vacinação

Eugênio Bucci: Seu desaforista!

O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.

Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,

As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.

Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?

O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.

Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.

Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.

É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.

Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Mariliz Pereira Jorge: 'Para que essa ansiedade?', pergunta Pazuello, o tranquilão

Ministro da Saúde questionou angústia pela chegada da vacina contra Covid-19

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não entende xongas de saúde, não deve fazer ideia de que quatro em cada dez brasileiros tem experimentado algum nível de ansiedade por causa da pandemia. Entre 16 países, somos o que mais sofre, segundo pesquisa da Ipsos.

Talvez esses dados iluminem o titular da pasta que, ao ser questionado sobre detalhes do “plano de imunização” do governo, minimizou a complexidade de proteger 200 milhões de pessoas. “Para que essa ansiedade, essa angústia?” Segundo Pazuello, temos o maior programa de imunização do mundo e somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Ok, conte agora uma novidade. Que dia começa a vacinação?

Ele diz que pode começar em dezembro. Muda para janeiro. Março. A última notícia é de que será em fevereiro. Depois da divulgação do “plano” ficou claro que o único projeto que o governo tem é de extermínio. Não tem plano. O brasileiro que não entrou em negação, se não morrer de Covid, sucumbe ao pânico. Mas o ministro tranquilão não entende por que estamos ansiosos.

Temos mais de 180 mil mortes pela Covid-19. O Brasil está perto de voltar a enterrar mil pessoas todos os dias. Os hospitais estão lotados. Os casos estão explodindo em cidades sem UTI. Para que angústia?

E ainda tem Jair Bolsonaro. Ele tem dado declarações com sinal trocado. No lançamento do “plano” falou sobre a importância de “união para buscar a solução de algo que nos aflige há meses”, um dia depois de ter conspirado sobre a segurança da vacina e de ter dito que não vai tomá-la. O resultado é o aumento da desconfiança na população. Mas pra que ficar ansioso?

Milhares de pessoas passarão as festas de dezembro, assim como já ficaram o ano todo, longe dos seus. Perdemos familiares, amigos, emprego, esperança, mas Pazuello não sabe por que estamos ansiosos por uma bendita vacina.


Ricardo Noblat: Doria derrota Bolsonaro, e o Brasil só tem a ganhar com isso

Presidente rende-se à vacina chinesa e à pressa do governador

Quando se vê em apuros depois de esticar a corda e ela dá sinais de que se romperá do seu lado, o presidente Jair Bolsonaro costuma recuar e falar manso. Foi o que fez mais uma vez – desta, no anúncio do que chamou de “plano de vacinação contra a Covid-19”, ao pregar “a união” para combater “algo que nos aflige há meses”.

O “algo”, tratado por ele como “gripezinha” incapaz de matar 8 mil pessoas, matou até ontem quase 184 mil e infectou mais de 7 milhões. A média móvel de casos chegou a 44.654. O país não atingia esse nível de contaminação desde 4 de agosto. Já a média móvel de mortes foi de 684, a maior desde 2 de outubro.

O recuo de Bolsonaro deve-se à iminente aprovação da vacina CoronaVac pela agência de vigilância sanitária da China, uma das quatro referências globais para a avaliação de novos medicamentos. Pela lei brasileira, tão logo isso aconteça, o uso da CoronaVac em território nacional torna-se imediatamente possível.

Daí porque o Ministério da Saúde anunciou que a CoronaVac será uma das vacinas a ser compradas, no caso ao Instituto Butantã, de São Paulo, encarregado de produzi-la. Vitória do governador João Doria (PSDB) que saiu na frente. Doria poderá se dar ao luxo de deixar por conta do ministério a aplicação da vacina.

Eduardo Pazuello, doublé de general especialista em logística e ministro da Saúde, disse não ver motivo para tanta “angústia” e “ansiedade”. Bolsonaro, que havia falado que o Brasil vive “o finalzinho da pandemia”, completou que o país vive agora uma “situação de quase normalidade”. Negacionismo na veia!

Não haverá normalidade até que todos ou quase todos os brasileiros sejam vacinados. Isso se dará só ali pelo final do próximo ano ou início de 2022 por culpa de um governo que não levou a pandemia a sério, não preparou-se para enfrentá-la e até aqui sequer dispõe de seringas e agulhas para aplicar as vacinas.

