vacina

Merval Pereira: Pressão pela vacina

O governo, que pensava ter escapado de apresentar um plano de vacinação contra a COVID-19 exigido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), alegando questões burocráticas, agora não tem mais desculpas. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski deu um mês, a partir da decisão final do plenário virtual, para que apresente um plano de vacinação que “deve seguir critérios técnicos e científicos pertinentes, assegurada a maior cobertura vacinal possível, no limite de suas capacidades operacionais e orçamentárias".

Ao que tudo indica, o governo não tem nem mesmo um projeto de plano, pois, ao ser exigido pelo TCU, a Advocacia-Geral da União (AGU) valeu-se de uma alegação tecnocrática para se esquivar de apresentá-lo. Alegou que a decisão do TCU está equivocada, pois o tribunal não deveria ter listado a Casa Civil ao lado do Ministério da Saúde como um dos órgãos responsáveis pelo planejamento da vacinação.

Essa atribuição, de acordo com a AGU, é exclusiva do ministério, e por isso o governo pediu que o Tribunal alterasse a decisão. A AGU alega que seria “uma ingerência da Casa Civil nas competências institucionais próprias do ministério da Saúde”. Essa alegação esdrúxula não foi levada em conta pelo TCU, que deverá se reunir brevemente para rejeitá-la.

Mesmo com o uso do “data venia”, não é aceitável que o governo se escude em uma suposta falha burocrática para deixar de cumprir seu dever, que era o de apresentar um plano detalhado do planejamento para compra, produção e distribuição das doses da vacina. O TCU pedia também informações sobre a logística da vacinação, supostamente uma especialidade do ministro Eduardo Pazzuelo.

As mesmas exigências foram feitas ontem pelo ministro Ricardo Lewandowski, analisando ações de partidos políticos sobre a atuação do governo em relação à vacina Coronavac, do laboratório chinês Sinovac que estará sendo produzida no Brasil pelo Instituto Butantã em São Paulo. Os partidos pedem ainda que o governo seja obrigado a anunciar o plano de vacinação nacional, para obrigá-lo a não vetar a vacina chinesa, que está sendo testada também no Brasil.

Lewandowski deu 30 dias, a partir da decisão do plenário virtual que julgará o caso entre 4 a 11 de dezembro. Se o voto do relator for aprovado pelo plenário, o governo terá, a partir daí, o prazo fixado ontem para apresentar ao STF "um plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou que pretende desenvolver para o enfrentamento da pandemia, discriminando ações, programas, projetos e parcerias".

O ministro do STF Ricardo Lewandowski ponderou que, diante da possibilidade concreta de que as diversas vacinas, em breve, completarão com sucesso os respectivos ciclos de testes, mostrando-se eficientes e seguras (…) “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da Covid-19, não podendo ela descartá-las, no todo ou em parte, salvo se o fizer - e sempre de forma motivada - com base em evidências científicas sobre a sua eficácia, acurácia, efetividade e segurança, bem assim com fundamento em avaliação econômica comparativa dos custos e benefícios".

Os dois movimentos, do TCU e do STF, destinam-se a obrigar o governo a não se submeter à vontade pessoal do presidente Bolsonaro, que se declarou contrário à compra da vacina desenvolvida na China, mesmo que ela fosse aprovada pela Anvisa, a agência brasileira que controla os medicamentos.

As reações foram tão contundentes que Bolsonaro deixou de insistir no assunto, mas a Anvisa teve uma atuação discutível na suspensão dos testes da vacina devido à morte de um dos vários voluntários brasileiros. O caso, porém, foi de suicídio, e nada tinha a ver com a eficiência da vacina, tanto que em 24 horas os testes foram retomados.

Mesmo assim, Bolsonaro chegou a insinuar que a vacina poderia ter produzido efeitos colaterais que levara o voluntario à morte. Diante de um ministério da Saúde e de uma Anvisa totalmente dominados pelo presidente, os órgãos de controle, como TCU e Supremo, estão exigindo o planejamento para a vacinação em massa, sempre o apoio científico para as decisões.


Hélio Schwartsman: O doce sonho do infectologista

Um infectologista otimista talvez sonhasse com uma vacina contra a Covid-19 com 95% de eficácia, mas acho que nem o mais panglossiano deles esperaria dois imunizantes que oferecessem tais níveis de proteção. Não obstante, foi exatamente o que vimos nos últimos dias, com dois laboratórios, Pfizer/ BioNTech e Moderna, anunciando resultados dessa magnitude em seus ensaios de fase 3. Bônus leibniziano extra: ambos os produtos parecem funcionar bem também para idosos, o que era uma preocupação.

Coincidentemente, os dois fármacos se valem de uma tecnologia genética nova na produção de vacinas, a de RNA mensageiro. Resta saber se ela é muito superior às outras ou se o Sars-CoV-2 é um vírus facilmente “vacinizável”. Vamos saber em breve, assim que forem divulgados os resultados dos testes de imunizantes que empregam outras técnicas.

