Vinicius Mota

Vinicius Mota: O povo contra o populismo

Aqui e nos EUA, ruas pedem respeito, democracia e responsabilização de poderosos

A batata do presidente Jair Bolsonaro vai assando lentamente. Neste fim de semana, com menos de 18 meses no cargo, conseguiu a proeza de reunir contra si um movimento de rua que tem tudo para engrossar nos próximos meses. De quebra, jogou mais lenha na fogueira dos crimes de responsabilidade ao interferir, com a sutileza de um Borat, nas estatísticas da pandemia.

Não é para qualquer um. Quando chega uma ameaça ao conjunto da sociedade, sob a forma de guerra ou de infecção mortal, o normal é a maioria da população sublimar divisões internas e cerrar fileiras com seu governante. Basta ter fosfato em volumes mínimos circulando no sangue para o mandatário surfar essa onda.

Na falta do mineral, outra opção seria o clássico “siga o líder”. Durante a crise, Donald Trump tem mesclado a sua volúpia bravateira com acenos ao consenso médico. Não pensou duas vezes na hora de propagandear que a política adotada nos EUA para combater o coronavírus se diferencia da catástrofe brasileira.

Mas Trump tampouco tem se salvado da deterioração da imagem. A coisa já vinha ruim para o republicano antes de policiais sádicos asfixiarem George Floyd em Mineápolis. Agora, com manifestações diárias por todo o país, piorou um pouco.

A novidade é que, em várias cidades do mundo, o povo começou a sair às ruas para criticar governantes populistas. Não pede pão, mas respeito, democracia, igualdade diante da lei e equalização de oportunidades. Essa agenda embanana a cabeça binária de trogloditas aqui e alhures.

Ela fala ao coração dos princípios de governança e inclusão que o Ocidente promoveu a duras penas ao longo dos últimos séculos. Denuncia em seus adversários a adesão à violência, ao elitismo e à anulação de tudo o que lhes pareça estranho.

No Brasil e nos Estados Unidos, as ruas gritam pelas regras do jogo democrático, pela valorização da vida e pela responsabilização dos poderosos. Má notícia para as falanges de Jair Bolsonaro e Donald Trump: o segundo semestre não lhes será leve.


Vinicius Mota: Maré fascista faz 100 anos

No romance 'M', Mussolini conta como ergueu sua catedral de violênciaNa Itália após a Primeira Guerra, a vitória sobre o império austríaco pesa como um fardo. Veteranos do conflito das trincheiras vagam pelo país sem perspectiva de coisa nenhuma.

Entre eles estão os “arditi”, jovens que nas batalhas se especializaram em penetrar as linhas do inimigo e assassinar sentinelas a golpes de punhal, a arma que, entre os dentes de um crânio, estampa as suas camisas escuras.

Gabriele D’Annunzio, gigante da poesia italiana, aviador e herói de guerra, arrebata os desnorteados. Em 1919 comanda uma ação tresloucada e toma o território do Fiume, hoje na Croácia.

Em Milão, em março daquele ano, o militante enxotado do Partido Socialista Benito Mussolini agrega renegados nos Fasci di Combattimento, cuja estreia nas urnas é um fiasco.

Na alcova, a magnata Margherita Sarfatti ensina bons modos e o gosto pelas artes ao amante Benito. Apresenta-o a D’Annunzio, que insiste para que os fascistas apoiem a resistência utópica do Fiume e ainda mais: uma marcha sobre Roma.

Depois das greves de 1920, empresários financiam e a política coonesta as expedições punitivas de fascistas contra socialistas. A pequena-burguesia engrossa os fasci, e a maré muda.

A governança da Itália apodrece, e em dois anos Mussolini dá o blefe com a ideia roubada a D’Annunzio. Uma multidão de maltrapilhos mal armados se desloca rumo à capital em meio a tempestades. O rei se recusa a decretar o estado de sítio que poderia esmagar em poucas horas aquela boçalidade.

Em “M” (ed. Intrínseca), o soberbo romance de Antonio Scurati agora traduzido no Brasil, Mussolini e seu círculo de escroques contam como transformaram a violência numa catedral.

M, O FILHO DO SÉCULO

  • Preço R$ 79,90 (816 págs.)
  • Autor Antonio Scurati
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Marcello Lino

*Vinicius Mota é Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.


Vinicius Mota: O que é pior? fake news ou seus caçadores?

A pretexto de combatê-las, autoridades promovem censura, abuso e mais fake News

O que é pior? A difusão das chamadas fake news ou as tentativas das autoridades de combatê-la?

Na terça-feira (11), tivemos mais um exemplo que reforça a segunda hipótese. Uma comissão de deputados e senadores instalada para investigar fraudes informativas nas eleições tornou-se, ela própria, cenário de uma farsa, que deflagrou uma torrente de ofensas à honra da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha.

Também com o fito republicano de detectar quem disseminava conteúdo difamatório e ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal, a corte inventou um inquérito esquisito, contornando o Ministério Público, no qual a vítima apura, manda a polícia agir e julga. Censurou a revista Crusoé nessa toada.

Nas eleições de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral, autoproclamado caçador de fake news, mandou suspender, como se fossem mentirosas, mensagens partidárias publicadas numa rede social que se baseavam em notícias verídicas veiculadas pela imprensa profissional.