Edital do Ministério da Saúde publicado ontem prevê a aquisição de 300 milhões de kits de seringas e agulhas. A entrega será permitida até 31 de dezembro de 2021. O ministério ignora há 6 meses um pedido do Ministério da Economia para que diga se tem interesse ou não na importação de seringas da China.

“Com o desastre que é o ministro da Saúde, os militares vão perder o que ganharam de imagem nos últimos anos após a redemocratização”, afirmou Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. “Pazuello é um ótimo general para fazer a logística do Exército, mas, para fazer a logística da Saúde, é um desastre”.

Desastre maior é quem o escolheu para a tarefa.


Ascânio Seleme: Brava gente

São 46 milhões, ou 22% das almas nacionais, que não pretendem se vacinar. É assustador

Somam-se aos milhões os brasileiros que não se vacinarão contra a Covid-19. Segundo o Datafolha, são 46 milhões, ou 22% das almas nacionais, que não pretendem se vacinar. O número é assustador, sem qualquer dúvida. Mas talvez mais aterrorizante ainda, seja a constatação de como esse contingente se formou. Como essas pessoas chegaram à conclusão de que é melhor ficar exposto ao risco de se contaminar com um dos vírus mais violentos e letais que já passaram pelo planeta do que contra ele se imunizar. A primeira resposta é o comportamento do governo e do presidente Bolsonaro, sobretudo. Mas é mais, muito mais do que isso.

Bolsonaro não vai se vacinar e não recomenda vacina alguma. Ao contrário, sugere que elas podem fazer mal. O ministro general Pazuello, todos sabem, adorou o brilho do cargo, mas deslustrou sua farda ao ficar paralisado diante do caos. Claro que essas sinalizações afetam muitas pessoas, mas são as mais débeis que trocam a segurança pelo risco, apenas porque o líder assim orientou. Essas pessoas normalmente não leem, leem pouco ou se deixam mal informar. Buscam esclarecimentos em fontes erradas e acreditam em impressões alheias, desprovidas de embasamento.

O mar de pessoas presente na Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) ouvindo Bolsonaro na terça-feira, fora os puxa-sacos de sempre, era formado por esse tipo de gente. Que desdenha o vírus e debocha dos que tentam se proteger (os “maricas”, nos termos do presidente), que grita “vivas” toda vez que ouve uma barbaridade pulando da boca de sua excelência, que não usa máscaras e nem respeita o distanciamento social. Foto de Alan Santos, fotógrafo oficial da Presidência da República, publicada ontem pelo GLOBO, explica melhor do que estamos tratando.

Os negacionistas brasileiros foram contaminados pela ignorância porque se recusaram a entender, a aprender. Não quiseram saber. Estavam e continuam disponíveis toneladas de informações científicas e técnicas, que provam que as regras de prevenção evitam o contágio e que a vacinação garante a imunidade. A maioria simplesmente as ignorou, alguns preferiram buscar argumentos fraudulentos, mentirosos, incorretos para justificar sua alienação. Os primeiros são ignorantes genuínos, os demais são ignorantes ideológicos. Estes são os piores.

A turma genuína é composta por aspirantes a Eremildo, estão por todos os lugares e são facilmente identificáveis, são idiotas. Os ideológicos também estão espalhados por aí, mas são mais sofisticados. Usam as redes sociais, onde “compram” teorias conspiratórias, são traficantes de fake news, espalham ataques sempre infundados e injustificáveis contra máscaras, distanciamento e, agora, vacinas.

No reino da lorota em que se transformou a pátria armada, é fácil encontrar ouvidos que escutam e aceitam tudo. Por isso, muitos brasileiros dizem que não vão tomar a vacina por medo dos efeitos colaterais que ela pode produzir. Trata-se de uma barbaridade, concordam? Primeiro, porque nenhuma das vacinas testadas causa efeitos adversos. Segundo, porque a alternativa a um eventual desconforto é a contaminação com a Covid-19, talvez a morte. Seria como um paciente com câncer se recusar a fazer quimioterapia porque não quer ficar enjoado.