Ainda falta conhecer detalhes importantes, mas, havendo vacinas com tais níveis de eficácia, dá para pensar em controlar a pandemia em escala global ao longo dos próximos dois anos. Tudo dependerá da logística de produção, distribuição e aplicação, que não é trivial. Estamos falando de bilhões de doses, bilhões de seringas (será que não é o caso de reavivar as velhas pistolas de vacinação?) e de enorme mobilização de pessoal.

As vacinas genéticas, diferentemente das que utilizam outras técnicas, precisam ser conservadas sob temperaturas muito baixas — 70°C negativos no caso da da Pfizer. Não chega a ser um impeditivo, já que é possível fazer o transporte final, de poucos dias, em gelo seco, mas é uma dificuldade, que exige ainda mais dos planejadores.

Há boas notícias até para o presidente Jair Bolsonaro, que age como um inimigo jurado das vacinas. Com 95% de eficácia, inclusive entre idosos, imunizar-se se torna mais uma questão de proteção individual do que um dever comunitário. Fica mais fraco o caso da obrigatoriedade da vacinação.


Cristiano Romero: A nova onda

Enfrentamento da pandemia agora será muito mais difícil

A segunda onda da pandemia no Brasil já é uma realidade. Em São Paulo, segundo revelou a esta coluna o secretário de Fazenda do governo estadual, Henrique Meirelles, o número de internações nas redes hospitalares pública e privada em São Paulo cresceu 18% neste mês. Isso já caracteriza uma retomada forte do contágio da população pelo novo coronavírus. Aparentemente, a faixa da população mais afetada tem sido as classes A e B, mas não surpreenderá ninguém se, em breve, as estatísticas mostrarem o aparecimento massivo de casos de covid-19 também entre as camadas menos favorecidas da população.

O que é ruim para os Estados Unidos, onde a segunda onda da pandemia tem feito a nação mais rica do planeta bater recordes seguidos de novos casos por dia e mortes, não deveria sê-lo para o Brasil, o vice-campeão no desonroso torneio de quem dá mais vexame nesta crise sanitária. Meirelles afiança que São Paulo adotou os mais rigorosos protocolos de segurança do país, antes de autorizar o relaxamento do isolamento social, especialmente, para as empresas interessadas em voltar o mais rapidamente possível às atividades normais, o que inclui o trabalho presencial.

A nova onda, pelo menos em São Paulo, estaria sendo provocada pelo comportamento das pessoas fora do trabalho, ou seja, na vida privada. De fato, depois de conviver _ e respeitar, em sua maioria _ as restrições impostas pelo isolamento social, paulistanos voltaram às ruas para celebrar a vida. O motivo é justificável, uma vez que o novo coronavírus tem se mostrado muito mais perigoso do que se dizia no início da pandemia e infectar-se ou não é jogar na loteria, mas o fato é que aglomerações, em locais abertos e fechados, são vistas em todos os lugares e não apenas nos bairros boêmios da capital paulista.

O resultado será trágico tanto em número de perdas de vidas quanto em seus impactos na economia brasileira, que passa por situação muito delicada, o que significa que o espaço para minorar os efeitos econômicos de uma nova onda da crise sanitária é diminuto. A pandemia chegou ao país no momento em que a situação das contas públicas começava a melhorar, mas ainda estava muito longe de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Operando com déficits primários (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida pública) desde 2014, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) obrigou o Tesouro Nacional a ir ao mercado endividar-se, via emissão de títulos públicos, para poder pagar as contas. Quando gerava superávits no conceito primário, o setor público usava os recursos para honrar os juros da dívida e, se possível, reduzir seu estoque.

O controle da evolução da dívida não é uma abstração. É um expediente que, levado a sério, melhora com o tempo a vida de todos os brasileiros. Senão, vejamos: quanto menor é a dívida de um governo, menor é sua despesa com os juros dessa dívidas e menor também é o seu custo de rolagem (ver tabela). Isso faz com que sobre mais dinheiro no orçamento para o Estado usar no que realmente interessa, numa democracia cujo regime econômico é o livre-mercado: igualar oportunidades por meio de políticas afirmativas que procurem compensar as distorções sociais provocadas pelo racismo, da oferta de ensino fundamental público de qualidade e de saúde universal.

O Brasil quebrou em 1982, nos anos seguintes centralizou o câmbio, aplicou calotes no pagamento das dívidas externa e interna, tornando-se um pária no mercado de crédito internacional. Só recebia dinheiro de instituições multilaterais de crédito e olhe lá. Sucessivos governos depois, sendo que cada um deu sua contribuição para melhorar a situação fiscal, obteve, em 2008, o grau de investimento (o equivalente ao selo de bom pagador) das agências de classificação de risco.