Inspirado em valores não menos elevados, em 2019 o Congresso Nacional tornou crime, punível com até 8 anos de cana, divulgar, “ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, (...) ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído”. O TSE de 2018, se já existisse a norma, poderia condenar à prisão quem publicou a notícia que considerou mentirosa, mas que era fidedigna.

Deus nos livre de autoridades bem-intencionadas à caça de fake news.

Que tal a alternativa de voltar ao básico? Não é preciso fabricar leis, CPIs ou inquéritos de exceção para apurar o que há de difamatório, injurioso, ameaçador ou calunioso numa manifestação. Vale o mesmo para as indenizações por dano moral, com função não só de recompensar o agredido mas também de desestimular novas agressões e agressores.

O Supremo fará melhor substituindo as invencionices penais pela discussão da imunidade parlamentar: ela abona o achincalhe de cidadãos comuns? Está aí o caso de Eduardo Bolsonaro para servir de precedente.

*Vinicius Mota, Secretário de Redação da Folha


Vinicius Mota: Pela segunda vez em uma geração, Brasil tenta sair do buraco econômico

SÃO PAULO – Esta semana pode marcar a abertura de um longo período de alterações constitucionais no domínio econômico. O congelamento do gasto global do setor público, se for cimentado sobretudo pela reforma previdenciária, alterará em alguns graus o curso do transatlântico.

No correr dos anos, lentamente, ele vai se desviar da rota de choque com os rochedos da falência civil, que no modo brasileiro costuma significar inflação e desigualdade ascendentes, desorganização produtiva e estagnação econômica.

A ocasião se assemelha à do início dos anos 1990. Como acontece hoje, o país vinha de uma trombada recessiva e de uma crise política que decapitara o presidente da República. Como agora, deparava-se com amarras constitucionais a bloquear o avanço da produtividade.

Seja porque a visão da forca ajuda a concentrar o pensamento, seja por outra razão, a resposta do sistema político submetido ao estresse foi notável. De 1995 a 2006, maiorias de no mínimo 3/5 do Congresso aprovaram cerca de 30 mudanças na Carta com impacto na economia.

Outra batelada de consertos infraconstitucionais foi implementada ao longo daquele período. Tanto ativismo normativo favoreceu a abertura à competição econômica, o fortalecimento do direito de propriedade, o florescimento do crédito e a percolação da eficiência produtiva por diversos setores antes fossilizados.

Deixou-se sem remédio eficaz, contudo, a insustentável marcha da despesa pública. Mais tarde, a volta do velho desenvolvimentismo com seu consórcio de parasitas do Estado colocou obrigações pesadíssimas sobre os ombros de algumas gerações de contribuintes brasileiros.

O Brasil quebrou, mas o passado e eventos recentes indicam que talvez tenha preservado a capacidade de reformar-se na crise para melhorar a perspectiva do futuro. É o que veremos a partir de agora. (Folha de S. Paulo – 10/10/2016)


Fonte: pps.org.br


Vinicius Mota: Dilma insufla o ódio nas ruas e vai morar em Ipanema

De cada 100 policiais militares brasileiros, 49 declaram-se pretos ou pardos. Um soldado paulista ganha menos de cinco mínimos mensais. Já protestos de esquerda têm menos pretos e pardos. A renda do militante supera a de uma família chefiada por um soldado PM e, por muito, a de um lar brasileiro típico.

A elite vermelha pretende falar em nome da maioria da população, mas está distante dela. Policiais, desafiados nas ruas a cada manifestação, estão mais próximos da rotina das classes trabalhadoras.

Ninguém se iluda com críticas furiosas da esquerda ao menor sinal de excesso na repressão. A preocupação com a integridade das pessoas —somente das que se chocam com a polícia, nunca das que são vítimas da brutalidade militante— é mero pretexto de uma disputa de poder.

O PT, em autocrítica sincera, arrependeu-se de não ter infiltrado sua ideologia nas Forças Armadas. Lamentou-se por não ter favorecido a ascensão de oficiais alinhados ao partido. A diretriz para as PMs estaduais há de ser a mesma.

Nesse delírio autoritário, elas serão tratadas como inimigas apenas até o momento em que o partido arrebatar-lhes o comando. Depois disso, poderão produzir feridos e cadáveres sem ser incomodadas pelos intelectuais a serviço do futuro.

A esquerda brasileira, da velha e da nova geração, não sepultou a violência política. Nas derivações subletradas do marxismo de hoje, o culto da revolução —o banho de sangue que abriria caminho para o mundo pacificado— deu lugar ao prazer estético da depredação e do confronto provocado com a polícia.

O comitê central circula os alvos: empresários, imprensa, parlamentares, procuradores e juízes são atingidos dia e noite pela acusação de “golpistas”. As tropas de assalto nas ruas entendem o recado e partem para a ação. Dilma Rousseff pronuncia a fatwa e vai morar em Ipanema. (Folha de S. Paulo – 05/09/2016)


Vinicius Mota é secretário de Redação da Folha. Foi editor de Opinião (coordenador dos editoriais) e do caderno ‘Mundo’. Escreve às segundas-feiras.

Fonte: pps.org.br