Enquanto isso

1 — As duas fileiras de autoridades presentes na cerimônia de divulgação do plano (?) de imunização no Planalto mostram em que terreno estamos pisando. O presidente e seus ministros generais não usavam máscara. Quase todos os demais estavam protegidos, inclusive os governadores convidados para o ato. Não era descuido. O que eles indicavam com o gesto era um método, uma orientação, um caminho. Se fossem palavras, seriam alinhadas assim: “Façam como nós, não usem máscara”.

2 — O ministro Pazuello disse, e a plateia aplaudiu, que a Anvisa vai usar todo o mês de janeiro para analisar as vacinas e que, “de meados de fevereiro em diante”, os brasileiros começarão a ser vacinados. Na terça, 964 brasileiros morreram pela doença. Até 15 de fevereiro serão mais 58.804 mortos. E o general não tem pressa.


Merval Pereira: A lição do Zé Gotinha

A tese de que a vacinação contra a COVID-19 é uma obrigação do Estado, e uma exigência da cidadania para a proteção coletiva deve prevalecer no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que começou ontem, com o voto do ministro Ricardo Lewandowski.

“Portanto, aqui é importante estabelecer desde logo, não é uma opção do governo vacinar ou não. É uma obrigação do governo. Não é uma faculdade”, disse Lewandowski. O ministro ressaltou que “a obrigatoriedade da vacinação não contempla a imunização forçada, porquanto é levada a efeito por meio de sanções indiretas”.

A lógica por trás do voto é impor restrições a quem se recusar a vacinar. Também o Procurador-Geral da República deu parecer nesse sentido, lembrando que “o indivíduo que se recusar sofre no plano de restrição de direitos, como por exemplo o de ingressar em certos públicos, ou mesmo de receber benefícios”.

Ele se referia ao pagamento dos benefícios sociais, que exige carteira de vacinação em dia, assim como matricula em escolas, e inscrição em concursos públicos, entre outros. O ministro Lewandowski também acatou o pedido do PDT para que Estados e Municípios possam ter autonomia para definir restrições e a própria vacinação.

O partido lembrou que vários Estados e Municípios já estão fazendo acordos próprios para comprar vacinas, tanto aqui, no Instituto Butantan, quanto diretamente do exterior, como o acordo feito com a Pfizer, antes mesmo que o governo o fizesse.

Foi o ministro Lewandowski quem exigiu que o governo apresentasse um plano nacional de vacinação, o que foi feito ontem no Palácio do Planalto. Embora não exista ainda a data marcada para o inicio da vacinação, o governo já assumiu que é seu dever.

Na solenidade, uma situação inusitada ocorreu. Ninguém estava de máscara, só o Zé Gotinha, símbolo das campanhas de vacinação nacionais. Que deu uma lição a Bolsonaro, recusando um cumprimento do presidente para evitar o contágio. Tem que ver agora se o ator que fez o papel permanecerá no posto.

“É nesse contexto, amplificado pela magnitude da pandemia, que se exige mais do que nunca uma atuação fortemente proativa dos agentes públicos de todos os níveis governamentais, sobretudo mediante a implementação de programas universais de vacinação”, ressaltou Lewandowski.

Ainda os militares

O caso do decreto do presidente Bolsonaro, cancelando promoções por antiguidade ao último posto da carreira, que foi revogado por ele mesmo por pressão de oficiais que se opõem à política que o ministério da Defesa, refletindo a posição dos comandantes das Forças Armadas, quer adotar, de manter apenas o critério de merecimento, mostra bem como Bolsonaro trata as questões militares do ponto de vista corporativo, e não institucional.
Existem três critérios para as promoções nas carreiras militares:

1) Antiguidade para os postos inferiores, até Capitão;
2) Antiguidade e merecimento (pontuação) desde Capitão até Mar-e-Guerra, Coronel “full”. Há uma proporção nas promoções: para cada 4 promovidos, um irá por tempo, e três por “merecimento”.
O merecimento traduz pontuação atribuída por militares mais antigos e por comandantes. Há uma “matriz” bem definida e, normalmente, traduz mais pontos para os melhores, resultando até em “demérito” a promoção por antiguidade. É fiel ao desempenho, ao mérito.