Antes de obter o grau de investimento em maio de 2008, registre-se, o país concluiu a renegociação da dívida externa durante o governo Itamar Franco (1992-1994), promoveu também a federalização das dívidas dos Estados em 1997 na gestão Fernando Henrique Cardoso _ uma medida crucial para a consolidação das contas do setor público e, por que não dizer, para o fechamento de uma das principais fontes inflacionárias da economia brasileira _ e, no governo Lula, antecipou a quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional.

Aquele momento teve uma carga simbólica, embora muitos não tenham prestado atenção, até porque, justiça seja feita, o tsunami da crise mundial deflagrada pouco menos de um ano antes nos Estados Unidos já se avistava no horizonte. Mas o fato é que foi justamente a disciplina fiscal dos anos anteriores, consagrada no grau de investimento obtido em maio de 2008, que deu ao Brasil as condições de enfrentar bem aquela que é considerada a maior crise da história do capitalismo. O país sofreu uma recessão técnica (dois trimestres consecutivos de PIB negativo) e, por causa do espaço para adotar estímulos fiscais, saiu da crise rapidamente e, no ano seguinte, expandiu-se à taxa de 7,5%, a mais alta em 24 anos.

Tudo isso virou pó em apenas sete anos. De 2008 a 2015, o gasto corrente da União cresceu 50% acima da variação da inflação no período, enquanto as receitas avançaram 17%. O descompasso provocou a explosão da dívida. Desde então, as contas não saíram mais do vermelho. Com a pandemia e a justificável necessidade de o governo conceder estímulos fiscais para ajudar pelo menos uma parte das empresas afetadas pela crise e dar meios de sobrevivência a um universo de 67 milhões de brasileuiros em situação vulnerável, a dívida chegou, em setembro, ao equivalente a 90% do PIB.


Jamil Chade: Bolsonaro chega ao limite da indecência ao banalizar a morte

A opção do presidente por comemorar um suposto fracasso de uma vacina e usar um cadáver como instrumento de poder coloca em letras garrafais a dimensão da crise ética que vivemos

Basta!

O vírus matou a legitimidade do Governo de Jair Bolsonaro. E se isso ainda era motivo de dúvidas para uma parcela da população, a opção do presidente por comemorar nesta semana um suposto fracasso de uma vacina e usar um cadáver como instrumento de poder colocou em letras garrafais a dimensão da crise ética que vivemos.

Imoral, o Governo da fraude, da violência, da ameaça e da mentira banalizou a morte.

As urnas o levaram ao poder. Mas sua legitimidade não se limita ao que ocorre na votação. Numa democracia, existe um ponto mágico no qual um Governo deixa de ser legítimo. Isso acontece quando ele não só se mostra incapaz de proteger seus cidadãos, mas atua deliberadamente para ampliar o sofrimento.

A chegada do vírus não foi uma responsabilidade do Governo. Mas esteve em suas mãos a opção por um outro caminho que jamais foi assumido. A pior crise sanitária em 100 anos poderia ter mobilizado uma nação por sua sobrevivência.

Em sua obra A negação da morte, Ernest Becker apresenta a civilização humana como mecanismo de defesa contra a consciência de nossa morte. Estudos revelam ainda que uma população, quando confrontada com um desafio existencial, está disposta a abraçar um líder forte que, pelo menos psicologicamente, dá sinais de proteção.

Paradoxalmente, líderes tidos como “fortes” como Bolsonaro e Donald Trump mostraram como tais termos são meras narrativas construídas para justificar uma característica que não passa de uma cortina de fumaça para esconder personalidades medíocres.

Asfixiada, a alma de um país encontrou ironicamente na distante eleição americana de um político tradicional um motivo para comemorar como se a escolha tivesse sido sua. Como se aquela alma machucada tivesse recebido um sopro de esperança diante de jovens de todas as cores que tomaram as ruas das cidades dos EUA para destravar quatro anos de um grito preso no peito.

Pária, Bolsonaro mergulha o país em sua irrelevância internacional e aprofunda o extremismo de suas declarações. Nesta semana, ensaiou uma ameaça contra Joe Biden, evocando a “pólvora” quando acaba a diplomacia. Mas, acima de tudo, foi na contramão de todas as grandes democracias do mundo ao não reconhecer a queda de Trump.

Não se trata apenas de manter um aliado. Ao se recusar a admitir o resultado, Bolsonaro fez uma demonstração perigosa de como está disposto a reagir se for derrotado em 2022.

Não há espaço para eleger santos. Mas chegou a hora de frear um movimento antidemocrático diante das evidências do caráter irresponsável de um líder. Talvez, assim, evitaríamos que esse movimento transforme uma nação em um experimento de destruição.

Evitaríamos que esses mesmos líderes transformem a sociedade em uma longa noite de pesadelos que, como num caleidoscópio, vão ganhando novos monstros a cada giro.

Em cada giro, uma dor do desmonte de uma democracia. Na história dessa dor, cada percurso de uma lágrima passa a ser tão vacilante como o rumo de uma nação que parece ter se esquecido de seu destino.

