala em situações de risco biopolítico com esta. Ou seja, achar que é possível negociar com quem procura toda oportunidade para preservar seus ganhos, com quem se serve do Estado para espoliar o povo em qualquer situação que seja, demonstra incapacidade de saber contra quem lutamos. Que aprendam de uma vez por todas: neoliberais não choram. Eles fazem conta, mesmo quando as pessoas estão a morrer à sua volta.

Engana-se quem espera que Bolsonaro faça alguma forma de reconhecimento da necessidade de políticas públicas fortes, como fez o presidente francês Emmanuel Macron em momento de desespero. Isto apenas demonstra como há setores da esquerda brasileira que nada aprenderam a respeito de nossos inimigos. A eles, devemos insistir que a única maneira de realmente combater a pandemia é afastando Bolsonaro do poder em um movimento que mostraria, ao resto da classe política, o caminho da guilhotina diante da cólera popular pela inação e irresponsabilidade do governo diante das nossas mortes. Volto a insistir, esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro.

Já os que falam que o momento é cedo para um pedido de impeachment, que é necessário compor calmamente com todas as forças, diria que isto nunca ocorrerá. A esquerda brasileira já se demonstrou, mais de uma vez, estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos. Ela luta contra a reforma previdenciária enquanto a aplica em casa. Ela não encontrará unidade para um pedido de impeachment ou só encontrará muito tarde, quando setores da centro-direita e da direita já tiverem monopolizado a pauta do impeachment.

Por outro lado, 45% da população é a favor do impeachment de Bolsonaro (Atlas Político), a população manifesta-se cotidianamente através de panelaços em bairros até então solidamente ancorados no apoio a Bolsonaro, grupos que o apoiavam entrar em rota de colisão com ele. Se este não é um bom momento para a apresentação do pedido, alguém poderia me explicar o que significa exatamente “bom momento”? Quando estivermos todos mortos?

Nestas circunstâncias, melhor respeitar um princípio autonomista de grande sabedoria estratégica. Em um campo comum, baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva. Dentro do campo comum ou seus membros implicam-se nas ações feitas de forma autônoma ou quem não concorda não atrapalha. Fora disto, é a posição subserviente de esperar que o líder (que não existe mais) dê sinal verde ou aponte o caminho para os demais. O que significa uma forma de submissão que nunca poderia fazer parte das estratégias daqueles que lutam por uma emancipação real.

*Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Vladimir Safatle: Para a esquerda, morrer é só o começo

Em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la

"Há duas semanas escrevi neste jornal um artigo sobre o colapso da esquerda nacional (“Como a esquerda brasileira morreu”) que foi objeto de vários comentários e críticas. Um dia após a publicação do artigo, o mesmo EL PAÍS publicou uma pesquisa que mostrava como, caso a eleição fosse hoje, Bolsonaro venceria em todos os cenários. Creio que tal coincidência seja uma boa resposta para quem procura desprezar a gravidade da situação.

De toda forma, gostaria inicialmente de agradecer grande parte das críticas que recebi. Mesmo sendo as vezes duras, muitas levantaram questões absolutamente relevantes que me levaram a considerar pontos que não havia relevado. Há outra parte de críticas que se compraz em abusar de certos estereótipos que apenas mostram mais sobre o espírito de quem fala do que sobre o objeto analisado. Não há como responder a este grupo. Gostaria pois de levar em conta algumas das críticas relevantes a fim de dar sequência a um debate que creio ser necessário prosseguir.

Primeiro, alguns creem ser sintoma de melancolia e “desabafo” falar em morte da esquerda nacional. Até mesmo ironias a respeito do fato de eu ter anteriormente insistido no esgotamento de outros processos históricos, como a Nova República e os acordos imanentes à democracia liberal foram levantados como marcas de uma fixação necrofílica. Bem, não é de hoje que se insiste haver em certos setores desse país uma espécie de déficit de negatividade, ou seja, certa dificuldade estrutural de assumir a necessidade de afirmar esgotamentos, recusas e términos (se alguém ainda está disposto a afirmar que a Nova República vive, por exemplo, eu realmente gostaria de saber onde os argumentos foram encontrados).

Lembraria que clinicamente “melancolia” é exatamente a incapacidade de se liberar da fixação a objetos perdidos, não a decisão de se recusar a carregar o que está morto. Por mais que alguns se comprazem com as máscaras da euforia, há mais melancolia neste entusiasmo do que poderia aparentar. É, na verdade, sintoma de melancolia não encarar as derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão. Contra essa leitura, há de se lembrar que, em uma vida, morre-se várias vezes. Um dos piores erros é acreditar que só se morre no fim. Morre-se várias vezes e esta é, muitas vezes, a condição de realmente continuar e se transformar.