Finalmente, a promoção a Oficial General ocorre apenas e tão somente por escolha. Não vale antiguidade ou “merecimento”, é “escolha” produzida pelo Almirantado, na Marinha, ou Alto comando, no Exército ou na FAB. É processo interno que não está livre de influências “externas”, mas sempre há o empenho para que não prevaleçam escolhas políticas. É gerada lista tríplice e apresentada pelo Ministro da Defesa ao presidente da República.


Beatriz Jucá: A “angústia” quase ofensiva de Pazuello

Ministro chama de “ansiedade” e “angústia” a cobrança por um plano de vacinação em um país que conta mais de 183.000 mortes, após semanas marcadas por falta de transparência e guerra ideológica

Depois de meses vendo o Governo Bolsonaro mergulhar no negacionismo e abrir mão de um valioso arsenal do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia, o Brasil enfim viu uma luz no fim do túnel nesta quarta-feira. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ampliou o leque de vacinas consideradas no plano nacional e incluiu até a do laboratório chinês Sinovac ―já rejeitado verbalmente pelo presidente Bolsonaro, mas cuja aquisição vinha sendo requisitada por pesquisadores, governadores e prefeitos diante de uma sinalização de resultados promissores. Uma coordenação nacional da vacinação era pleiteada por todos eles. Foram semanas de cobranças sem respostas efetivas, reuniões a portas fechadas, colaboradores técnicos com microfones silenciados e informações difusas disparadas para a população a conta gotas pelo Governo. Ainda assim, um Brasil atormentado por mais de 183.000 mortes causadas pela covid-19 ouviu do ministro: “Para quê esta ansiedade, esta angústia?”.

A declaração foi feita pelo ministro durante a apresentação oficial do plano de operacionalização da vacinação contra a covid-19 no país. Um documento “prévio” de 94 páginas já havia sido enviado a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e aberto uma crise com pesquisadores do próprio corpo técnico do Ministério ―listados entre os elaboradores, mas que só viram o documento publicado na imprensa. Nenhuma menção oficial direta à intenção de adquirir a Coronavac aparecia nos documentos ou coletivas de imprensa, apesar da pressão intensa de governadores e da velocidade que a pandemia voltava a ganhar no país, com os sistemas de saúde de vários Estados funcionando no limite da sua capacidade.

O STF precisou entrar no jogo e obrigar o Governo a apresentar um plano com todas as vacinas e, depois, um prazo para iniciar a vacinação. Só então Pazuello indicou que demoraria cinco dias para fazer as vacinas chegarem aos Estados, a serem contados após registro da Anvisa e entrega aos estoques do Ministério. Enquanto isso, seu chefe Jair Bolsonaro que já havia dito que não compraria a “vacina chinesa do Doria”― ia à televisão afirmar que não tomaria a vacina do coronavírus e que pretendia exigir um termo de responsabilidade aos que fossem ser vacinados. Bolsonaro, que jogou mais desconfiança sobre as vacinas, mudou o tom nesta quarta e pediu união. “Se algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução”, disse. Pazuello também resolveu tentar aplacar a guerra ideológica abraçada pelo Governo do qual participa. “Qualquer fumaça ou discussão anterior ficou para trás. Todos os brasileiros receberão a vacina de forma grátis e igualitária”, afirmou.

Os sinais de que o Governo coordenará a estratégia de vacinação é um alívio para a sociedade brasileira ―que corria o risco de assistir a uma desastrosa disputa entre Estados e uma estratégia desarticulada. O próprio ministro Pazuello agora prega a união entre os três entes federativos, depois de meses com a pasta que conduz seguindo uma agenda ideológica bolsonarista ―da posição contrária às políticas de restrição de circulação implementadas pelos Estados à aposta na cloroquina (ou, como costumam dizer nas coletivas, “o tratamento precoce” que a ciência não reconhece) como ação de combate à pandemia. Diante da apatia da União, foram intensas as movimentações de governadores e prefeitos nos últimos dias em busca de um plano B para antecipar a campanha de vacinação. Pazuello parece ignorar todo este contexto ao dizer, só agora: “Não podemos abrir mão de nos tratar como um país”.