No poder, aqueles que conduzem o Estado deram claras demonstrações nesta semana de que não respeitam qualquer tipo de fronteira da ética.

Juntos, precisamos acordar desse pesadelo. O desafio não é o de travar uma batalha entre esquerda e direita. Mas sonhar com a construção da paz social, com a vitória da verdade.

As instituições precisam reagir, a sociedade não pode se calar e terá de se organizar. Não é mais o momento de transformar ataques à democracia em memes bem elaborados. Esse espaço, agora, precisa ser preenchido pela indignação, pois o que está em jogo é nosso futuro.

Chegamos ao limite da indecência e da imoralidade. Basta!


Ascânio Seleme: Bolsonaro criminoso

Presidente mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte

A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão. Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.

Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.

Talvez o Tribunal de Contas da União possa identificar um outro crime, de interferência indevida do presidente numa agência reguladora, se tocar para valer a investigação solicitada pelo Ministério Público. Difícil não enxergar essa interferência diante do que se viu antes e logo depois da decisão da Anvisa de suspender as pesquisas do Butantan. Para começar, a nota noturna da Anvisa suspendendo os testes já apontava o caminho pelo qual transitaria o capitão logo em seguida. Ao afirmar que houve um evento adverso grave, e mesmo já sabendo se tratar de possível suicídio, listou o que podem ser esses eventos (morte, invalidez, anomalias), dando munição a Bolsonaro.

Todos os erros cometidos pela Anvisa parecem deliberados. 1) A agência não esperou nem sequer o amanhecer para tomar a decisão de suspender a pesquisa. 2) A Anvisa não aceitou a ponderação do Butantan sobre a morte do homem que testara a vacina por não a considerar formal (queria um boletim de ocorrência da polícia), ao contrário do Comitê Internacional Independente e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 3) O contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da agência, disse não ser parceiro do Butantan. Patético. Os responsáveis pelos testes mereciam confiança, e o BO poderia se ver depois; claro que a Anvisa poderia esperar mais detalhes antes de suspender os testes. E, evidentemente, todos deveriam estar do mesmo lado contra a pandemia.

O contra-almirante e os dois subordinados que deram entrevista explicando a decisão apressada foram instrumentos do presidente. O que Bolsonaro queria era ter um ganho político sobre Doria na reta final da eleição municipal. Seu candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, vai tão mal que talvez nem chegue ao segundo turno. Doria, por sua vez, torce para que ele avance e seja o adversário de Bruno Covas, para dar uma coça em Bolsonaro. As explicações da trinca da Anvisa, Barra Torres, Alessandra Bastos Soares e Gustavo Mendes, na entrevista de terça-feira foram ridículas. Mesmo sabendo desde a véspera que a morte não se devia à vacina, insistiram que o aspecto formal era inevitável. Não era. Tanto que recuaram 24 horas depois.

Sabia-se desde sempre que o contra-almirante era um bolsonarista sem máscaras. Nos bastidores da Anvisa comenta-se que o mandato da diretora Alessandra Bastos Soares vence em abril do ano que vem, e ela busca sua recondução para o cargo. Talvez isso explique a condescendência com decisão baseada em premissas tão frágeis. Sobre o papel do técnico Gustavo Mendes, que disse na entrevista estar falando em nome de todos os seus colegas sem apresentar procuração, sabe-se na Anvisa que ele é daqueles quadros em que os chefes podem sempre confiar.


Vera Magalhães: Masculinidade frágil

Derrota de Trump e agruras do 01 abalam confiança de Bolsonaro

Jair Bolsonaro é uma cobaia ambulante para qualquer tese psicanalítica. Ontem, diante de tantos “eventos adversos graves” para si, sua família e o seu projeto político, o presidente surtou. Como sempre acontece com ele, esses surtos envolvem ao mesmo tempo decisões graves, com consequências para o País, e arroubos que funcionam mais como cortina de fumaça para tentar esconder suas fragilidades.

Vamos separar o joio do trigo. Ou o joio do joio, pois não há trigo nesse silo.

No rol dos absurdos com graves consequências para o Brasil está a decisão da Anvisa de paralisar os testes da Coronavac por conta de um efeito adverso grave com um entre mais de 13 mil voluntários dos testes clínicos da vacina desenvolvida em parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac. Acontece que a morte desse paciente nada teve a ver com a vacina.

Sem fazer questão de esconder o caráter puramente político da decisão, que escancara o aparelhamento da agência, o presidente se arreganhou: “Mais uma que Bolsonaro ganha”.

A masculinidade frágil é um fenômeno que atinge homens heterossexuais inseguros, que precisam a todo momento reafirmar sua superioridade. Ganha? O presidente comemora vitória sobre seu adversário João Doria Jr. sapateando desrespeitosamente nos cadáveres dos mais de 162 mil brasileiros mortos pela covid-19, e especialmente no desse paciente transformado em bode expiatório.