Nesse sentido, afirmar que a esquerda nacional morreu não é expressão alguma de prazer infantil de contenda. Antes, é fruto da compreensão de que a sobrevivência da esquerda nacional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente “nós morremos” é a primeira condição para nos livrarmos do que nos matou. Quem se recusa a pensar dialeticamente nessas circunstâncias desconhece a dinâmica de processos históricos. E nossa morte não foi apenas um acidente externo, ela tem causas internas. O jogo do “estamos sendo atacados por fascistas, agora não é hora de assumir nossa auto-crítica” é suicida, é o verdadeiro suicídio. Se o fascismo nacional voltou, se ele teve força para voltar, foi porque ele foi o primeiro a sentir o cheiro de nossa morte. De toda forma, em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la.

Diria ainda que há um fenômeno brasileiro aqui. Não creio ser correto colocar a conta do colapso da esquerda nacional na conquista do imaginário social pela indústria cultural, pela sociedade de consumo e suas formas de regressão. Esse diagnóstico já existia desde os anos cinquenta pelas mãos dos frankfurtianos e muita coisa ocorreu depois. Por outro lado, sendo esse fenômeno algo mundial, seria difícil explicar por que a esquerda reabre caminhos promissores no Chile, mostra-se viva no Líbano e, pasmem, começa a levantar a cabeça nos EUA.

Mas poderíamos nos perguntar se estamos realmente diante de uma morte, ao invés de uma simples derrota. Gostaria de insistir que o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este. Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram na incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do presente. Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a uma retração cada vez maior (tema tratado inicialmente por Paulo Arantes), ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta “outra natureza” chama-se, infelizmente, “morte”.

Neste sentido, não é correto falar de precipitação, como se afinal estivéssemos jogando a toalha depois de apenas um ano de Governo Bolsonaro. Primeiro, não se trata de jogar toalha alguma, mas de saber qual o trabalho crítico necessário para não nos satisfazermos com ações desprovidas de força efetiva. Segundo, não se trata de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade da esquerda nacional reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que vemos no presente. Qual é a política econômica alternativa da esquerda nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.

É sabido que muitos se insurgem contra o uso de palavras no singular. Esses insistem que sempre houve “esquerdas”, que não faz sentido algum em falar do destino de alguma entidade quase dotada de unidade metafísica como a “esquerda”. No entanto, há um precisão necessária aqui. Ninguém negaria que a história da esquerda nacional é múltipla e internamente conflituosa. Mas isto não significa a inexistência de um modelo hegemônico que não apenas incarna-se periodicamente em múltiplos atores distintos, mas que organiza todos os outros a partir da relação a si, produzindo dois movimentos possíveis: a aproximação articulada que reforça o campo hegemônico (como um planeta que atrai corpos menores) ou o distanciamento que equivale a assunção de uma posição radicalmente minoritária. A história da esquerda brasileira realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios ao populismo de esquerda. Este populismo não conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou. A tentativa de reeditar seus modelos heteróclitos de aliança não é astúcia de governabilidade. É só a expressão de que o que faremos é o que já fizemos, que nosso futuro é igual nosso passado. É possível desconfiar desse diagnóstico vendo nele apenas a milésima reedição do mantra uspiano contra o populismo. Algo que expressaria o verdadeiro DNA anti-varguista do setor paulista da intelectualidade nacional, setor no fundo impulsionado pela nostalgia da perda da hegemonia paulista na política brasileira. No entanto, seria intelectualmente mais honesto compreender esta longa luta contra o populismo como o sintoma da

consciência do sistema de paralisia que aprisiona as forças transformadoras deste país há décadas, como o sintoma do movimento de repetição histórica que nos subsume (mesmo que seja verdade que há impactos regionais distintos da mesma política, como mostra Patricia Valim, e isto precisa ser melhor pensado). Um sintoma que ganhou realidade mundial a partir do momento que várias forças de transformação no mundo assumiram para si estratégias populistas de esquerda. Eu mesmo acreditei, no passado, que elas poderiam ser localmente úteis em casos como na Grécia (Syriza) e Espanha (Podemos). Há de se reconhecer atualmente que os resultados foram decepcionantes. Ninguém precisa de uma versão hypster do PSOE ou de uma esquerda que finge fazer consultas populares para depois esquecê-las.

Isto não significa dizer que não há lutas, que as lutas atuais não são decisivas e importantes. Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo. Um milhão de pessoas na rua transforma-se em uma resistência pontual. Seria o caso de se perguntar a razão para tanto.