O ministro ―que já projetou várias datas para iniciar a vacinação e, nesta quarta, estimou meados de fevereiro para jornalistas e 21 de janeiro a governadores― ainda critica uma suposta onda de “desinformação” sobre a capacidade do SUS de realizar uma ampla campanha. O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde do mundo e um reconhecido Programa Nacional de Imunização (PNI). Tem dois potentes institutos capazes de produzir imunizantes: a Fiocruz e o Butantan ―com acordos, respectivamente, para produzir a Astrazeneca e a Sinovac. Cientes desta expertise, pesquisadores levaram as mãos à cabeça diante de uma aparente inércia e da falta de transparência do Governo nas últimas semanas. Vários deles alegam que o Brasil saiu atrasado na corrida por um imunizante e agora precisa correr atrás do prejuízo para garantir a entrega breve de vacinas e até a compra de seringas e agulhas. O Brasil planeja uma campanha de 16 meses, e os cronogramas para a chegada de cada vacina ainda são vagos.

“Vamos levantar a cabeça. Acreditem: o povo brasileiro tem capacidade de ter o maior Sistema de Saúde Único do mundo, de ter o melhor plano de vacinação”, animou Pazuello. O ministro pede a confiança de milhares de brasileiros que já viram as armas do SUS serem desperdiçadas neste ano. Um exército de agentes de saúde, presente em praticamente todos os municípios, não foi aproveitado em uma estratégia coordenada de rastreio de casos para frear contágios. O Brasil tampouco conseguiu implementar políticas eficazes no controle da pandemia, mas tem sim um SUS forte e um PNI robusto. Os anúncios desta quarta-feira foram celebrados por pesquisadores, enfim ouvidos pelo ministério. Os próximos passos dependem do registro dos imunizantes na Anvisa e da capacidade do Governo de formalizar as compras e garantir entregas num contexto de escassez global e de produção ainda pequena no país, no momento iniciada apenas pelo Butantan. A Fiocruz deve começar a produção em janeiro. “Precisamos produzir mais e ter a capacidade de controlar a ansiedade e a angústia”, insiste o ministro. O Governo precisa dar respostas a um país que segue amplamente vulnerável à pandemia há quase dez meses e que vê seus profissionais da linha de frente exaustos na iminência de uma nova grande onda de contágios.


Vera Magalhães: Boçalidade contagiosa

Mais que o vírus, é o comportamento indigno do presidente que se alastra

As pesquisas divulgadas no fim de semana pelo Datafolha pintam um cenário tão desanimador quanto a nossa absoluta ausência de estratégia para uma campanha de vacinação eficaz contra o novo coronavírus: elas mostram que boa parte da sociedade brasileira foi inoculada pela boçalidade de Jair Bolsonaro, e que ela se alastra por terrenos perigosos e dá a esse presidente, o pior da República, uma resiliência inacreditável num cenário de mortes e crise econômica.

O presidente, com seu comportamento indigno da cadeira que ocupa, voltou a dizer nesta terça-feira que não se vacinará contra o novo coronavírus.

Como tantas vezes tem feito nos últimos dois anos, novamente se comportou como um inconsequente, ao promover aglomerações na Ceagesp e instar uma criança a tirar a máscara para ser compreendida, e mostrou o ridículo de que é feito ao se enfurnar no meio da bandinha da Polícia Militar do Estado de São Paulo, numa pose ridícula de prefeito de Sucupira.

Esse tipo de postura se impregnou em setores da sociedade de forma mais deletéria do que poderíamos imaginar antes da pandemia. No Brasil, movimentos antivacina nunca tiveram grande aderência, mas com Bolsonaro até isso vai sendo corroído.

A pesquisa Datafolha mostra que são 22% os que dizem que não pretendem se vacinar. Eram 9% em agosto! Entre os que dizem confiar em Bolsonaro, esse índice vai a 33%. E os que dizem que não aceitariam se vacinar com imunizante chinês são 47%.

É impressionante a adesão de uma parcela imensa dos brasileiros à desinformação absoluta em relação às vacinas, praticada de forma deliberada e estudada pelo presidente e por seus asseclas.