Como esses surtos denotam justamente o contrário de “vitória”, vê-se que Bolsonaro sentiu as derrotas recentes. A começar pela de Donald Trump, para a qual passou recibo na “superterça” da alucinação. Numa solenidade oficial, buscou ajuda do infalível Ernesto Araújo para dizer que Joe Biden, a quem chamou de postulante a chefe de Estado (a negação é outra característica da psique bolsonarista) estaria ameaçando nossa soberania e, nesse caso, não bastaria a diplomacia. “Tem que ter pólvora, senão não funciona.” É de um ridículo de dar pena.

Não faltou, claro, o tradicional comentário homofóbico, também recheado de desdém com a morte. Diante das perdas para a covid-19, sapecou que temos de deixar de ser “um país de maricas”.

Até quando o Brasil terá de aguentar esse tipo de postura por parte de seu mais importante mandatário?

Para as bravatas e as grosserias que denotam a masculinidade frágil há pouco a fazer, a não ser esperar as urnas e que a onda de racionalidade que ajudou a varrer o trumpismo nos Estados Unidos sopre para cá.

Mas a paralisia da pesquisa de uma de várias vacinas que podem nos livrar do flagelo da pandemia é outra história. Nesse caso é urgente e inescapável que os que têm prerrogativa ajam. É preciso que Ministério Público da União, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Instituto Butantan ou entidades da sociedade civil tomem a frente de uma ou múltiplas ações com pedido de cautelares no Supremo Tribunal Federal para sustar a decisão da Anvisa.

Bolsonaro e o almirante Antonio Barra Torres, o bolsonarista no comando da agência, sabotam o combate à pandemia tendo como objetivo atingir um adversário político. A fala do presidente é prova cabal contra si, e nela há vários indícios de que ele recebeu informações que a agência não poderia lhe fornecer.

E o Supremo precisa voltar a conter os ímpetos letais de um presidente atordoado por derrotas políticas, como o péssimo desempenho de seus candidatos a prefeito de Norte a Sul, o fim do sopro de popularidade do auxílio emergencial, a derrota do “amigão” na América e o agravamento das evidências de crimes variados por parte de seu filho Flávio. É um pacote pesado para quem tem masculinidade frágil, mas descontar na vida da população é crime de responsabilidade.


Míriam Leitão: Um presidente que atormenta

O Brasil está vivendo a maior tragédia de saúde pública em um século, e o presidente comemora. Há 162 mil mortos, e o presidente diz “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Não há vitória para qualquer pessoa num país que conta seus mortos. Esta é uma guerra pela vida que deveria unir, que tinha que seguir o comando apenas da ciência e da medicina. O drama que levou uma pessoa de apenas 33 anos não pode ser vitória de ninguém. Esta não é a primeira vez que Bolsonaro atenta contra a saúde pública espalhando descrédito contra uma vacina que pode vir a ser aprovada, não é a primeira vez que ele trata essa calamidade nacional como se fosse uma disputa de egos ou o palanque antecipado de 2022.

Até quando as instituições vão ignorar o fato de que há crime envolvido nisso? Vários crimes. Tipificados e arrolados no Código Penal para quem ameaça a saúde pública e o faz dessa forma, insistente e cotidianamente. Desde o início da pandemia, o presidente Bolsonaro cometeu inúmeros absurdos como o de combater a proteção contra o vírus. Ontem o país amanheceu com mais um tormento criado por ele.

Ele postou que a vacina que está sendo pesquisada pelo Instituto Butantan e a Sinovac na China traz “morte, invalidez e anomalia”. Não há qualquer comprovação. A postagem delinquente diz ainda que essa é a vacina que o “Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la”. Com essas palavras ele está considerando a suspensão da Anvisa como definitiva? E termina com a frase horrenda, dadas as circunstâncias envolvidas, a de que é “mais uma que Bolsonaro ganha”.

A consequência foi lançar sobre a Anvisa a dúvida da politização. Os brasileiros precisam da Anvisa técnica, mais do que nunca. Os servidores certamente vão seguir seus protocolos com responsabilidade. Mas o evento cria uma névoa sobre a agência. Em nenhum momento, na entrevista de ontem, a Anvisa esclareceu que não considera que a vacina cause o que o presidente insinuou. O contra-almirante Antonio Barra Torres, para defender a agência que preside, deveria negar o que o presidente disse. Preferiu a tangente, ao dizer que não teceria comentários sobre questões políticas. Mas o que Bolsonaro tinha dito era um diagnóstico: “morte, invalidez e anomalia.” Se causa tudo isso, ele tem que dizer. Se não há qualquer indício, ele tem que dizer.

E por que ele não diz? Não é para proteger a Anvisa de contaminação política. Ele é o caminho dessa contaminação. Barra Torres foi o mesmo que participou de uma manifestação antidemocrática ao lado de Bolsonaro, sem máscara, gerando aglomeração no meio de uma pandemia.