Isso nada tem a ver com alguma contraposição entre luta de classe e lutas por reconhecimento (que alguns infelizmente insistem em chamar de “lutas identitárias”). É verdade que há os que, de forma equivocada, insistem na pretensa morte da “velha” esquerda ligada à centralidade do trabalho e da luta global contra o capitalismo. Mas temo que, em um momento histórico no qual assistimos a intensificação dos regimes de trabalho e o achatamento geral dos salários, falar que o trabalho perdeu sua centralidade e relevância só pode ser fruto de um delírio acadêmico que alguns compram como a última moda.

Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministasindigenistasanti-racistas são um desdobramento necessário e decisivo da luta de classe. Elas são figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa, por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é, imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na flexibilização dos direitos trabalhistas são derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de forma violenta o significado de tal “flexibilização”. O que o Chile nos mostrou é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói.

Ou seja, o fato de que a multiplicidade das lutas no Brasil não consigam convergir em um campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de reconhecimento de forma compensatória. Como ela não tem nenhum horizonte concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que “não são como nós”, a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas lutas.

Isso não significa estar fixado em um paradigma de ação revolucionária que seria, ao mesmo tempo, inefetivo e perigoso. De toda forma, é realmente engraçado como vivemos em uma era de sinais trocados. A extrema-direita no mundo inteiro não teme em dizer que estão a lutar por uma “revolução” que possa dar ao povo a voz que eles nunca tiveram. E, com esta revolução conservadora, eles ganham eleições que constroem adesão popular real. Só certos setores hegemônicos da esquerda acredita que isto é uma conversa de centro acadêmico ou que a verdadeira revolução é esta de novas subjetividades que estaria pretensamente a ocorrer enquanto a espoliação é cada vez mais brutal e o horizonte anti-capitalista encontra-se, em larga medida, recalcado e vergonhosamente intocado.

Por fim, seria o caso de levar em conta as acusações de que intervenções públicas desta natureza são contra producentes porque não indicam caminhos concretos a serem seguidos, por se contentarem com chamados abstratos a “rupturas”. É difícil ouvir tais colocações sem lembrar de dois fenômenos. Primeiro, essa luta contra as “ideias abstratas” era, na verdade, um tema conservador. Lembrem, por exemplo, de Edmund Burke a discursar contra as “ideias abstratas” de igualdade vindas da cabeça de filósofos ociosos que acabaram por criar caos revolucionário no mundo do final do século XVIII e começo do XIX. Ou seja, a história demonstra, e isto os conservadores sabem muito bem, que “abstrações” tem muito mais força do que alguns estão dispostos a acreditar. Seria melhor que os setores progressistas da sociedade brasileira parassem de mimetizar o anti-intelectualismo dos conservadores.

Segundo, peço licença para lembrar do que aconteceu um dia com Sigmund Freud. Diante de uma paciente histérica, que passou a história com o nome de Dora, Freud não teve ideia melhor do que dizer a ela o que ela realmente desejava, esperando que isso a levasse a suspender sua forma de destruir seu próprio desejo. O resultado não poderia ser outro que um fracasso. Dora não precisava de alguém para dizer o que fazer ou para enunciar seu próprio desejo. Ela precisava de alguém que pudesse ajudá-la a produzir um processo que lhe permitisse alcançar por si mesma a enunciação de seu desejo. Ao falar em seu nome, Freud destruiu toda possibilidade de experiência para Dora. Lembro disso apenas para insistir que não há sentido algum em enunciar “propostas” em artigos de jornal. Não é de propostas que necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de governo. É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas transversalidades.

A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo “fascismo” não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em curso que paulatinamente ganha forma. Um processo dessa natureza só pode ser parado de duas formas: através de uma catástrofe (como uma guerra) ou através da consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa contrapor à revolução conservadora uma revolução real. Mas, para tanto, essa força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela sociedade brasileira como sujeitos. Mas ela precisa também destruir o modelo econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes vistos na história deste país. Os mesmos grupos, bancos e empresas que atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência e a destruição próprias a esse Governo são aquelas que há quarenta anos atrás forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. Ou seja, não é exato dizer que eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela, a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus operadores.

Mas essa força que usa a organização compacta e a imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP


Vladimir Safatle: Como a esquerda brasileira morreu

É um sintoma de que o grupo não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político e só conhece um horizonte de atuação, o “populismo”

Este é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.

Signos não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.

Isso é apenas um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.

Talvez seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.

Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.

No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.

Este é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.

A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.

Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.

Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.

Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.

Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.

O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).

Numa situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.