Isso no momento em que o País já vive uma segunda onda de contágio pelo SarsCov2e não tem perspectiva de receber vacinas que não sejam a Coronavac, produzida pelo Butantã, pelo fato de Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o inepto general Eduardo Pazuello, não terem feito seu trabalho.

Combinado com os outros dados da pesquisa, que mostram aprovação de 37% dos brasileiros a Bolsonaro e que 44% livram o presidente de culpa pela má condução do combate à pandemia, temos um cenário desolador em que vamos ficar no fim da fila da vacina sem que a população exija de forma altiva o seu direito a ser vacinada para que o País comece a superar a maior epidemia que o atingiu desde 1918!

Trata-se de uma corrosão muito rápida e profunda dos valores que guiam a vida em sociedade — entre os quais a constatação, que deveria ser óbvia, de que a vacinação é um direito, sim, mas também um dever de um indivíduo em relação à coletividade e à saúde pública.

A completa falta de preocupação de Bolsonaro com as mais de 181 mil mortes de brasileirose sua incapacidade de recomendar àqueles que governa qualquer conduta que não seja individualista, egoísta e baseada numa visão estreita e mesquinha de mundo vão moldando o pensamento de uma parcela do povo brasileiro à imagem e semelhança do capitão. E sua imagem é a de alguém que banaliza a vida.

Diante de tal estado de apatia combinada com cinismo cabe como último recurso contar com o funcionamento ainda que precário das instituições. Hoje o Supremo Tribunal Federal terá a chance de colocar nos trilhos o Plano Nacional de Imunizaçãoindigente divulgado pelo general Pazuello, e estabelecer regras para que sim, a vacinação (quando houver vacina) seja obrigatória para matrícula e frequência em escolas, viagens de avião, inscrição em concursos, frequência em academias de ginástica etc.

Porque só esperar o bom senso dos brasileiros, como mostram as pesquisas e as cenas de aglomeração em várias cidades e as promovidas pelo presidente, não será suficiente.


Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?

Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019

O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.

O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.

Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.

Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.

O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.

Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.

Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.

O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.

O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.

Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.


Ruy Castro: Pazuello já merece uma biografia

Da gerência das cuecas do quartel à morte de, em breve, 200 mil brasileiros

Aos 57 anos, o general Eduardo Pazuello, militar de carreira e ministro da Saúde do governo Bolsonaro por carreirismo, nunca imaginou que, um dia, fosse merecer uma biografia. Oficiais da Intendência do Exército, como ele, não têm muitas ocasiões para usar a espada exceto no dia 7 de setembro. Sua função é prover o suprimento do quartel —aviar a merenda da tropa, supervisionar a lavagem das fardas, manter os mictórios em condições e cuidar da manutenção dos pára-quedas. E também vigiar os transportes de munição, cuidando para que não haja desvio de cartuchos pelo caminho.

Até há pouco, o único episódio na trajetória de Pazuello que poderia justificar uma referência foi quando, em 2005, ao dirigir o Depósito Central de Munição, em Brasília, puniu um soldado sob seu comando, obrigando-o a puxar uma carroça, atrelado a ela por arreios, como uma mula, e transportando um colega na presença dos companheiros. Pazuello era tenente-coronel, mas isso não turvou sua escalada ao generalato.

Ao ser convocado por Jair Bolsonaro para substituir um médico na direção do Ministério da Saúde no meio de uma pandemia, Pazuello tinha duas opções: recusar o convite, alegando incompetência para o cargo e certeza de comprometer a saúde nacional, ou aceitá-lo e ter de mentir, omitir-se e errar perversamente no combate ao vírus. Escolheu a segunda. Ou delirou, achando que daria conta da tarefa, ou dispôs-se a babar e se humilhar para servir ao capitão. Pelo que se vê, vale também a segunda hipótese.

Pazuello na saúde é mais absurdo do que um médico comandando a lavagem das cuecas do quartel. É mais letal. Recebeu o cargo com 15 mil mortos pela Covid e logo nos entregará 200 mil. É injusto chamá-lo de palerma, como fazem. Mais exato será cobrar sua cumplicidade no extermínio promovido por seu chefe.

Pazuello já merece uma biografia. A ser lida sob revolta e náuseas.


Hélio Schwartsman: Como deve ser a fila da vacina?