Os testes com uma das vacinas mais promissoras foram suspensos pela Anvisa numa decisão que ainda não foi completamente esclarecida. A agência diz que seguiu o protocolo, já que houve um “evento adverso grave”. O Instituto Butantan disse que enviou o comunicado no dia 6, e que na segunda-feira, dia 9, às 20h40, recebeu a resposta de que os testes estavam suspensos. A Anvisa diz que o ataque de hacker impediu que ela recebesse no dia 6. O Instituto disse que como a agência havia convocado a reunião para a manhã de ontem, poderia ter esperado a conversa. A causa da morte do voluntário, segundo o IML, foi suicídio, portanto, sem relação com a vacina em si. Tudo isso poderia ser apenas — e já seria grave no contexto de uma pandemia — desentendimento burocrático entre o regulador e o produtor de vacinas. Mas o presidente da República tornou tudo mais grave.

Numa pandemia, o Brasil precisa manter a confiança na Anvisa e no Instituto Butantan. Se a Anvisa autorizar e o instituto produzir, a credibilidade dos dois órgãos será fundamental para que os brasileiros se imunizem. Da mesma forma o país precisa ter confiança no imunizante a ser produzido pela Fiocruz. Ou qualquer outro que seja importado pelo governo.

O Brasil tem um presidente que atormenta, que escolheu fazer parte do problema e não da solução. Ele politizou o Ministério da Saúde e o transformou numa sombra do que já foi, brincou com essa doença como se ela não tivesse a seriedade que tem, inoculou em seus seguidores a desconfiança na ciência e nas vacinas, prescreveu remédios sem comprovação científica, estimulou aglomeração e maus hábitos. O que falta para Jair Bolsonaro entender a dor do Brasil?


Merval Pereira: O medo da morte

A atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia.

Se não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro, cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera.

O tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose, ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental.

Mas há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília (UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso de máscara.

A crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita, está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden.

Pereira diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando performance pífia nas pesquisas de opinião”.

As pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”. Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo “equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores, e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas respectivas identidades.

“As identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo deslocou os eixos da polarização política no Brasil”.

O “medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido, capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”.

Esse extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira.

Muitos dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais perdas econômicas.

“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.


Miguel Reale Júnior: Vacina obrigatória

Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III - determinação compulsória de (…) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Eliane Cantanhêde: No Forte Apache…

Em forte sem comandante, pode faltar gás no Posto Ipiranga e tinta na caneta Bic

O embate entre o capitão da caneta Bic e o general de Exército com ordem de comando marca uma nova etapa na relação do presidente Jair Bolsonaro não só com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas com as Forças Armadas. A unanimidade aparente ruiu, a insatisfação silenciosa emergiu e o momento é de avaliação de danos, ou de contagem de votos para um lado e para outro.

Sem noção da gravidade na saúde, na economia, no ambiente, na política, o presidente acha que pode falar e fazer o que lhe vai pela cachola, trocando a responsabilidade do cargo pelo oba-oba de uma campanha extemporânea, divertindo-se com a “boiolagem” cor-de-rosa do Guaraná Jesus, humilhando o general da Saúde, tirando o gás do ministro da Economia e guerreando contra a “vacina do Dória”.

É puro non-sense, mas Bolsonaro vai comprando lealdade com cargos e camaradagem. Qual um paizão às antigas, grita e dá umas palmadas, fingindo não ver a safadeza do caçula com o mais velho, mas resolve tudo bajulando o ofendido. A vítima dá um sorrisinho e cede: “um manda, o outro obedece”. Pergunte-se a Paulo Guedes e aos generais Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Eduardo Pazuello e todos reagem com um sorriso condescendente: “o presidente é assim mesmo, diz tudo na bucha, mas gosta muito de mim”.

O passo seguinte é descrever uma situação em que Bolsonaro, depois de mais uma bordoada, fez uma gracinha e alisou o ego do subordinado diante de um microfone. Pazuello teve direito a vídeo no leito da covid, Ramos foi paparicado com passeio de moto e num discurso em que foi tratado como “meu amigão”, não Secretário de Governo e articulador político. Comovido, deixou pra lá o “Maria Fofoca” disparado por Ricardo Salles.

Desanimado, mas tentando demonstrar o contrário, Guedes tem definido o governo como um forte apache cercado de índios e flechas, mas com todo mundo dentro guerreando entre si. Ele não diz, mas isso só ocorre em forte apache em que o comandante não comanda e soldados fazem o que querem. Um dado relevante no incômodo crescente do oficialato é a desenvoltura que Bolsonaro confere à tal “ala ideológica” dos filhos, Salles e os Weintraub que pululam no governo. O próprio, demitido da Educação, foi curtir a vida nos States, ganhando em dólar no Banco Mundial.