Pode-se priorizar os mais vulneráveis ou buscar o máximo de proteção coletiva

A epidemiologia é uma ciência firmemente calcada na matemática, mas que não trabalha bem com a conceituação binária certo e errado. A razão do paradoxo é que é grande a interface entre epidemiologia e ética, e esta, apesar dos esforços de certas correntes filosóficas, resiste à matematização.

O problema fica escancarado agora, quando países definem os grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19. Existem duas lógicas a orientar as decisões. Pode-se tanto dar primazia aos mais vulneráveis como procurar extrair o máximo de proteção coletiva de cada dose aplicada. Nada impede a criação de um sistema híbrido, que combine as duas.

Pelo primeiro critério, ganham dianteira na fila idosos, portadores de doenças que agravam a Covid-19, populações institucionalizadas, indígenas etc. Pelo segundo, a prioridade deve ser dada a indivíduos que, mesmo sem correr grande risco pessoal, desempenham funções essenciais e lidam como muita gente, o que os torna elos importantes na cadeia de transmissão: profissionais de saúde, policiais, certos comerciários, motoristas de coletivos, entregadores etc.

Como tudo é novo com essa doença, estamos fazendo as escolhas meio no escuro. Se as vacinas previnem a infecção e não só quadros sintomáticos, teríamos um motivo adicional para enfatizar a segunda estratégia. Se elas não funcionam tão bem com idosos, um efeito esperado, a melhor forma de proteger essa população pode ser imunizando não o indivíduo diretamente, mas as pessoas que se relacionam com ele.

Para tornar tudo mais complicado, há o problema dos "free riders", a turma que quer furar fila. Critérios como idade são relativamente fáceis de controlar. Já os que dependem de autodeclaração (sou motoboy) podem gerar confusão.

Aqui não há certo e errado, mas escolhas diferentes. Só o que é definitivamente errado é menosprezar a vacinação, como fazem alguns governantes.


Bernardo Mello Franco: O ralo da educação

O Senado fechou ontem um ralo que ameaçava sugar R$ 12,8 bilhões por ano da educação pública. O dinheiro pertence ao Fundeb, o fundo de apoio ao ensino básico. Na quinta passada, a Câmara abriu um dreno para direcioná-lo a escolas filantrópicas, confessionais ou comunitárias.

O contrabando foi patrocinado pela bancada evangélica. Coube à deputada Soraya Santos propor a mudança no texto original do Fundeb. A alteração foi aprovada com aval do governo, interessado no apoio das igrejas.

O bolsonarismo prometia combater a doutrinação política nas salas de aula. Era conversa fiada para perseguir professores e abrir caminho à doutrinação religiosa. As igrejas já contam com a isenção de impostos. Com a emenda aprovada na Câmara, passariam a receber repasses dos cofres públicos, numa afronta à laicidade do Estado.

“Existe um empenho para ampliar as escolas confessionais no Brasil. Isso está ligado às eleições de 2022 e ao aumento da influência das igrejas na política”, observa a presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz.

Ontem senadores usaram termos menos diplomáticos para descrever a manobra da Câmara. Rose de Freitas falou em “armação vergonhosa”. Paulo Paim classificou a emenda como um “golpe sem precedentes contra a escola pública”.

O Senado também fechou o ralo que ameaçava drenar dinheiro para escolas ligadas ao Sistema S. Até o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, admitiu que os colegas foram “longe demais” ao aprovar a ideia. “Daqui a pouco você vai ter uma redução de recurso público para escola pública”, afirmou, numa conclusão de fazer inveja ao Conselheiro Acácio.

A pandemia aprofundou as desigualdades na educação brasileira. Enquanto as escolas particulares se organizaram para oferecer aulas remotas, as públicas sofreram com a falta de infraestrutura e com a paralisia do MEC. A pasta já teve três titulares desde junho. O atual, que deveria proteger o Fundeb do proselitismo religioso, é pastor da Igreja Presbiteriana.


Fernando Gabeira: Aquele abraço

O general que confunde invernos e entraria em mais frias que Napoleão não se lembrou de comprar seringas

Quando William Shakespeare tomou sua vacina no histórico 8 de dezembro, confesso que o invejei. A primeira coisa que me veio à cabeça foi abraçar, depois de tantos meses, minha filha que vive longe daqui. Imaginei imediatamente quantos abraços e beijos estão congelados a 70 graus negativos, esperando o momento da vacina.