Em sequência, Bolsonaro disse que não vai comprar a “vacina da China” e desautorizou o anúncio feito por Pazuello aos governadores e ao País, Salles atacou Ramos como “Maria Fofoca” e o presidente da Câmara como “Nhonho”, até que o general e ex-porta-voz Otávio do Rêgo Barros alertou em artigo que o poder “inebria, corrompe e destrói” e que líderes não podem ficar reféns de “comentários babões” e “demonstrações alucinadas”.

Na contabilidade do Planalto, 90% dos militares ficaram irritados com Rêgo Barros. Nos corredores militares, a avaliação é diferente, com muitos aliviados por alguém, enfim, sair da toca para reforçar o general Santos Cruz e dizer o que precisava ser dito. A diferença é que, nos palácios, dizem o que os poderosos querem ouvir. Nos bastidores, é mais fácil ser sincero.

No fim, Mourão firmou sua independência (ou descolamento), desdenhando da briga política com o governador de São Paulo, falando pragmaticamente sobre a China e desdizendo o presidente: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”. A reação de Bolsonaro foi de confronto: “A caneta Bic é minha”. A guerra está só começando.

O desconforto bate nas Forças Armadas, Itamaraty, várias áreas de governo e da sociedade, com reflexo no Congresso, onde nada anda e há um risco real: chegar a 2021 sem Orçamento aprovado. O Forte Apache precisa de um chacoalhão. Assim como o Posto Ipiranga está perdendo gás, a caneta BIC também pode perder a tinta.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Vinicius Torres Freire: Carta sobre a vacina brasileira para o leitor cansado do coronavírus

O que o SUS, a Alemanha e a recaída europeia dizem sobre a doença no Brasil

A Alemanha acha que é difícil vacinar seus 83 milhões de habitantes até o final de 2021. Sim, vacinar contra a Covid. Sim, a eficiente, organizada e disciplinada Alemanha. Aplicar 100 mil doses por dia seria “um desafio”, disse na semana passada Thomas Mertens, o chefe do Comitê Permanente de Vacinação do Instituto Robert Koch, agência alemã de controle e prevenção de doenças.

No Brasil, o SUS chega a atender 1 milhão de pessoas por dia nas campanhas de vacinação contra a gripe. Em alguns anos, esteve preparado para vacinar quase 1,5 milhão de pessoas por dia, em cerca de 65 mil postos.

Isso dá o que pensar nas burrices que o governo diz sobre vacina e sobre as nossas possibilidades de conter a doença, muitas desperdiçadas de modo criminoso até agora.

Sim, de um modo ou de outro, estamos fartos de ouvir, falar ou saber de coronavírus. Mas ainda podemos fazer um esforço para atenuar a situação e reagir contra a ignorância homicida. Se por mais não fosse, a Europa nos dá outro alerta de perigo, como em março.

Ainda não há vacina. Alguns países, Alemanha, Estados Unidos, Indonésia ou Brasil, se preparam para distribuí-las a partir de dezembro, mas apenas isso: preparam-se para o melhor. Cientistas discutem ainda a possibilidade de, a princípio, usar as vacinas apenas de modo comedido, limitado, experimental mesmo. Há quem diga que a vacinação precoce pode até atrapalhar a continuidade dos testes de eficácia e segurança, que ainda prosseguirão por meses ou anos.

Anthony Fauci disse nesta semana que talvez em dezembro apareçam dados suficientes para que uma ou duas das vacinas que estão sendo testadas nos Estados Unidos possam ser submetidas à aprovação das autoridades sanitárias. A vacinação ficaria então para o início do ano que vem, se tudo der certo. Fauci é chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e a autoridade oficial americana em matéria de Covid.

Isto posto, é um crime contra a humanidade enxovalhar a vacinação em geral, como faz Jair Bolsonaro, ou uma possível vacina contra a Covid, seja anglo-sueca, chinesa, americana, alemã ou russa. Devemos nos preparar para oferecer vacinas e não esquecer que a epidemia está longe de terminar.

Os mortos por Covid no Brasil ainda são o triplo do número de assassinados no país, na média por dia. A Covid mata 15 vezes mais que o HIV, ainda pela média diária. Quatro vezes mais que os acidentes de trânsito.

Na União Europeia, o número diário de mortes baixara muito até julho, quando chegou a 0,2 por milhão de habitantes. Agora está em 2,9 por milhão, por dia, e crescendo rápido. No Brasil, estamos com 2 mortes por milhão, por dia. Mas há indícios que a taxa geral de infecção por aqui não seja lá muito diferente da espanhola, por exemplo –haveria muita gente que pode ser infectada ainda. Assim, em tese, é possível um repique da doença. Não sabemos, mas o risco é sério.

Os maiores países da Europa voltaram a fechar as portas de muito negócio e atividade. Mesmo antes disso, em outubro, a economia já balançava de novo, se é que a recaída na recessão já não estava ocorrendo. Não é o “lockdown” que derruba os negócios, mas a doença. Mesmo quase sem restrições oficiais, o movimento nos trens e metrôs de São Paulo ainda é a metade do que se via no ano passado.