Mas aqui, caro Shakespeare, a vacina ainda é sonho de uma noite de verão. Gostaria também de voltar à estrada, passar longos dias no mato, voltar ao escurecer, com os curiangos voando diante do para-brisa, as primeiras luzes se acendendo na periferia da pequena cidade.

Aqui, William, somos reféns de um governo obscurantista, que não só negou a Covid-19, como o governo britânico no início, mas, ao contrário dele, nunca mudou de posição.

Não vou te cansar com detalhes biográficos. Para quem conheceu Hamlet, o nome Bolsonaro e seus dramas acabariam aborrecendo pela vulgaridade.

O fato é que ele acredita mais num remédio do que na vacina contra o coronavírus. Primeiro, importou da Índia insumos para hidroxicloroquina, e ela encalhou nos laboratórios do Exército. Depois, ao lado um astronauta, investiu milhões em pesquisa sobre um vermífugo chamado Anitta. Fracasso.

Ele escolheu um general para comandar essa guerra. É um especialista em logística que deixa milhões de testes contra Covid-19 adormecidos num galpão de São Paulo.

Esse general talvez fosse um personagem. Ele acha que o inverno brasileiro do Nordeste coincide com o europeu. E promete comprar vacinas se houver demanda, como se nenhum de nós sonhasse com o seu 8 de dezembro, William.

A única preocupação do homem que preside o país é que a vacina não seja obrigatória. Mas como poderia ser, se levaremos mais de um ano para vacinar todo mundo? Como tornar obrigatório algo que não está disponível. A liberdade será preservada.

Vejo nas redes sociais que seus seguidores temem que a vacina, sobretudo as que trabalham com RNA, possam mudar o código genético. Temem a vacina que você tomou, a da Pfizer, como se depois dela William Shakespeare deixasse de escrever e se tornasse lenhador na cidade de Warwick.

O Brasil talvez seja o único país onde as vacinas têm um peso ideológico. As chinesas são preteridas pelo governo porque são chinesas, têm o olho apertado e podem nos transformar numa multidão de fanáticos do comunismo invadindo as ruas com o livrinho vermelho na mão.

O general que confunde invernos e entraria em mais frias do que Napoleão não se lembrou ainda de comprar as seringas e agulhas, dessas que foram usadas aí, William, nessa terça-feira histórica.

Para não dizer que tudo aqui é cinzento e sem esperança, registro que podemos ver o terno e o vestido que o presidente e sua mulher usaram na posse, em 2019. Eles estão expostos, a entrada é grátis, e foram inaugurados com pompa, discursos sobre estilo e Jesus Cristo, ou como definir as medidas de um enviado dos céus.

Indiferente a tudo, o vírus avança. Nada mais fácil do que enlouquecer um país antes de destruí-lo.

O governo vai amarrar ao máximo o processo de vacinação, simplesmente porque não acredita nele. Em 1904 houve uma revolta contra a vacina. Será preciso uma outra revolta, desta vez para que as vacinas sejam usadas o mais rápido possível.

Será preciso lutar não só para a retomada econômica, mas para que nossas vidas sentimentais sejam reatadas como antes. Isso é até secundário, se consideramos o número de doentes e mortos que o atraso produz.

Contamos com alguns governadores, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não se pode dizer que sejam rápidos ou solícitos para entrar nessa luta. Mas são o que temos. Se for necessário, que se faça uma pressão sobre todos. Pode chegar o momento em que fique claro que não só o vírus, mas a elite burocrática e política brasileira, é um obstáculo de vida ou morte.

Se no combate contra um vírus há tanta hesitação, imagino em casos mais graves como numa guerra. O Exército, que na origem era aliado da ciência, produz um general obscurantista como Pazuello, o presidente que foi escolhido por milhões dedica-se a expor numa vitrine iluminada um terno escuro e o vestido que a mulher usou na posse.

Nem todos os que se sentem mumificados podem entrar num museu. Há critérios: é preciso tempo e história, até para um lugar no museu de horrores.