Há esperanças: uma vacina, o nosso SUS e que a maioria de nós não seja infectada pela desumanidade presidencial. Enquanto esperamos, nós que aqui estamos temos de tomar cuidado ainda. A Europa está nos avisando.


Janio de Freitas: Firmeza de Mourão não é a de opinião pessoal

Entrada repentina do vice nos temas da vacina e do 5G indica a voz que fala mais grosso

O firme pronunciamento do vice Hamilton Mourão, contraposto a afirmações incisivas de Bolsonaro, suscita duas interpretações, mas é provável que as duas sejam uma só, com duas roupagens. E, como preliminar, note-se que o dito pelo vice tem mais do que o sentido de confronto, estendendo-se a importante inversão nas relações externas.

Bolsonaro vetou a compra, em qualquer tempo, de vacina chinesa contra a Covid-19: “Não vai haver compra, ponto final”. Antes, usou do mesmo tom definitivo a propósito do sistema 5G, que revolucionará as possibilidades de comunicações. Atrasados na criação do seu sistema, os Estados Unidos de Trump não admitem que o Brasil adote o sistema chinês, o qual, além da vantagem em tempo, evitaria custosas mudanças nos equipamentos de telecomunicações usados aqui, com muitos componentes chineses.

No seu estilo sucinto e de uso das entrelinhas, Mourão antecipa-se a novidades prenunciadas na campanha eleitoral americana. Joe Biden já indicou mais de uma vez que, se eleito, esvaziará a tutela imposta pelos Estados Unidos na América Latina. Com isso, aos países e só a eles caberia a escolha de suas relações comerciais e políticas. Não é o desejado por Bolsonaro, servil a Trump: “Quem vai escolher sou eu. Sem palpite por aí”.

O general-vice, porém, é claro: desde que asseguradas “soberania, privacidade e economia”, qualquer produtor de sistema 5G estará apto a disputar a adoção brasileira. O que, é claro, incluirá o sistema chinês indesejado por Bolsonaro.

A firmeza de Mourão não é a de opinião pessoal. Também não é a do vice de um governo que tem posição pública oposta.

Na competição política com João Doria em torno da vacina Sinovac, chinesa, a irracionalidade natural de Bolsonaro está perdendo. Mourão tanto parece dar-lhe um socorro, como parece aplicar-lhe um safanão excludente: “É lógico que o Brasil vai comprar o imunizante. O governo não vai fugir disso aí”, dos 46 milhões de doses previstos de início.

O passado guarda vários casos de divergência embaraçosa entre Bolsonaro e Mourão. As diferenças na comparação com as atuais começam no ambiente. O que lá atrás eram previsões, hoje é o notório desgaste do Exército, com os papéis deploráveis de vários do seus generais instalados no governo.

São exibições ora de arrogância e desatino, ora de ignorância e servilismo, diversas vezes de pusilanimidade sob ofensa e desmoralização. Isso tudo como personagens de um governo imbecilizado, destruidor, ridículo no fanatismo, negocista com o patrimônio nacional, sem projeto e sem rumo, antissocial e mortífero.

A interpretação de que Hamilton Mourão veio fortalecer as críticas dos generais Santos Cruz, mais diretas, e Rêgo Barros é cabível. Até óbvia. Mas a entrada repentina de Mourão em dois temas de grande relevância atual, em ambos levando Bolsonaro à beira do abismo, não é voz de decepções, arrependimento ou ressentimento. É voz mais grossa.

De modo diferente do planejado sob indução e orientação do general Eduardo Villas Bôas —quando, apesar de quase invalidado por doença neuromuscular, comandava o Exército porque visto como democrata—, estamos vendo os passos iniciais de um governo mais sob decisões e comando de militares do Exército do que de Bolsonaro e seu grupo.

O títere do plano, o presidente-laranja, fracassa. Se deterá os passos adversários, logo se verá. Enquanto isso, é justo reconhecer que o tropeção dessa aventura antidemocrática se deve tanto a Bolsonaro quanto aos generais ineptos que o circundam.

DOIS COADJUVANTES

A reunião de Bolsonaro com advogados de seu filho Flávio, no crime das “rachadinhas”, contou com duas presenças inadmissíveis: Augusto Heleno Pereira e Alexandre Ramagem. O general do Gabinete de Segurança Institucional e o delegado da Polícia Federal que dirige a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Dois cargos que proporcionam meios múltiplos de interferências em investigações policiais, em conduta de envolvidos e em ação do Ministério Público.

O procurador Lucas Furtado, frequente condutor de questões importantes no Tribunal de Contas da União, pediu que o tribunal investigue o uso de meios governamentais para favorecer o complicado Flávio Bolsonaro. Mas são necessárias providências também em outros âmbitos.

Bolsonaro não chamou assistentes jurídicos. Logo, Augusto Heleno e Ramagem estiveram na reunião em razão dos seus cargos, usando-os em ato contra a comprovação de crimes graves como o de corrupção para apropriação de dinheiro público.